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Anabela Mota Ribeiro

Alexandra Lucas Coelho

28.07.13

Alexandra Lucas Coelho é jornalista. O diário da sua viagem ao Afeganistão resultou no livro “Caderno Afegão”, editado pela Tinta da China. Uma parte desses textos/reportagens foram publicados no Público e na Antena 1. Pela mão da jornalista, somos levados a um país onde “tudo cheira mal como se estivesse podre” e nas “rotundas há rosas lindas”. Onde há uma equipa de boxe feminina e “as burqas estão sempre à mão”.  

 

 

O que é que cresceu nesta viagem? Num país onde há sítios “onde tudo parece possível, até a paz”.

 

A realidade. Pessoas que são o Tareq, o Rameen, a Shaharzad, a Sofia. Lugares que se chamam Cabul mas também Band-e-Amir, e já tinham poetas quando os portugueses ainda estavam a tentar descobrir o mundo. Cada história é um país, mas para a ouvir temos de chegar perto.

 

O seu livro é um relato de medo e de coragem? Uma vez, acorda com tiros na parede atrás da cama. Em Kandahar escreve: “O que estou aqui a fazer? É como se o céu a todo o momento fosse explodir”.

 

Não há viagem sem medo. Avançamos contra o medo, escrevemos num caderno contra o medo, e é contra o medo que nos aproximamos das pessoas. Há medo quando não sabemos se somos o alvo, ou pior, quando o alvo é completamente arbitrário. Deixa de haver medo quando nos sentimos em casa. Na primeira noite em Kandahar, não conhecia ninguém, não sabia em quem confiar, não havia uma única mulher. Dois dias depois já não me queria vir embora.

E escrevi isto: “Rebentamentos e helicópteros Apache, mas crianças a tomar banho no braço do rio. Porque não? Está calor. E tudo aqui é tão menos assustador por ser a vida de todos os dias. Cabul parece perigoso visto da Europa, depois Kandahar parece perigoso visto de Cabul, depois Arghandab parece perigoso visto de Kandahar. E no fim de tudo há sempre homens que vendem bebidas de lata ou têm pomares, homens e crianças descalças a tentarem viver num país sacudido por 30 anos de guerra fria e quente.”

 

A burqa impossibilita as mulheres “de verem o mundo olhos nos olhos”; e “há quem prefira deixar morrer uma mulher a levá-la a um médico”. Como é que conseguiu largar os preconceitos ocidentais e imergir na sociedade afegã?

 

A burqa, e sobretudo preferir deixar morrer uma mulher a levá-la ao médico, não são matéria que entre no campo dos preconceitos ocidentais, são matéria de direitos humanos. São uma violência, no caso das mulheres impedidas de ir ao médico, uma violência extrema, mortal. Não há relativismo possível aqui.

Um viajante é sempre ele a sua circunstância. Porque é antes de mais curioso, o viajante observa, regista, tenta ver o mais possível, entender o melhor que pode antes do julgamento. Essas são as matérias relativas. Depois, há matérias não relativas, o direito à vida, o direito à dignidade.

 

Fala menos dos mortos, mutilados, refugiados. Fala mais das pessoas de todos os dias. Estranhamente, parece que a vida continua, apesar da guerra de três décadas.

 

Há muitos mortos neste livro, e um capítulo inteiro com mutilados que perderam uma ou duas pernas, e um capítulo inteiro com refugiados. E ao longo de todo o livro passam outros mortos, outros mutilados, outros refugiados. Tudo isso é a vida de todos os dias, entre os que estão tão intactos quanto possível, estudantes, atletas, bordadeiras, soldados, polícias, professores, pintores, calígrafos, jornalistas, deputadas, médicas, parteiras, jardineiros. Tudo se mistura, porque é a cada minuto que um inteiramente vivo pode perder a vida. A fronteira é um fio.

 

O livro tem os cheiros do Afeganistão. A matéria fecal e a rosas. O que é que as rosas representam?

 

As rosas são o que não se vê daqui mas também está lá. Tudo é um todo, uma coisa não deixa de o ser por estar diante do seu contrário.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima

 

 

 

Catarina Furtado (sobre Portugal)

27.07.13

Catarina Furtado nasceu em 1972. É apresentadora de televisão. Estudou dança em Lisboa e representação em Londres. Desde 2001 é embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas. 

 

 

“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

Há várias formas de exercer o poder e o que se manda buscar nem sempre é felicidade. Quando o poder se constrói a partir do ego e para o ego normalmente a felicidade fica reduzida à satisfação pessoal. Ou seja, o poder que se expande e afirma sem procurar também a felicidade dos outros não me interessa.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram? 

Depende sempre das pessoas. Amor verdadeiro, seguramente. Passar entre os pingos da chuva e outras coisas que os meus pais bem me ensinaram, [também não]. 

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Não sou tão descrente. Concordo com Lincoln e acrescentaria que não valeria a pena correr o risco fazendo o teste a muitos homens. Às vezes está escrito no olhar. E acredito que seriam em muito menor número as mulheres que se tornariam vilãs.

 

“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

O crer. Por isso se diz tantas vezes que "crer é poder". Felizmente também há poderes que prescrevem e passam à história. E a história diz-nos que alguns tiveram e têm efeitos devastadores.

 

“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço bem os meus amigos e o que me deixam conhecer deles. Não quero conhecer os inimigos. Os que dão nas vistas como inimigos não os deixo cruzar o meu passeio. 

 

“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante? Provoca um desfasamento da realidade?

A inteligência também é inebriante, assim a possamos usar para manter os pés bem assentes no chão. Não acredito no poder absoluto, mas apostaria num qualquer poder que acabasse com a corrupção. 

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Foi a força da diferença. Esta eleição trouxe na altura seguramente uma nova esperança até nas questões humanitárias. Espero que a força seja extensível a muitas outras nações, não no sentido de as separar, mas de as unir.

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

O poder é da troika, uma palavra tão sedenta de audiência e resultados como quase todo o país. Tenho receio de que essa obsessão, como quase todas as obsessões pelas audiências, se transforme num país à parte.

 

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

O meu poder  não se converte a partir de uma qualquer ilusão televisiva. É verdade que a palavra em televisão assume um carácter mais ambicioso, no sentido em que vende e alimenta muitas ilusões; mas eu procuro também acrescentar-lhe outros poderes que valorizo enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População.

 

Qual é o foco preferencial da sua acção?

Tentar ajudar a diminuir as desigualdades sociais, a mortalidade materna e neonatal, promover  a maternidade segura, o planeamento familiar, a promoção das meninas e mulheres num mundo onde a desigualdade de género é ainda muito gritante nos países em desenvolvimento e camuflada em muitos países desenvolvidos.

 

O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

As agendas preenchem-se com acontecimentos e não só com pessoas. Alguns têm nomes e outros não.

 

Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

Ter poder é também não ter medo. Ser verdadeiramente poderoso é não ser permissível a influências tendo a capacidade de ouvir. É saber fintar a morte.

 

Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

É um poder simétrico.

 

Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

O que torna ou pode tornar uma pessoa impopular é o abuso de poder, embora haja muita inveja criada a partir de preconceitos sobre o que se julga ser o exercício do poder. Há também quem sobrevalorize  os seus atributos julgando que tem poder, mesmo quando ele se levanta a partir de trivialidades e situações efémeras.

 

A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

O desejo de reconhecimento não é um pecado capital, pode ser uma força motriz, um sinal de que o trabalho feito produz resultados visíveis. Mas o reconhecimento que nasce pelo desejo de poder, nasce torto e dificilmente se endireita.

 

O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Tudo o que aparece como excessivo ou desmesurado tem uma conotação negativa. Mas a ambição na dose certa pode ser saudável e altruísta.

 

Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?

Quando já não se consegue apertar os sapatos dos outros e os holofotes estão apenas virados para o próprio umbigo. A embriaguez pelo poder devia ser sujeita ao "teste do balão" .

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Isso é quase como escolher entre um objecto de luxo e um mal necessário.

 

O poder, como a política, produz sempre inimigos?

Inimigos são os incendiários. Os que queimam cobardemente o património dos outros. 

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não, não são. Mas aparecem muitas vezes de mãos dadas. Pode ser-se poderosamente influente sem se ter dinheiro e pode ter-se dinheiro sem se ser influente. O melhor mesmo é ser-se poderoso, influente e endinheirado ao ponto de se poder mudar, para melhor, o mundo de muitas pessoas. 

 

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Vivemos como nunca um período de medo e desconfiança e por isso, tantas vezes, se confunde o valor com o preço e vice-versa.  Os valores não têm preço e quem tem preço nem sempre tem valores.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

Felipe Oliveira Baptista

27.07.13

Há um sentido narrativo no seu trabalho que lhe é essencial. De onde vem esta necessidade de contar histórias?

É algo de natural. Talvez o facto de ter crescido no meio de uma família bastante numerosa, onde se contavam e lembravam muitas histórias, tenha tido alguma influência. Hoje interessa-me uma narração mais abstracta, o confronto de elementos a priori desconectados ou contraditórios. Cada colecção é uma história-puzzle e cada peça de roupa é simultaneamente actor principal e secundário.

 

Porque é que fazer roupa é a sua forma de contar histórias? Porque é que esta é a sua forma de expressão?

Porque a moda toca muitas outras disciplinas de design e diferentes processos criativos. Isto interessa-me particularmente. Antes de me decidir por estudos de moda hesitei entre fotografia, design gráfico e antigos sonhos de cinema. Em moda toca-se (mesmo se levemente) todas estas disciplinas. Na pesquisa (fotografia, desenho); tailoring, drapeados sobre um manequim (escultura, arquitectura); desfile (mise en scène, styling, criação de uma banda sonora); até ao design de um livro, catálogo, look book ou do meu site na internet...

 

O que sabia, desde o início, é que o seu futuro passaria pelo que é visual. Podia ser cinema, podia ser pintura, podia ser vídeo?

Um olhar criativo era fundamental, portanto... compulsivo. O que eu gosto em moda (e do que mais me queixo também) é do seu ritmo frenético. Uma nova história de seis em seis meses. Uma nova página branca onde uma ideia ou história leva alguns meses a materializar-se. É uma pressão enorme mas também uma enorme  descarga de adrenalina.

 

Um crítico americano disse do seu trabalho: "Chamem-lhe couture de rua. Há um toque de hip pop na colecção. Mistura looks gregos e silhuetas contemporâneas. Os vestidos inspiram-se em kimonos". Revê-se nisto? Basicamente, o que entra nesta descrição é o mundo todo... diferentes culturas e influências.

É verdade que cada colecção é uma história que muitas vezes se compõe de elementos contraditórios. É este jogo de contrastes que me fascina. Quebrar regras, dogmas e rotinas é interessante e faz-nos olhar para o mundo de uma nova maneira (mesmo que esta seja efémera). É curiosa esta citação de que me fala e que nunca tinha lido.

 

Está disponível na internet.

Nunca me inspirei directamente num kimono. Mas isto também é interessante em moda: um desfile pode ser interpretado e compreendido de maneiras diferentes. A moda tem por vocação ser reinterpretada e "remixada"!

 

O seu mundo é um mundo de síntese? Porquê?

É uma maneira de ordenar todas as turbulências e agitações internas.

Gosto da ideia de exprimir contradições e dicotomias presentes na (minha) vida e no que me rodeia.

 

Que relação tem com Paris? Já vive há anos suficientes na cidade para ter com ela uma relação de deslumbramento e fastio... Ou continua enamorado? Diga-me um percurso/cantinho que sinta como sendo seu na cidade.

Paris é a cidade onde vivo, com os seus pontos positivos e negativos. Eu viajo muito e é verdade que cada vez que entro num táxi, do aeroporto a caminho de casa, estou sempre contente com o regresso!

Um sítio especial? Paris está cheia de sítios escondidos em cada bairro. O divertido é ir descobrindo. Um sítio autenticamente parisiense a dois passos de minha case é a Rue des Martyres, perfeito para um brunch de fim-de-semana no Hotel Amour ou no Rosemary Bakery. 

 

 

Publicado originalmente na revista LA Mag

 

 

João Pereira Coutinho (sobre Portugal)

26.07.13

João Pereira Coutinho nasceu em 1976. É professor universitário. Colunista da Folha de S.Paulo e do Correio da Manhã. Estudou História de Arte, doutorou-se em Teoria e Ciência Política Contemporânea. No Brasil, há quem o aponte como o melhor cronista que se pode ler nos jornais brasileiros.

 

 

 “O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” –Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?

Prefiro uma outra máxima de Millôr que se aplica igualmente ao dinheiro. “O dinheiro não traz felicidade. Mas paga tudo o que ela gasta.” Voilà.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?

Se fosse menos cínico, diria: uma consciência tranquila. Mas até isso o dinheiro compra: a ciência farmacológica evoluiu imenso nos últimos anos e mandou Raskolnikov para a reforma.  

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Sem dúvida. Como na máxima marxista (tendência Groucho), só devemos respeitar um político que não aceite entrar no clube da política como membro.

 

“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

Creio que o poder da estupidez, da ignorância e da boçalidade nunca prescrevem. Como dizia o saudoso Paulo Francis, a estupidez, a ignorância e a boçalidade ainda são as maiores multinacionais do mundo.

 

“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço bem os meus amigos. Os meus inimigos interessam-me tanto como saber a previsão meteorológica para amanhã no Burkina Faso.

 

“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante?, provoca um desfasamento da realidade?

A frase de Lord Acton é uma tirada clássica do pensamento liberal. Significa que, para o exercício da política, o mais importante não é a quantidade de poder à disposição de um líder. São os limites que colocamos a esse exercício. Assino por baixo.

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Não, não foi. Obama foi eleito porque os Estados Unidos ainda vivem um profundo sentimento de culpa pela escravatura e pela segregação social. A eleição de Obama simboliza o triunfo da culpa sobre a racionalidade.

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

Podem ser todas essas pessoas, excepto as que aparecem na televisão. O verdadeiro poder é invisível aos olhos e raramente aparece em frente às câmaras.


Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

O meu poder, a existir, baseia-se na independência perante partidos, no estudo das matérias sobre as quais escrevo e na honestidade perante os leitores. Ter uma destas qualidades já seria bom. Ter as três, todas as semanas, é um milagre que agradeço ao Altíssimo.


O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Uma agenda poderosa é ter uma vida tranquila e feliz sem precisar de nenhum dos contactos referidos.

 

Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

Ter poder pode ser tudo isso. Mas creio que os estóicos tinham razão quando diziam que era o oposto disso: ter poder é não desejar mais do que aquilo que se tem. Touché.


Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

Depende da audiência, embora talvez fosse mais correcto dizer: depende do país. Em países civilizados, o humor sempre foi mais eficaz do que a seriedade. Em Portugal, onde ninguém se põe em causa e todos se levam demasiado a sério, talvez um professor doutor tenha mais poder sobre as massas do que um humorista.

 

Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

Invejamos o poder do chefe porque acreditamos, erradamente, que ele está acima das misérias e inseguranças dos seus subordinados. Não está. Antes pelo contrário: quem tem poder vive a angústia suplementar de que o pode perder.

 

A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Diria que é o desejo de recriar na idade adulta os confortos e as seguranças que se teve, ou não teve, durante a infância. Sem falar de outros traumas, alguns de natureza sexual, que normalmente se manifestam no desejo constante de deixar “obra feita” (sobretudo estradas, pontes, rotundas – numa palavra: betão). A busca de poder é quase sempre um transtorno patológico.

 

O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta“naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Existe uma diferença fundamental entre querer ser melhor naquilo que se faz e naquilo que somos; e medir uma vida inteira pela quantidade de poder que se acumula. São dois comportamentos distintos: no primeiro, somos a nossa matéria-prima; no segundo, queremos fazer dos outros a matéria-prima.

 

Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?

O poder torna-se perigoso quando é exercido sobre a vida de terceiros sem nenhum limite que seja exterior aos caprichos do poderoso. É por isso que o liberalismo clássico sempre defendeu um “governo de leis”, por oposição ao "governo dos homens”. Os liberais sabiam que não devemos esperar grandes milagres da espécie Sapiens Sapiens. E com razão: só acredita em macacos quem julga honestamente que não é um.


Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Ter poder é sermos o nosso próprio patrão. E não estou a falar de trabalho.


O poder, como a política, produz sempre inimigos? Os inimigos são os invejosos?, os insubordinados?

Depende. Há inimigos poderosos e inimigos só invejosos. Nem sempre coincidem na mesma equipa. Quando coincidem, o rasto de destruição é considerável.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. Há quem tenha dinheiro mas não poder. Há quem tenha influência mas não dinheiro. E por aí fora. Direi mais: conheço gente que trocava o dinheiro que tem pelo poder que não tem.  

 

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Não faço ideia: nunca comprei ninguém e nunca me vendi a ninguém. Sou uma nódoa para os negócios.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

Rita Barros (em NY)

26.07.13

O Chelsea Hotel, onde vive, funciona como uma amostra microscópica de NY?

O Hotel mudou muito desde que há um ano o gerente e sócio maioritário, Stanley Bard, foi “despedido”. Stanley Bard foi o responsável pela ideia de haver uma mistura enorme de gente, desde o artista falido ao banqueiro, o músico na moda e o fora de moda, o jovem criador com sonhos de se tornar no novo bad boy  e o vagabundo. Desde há um ano que o hotel deixou de aceitar residentes de longa duração, o que tem um impacto neste “caldeirão de cultura”.

 

Poderia trabalhar das nove às cinco? Como se tornou numa pessoa criativa?

Presumo que nove às cinco seja trabalhar para uma companhia, coisa que nunca fiz. Sempre trabalhei como freelancer. No meu próprio trabalho não tenho horários e os dias acabam por ser bem mais longos. Não penso que uma pessoa se torne criativa. A criatividade e a necessidade de mostrar o trabalho fazem parte da própria identidade e de uma maneira de encarar o mundo e de viver nele.

 

Que impacto teve NY na sua actividade criativa? Pode falar do encontro com a cidade?

Foi fascinante. Cheguei em 1980 e fui viver para o East Village, na altura o centro de uma nova visão artística que passava pela música, performance, pintura e moda. Era excitante sair à rua e assistir ao espectáculo diário duma cidade em plena ebulição. À noite, os clubes eram grandes catalisadores para a energia de uma nova geração. Tudo parecia possível.

 

As imagens dos famosos habitantes do Chelsea Hotel são retratos de personagens: excêntricos, singulares, fascinantes. São também pessoas de todos os dias, normais e previsíveis?

Os vizinhos que eu fotografava, apesar de terem um ar extravagante, eram pessoas tão normais quanto o resto. Sempre tive mais receio dos alucinados que se comportam como gente normal e que se chocam com as excentricidades previsíveis.

 

As suas imagens têm duas vertentes: os retratos e a paisagem. O que é que procura quando fotografa pessoas? Registar o lado documental - por exemplo, o trabalho sobre os 15 anos no Chelsea Hotel? Capturar a alma, o génio, a singularidade daquele que tem pela frente?

Os retratos e a paisagem e naturezas mortas (que tenho vindo a fazer) têm um lado subjectivo. Há uma escolha (de enquadramento, de luzes, de composição) que tem como finalidade criar um ambiente específico: um momento que transmite uma ideia. No caso do Hotel, os retratos contam a história de um colectivo complexo, com várias sub-realidades, que funciona com as suas próprias regras. Nas naturezas mortas há um trabalho sobre a ideia da ausência que pode ter contornos ligados à solidão.

 

A solidão, a dependência, o sexo são temas fulcrais nas vidas das pessoas que habitam o Chelsea Hotel? Parecem, muitas vezes, uma condição de um certo desequilíbrio sem o qual não se pode criar... Concorda?

Não, não concordo. O desequilíbrio não é sinónimo do criativo. O sindroma Van Gogh, no meu entender, tem sido explorado demais. Cortar a orelha não implica ser-se génio. A solidão, a dependência etc., fazem parte da vida humana, sobretudo em grandes centros urbanos. No Hotel diria mesmo que é o oposto. Há uma verdadeira comunidade de entreajuda dentro do prédio. O lobby é um verdadeiro salão onde as pessoas se encontram e ficam nas poltronas à conversa. O anonimato funciona como uma escolha e não forçosamente como sinal de desespero. O colectivo não é repressivo e tem uma dinâmica humanista.

 

Vive há muitos anos no quarto onde Arthur C. Clark escreveu 2001, que daria origem ao filme de Kubrick. Como é o seu quarto? E como era o quarto da sua infância? 

 Quando me mudei para o quarto/apartamento 1008, ele estava decorado com o mau gosto típico de certos quartos de hotel. Livrei-me de tudo e criei um espaço à minha medida com paredes de várias cores e o conforto necessário para quem passa bastante tempo em casa a trabalhar. O quarto da minha infância era espaçoso; decorado com um papel de parede de pequenas flores cor de rosa em fundo branco, com janela e porta para uma varanda, com vista sobre o jardim e o mar ao longe. O quarto era dividido com a minha irmã.

 

Publicado originalmente na revista LA Mag

Pedro Pinto (sobre Portugal)

25.07.13

Pedro Pinto vive em Londres. É jornalista desportivo da CNN Internacional, com sede em Londres. Estudou nos Estados Unidos Comunicação e Marketing. Trabalhou na sede da CNN entre 1998 e 2003. Nasceu em 1975. Em Portugal apresentou o Caderno Diário na RTP e o programa Últimas Notícias na Sport TV.

 

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?    

O dinheiro e o poder não compram o amor incondicional. Podem comprar o amor temporário, ou a paixão, mas nunca o verdadeiro amor. Esse não depende de variáveis, mas sim de qualidades permanentes.


“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Sim, equivale. Para ver o carácter e o coração de um homem, basta dar-lhe poder e dinheiro. Assim se vê como trataria os seus colegas, os seus amigos e a sua família. 


“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?

O poder mental não prescreve, pelo menos de um ano para o outro. Se uma pessoa possui inteligência, esta não prescreve e poderá levar a que ela retome uma posição de poder.


“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Conheço bem os meus amigos, mas reconheço que conheço mal os meus inimigos. Sei que sou invejado e que há gente que me gostaria de deitar abaixo, mas felizmente nunca tive de lidar directamente com elas.  


“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante?, provoca um desfasamento da realidade?

O poder só corrompe se a pessoa não tem o carácter, o carisma e a inteligência de lidar com ele. O problema é que a maioria das pessoas que chega ao poder deve demasiados favores para manter a integridade. E infelizmente, no que toca à política, não conheço muitos líderes que não são corruptos ou que não beneficiaram de ajudas e contactos para chegar ao topo.


“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

Foi a força destas palavras que convenceu o público norte-americano que era possível mudar. Depois de oito anos de mandato de uma marioneta como o George W. Bush, os americanos queriam provar que tinham a inteligência necessária para mudar. “Yes, we can” foi a frase que mudou a campanha presidencial porque os americanos acreditaram que era possível acabar com a podridão intelectual que existia no pais. 


Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

Hoje em dia quem aparece na comunicação social é quem tem mais poder. Os banqueiros podem ter poder no seu mundo, o mesmo se pode dizer dos políticos, mas no mundo moderno são os artistas e as celebridades que têm o poder de influenciar opiniões. Não estou a defender este fenómeno, estou sou a constatar que ele existe. 


Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

Tendo em conta o impacto da CNN e facto de ser um canal visto em todo o mundo, acho que tenho poder. Tenho o poder de informar e até influenciar muitos milhares de telespectadores em todo o mundo. Este poder traz responsabilidade. Tenho de me certificar que os factos que apresento são exactos e que as minhas opiniões objectivas.


O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

Ter uma agenda poderosa é poder ligar a uma pessoa que possa resolver problemas que normalmente não se resolveriam. Seja essa pessoa um banqueiro, um político ou uma celebridade. No meu mundo, ter uma agenda poderosa é poder contactar com os mais célebres e famosos desportistas do mundo. Felizmente, posso dizer que apesar de não gostar de abusar da minha posição, através da CNN, tenho acesso a muita gente poderosa no meio do desporto.


Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?

Eu diria que o Ricardo tem mais poder porque afecta mais a juventude, que é o futuro do nosso país. E é também mais acessível. O Marcelo é extremamente inteligente e perspicaz, mas as vezes parece-me um pouco arrogante. 


Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?

Não é o poder que torna uma pessoa impopular, é o carácter dessa pessoa. Um bom líder não deveria tornar-se impopular só porque é líder. Obviamente que faz parte da natureza humana criticar aquilo que não podemos mudar, e as pessoas que têm esse poder são o alvo das nossas críticas.


A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Há muitos factores que instigam o desejo de ter poder. Há a vontade de querer liderar e mudar. Há a vontade de achar que sabemos e podemos mais que os outros. Há até o complexo de inferioridade que leva muitos a querer o poder para compensar traumas. O desejo de ser reconhecido é um sentimento que todos queremos ter se somos bons profissionais.


O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?

Para mim, ser ambicioso é uma qualidade, não um defeito. Mas como tudo na vida, tem de haver um limite. Ser ambicioso ao ponto de prejudicar os outros passa automaticamente a ser uma força negativa.


Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos?

O poder torna-se perigoso quando afecta negativamente as pessoas que deveríamos ajudar e conquistar. Figuras importantes da nossa história, como Alexandre, o Grande, e Napoleão tornaram-se perigosos quando deixaram de ver a realidade e passaram só a ver as suas realidades.

 

O poder, como a política, produz sempre inimigos?

Os inimigos podem surgir de várias maneiras e por várias razões. Podem ter ideias ou posições diferentes, podem ser invejosos, podem querer mudar o rumo dos acontecimentos. Quem tem poder terá quase sempre inimigos porque é impossível agradar a todos.

 

Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?

Não. É possível ter dinheiro sem ter poder nem influência. Pessoas que ganham o Euromilhões ou que herdam dinheiro não têm qualquer poder. Agora, quem tem poder normalmente tem dinheiro ou acesso a alguém com dinheiro, porque sem ele não poderá desenvolver ideias e projectos.


Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Quase toda a gente tem um preço. Pessoalmente vejo vários exemplos trabalhando no mundo do futebol. Ainda há uma minoria que tem princípios morais fortes e que resiste à tentação do dinheiro, mas não é habitual. E infelizmente somos poucos os que não vendemos as nossas ideias e princípios por um preço.


A sua percepção dos jogos de poder alterou-se substancialmente desde que vive fora de Portugal?

Sim, é inquestionável. Tenho tido oportunidade de conviver com muitas das pessoas mais poderosas no mundo do desporto. Fiz várias entrevistas com o Sepp Blatter, o presidente da FIFA, com os donos de equipas internacionais que têm um peso enorme a nível global. Na minha óptica, todos os homens de poder têm uma coisa em comum – dinheiro. Não é possível vingar sem ele. É preciso ter qualidade, mas com acesso a fundos e mundos, tudo se torna mais fácil. Sejam eles russos, árabes ou americanos, subiram porque tinham as quantias necessárias para chegar aos lugares que ambicionavam.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

Adriana Molder (em Berlim)

25.07.13

À porta do atelier, está uma página de revista com um vestido lindíssimo da Dior. Uma imagem antiga. Adriana Molder gosta de vestidos antigos e de imagens a preto a branco. Desenha num papel amarrotado a tinta da China. Os seus trabalhos parecem sempre um imenso “mar negro” – a expressão é sua. Estudou no ARCO. Ganhou o prémio revelação CELPA/ Vieira da Silva em 2003. No final de 2006 inaugurou uma exposição no Museu de Belas Artes das Astúrias, ao lado do Príncipe Filipe. Mudou-se para Berlim há anos. Desde então, muita coisa aconteceu...

 

 

A exposição “Der Traumdeuter” ilustra um ciclo de vida em Berlim. Resulta da residência artística que fez no Bethanien ao longo do último ano. Que história é a desta exposição?

Este espaço funcionou como hospital até aos anos 60 do século XX, e desde o século XIX. Era um hospital muito inovador, limpo, protestante – o lema da higiéne e do caminho para deus eram fundamentais. Cheguei em Dezembro, em pleno Inverno. A primeira coisa simultaneamente atraente e assustadora foi pensar que estava a dormir num hospital! Será que no meu quarto morreram pessoas?, nasceram pessoas?, curaram-se?

 

Por companhia, num espaço ameaçador, escolheu as histórias fantásticas...

Vi muitos filmes alemães, sobretudo do Murnau: “Fausto” impressionou-me imenso. E li histórias do Ludwick Tiec. São histórias de fantasmas. Ou os personagens começam a duvidar e essa dúvida faz com que aconteçam coisas terríveis! Esse lado dos alemães – de o desejo fazer com que a vida toda fique destruída – foi muito apelativo. No caso do “Fausto”, o diabo é a dúvida. Estas imagens começaram a aparecer e tive vontade de as desenhar.

 

Mas uma figura domina esta série de desenhos: um homem a que chamou Leo Stern.

Inventei essa personagem: um homem que caiu doente, que teve uma espécie de febre, acordou aqui no Bethanien e teve imensas visões. Essas imagens, que ele não conseguia distinguir, é que o impediram de morrer. Porque esteve entretido a vê-las. Como se estivesse a ver um filme dentro da sua cabeça. Quis que essas imagens viessem ter comigo. Gosto da ideia do artista como médium. E gosto de inventar que a inspiração me vem de uma pessoa que esteve aqui doente, neste espaço onde estou a dormir, a desenhar e a cozinhar.

 

Porque é que se mudou para Berlim? Vive cá há quase dois anos.

Concorri várias vezes à bolsa do Bethanien e não ganhei; mas decidi vir de qualquer modo. Vim cá pela primeira vez em 99 e voltei em 2003. Berlim tem um conjunto de qualidades que não se encontram facilmente noutras capitais. Tem uma oferta cultural quase idêntica a de Londres ou Paris; aqui não há tanto cinema, mas há boas exposições, óptima ópera, óptima dança contemporânea. Tem espaço. Espaço para me mover, para viver, para pensar. E é uma capital em que posso ter uma boa vida: é barata. Há imensas galerias e artistas que estão a viver aqui por todas estas razões.

 

As mudanças são já visíveis no seu trabalho?

Berlim também é uma cidade um pouco adolescente... Não sou só eu a sentir isso... Mesmo a música que ouço, voltou a ser a que consumia no fim dos anos 80. Berlim puxa por essa liberdade. Puxa por um lado que achava que tinha ultrapassado como mulher adulta. Sinto que os meus desenhos estão diferentes, e que são mais livres. Por acaso, têm a ver com coisas que fiz no princípio da minha carreira. E estas têm sempre a ver com filmes.

 

O cinema e a literatura são influências nucleares do seu trabalho. Porquê?

Na minha adolescência e também na infância vi muitos filmes. Muitos mesmo! Ia muito à Cinemateca. Depois fiz uma espécie de intervalo. Há sempre qualquer coisa na minha memória que tem a ver com essas imagens do cinema e da literatura.

 

No cinema, as pessoas já têm uma cara, as cidades já têm uma configuração. Na literatura, os personagens não têm um rosto definido. O seu Leo Stern é completamente inventado.

Sim, crio uma cara. Mas não me interessa encontrar uma cara que venha apenas da minha imaginação. Gosto que seja um encontro entre a minha imaginação e uma coisa que já existe. Não gosto nada de trabalhos livres! [risos].

 

Embora faça cada vez mais cidades e interiores, os retratos domimam os seus desenhos. Fale-me do fascínio pelo rosto humano.

O meu mundo vem muito da fotografia. Coisas que vi, como os retratos da Diane Arbus, foram muito importantes no meu crescimento. Há qualquer coisa que procuro sempre num rosto... Não sei explicar porque é que os faço... Sei porque faço, agora, cidades e interiores – este candelabro, por exemplo, que está aqui à nossa frente. Procuro que sejam tão intensos quanto os retratos, e isso é uma dificuldade, um obstáculo que tento ultrapassar. Acho que consigo encontrar alguma intensidade nos rostos. E procuro o mesmo nos interiores.

 

Os momentos de transição, por vezes de agonia, são lugares onde se sente confortável. Não é à toa que os personagens que mais lhe interessam sejam, na literatura, os de Schnitzler, situados numa Viena decadente, de fim de Império, ou estes agora, que transbordam da realidade para a fantasmagoria.

Se calhar, a vida também é um momento de transição. Sinto-me bem com essa ideia da não-permanência. É isso que me inquieta, que nos inquieta a todos [risos]. Gostei muito de trabalhar no Bethanien com estas personagens que me vinham observar, que eram fantasmas, no fundo.

 

Dias depois de inaugurar a exposição no Bethanien, recebeu o prémio de Herbert Zaap, entregue na Feira de Arte de Berlim. Que distingue o melhor jovem artista do ano.

Foi uma enorme surpresa. É fantástico ganhar um prémio sem ter concorrido contra ninguém. Um dos membros do júri viu o trabalho do Bethanien e gostou. A exposição foi muito visitada por pessoas muito diferentes. O público aqui vai mesmo ver as exposições, não finge que não fizemos uma coisa. Em Lisboa não vão ver porque ficam mais preguiçosos. Eu mesma, lá, fico mais preguiçosa. Vou ficar em Berlim. As pessoas estão a dar-me valor. Não é que não dessem em Lisboa – não estou a queixar-me. E volto sempre a Portugal. Mas se estou aqui nem há dois anos, e fiz a residência e ganhei um prémio, acho que devo ficar mais algum tempo.

 

Publicado originalmente na revista LA Mag em 2007