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Anabela Mota Ribeiro

Rui Ramos (sobre Portugal e Poder)

10.07.13

Rui Ramos coordenou uma História de Portugal que quis que fosse lida (diz-se na introdução) como “síntese interpretativa da História de Portugal desde a Idade Média até aos nossos dias”. No seu discurso há a mesma pretensão de cruzar os planos político, económico, social e cultural, e fornecer uma visão integrada de quem somos, de quem vamos sendo.

Fala do Estado como um polvo sem cabeça. E simultaneamente considera que “temos uma sociedade onde a grande indústria é o poder político”. É aliás crítico dos que apontam uma supremacia do poder económico sobre o político.

É professor no Instituto de Ciências Sociais. Foi lá que nos encontrámos. Antes mesmo de começar a gravar, já falávamos do tema da entrevista: os mecanismos do poder e o modo específico de ser de Portugal nesta matéria. Quando Rui Ramos citou um eloquente episódio de Eça de Queirós, liguei o gravador.

  

 

… Quando Fradique Mendes chega a Lisboa, tarde, uma tipóia leva-o ao hotel. Pede-lhe um preço louco pela viagem. Comenta: “Que disparate é este?”. Alguém diz “Dom Fradique”, e o carroceiro responde: “Se é para o Sr. Dom Fradique, é o que o Sr. Dom Fradique quiser dar”! De repente aquilo já não tem um preço – como era para uma pessoa conhecida, é o que ela quiser dar. Isto [reflecte] uma sociedade onde houve sempre a distinção entre quem está dentro e quem está fora.

 

O que é que determina que se esteja dentro?

No caso do Sr. Dom Fradique era o ser conhecido. (Que lhe dá uma grande gorjeta. Ficou agradado com o facto de haver um reconhecimento de que estava dentro.) O fazer parte de uma rede de apoio, por via da família, por via profissional, por via de relações de qualquer tipo. Quem está fora são todos os outros.

Já foi pior do que é agora, mas alguém que quisesse fazer uma vida baseada nos procedimentos definidos nos estatutos e nos regulamentos, não ia longe.

 

O que isso quer dizer é que temos um sistema democrático débil. Se os mecanismos legais não estão assegurados – diria automatizados – os filamentos são mais frágeis, podem quebrar.

Uma das bases de qualquer sistema democrático é o Estado de direito, é o império da lei. Só o Estado de direito pode garantir verdadeira igualdade entre os cidadãos. É a esse nível que temos deficiência, ao nível dos procedimentos. E o entorse à lei cria desigualdade. Desigualdade entre os que têm acesso ao poder por vias informais, e aqueles que por vias formais não vão a lado nenhum.

 

E depois surge a corrupção, para apressar uma decisão, para resolver qualquer coisa que resulta da entorse do sistema.

O sistema, por vezes, tem que ser oleado. Às vezes é oleado através do conhecimento, da palavra – alguém a quem o utente ou o cidadão se pode dirigir pessoalmente. Deixa de ser o utente e o cidadão, passa a ser o primo, o amigo. Ou através da troca de favores, ou mesmo da remuneração. Quando tenho de recorrer a um serviço, e mesmo que não tenha que pagar a ninguém, se tenho de invocar um conhecimento, uma relação, isso já é uma forma de corrupção. Na prática, a corrupção é uma desigualdade de acesso (estamos a falar ao nível da corrupção para acto lícito). Aparentemente estamos a falar do Estado, mas uma parte das instituições, das empresas e dos actores da sociedade portuguesa, tendem a estar em posições de poder. Pelas relações que têm uns com os outros, e porque numa sociedade onde há menos recursos, a acumulação de recursos aqui e ali cria aquilo a que os economistas chamam posições dominantes. E essas posições dominantes dão uma espécie de poder que não decorre da simples prestação de um serviço, e permite a discriminação.

 

Os médicos: quando alguém vai a um hospital, clínica ou consultório, frequentemente ouvimos: “Diz-lhe que vais da minha parte”. Como se isso fosse merecedor de um tratamento preferencial.

Isso é uma sociedade de poder. Quem nos está a dizer isso quer dizer: “Tenho mais influência que tu, sou mais poderoso que tu. Para teres acesso àquele tipo de serviço tens de passar por mim”. É uma sociedade em que estamos constantemente confrontados com estes desníveis de influência, de recursos, de acesso. A lei, o império da lei e dos procedimentos, tem por detrás um sistema de autoridade. A ideia é poupar ao cidadão o aspecto nu do poder, a pornografia do poder. Aqui estamos constantemente confrontados com essa pornografia.

 

Mas quase não nos damos conta que ela existe, pelo menos desse modo pornográfico. Estamos tão instalados, tão insensíveis a isso… Para nós, é o normal.

Estamos insensíveis porque temos a ideia de que quem protesta fica de fora, e de que não há vantagem nenhuma no protesto, a não ser o ter ainda mais dificuldades de acesso.

 

São duas coisas diferentes mas as duas muito poderosas. A primeira é o medo da retaliação: “Se protesto fico de fora e sabe-se lá que consequências vou ter”. Segunda: quando não se confia no sistema e quando potencialmente ele não funciona, para quê darmo-nos ao trabalho de protestar?

É a ideia da inutilidade. Há uma inter-penetração. Posições sociais que acabam por resultar num poder público, e posições do Estado que são quase actividades privadas, em que os titulares daquele cargo se comportam como se estivessem numa actividade privada, distribuindo os recursos conforme as amizades e os conhecimentos.

 

Como se aquilo fosse seu, e não nosso.

O cidadão tem que negociar toda esta rede. E a última coisa que precisa é de ler os regulamentos, as leis, os estatutos. O que se pode fazer, o que se deve fazer, é um conhecimento que não está fixado, é um conhecimento difuso.

 

É o “jeitinho” português? Não se pode fazer, mas fazemos na mesma.

Esse “jeitinho”, que podemos atribuir a uma cultura nacional, vem de um sistema de poder que está montado em que há uma inter-penetração completa do Estado com a sociedade. E essa mistura dá poder a uns e tira poder a outros. Mas fundamentalmente produz desigualdade. Desigualdade para além de qualquer desigualdade de recursos económicos.

 

É mais a fragilidade do Estado de direito do que o dinheiro que provoca essa desigualdade?

É mais a fragilidade do Estado de direito. O dinheiro só pode produzir este género de desigualdade quando o Estado de direito é frágil. Estamos a falar de dinheiro, mas podíamos falar de relações familiares, de vizinhança (o vizinho que por acaso é o senhor das Finanças…). A informalidade das relações produz esta desigualdade. Uma das vantagens da formalidade é produzir igualdade. Se todos temos de preencher aquele formulário, se todos temos de tirar aquele ticket, uns podem ser mais ricos, outros podem ser mais pobres, uns podem ter uma família mais conhecida, outros menos, mas todos temos que fazer aquilo.

Há também uma desigualdade que é dada pela frequência. Há níveis em que não tem relevância política (não me interessa que no café, quem vai lá todos os dias seja melhor servido do que quem lá vai uma vez por outra). Agora, em tudo o que tem a ver com o serviço ao público, numa repartição pública ou numa empresa privada, aí há a obrigação, e devia haver a vantagem, de tratar todas as pessoas da mesma maneira.

 

O que está a descrever é uma idiossincrasia do que são os portugueses? Somos assim desde sempre, é melhor conformar-nos com isto?

Não interessa saber se somos ou não assim desde sempre. O que interessa é que, primeiro, isto não é nada que não possa ser emendado. Segundo, isto não é nada que não deva ser emendado. Com vantagens, não só para cada um, como para a sociedade em geral. Vivermos numa sociedade em que temos um Estado que não tem contrapesos óbvios, não tem uma sociedade civil com fortunas independentes, com associativismo pujante, com tradições de auto-governo regional muito afirmativo…

 

Não temos sindicatos com a força dos gregos, nem temos regiões como a Catalunha, com uma autonomia financeira imensa, pujante.

Não temos isso, mas também não temos empresas com força. Ao contrário do que alguns dizem, aquela história dos “Donos de Portugal”, é uma fantasia! O poder é o dono disto. O que temos são pessoas submetidas ao poder e que vão apanhando as coisas do poder. Umas vezes são corporações, outras vezes são grupos económicos.

 

Pensemos nos Mello, nos Espírito Santo, nos Champalimaud, as grandes famílias que durante décadas monopolizaram a indústria em Portugal. Esse poder esfumou-se?

Esse poder nunca existiu. Esse poder, na maior parte dos casos, é um poder do Estado. São dependentes do Estado, estão nas mãos do Estado e do poder político. Eles são um resultado de engenharia política, dos governos que ao longo do tempo os usaram, com benefícios para eles [famílias], claro.

 

Porque é que os sindicatos não têm a força dos gregos?

O tipo de sindicalismo que temos é herdeiro do sindicalismo nacional do Estado Novo. Usa recursos públicos, está sobretudo baseado na função pública e nas empresas estatais. Está nas mãos do Estado, é uma parte do aparelho de Estado. Vive da concertação, da importância que lhe dá o governo e os próprios recursos que tira a partir daí. O poder que as corporações profissionais têm em Portugal vem da maneira como o Estado lhes permite monopolizar determinadas profissões e restringir o acesso, aumentar o acesso, criar redes. Temos uma sociedade onde a grande indústria é o poder político.

 

A grande indústria é o poder político, como assim?

É através do poder político, é através do Estado que criamos desigualdades entre nós. Desigualdades de acesso ao mercado, à influência, à capacidade de organização. É através do poder político que conseguimos recursos, benevolência. Qualquer grupo económico em Portugal que quer ter um grande negócio tem que passar pelo Governo, tem que pedir licença. Os donos do país?, deixem-me rir. Pode ser completamente liquidado por um secretário de Estado ou por um ministro (mesmo que tenha acumulado os recursos) ao pedir uma licença.

 

Resta saber se o secretário de Estado ou se o ministro ousa contrariar esse grande poder económico.

Ousa, ou ousou no passado, constantemente. Para esse poder económico sentir que não é poder nenhum – é um aspecto do poder político. O poder económico, o poder universitário, o poder profissional, o poder sindical, em Portugal, são aspectos do poder do Estado. Numa sociedade onde o Estado gasta o equivalente a 50 por cento da riqueza nacional, está tudo dito. E onde o Estado tem a possibilidade, através da justiça, através do fisco, de destruir tudo, dificultar e impedir tudo. Numa sociedade assim não há capacidade de emergirem poderes autónomos.

Aquilo que algumas pessoas referem como poder económico é um dos mitos absolutos dos tempos que correm. Só há um poder em Portugal: o político. O resto são avatares do poder político.

 

É preciso pensar em quem custeia carreiras políticas, campanhas eleitorais, e nas facturas que aparecem mais à frente. Todos sabemos que não há almoços grátis. O poder político não se faz sem o económico.

O poder político não se faz sem uma enorme quantidade de poderes que usa para controlar a sociedade. O que me está a dizer é que este poder político está tão inter-penetrado pela sociedade que tem uma enorme capacidade de presença. Está em todo o lado, mas não é suficientemente forte para se destacar de todos os poderes com os quais se confundiu (o poder dos sindicatos, das corporações, de determinados grupos empresariais, das universidades). Só teoricamente os podemos distinguir. Quando digo que o poder político é o que existe é porque é aí que em última instância a decisão pode ser tomada.

 

Recentemente, coincidência ou não, foi na semana em que os banqueiros deram entrevistas na televisão a dizer que estavam com a corda na garganta, que o governo capitulou e disse: “Venha o FMI”. Isto é sintomático dessa interdependência.

Aquilo que impressionou o Governo, ao contrário do que as pessoas pensam, não foi o poder dos banqueiros. Foi a fraqueza total em que os banqueiros estavam. Estavam mesmo com a corda na garganta. Muita gente interpretou aquilo como: “Eis o poder político submetido ao poder económico”. Não, foi a falta de poder económico que levou àquela decisão. Chegaram lá e disseram: “Se mais uma vez não provam que somos parte do vosso sistema, desaparecemos. Depois vejam as consequências”.

 

Este é o sistema que temos desde sempre. É susceptível de ser mudado?

Mas não é uma coisa genética, é uma coisa histórica. Tivemos sempre um Estado maior do que a nossa sociedade.

 

Porquê?

Porque era um Estado que historicamente esteve associado a actividades fora do país. Esteve sempre sobredimensionado para o país. Durante a época de expansão ultramarina os rendimentos que tirava do país eram secundários em relação àqueles que retirava do controlo dos tráfegos ultramarinos.

Eram negócios da China, negócios da Índia, eram grandes negócios. Não havia nada comparável em Portugal. As grandes fortunas em Portugal vêm da gente a quem o Estado deixou fazer negócios.

Com um Estado deste tamanho, quando se quer mudar a sociedade usa-se este Estado. O Estado assume que tem a função de destruir outros poderes independentes para poder ser o Estado o canal para a modernização da sociedade. Isso é feito a partir do séc. XIX. Ataques à Igreja, ataques à própria aristocracia, baseada nos morgadios (a nobreza de província), que tem uma acumulação de recursos que lhe permitia uma certa autonomia.

 

Porquê esses ataques, porquê essa destruição?

Para criar uma tábua rasa para o Estado influenciar mais. O Estado ficou sozinho em campo, tornou-se o espaço privilegiado de todas as lutas políticas, de todos os investimentos. Acumula a maior parte dos recursos e quem fica de fora não tem grande margem para crescer. Lisboa era a segunda maior cidade da Europa ocidental. Não era a capital de Portugal, era a capital do império. Por acaso estava aqui em Portugal.

 

Uma expressão que traduz essa ideia: Lisboa é Lisboa e o resto é paisagem.

O resto era a província. E nessa província, quem tinha aspirações juntava-se a esta cidade.

 

Onde as coisas se passavam, se decidiam.

Era uma espécie de cidade-Estado. A capacidade da sociedade portuguesa para gerar outro tipo de poderes locais foi sempre limitada. As câmaras municipais foram sempre pobrezinhas. Nunca houve poderes regionais.

 

Tudo a depender da torneira central, e da maneira como abrem ou fecham a torneira...

E o Estado, a partir do momento em que se afirma como modernizador, perde também os limites para a sua acção. Aquilo que se fez foi substituir todos os pseudo-poderes por poderes reais, mas que são os poderes do Estado, com os múltiplos tentáculos que o Estado tem. É um polvo sem cabeça. É só tentáculos. Isso é a fraqueza do Estado. Temos simultaneamente um Estado enorme, um Estado confundido com a sociedade, e em que não há possibilidade de o distinguir o dessa sociedade.

 

Significa que passámos de uma situação, no declínio da expansão, em que éramos um gigante com pés de barro, para esta situação em que somos o polvo sem cabeça? São sempre figuras aparentemente poderosas, mas amputadas, que podem ruir com enorme facilidade.

Muitíssimo limitadas. Vimos na nossa história que os vários regimes conseguiram enormes acumulações de poder no centro, e que depois há um momento em que caem como um castelo de cartas, e não deixam nada. No fim da Monarquia Constitucional, a elite política liberal desaparece. No fim da primeira República aquilo desfaz-se e aparece outro poder. E no fim do Estado Novo desaparece completamente. Na noite do 25 de Abril parece que nunca tínhamos tido uma ditadura. Aquilo impressionou muito os repórteres [estrangeiros em Portugal].

 

Isso é específico de Portugal?

É. Há uma grande acumulação de recursos e não há capacidade de decisão. O Governo tem todos os instrumentos, mas está tão confundido com aquilo tudo que não tem a capacidade de apelar a uma instância exterior ao sistema para transformar o sistema. E perante determinados problemas, a opção que tem é a auto-destruição, é ruir.

O Estado Novo: era uma ditadura, tinha censura, tinha polícia política, tinha o poder económico concentrado, através das leis que lhes permitiam fazer engenharias empresariais, tinha os sindicatos que continuava a dominar, tinha o problema do Ultramar. Os decisores políticos nunca foram capazes de optar por nada. Acabam por implodir por incapacidade de decisão.

 

Somos mais da implosão que da explosão?

É como se alguém ficasse com todas as alavancas e depois já não soubesse mexer nas alavancas. Essa incapacidade de decisão durante muito tempo foi uma incapacidade de legitimidade.

 

Está a pensar nos 48 anos de ditadura?

Não. Antes disso. Desde o século séc. XIX, desde que há eleições, as eleições não reproduzem resultados independentes do poder. Nenhuma eleição, até à do 25 de Abril de 1975, foi vista como independente do poder político. Quem perdeu viu sempre aquilo como o resultado da influência do poder, da pressão, da coacção sobre os eleitorados. Eram eleitorados manipuláveis. Quem fazia mais fraude era o poder. Isso é verdade para a Monarquia Constitucional, para a República e para o Estado Novo: eleições falsas, com eleitorados restritos. No caso do Estado Novo, a possibilidade de as oposições protestarem e terem acesso ao espaço público ainda estava mais restrita.

 

Nas eleições desde o 25 de Abril, apesar da instabilidade política que conduziu a um número generoso de governos, sobretudo em relação às presidenciais temos a noção de que se vota em alguém para dois mandatos. Seria considerado um fracasso um PR exercer a sua função apenas durante cinco anos. Isto revela uma procura de estabilidade?

Estamos a dizer, mais uma vez, que independentemente do eleitorado, o poder parece ser decidido pelos arranjos da própria classe política. Por exemplo, o eleitorado é confrontado com um primeiro-ministro que não se recandidata, e escolhe outro partido; porque aquilo parece um sinal para uma mudança de turno. Aconteceu assim em 1985, em 1995, em 2001, 2002. Pode dizer-se assim: “Poupou-se a uma derrota”. Não fazemos ideia. A verdade é que não se deixou derrotar. Não saiu pela vontade do eleitorado, saiu por um arranjo.

 

São muito poucos os políticos portugueses que lidam bem com a derrota.

Quase nenhuns.

 

Na história recente, Mário Soares é dos poucos que foram derrotados nas urnas e a seguir reapareceram.

É essencial para quem tem poder não parecer que perdeu o poder. Parecer que ainda está em controlo. Se não foi reeleito foi porque não quis, não lhe apeteceu, tinha outros planos.

 

Porque é que é tão dramático em Portugal assumir uma derrota?

Creio que é esse vazio criado pelo poder. O poder é tudo, o resto não é nada. A preocupação principal de um político é manter-se dentro do círculo do poder, não cair no nada. Evoluiu dentro dos círculos, dos canais estabelecidos, foi assim que fez a sua carreira. Não foi em contacto com os cidadãos, liderando movimentos cívicos, partindo da periferia para o centro. Mesmo quando actua na periferia, vende-se na periferia devido aos seus contactos preferenciais no centro. O melhor presidente da câmara é aquele que tem o número do telemóvel do primeiro-ministro ou do ministro mais relevante para a acção da câmara municipal.

 

Especulando um pouco: qual acha que foi o grande embate para José Sócrates nos dias imediatamente a seguir às eleições? O telefone deixar de tocar, deixar de ser ouvido, deixar de ver o seu nome nos jornais?

Viu a maneira como ele desapareceu? Porque é que alguém que tinha sido eleito líder do Partido Socialista poucas semanas antes, com uma percentagem gigantesca, desaparece completamente? Porque é que isso não corresponde à vontade de um partido em ter aquela pessoa como líder? Independentemente do revés eleitoral, porque é que não ficou à frente do partido para mobilizar o partido e o levar ao poder outra vez? Porque é que fez a interpretação: “Aquela gente só gostava de mim porque estava no poder. Não tenho poder, vou-me embora”?

 

Não existe a tradição de ficar. A derrota eleitoral é lida como um seta que aponta para a saída. Não é exclusivo de Portugal. Gordon Brown não ficou no partido depois de perder as eleições.

Porque é o colapso total de alguém que tinha com os seus apoiantes uma relação de poder. Não era uma relação de partilha de um projecto de ideias, de crenças, que o fizesse pensar que podia sobreviver a uma derrota e voltar a combater noutro dia. Nos países ocidentais, caminhou-se para esse género de situação. Onde é que temos casos como o de Mitterrand, que perdeu uma quantidade enorme de eleições até ganhar finalmente, em 1981?

 

Ou Lula.

Temos às vezes a sensação que determinada pessoa foi escolhida porque podia ganhar as eleições. Não é porque os partidos gostassem dela. Essa pessoa é aparentemente estimada e adorada enquanto está no poder, e quando perde, o poder desaparece. Já não sabemos quem é.

 

Então não é a pessoa que é adorada: é a função.

É o poder que é adorado. E aquele indivíduo apenas corresponde a um operador que pode revelar-se útil para haver acesso ao poder.

 

O que é que se transacciona, grandes negócios, grandes interesses?

Transacciona-se tudo. Estamos sempre a pensar no dinheiro, mas transacciona-se auto-estima, estima, consideração. Ter o telemóvel, telefonar, ter acesso. Ser reconhecido. Estas coisas têm um lado simbólico que tem muita importância em sociedades em que as pessoas sacrificam o seu conforto e a sua privacidade para aparecer. São os 15 minutos de fama. Repare o que é que os cidadãos anónimos estão disponíveis para experimentar – as humilhações, as exposições – para ter os seus 15 minutos de fama.

 

A celebridade é uma forma de poder.

É sair do anonimato, é apostar na desigualdade e deixar de ser igual aos outros. O poder é criado a partir deste duplo critério: exige-se e justifica-se para criar igualdade, mas só existe porque há desigualdade e porque as pessoas querem desigualdade. É uma dinâmica contraditória.

 

O caso português, em que é que se diferencia?

A dimensão dos estados não é um factor negligenciável. Um país mais pequeno acaba por propiciar promiscuidades que um país maior propicia menos. É mais fácil encontrar um primo num país mais pequeno, numa posição que nos interesse, do que num país muito grande.

O que é mais específico? O sistema foi montado a partir de enormes concentrações de recursos no centro, e julgando que essas concentrações teriam um efeito libertador. Isso foi uma crença. Estamos num processo de transição (que vai ser demorado) para um sistema que pode resultar numa desconcentração de recursos, e isso corresponde à convicção de que pode ser libertador.

 

Essa mudança vai ter de ser feita porque há uma imposição da Troika?

Não, há uma imposição das nossas próprias ambições e expectativas. O grande problema da sociedade portuguesa não é a Troika, é que criou expectativas e ambições que já não pode satisfazer dentro do modo de vida a que se habituou. A Troika somos nós.

A mudança já começou, há bastante tempo. Às vezes só nos apercebemos dela a meio caminho, quando somos atingidos, quando o caminho deixou de ser fácil. É como quando começamos a caminhar: só nos damos conta que a distância era grande quando vamos a meio e começamos a ficar cansados. Quando imaginamos a sociedade portuguesa há 30 ou 40 aos, não estamos na mesma. Este sistema já mudou muito. Quem trabalha com arquivos do passado sabe que ninguém fazia um exame no ensino secundário e nas universidades sem mandar um cartão ao professor, a pedir clemência.

 

Hoje os alunos vão fazer exame sem gravata.

Uma parte da mudança que estamos a viver é o resultado de uma opção tomada há uns anos. De, por exemplo, entrar na Comunidade Económica Europeia, de nos internacionalizarmos. Historicamente devíamos comer peixe pescado na costa, mas habituámo-nos ao bacalhau, que era um coisa que vinha da Noruega e dos mares do norte. Em vez de a sardinha ser o único prato nacional, escolhemos o bacalhau. Devíamos ter um prato nacional pescado aqui à mão. O Estado, já o disse, nunca viveu neste rectângulo. Mas as pessoas também nunca viveram neste rectângulo. As nossas tradições de emigração, que foram aparentemente interrompidas na década de 90 e que já retomámos, agora são vistas como uma espécie de catástrofe. Mas emigrámos sempre. A nossa sociedade só existe por causa da emigração. Há muitas coisas que no Minho achamos muito nacionais e típicas e que são resultado da emigração brasileira.

 

E era um fenómeno transversal. Quase todas as famílias tinham ou têm alguém que emigrou.

Durante séculos a emigração é a grande via de mobilidade social em Portugal. A mais significativa – não quer dizer que não houvesse casos na Igreja, e no exército de forma mais limitada. Quando regressam, os filhos e os netos já regressam para outras escalas sociais. Esta foi sempre uma sociedade que viveu do exterior, precisou do exterior para funcionar.

 

Uma pergunta pessoal. Por que é que regressou a Portugal, depois de se ter doutorado e trabalhado em Inglaterra?

Entre outras razões, porque não senti Portugal como separado daquele mundo em que me apetecia actuar, escrever, pensar, relacionar-me. Não senti que estava a perder acesso a determinado tipo de ambientes, interacções, pessoas, instituições. Não senti essa exclusão. Também pode perguntar: “Por que é que saiu de Portugal?”. No momento em que saí ainda havia uma vantagem em sair. Havia um prémio associado à saída.

 

Sempre tivemos estrangeirados. E quando se vinga lá fora regressa-se a casa como um herói.

A própria pessoa sente que tem alguma coisa a ganhar, em sair. A questão que sempre se coloca é: se está integrado no sistema, como é que pode pensar o sistema? De onde é que vem essa lucidez? Temos essa capacidade enquanto indivíduos. A sociedade portuguesa, em comparação com outras sociedades, é auto-crítica. Temos um discurso sobre nós próprios muito violento, exigente, negativo. Uma verrina tremenda, que roça a falta de respeito. Basta falar com os escritores e pedir-lhes que falem de outros escritores. Falar com professores universitários e pedir-lhes para falarem sobre outros professores universitários. Até gente que respeitamos… Aquele grande empresário que conseguiu ter sucesso.

 

Não é sobretudo inveja, o que suscita essa verrina?

Há inveja, mas há também aquilo que existe no sistema político: a falta de um referente externo. Em Portugal, alguém nos vai explicar que o prémio literário ganho por aquele indivíduo é porque ele é namorado não sei de quem, que tem influência no júri. E que teve sucesso lá fora porque tem um amigo. O que este sistema produz é uma grande descrença no trabalho. “Só pelo trabalho não vamos lá”. É como dizer que só com os meus direitos e garantias não vou a lado nenhum; é preciso ter conhecimentos. Quando começo a integrar o sistema, adquiro poder e influência, mas perco o respeito que está apenas associado ao trabalho.

 

Simultaneamente, há uma desconfiança em relação ao poder. A reputação dos políticos está nas ruas da amargura.

Em Portugal, uma pessoa, enquanto excêntrico, profeta, tem uma certa reputação, é estimada. A partir do momento em que se aproxima do poder, ou que assume responsabilidades públicas, passa a ser um vendido, um traidor. As nossas identidades mais positivas estão associadas ao trabalho. A nossa influência está associada ao poder. O poder: tememos mas não respeitamos. O trabalho: respeitamos mas não tememos. Os portugueses gostam dos coitadinhos.

 

Um episódio anedótico que ilustra isso: o primeiro Big Brother português foi vencido por quem? Por um coitadinho.

Gostamos dos coitadinhos porque não nos fazem sombra. Não nos atormentam. Temos de mudar para um sistema em que seja óbvio que a posição se deve a esforço. Que se deve a uma desigualdade, mas que essa desigualdade não é o resultado do poder; é o resultado da disponibilidade que o indivíduo tem para se sacrificar mais do que o outro. Há subsistemas na sociedade portuguesa onde isso já acontece. O futebol é um deles. Ninguém diz que o Cristiano Ronaldo está no Real Madrid porque é primo ou amigo de quem quer que seja.

 

O que mais praticamos é o bota-baixismo, a maledicência, a desconfiança em relação aos métodos que o outro usou para chegar onde chegou. Como dar a volta a isto?

O “não vale a pena” é o que envenena mais uma sociedade. Mas como é que será uma sociedade em que o trabalho é valorizado? Será que sou assim tão bom que me permita dispensar os mecanismos de apoio de conhecidos, amigos, que me protegem? Temos medo da avaliação objectiva.

 

Não é possível isentar completamente os factores subjectivos na avaliação.

Mas podemos aumentar a participação de actores de tal maneira que ninguém consiga sozinho determinar os resultados finais. Teremos sempre empresários maiores que os outros; mas quero saber que esses empresários são maiores e criam mais riqueza porque são mais capazes, trabalharam mais. Não quero um sistema viciado, só para quem já está instalado.

 

É o próprio funcionamento da máquina, é isto em que nos fomos tornando que vai potenciar a mudança?

Para aquilo que queremos, isto já não serve. Precisamos da Troika porque precisamos de objectivar as nossas exigências. Mas a sociedade portuguesa já tem esse mecanismo.

 

 

Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2011

 

 

 

Jaime e Maria José Nogueira Pinto

08.07.13

São “os Nogueira Pinto”. Um projecto ideológico, uma história de amor, uma forma de existir. São “uma sociedade em comandita” que nunca anulou nenhum dos seus elementos. Casaram em 1972, têm três filhos. São orgulhosamente de direita. Viveram uma vida cuja probabilidade de lhes acontecer era de 0,1%. Um 0,1% riquíssimo.

O ponto de partida para a entrevista poderia ser a edição recente do livro de Jaime Nogueira Pinto Nobre Povo – Os Anos da República. Mas esta não era uma entrevista ao revolucionário nacionalista e as primeiras conversas para que ela acontecesse antecedem as comemorações do centenário da República, bem como a edição do livro.

O ponto de partida foi a vida que os Nogueira Pinto, Jaime e Maria José, escolheram ter, e o modo como a viveram. Conheceram-se porque ela furou a greve na faculdade de Direito. Estiveram juntos em África a lutar por um império que desmoronava. Partilharam uma fila para a sopa num campo de refugiados. Viveram um exílio de quatro anos entre Joanesburgo, Madrid, Brasil. No regresso a Portugal, ela fez política e dirigiu instituições como a Santa Casa da Misericórdia. Ele esteve em jogos de bastidores e deu aulas na universidade.

Jaime nasceu em 1946, Maria José em 1952. Sentaram-se num canapé na casa apalaçada, um ao lado do outro. Falaram duas horas sobre uma aventura que não foi vivida por Corto Maltese – herói dele – mas por eles.

 

 

Em que é que são radicalmente diferentes um do outro?

Maria José – Em quase tudo.

Jaime – O género e tudo o que é determinado pelo género, que é significativo. Não diria que é quase tudo. Diz lá em que é que somos diferentes…

Maria José – Organização. Eu sou maçadora e tu és menos maçador.

Jaime – Não sou preocupado com a organização. Porque alguém me organiza. As mulheres são mais práticas do que os homens. Mais realistas, menos românticas. Muito menos românticas. A ideia das mulheres românticas é uma invenção dos autores românticos do século XIX.

Maria José – O Jaime faz troça: a mim, se os livros são tristes, cansam-me.

Jaime - Trouxe-lhe o Stefan Zweig. Um autor do meu tempo.

 

Um autor romântico.

Jaime – Mas eu sou romântico. O meu livro de cabeceira – não foi o que li mais vezes; o que li mais vezes foi As Minas de Salomão – é o [The Great] Gatsy. O Jay Gatsby diz que é possível reviver o passado. Isso é o cúmulo do romantismo.

Maria José – E és um bárbaro. Conceito interessante.

 

Que quer dizer?

Jaime – Que não tenho muitas regras. Ligo mais à legitimidade do que à legalidade. Quando a legalidade vai contra o que eu acho que é legítimo, se puder transgrido. Se não puder, também. Sendo politicamente conservador em muita coisa, não sou nada ordeiro. Sou bastante subversivo em relação a muita coisa.

Maria José – Quando tu chegaste, toda a minha vida se transformou.

 

Começo por aqui porque a opinião pública tem a ideia de que são dois corpos numa só cabeça. Como se formassem uma unidade.

Maria José – Somos uma unidade no que nos propusemos ser e fazer na nossa vida. Mesmo antes dos filhos. Uma coisa é ser uma espécie de sociedade em comandita, outra é ser uma unidade diluente. Uma das coisas positivas da nossa vida foi que ninguém anulou ninguém. E podemos dizer isso, também, em relação à forma como criámos os nossos filhos – com a total liberdade de serem o que quisessem. Liberdade que eles bem usaram, para nosso orgulho. Mas somos parte de um todo, e isso é forte, determinante.

Jaime – Nas ideias e na prática política, a Zezinha fez carreira política partidária. É bastante mais religiosa do que eu. Mas temos ambos fé, em Deus, em Cristo. A questão política: sou bastante mais nacionalista do que democrata. Voluntariamente, determinadamente nunca quis envolver-me em partidos políticos. O meu serviço cívico e político foi fazer revistas, [participar em] fóruns.

 

Também fez política nos jogos de bastidores.

Maria José – Eu fiz mais na ortodoxia política.

Jaime – Foi aquilo que pensei que gostava de fazer e que suportava fazer. A Zezinha também se deu mal com as disciplinas partidárias. Toda a vida esteve em estruturas organizativas grandes. Eu só sei fazer trabalhar pequeníssimos grupos.

Maria José – Eu gosto imenso que me dêem uma grande empreitada. Gosto imenso da gestão de recursos humanos e acredito que é possível motivar as pessoas em torno de objectivos.

 

Quando o Jaime chegou à sua vida, deixou de ser uma Avillez para passar a ser uma Nogueira Pinto? Que queria isso dizer? É a única das três irmãs que adoptou o nome do marido.

Maria José – Tudo mudou. E de certa forma, tudo começou. Embora tenha tido uma infância e adolescência que foram um privilégio, na realidade tudo começou a partir desse dia. A minha vida foi Nogueira Pinto. O meu pai, coitadinho, de vez em quando, dizia: “Mas onde está o Avillez?”. “Pai, tenho a maior honra em ser Avillez, mas quando penso em mim, penso em Maria José Nogueira Pinto”. Ser uma Nogueira Pinto é fazer parte activa desta unidade. Desta ilha. Quando me conheceu, ele achava que podíamos viver como o Fitzgerald e a Zelda, a passear no jardim do Campo Grande. Um dia, aqui nesta entrada, expliquei-lhe que não. Ou era uma coisa a sério ou não era.

Jaime – Uma vez telefonou-me a perguntar se eu não achava que já era altura de ir falar ao pai…

Maria José – O tal modelo romântico não ia conduzir a nada. A outra hipótese era uma aventura de altíssimo risco. Eu era particularmente nova. Casei com 19.   

Jaime – Conhecemo-nos no dia 12 de Março de 1970. Casámos em Janeiro de 72.

 

Percebeu logo que era uma aventura de altíssimo risco?

Maria José – O Jaime tinha estas características e percebi que não ia abdicar delas. Que era eu que ia embarcar. Eu tinha uma grande sedução por embarcar nisso. Não embarquei por sentido de dever. Casei porque quis. A nossa vida foi assim.

Jaime – Altos e baixos.

Maria José – Abriram-se horizontes mais extraordinários do que alguma vez pensámos que íamos viver. Foi muito inusitado.

 

A grande diferença foi a possibilidade de estar perante um abismo? Um abismo permanente. Era isso também que a seduzia?

Maria José – Não havia certezas de nada. Não fazia planos para a minha vida. Nem profissional. O meu pai sempre achou que eu ia acabar na Junta Reguladora do Comércio do Bacalhau, porque andava sempre a saltar de um lado para o outro. Quando a Junta foi extinta, mandei-lhe uma fotocópia a dizer: “Aqui já não acabo”. Portanto, não me afligiu nada um modelo de vida incerto. Mesmo depois de as crianças nascerem.

 

Queria ser o herói romântico que lia nos livros? Ou o herói político?

Jaime – Os meus heróis foram sempre os mesmos. Para começar, o Corto Maltese. Isso não se compadecia com a família, os filhos, tudo isso. Não tinha ideia nenhuma de ter filhos. Gosto imenso dos meus filhos depois de eles terem nascido.

Maria José – Foi um convite a solo. Não me convidou para fazer a família dele. Convidou-me para uma longa viagem. Mas os filhos foram para ele uma revelação, e agora os netos. Estão [as fotografias] no telemóvel – não disfarces! Eu não tenho um neto no telemóvel.

Jaime – Por causa do livro da República [Nobre Povo – Os Anos da República] tenho estado a ler as memórias do Raul Brandão, um documento admirável. Diz: “Encontrei o Mariano de Carvalho. Só fala nos netos. Mau sinal”. Mas claro que gosto dos meus netos. Gosto da minha família por ser a minha família e gosto deles individualmente.

Maria José – Ficamos muitíssimo mais vulneráveis.

 

Justamente: não sonhava com uma família porque não queria ficar vulnerável e porque isso podia impedir a prossecução do seu sonho? 

Jaime – Não ia tão longe. A minha geração era obcecada com as coisas da política. A defesa do império, a revolução. Os nossos personagens, os nossos heróis, eram gente assim. Havia um lado de nihilismo muito forte, que eu disciplinei ou domestiquei – mais disciplinei do que domestiquei. Passo a vida a impor-me uma disciplina que me contrarie. Tinha a intuição que uma família não era compatível… Mas hoje não diria isso. Porque acabou por ser compatível. Foi uma sorte. Foi um gift, um dom.

Maria José – A questão da vulnerabilidade é importante. Há aquela frase do Kennedy: “Ter filhos é dar reféns ao destino”.

 

Quando foram para Angola, em 74, o vosso filho mais velho já tinha nascido.

Maria José – Já. Tinha já acontecido o 25 de Abril, existia a perspectiva da descolonização, não teria sido possível a nossa fuga de Angola com uma criança daquela idade. O miúdo estava aqui [em Portugal, nós estávamos em África]. Tive que vir cá buscá-lo, mais tarde, e levei-o para a África do Sul. Clandestinos. Papéis, confusões…

 

Não teve dúvida nenhuma de que queria ir para Angola para viver o seu sonho?

Jaime – Nem foi isso. Na Primeira Guerra Mundial, havia uns cartazes ingleses que diziam assim: o que é que fizeste durante a Grande Guerra? Ora, tendo sido eu toda a vida um grande defensor do Ultramar, seria absurdo não ir. Pareceria uma graça de um político do Antigo Regime: “Armemo-nos e ide!”. Que é, aliás, um costume muito português, das elites portuguesas. Quanto mais não fosse para não passar pela vergonha do “armemo-nos e ide”, tinha que ser minimamente coerente e ir. Como tinham ido centenas, milhares de pessoas que nem pensavam sobre aquilo o que eu pensava. Era o mínimo dos mínimos éticos.

 

Era ir para lutar pelo que restava?

Jaime – Quando me ofereci, ainda não tinha havido o 25 de Abril. Ofereci-me, nunca mais me mobilizavam, então troquei com um colega de curso, Arnaldo Cadavez, que já estava mobilizado. Ele ficou tão contente, apressou os papéis, tudo. Quinze dias antes do 25 de Abril. Agradeço-lhe imenso. Porque se não fosse isso, não teria ido para a guerra e a minha vida teria sido completamente diferente. Gosto muito da vida que acabei por ter.

Maria José – Fomos.

Jaime – Comecei logo a preparar uma revolução, organizar o FRA, fazer 500 mil coisas. O lado romântico: o voluntarismo. A gente acha que vai conseguir, que vai fazer. E vai fazendo sempre.

 

Quando vai, acha que vai conseguir?

Jaime – Acho. E se não conseguir, pelo menos fiz um esforço. Havia um livro de que gostava imenso sobre a cultura dos samurais, sobre a “nobility of failure”. Tínhamos também o culto das causas perdidas. Aquela máxima do Cyrano: “Et c’est encore plus beau parce que c’est inutile”... Penso que na esquerda também havia estas coisas. Esta gente, agora, “business oriented” deve achar que éramos completamente idiotas, tontos. Mas éramos assim. 

 

Antes de ir, o império era para si uma abstracção. É interessante que se faça ao terreno.

Jaime – Para ver como era. E como éramos novos, muito abstractos, hegelianos (acreditávamos nas ideias puras), o império era para defender. Tanto fazia que fosse um bocado de areia como um pântano sujo. Era território. Era a mística. Éramos idealistas. É evidente que hoje gosto muito mais das coisas e das pessoas do que gostava nesse tempo. Mas isso é a sorte da vida.

 

Fale-me disso.

Jaime – Nunca pensei voltar a Angola, ao império, se já não fosse nosso. Que é que lá ia fazer? Hoje adoro ir a Angola, gosto das pessoas, divirto-me. Gosto de Moçambique; tenho com mais dois sócios uma coisa [empresa de segurança], com cinco mil pessoas a trabalhar.

Maria José – Acompanhar essa transição da queda do império, com eles do outro lado, foi muito importante. Gerou laços, ao contrário do que as pessoas pensam. Vivemos as mesmas coisas de lados diferentes da barricada.

Jaime – Com o fim da guerra fria, também se criou o charme do ex-inimigo. Cultiva-se e é agradável. Não estou a ser cínico. As pessoas que passaram sob bandeiras diferentes pelas mesmas experiências, e quando deixa de haver razões para se combaterem, identificam-se mais do que as que não passaram por coisa nenhuma. Na preparação do livro da República, achei interessante o facto de o Machado Santos e o Paiva Couceiro serem dois personagens parecidos; Machado Santos refere-se ao “Bravo Paiva Couceiro”; ou seja, praticamente admira o único tipo que está a combater com ele. Hoje, como não há grandes conflitos e grandes batalhas, e a política é light, é centrão, isso leva as pessoas a estes refúgios nostálgicos.

Maria José – Não acho nada que sejamos nostálgicos. Nem tu nem eu. Temos sempre mais saudades do futuro.

 

As pessoas olham-nos como sendo nostálgicos de um passado que ainda viveram e pelo qual ainda lutaram.

Maria José – Nós lutávamos por um conceito de Portugal. Que desapareceu. Nessa altura em que desapareceu tivemos atitudes logo diferentes. Eu nem sonhava fazer algum dia intervenção política.

Jaime – Eu escrevi um livro chamado Portugal: os Anos do Fim, em 1976.

Maria José – Disse-lhe: “Não ponhas esse título”. De outra maneira, Portugal vai continuar.

Jaime – E continuou.

Maria José – O nosso trabalho, o nosso testemunho, que passámos aos nossos filhos, foi muito mais no sentido do futuro, do que, apesar de tudo, ainda se podia fazer pelas ideias, pelos valores, pelas coisas em que acreditávamos. Por um Portugal reformatado.

 

O que foi preciso para aprenderem a estar nesse Portugal reformatado?

Maria José – A própria realidade. Não é conformarmo-nos. Está por demonstrar que a solução que se deu ao Ultramar tenha sido positiva. Aquilo em que acreditávamos não era tão insensato, tão disparatado, como se quis fazer crer durante muito tempo. O Portugal que temos é o Portugal que temos. É onde nascem os nossos netos, onde as pessoas ficam.

Jaime – Voltámos em 1978. Em 1980 comecei a [revista] Futuro Presente, com o Nuno Rogeiro, o José Miguel Júdice. Fui sempre fazendo coisas.

Maria José – Os nostálgicos não são activos.

 

Sofreu muito com o que tinha sido o falhando do ideal da sua juventude?

Jaime – Sim. Mas depois tive a sorte, e foi isso que me permitiu “destraumatizar”, de voltar aos mesmos sítios de cara levantada, sem meter ideias no bolso, e até com o respeito das pessoas (quer daquelas com quem tínhamos estado, quer das que tinham estado contra nós). Volto a esses países e entro pela porta da frente, dou-me bem com as pessoas, tenho actividades lá. Ideia mítica: a gente perde as batalhas, mas volta sob outras formas, outras bandeiras.

Maria José – Perde batalhas e não perde necessariamente a guerra. Que guerra é essa?

Jaime – Somos muito hegelianos para ter razão contra a História. São interessantes os livros que os americanos começaram a fazer de história alternativa – os what if. Nós, por uma questão mais psicológica do que filosófica, para ficarmos com a cabeça no lugar e não darmos em malucos, temos a tendência para racionalizar o acontecido. Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, tinha acontecido o 25 de Maio. As coisas já estavam de tal maneira…

 

Intuíam-no?

Maria José – Tínhamos essa noção.

Jaime – Ter razão em História… A razão é uma coisa que podemos discutir connosco ou com Deus Nosso Senhor, se o tivermos. O resto são os factos, o que fica. O acontecido tem muita força.

Maria José – Apesar de ter sido num sentido contrário ao que acreditávamos, foi um privilégio ter vivido um pedaço de História tão forte como foi aquele.

 

É um privilégio porque se conheceram em situações limite?

Maria José – Também. Fomos postos à prova. Há pessoas que nascem e vivem e morrem sem terem sido postas à prova. Essa possibilidade horrorizar-me-ia.

 

Esse pôr à prova é: temos coragem, não temos coragem, somos íntegros, não somos?

Jaime – Persistimos nas nossas ideias ou não. Abandonámos os nossos amigos ou não. Trocámos os nossos amigos pelos amigos dos outros por conveniência ou não.

Maria José – Primeiro é o teste à fidelidade àquilo em que acreditamos. Mas é também o despojamento. Podemos viver sem nada? Podemos. Podemos manter a nossa dignidade num campo de refugiados? Podemos. No outro dia, num debate na televisão, estava a falar-se das minorias, e eu estava a pensar na minha própria experiência. Há sempre uma altura da nossa vida em que somos uma minoria. Nessa fase da vida, foi testar tudo isso. A capacidade de estar com dignidade em situações adversas. Perceber que precisamos de muito pouca coisa para sobreviver.

Jaime – Cigarros e livros. Agora já não preciso dos cigarros, deixei de fumar há 20 anos.

Maria José – Nessa altura é que os filhos nos fazem vulneráveis. O Eduardo esteve connosco, não nessa fase em que estivemos num campo de refugiados [na África do Sul], mas a seguir. Já não podíamos pensar só em nós, já teríamos de pensar nele. Percebemos que éramos tão fortes quanto necessário fosse.

Jaime – Outra frase da adolescência, que é do Nietzsche e também do Conan, aquele personagem de banda desenhada adaptado ao cinema pelo Schwarzenegger: o que não me mata torna-me mais forte.

 

Era nisso que pensava quando estava numa fila para receber a sopa?

Jaime – Pensei no insólito de ali estar. “Que engraçado, olha, agora estou nesta”. São também as leituras… Nessas alturas salta a carga romântica, um bocadinho épica. E o sentido de humor, que tenho. “Quem é que havia de te dizer que ias estar aqui na fila?”

 

Não lhe ocorreu que podia soçobrar?

Jaime – Não!

Maria José – Não tive essa perspectiva. Aqui nesta casa, quando era miúda, até à primeira parte do Governo Marcelo Caetano, dávamos sopa, todos os dias. Quando me vi numa fila a caminho da sopa, percebi que me tinha tocado a mim uma coisa a que tinha assistido anos a fio. Mas tinha estado sempre do lado da panela. Marcou muito a minha infância, sobretudo através da minha avó, a ideia de que nada do que temos é nosso. Não é a caridadezinha. A minha avó vivia o evangelho com muito rigor.  Quando havia jantares grandes de amigos, dizia: “Lá vamos nós dar de comer a quem não tem fome”. Eu, ao princípio, não queria comer [no campo]. Não queria a lata, não queria nada, cheirava mal. Depois o Jaime [riso] olhou para mim e disse: “O mais que tens é de comer”. Ele trabalhava nas cozinhas e trouxe-me um bocado de pão e manteiga de amendoim. As mulheres e os homens comiam separados.

 

Porquê a recusa?

Maria José – Eu percebia que estava ali como refugiada, que não tinha direito a nada, que tinha de se sujeitar às regras. Mas como cheirava mal, não queria comer. Depois peguei na lata e fui. Percebi que estava do lado da lata e não do lado da panela. Como quando tratámos dos papéis de emigrantes – aquela sensação: dá carta de trabalho, não dá carta de trabalho –, algum movimento e pensávamos que era connosco, o ser preciso ir vender os anéis [à Cartier].... Esta experiência, a probabilidade de não acontecer na minha vida, era de 99, 9%. Agradecer esse 0,1% que ma trouxe, é o mínimo que posso fazer.

Jaime – Passar pelo “underdog” é uma experiência muito interessante. Até politicamente. Quando reencontrámos o José Miguel Júdice em Madrid, em Janeiro de 75 – ele tinha estado aqui preso – falávamos das prisões, das repressões. Passava-se a falar fuga, da clandestinidade, da prisão de uma forma completamente diferente. Essa experiência do [que é o] outro lado – do lado de baixo da História, dos perdedores – é riquíssima.

Maria José – Não tem de deixar amargura nenhuma.

Jaime – Do ponto de vista religioso, tenho uma vivência cristã. Do ponto de vista filosófico, sou mais estóico do que cristão. Acho que a passagem disso, dá uma humanidade diferente. Mesmo com os nossos inimigos. Quando a gente passa por isso, tem de dizer: vou-me pôr na pele do outro – e se eu fosse operário, e se eu fosse escravo, e se eu fosse cego e mendigo?

 

Essa experiência ajuda a relativizar?

Maria José – Ajuda valorizar as coisas por que se passa. Nós, afinal, não somos ninguém.

Jaime – E dá um sentido de comunidade forte, independentemente das crenças religiosas e filosóficas. Arrasa com as certezas abstractas e filosóficas. Fomenta outras certezas. Pomo-nos à prova. Pronto, sou capaz, já passei por isto. Mas tudo na escala dos brandos costumes portugueses. Não podemos comparar isto com experiências de outras sociedades.

 

Escreveu que muitos espanhóis acabavam fuzilados no “paredón”. Essa ameaça não era a vossa.

Jaime – Foi a nossa pequena experiência.

 

Apesar disso que dizem, durante muitos anos, sobretudo para o Jaime – o que se percebe na leitura dos Jogos Africanos – continuou a existir uma clivagem absoluta entre os dois lados. Ou nós ou eles.

Jaime – (Peço desculpa, vou fazer outra referência literária. O que a gente lê entre os 10 e os 15, 16 anos é definitivo.) Líamos uns romances sobre a guerra da Argélia nos quais havia uma certa camaradagem entre os contrários. Uma guerra sem ódio. Eu combato aquele porque ele crê as coisas exactamente ao contrário do que eu creio. “Mors tua vita mea” – a tua morte é a minha vida. Mas no fundo somos parecidos. Vou-te eliminar, vou-te neutralizar, mas não tenho ódio. O combate político nunca me levou ao desprezo [pelo outro].

Maria José – Há também a sedução pelas pessoas que podemos admirar, apesar de serem completamente diferentes de nós e nossos adversários. Então em Portugal, isso é muito visível. Tenho um determinado pensamento, não tenho uma família política para esse pensamento. Não estou a certa de que as pessoas que me estão mais próximas na arrumação deste puzzle sejam aquelas que pensam como eu.

 

Pensei que tinha ódio aos comunistas.

Jaime – Ódio, eu? Não digo que tenha muitos amigos comunistas, mas dou-me bem com vários comunistas. Hoje, penso o seguinte: os comunistas, desaparecida a União Soviética, são essencialmente um partido tribunício.

Maria José – Nem podíamos [ter esse ódio], historicamente. É evidente que o Partido Comunista teve um papel determinante no 25 de Abril. Mas não podemos ter uma visão simplista e dizer que foram os comunistas que o fizeram sozinhos. Na sociedade portuguesa há laços e proximidades heterodoxas que vêm disso: das leituras, dos percursos, das afinidades (mesmo as que resultam da defesa de causas contrárias), das vivências académicas e das lutas académicas.

Jaime – Nessa altura é que a gente não se falava. Eu tinha uma resposta chapa para isto: se amanhã houvesse uma guerra civil, naturalmente voltámos à mesma história, tinha de matar uns para não nos matarem a nós. Mas como não há, e até lá, vamos convivendo muito bem. Uma das razões por que nunca me meti em vidas partidárias é porque aí há uma ritualização das coisas: temos de ter ódio ao Governo, ódio aos comunistas, ódio aos conservadores.

Maria José – É uma visão clubística da política.

Jaime – As que fogem a isso não são estimadas. Os conceitos de radicalidade realmente só se percebem na radicalidade.

 

A Maria José trabalhou em instituições como a Maternidade Alfredo da Costa, a Santa Casa da Misericórdia. Esteve muitas vezes em contacto com aqueles que estavam do lado da lata e não da panela, esteve no terreno. Além das experiências partidárias que foi tendo. Isso fê-la menos radical do que o Jaime?

Maria José – Nunca fomos radicais. Fomos convictos. Não mudei nenhuma das minhas convicções. Nem aquelas que foram derrotadas, por referendos, leis, factos históricos. Tenho que ser justa: ninguém (das pessoas que me estimularam a entrar na política activa) me pediu para mudar nenhuma dessas convicções. Nunca senti que por fazer parte de um grupo tinha de gritar como o grupo. Podemos ficar sozinhos. Mas esse ficar sozinho não me afecta nada. Depois, foi uma sorte que a intervenção política tivesse sido muito próxima das pessoas. Esse país real, de que se fala como se fosse uma abstracção, conheço-o. Quem me abriu mais a porta para a política foi a Leonor Beleza. Trabalhei com ela na Segurança Social. Faço política pelo concreto. Gostamos das pessoas – é outra coisa que nos caracteriza.

Jaime – Gostamos e não gostamos. Há uns de quem não gosto. [riso]    

 

Nunca se sentiu um radical?

Jaime – Ah sim, com certeza. Toda a minha adolescência. Tínhamos o culto da radicalidade como uma virtude. Fui o fundador no Porto do Jovem Portugal. Fiz a revista A Política, entre 1969 e 73. Quando regressámos, fiz o Futuro Presente, nos anos 80.

 

Insisto: nos anos 80, o percurso da Maria José parece menos radical.

Maria José – Eu voltei primeiro, em 1978. Fui trabalhar com o Dr. António Barreto, que tinha o gabinete de estudos rurais, na Universidade Católica. Para mim, a reforma agrária, que estudei, eram os camponeses, os latifundiários, as ocupações… E vinha do exílio. O terreno permitiu-me perceber que não havia fome da terra, havia fome de emprego estável. Uma vez ocupadas as terras, ninguém soube o que fazer com elas. As UCP acabaram por fracassar. Mas aquilo era um santuário em termos revolucionários. Ou seja, ajudou-me a desmontar muitos estereótipos. No fundo, a aproximação às coisas reais, que tenho muito na minha vida, mais do que o Jaime, que é mais intelectual puro, foi muito abrangente e permitiu-me perceber que a vida é como é. Tudo mais simples do que parece. Ou talvez mais complicado. O radicalismo: o meu pai era um homem de direita, orgulhosamente do Estado Novo, muito ligado ao Salazar. Mas aqui em casa fomos sempre educadas com grande liberdade. Nunca tivemos a noção do radicalismo. Tivemos, sim, a noção das convicções. Nesta casa passava toda a gente. Bem, não passava o Álvaro Cunhal. Mas passava gente diversificada. O espírito de curiosidade pelo que era diferente de nós sempre nos foi incutido.

 

O seu pai era salazarista?

Jaime – Era. O meu avô foi Franquista (João Franco), depois Sidonista e Salazarista. Do lado da minha mãe, penso que o meu avô foi carbonaro. Eu tive uma fase liberal, pela democracia e pela liberdade, vinda das leituras. A maior parte dos romances que se editavam em Portugal eram de gente de esquerda italiana, francesa, Elio Vittorini, Sartre. Havia um escritor americano de segunda ordem, muito esquerdista, de quem li a obra toda: Erskine Caldwell. O princípio da guerra de África, em 61, é que me deu a volta, por causa do Ultramar. O que me leva a crer que a propaganda do Estado Novo não era assim tão má. Eu tinha 15 anos, fui apanhado por essa coisa do patriotismo e aderi ao Jovem Portugal.

 

Que criança era, que jovem era, para ter convicções políticas tão fortes com essa idade?

Jaime – Era uma coisa de geração. Eu lia invulgarmente.

Maria José – Também eras um miúdo sozinho.

Jaime – Era muito sozinho. Com 12 anos li a Bíblia toda, a edição ilustrada pelo Gustave Doré. Dantes, o saber e a cultura eram coisas que nobilitavam, tornavam as pessoas respeitáveis. Algumas das pessoas que mais me formaram foram os meus professores de liceu. Dr. Baltasar Cardoso Valente. Aprendi com ele a pensar o mundo, a conhecer o mundo. Ensinava-nos literatura na base das coisas da vida.

Maria José – A minha grande amiga, com quem brincava todas as tardes, era a Dolores, filha do sapateiro do Benfica (as botas do jogadores eram consertadas). A Dolores disse-me: “Sabes, agora vai tudo mudar. Vem aí o [Humberto] Delgado. Vamos mudar de casa. Eu vou viver para a tua casa e tu para a minha”. Tínhamos seis anos! Já eu imaginava a mudança... Ao jantar, contei a conversa. Houve um silêncio, e depois isso foi falado. A guerra do Ultramar foi discutida nesta casa, até porque havia posições diferentes.  

 

Conte-me como era em criança.

Jaime – Tinha meios-irmãos muito mais velhos do que eu, era como se fosse filho único. Tinha só aulas de manhã. Lembro-me de passar as tardes a ler. Também tinha amigos e brincava; mas aos 10 anos já não se brinca muito. Lembro-me de meter o candeeiro debaixo dos lençóis e ler até às quinhentas. Cria um mundo. Aos 15 anos, com a política e o Jovem Portugal, saio do casulo. Torno-me um pequeno líder. Crescemos rapidamente, tínhamos mais de 100 filiados.

 

Queria ser político?

Jaime – Não. Queria ir para a Academia Militar. Queria ser soldado. Não fui por causa dos óculos. Fui para Direito como toda a gente – como dizia o Eça, bacharel em leis como toda a gente. Era um curso que dava para tudo. Houve uma altura em que quis ser professor universitário. Mas depois, por causa da política, deixei de ligar e licenciei-me com uma nota média.

 

Veio do Porto para Lisboa. Tinha a noção de que aqui é que se passava tudo?

Jaime – Eu queria vir para Lisboa. Digo sempre isso aos meus alunos: onde se passam as coisas é na grande cidade. Onde é que apanhei Lisboa? Nos filmes portugueses, nas comédias. Vinha cá às vezes e gostava muito. Tinha a coisa de querer sair de casa, de ser autónomo. Vim com 17 anos. Não quis ir para Coimbra porque seria como estar no Porto. Em Lisboa, continuei na actividade política.

 

Era de direita numa altura em que “toda a gente”, sobretudo no meio universitário, era de esquerda.

Jaime – Não me incomodava nada. Em Direito ainda havia um núcleo de direita. Havendo um pequeno núcleo é possível arregimentar alguns dos indiferentes. A faculdade de Direito foi a faculdade onde nunca se conseguiu uma greve geral. A esquerda tinha outras formas de agremiação, revistas, associações de estudantes – uma outra força.

Maria José – Quando eu furei a greve em 1969 – foi assim que nos conhecemos, veio no jornal que eu tinha furado a greve; uma coisa censurável e extraordinária – tive os meus amigos com um profundo desgosto por eu ter feito aquilo.

Jaime – Eu organizei o furar a greve. Em Coimbra o núcleo de direita tinha uma certa força. Era parte do meu grupo. Mas nós éramos bastante isolados, não éramos propriamente do regime. Tínhamos, não direi repugnância, mas uma certa alergia a ser confundidos com qualquer coisa que tivesse que ver com o regime, quer no tempo de Salazar, quer no tempo de Marcelo Caetano.

 

Porquê essa alergia?

Jaime – Porque éramos nacionalistas revolucionários. O regime era para nós uma coisa arcaica, careta, decadente. O culto de Salazar em Direito é depois de ele desaparecer.

 

Quem diria que anos mais tarde iria a um programa de televisão defendê-lo… 

Jaime – Continuo a achar que Salazar teve três qualidades que amigos e inimigos não lhe negam. Procurou sempre o que ele entendia como o bem de Portugal. Segundo, era uma pessoa honestíssima em relação a tudo o que era dinheiros públicos; tinha a preocupação de controlar os outros; e como lhe tinham medo, havia pouquíssima corrupção. No fim do Estado Novo, as coisas mudaram. Terceiro, decidia coisas, bem ou mal. Não empatava, não engonhava. Uma certa popularidade que ele adquiriu [resulta daqui]: contrasta muito com a média dos políticos.

 

Quer dizer que a defesa que foi fazer à televisão não a poderia ter feito quando era jovem?

Jaime – Não. Achávamos que o regime, com excepções, era feito de gente muito burocrática, ordeira. Não queríamos ter nada a ver com eles. Nós vivíamos nos personagens dos livros, nos autores franceses dos anos 30, no Ernst Jünger. O programa de televisão: pensei, provavelmente com presunção: “Ou vou lá eu ou corre mal. Quem for, é capaz de não fazer aquilo bem e depois fico furioso por não ter ido”. Há uma frase do Reagan que gosto muito de citar e que acho que pode resolver grande parte dos nossos problemas: “If not us, who? If not now, when?”. Ninguém se chega à frente? Quem me telefonou, telefonou como se estivesse a fazer um convite embaraçoso.   

Maria José – Como se fosse para ir para a forca!

Jaime – Perguntei: “É como advogado ou como historiador? Se é como advogado, aceito já.”

Jaime – Nunca vi um clima tão tenso num programa de televisão. No fundo, é muito importante saber quem é que conta a História. É importante que o Jaime tenha escrito estes livros. Porque a História foi contada durante muito tempo só por um lado. Nós, direita, temos culpa disso. Estivemos calados.

 

No período da guerra fria, a Maria José esteve mais na ribalta, na política activa. No caso do Jaime, só a partir dos Jogos Africanos soubemos da sua participação em jogos de bastidores, de influência. Sendo um palaciano, dá-se muito bem na selva, com as pessoas da selva.

Maria José – É um urdidor.

Jaime – Essa actividade, como a maior parte das coisas importantes que nos acontecem na vida, aconteceu por acasos. Em 1978, ainda estamos a viver exilados em Madrid, o embaixador Franco Nogueira foi convidado por um grupo com uma certa base conservadora, do Liechtenstein, a ir lá regularmente. Esses grupos informais que se fazem e que as pessoas acham que servem para fazer conspiração. Não é bem conspiração. São grupos que têm uma certa afinidade ideológica.

 

Creio que não usa a palavra conspiração para se referir ao “grupo” Cercle, mas quando chega a África, em 74, diz que a primeira coisa que faz é conspirar, que era o que queria fazer. O Cercle é criado para vencer a guerra fria e é frequentado por pessoas como o Kissinger.

Jaime – Esses grupos são plataformas onde se encontram pessoas com ideias próximas. Políticos, homens de negócios, académicos, homens da área militar e da “intelligence”, jornalistas. Pessoas com uma certa influência nos respectivos países. Pessoas com uma certa qualidade. E pessoas “clubbable”; ou seja, pessoas que gostam desta convivência. Depois, se as pessoas têm interesses bilaterais e querem juntar-se nalguma coisa, isso é com elas. Tive a sorte de ter sido convidado por um amigo para ir a Washington, para o Cercle. Foi no ano e no dia da morte de Sá Carneiro. Tinha o Reagan acabado de ser eleito.

 

Como é que se torna influente?

Jaime – Um dos campos de batalha da guerra fria é África. Eu conhecia bem Angola, e passei a ser no grupo o “expert” que dissertava sobre Angola. Comecei a fazê-lo ali, e dali passei a outros sítios. Ganhei uma certa influência, não porque tivesse um cargo a desempenhar, mas porque conhecia muito bem o que se estava a passar. No Cercle estavam pessoas importantes da administração Reagan, conselheiros, estrategas. Passei a ter esse estatuto. Quando chega a altura de haver uma intervenção mais prática, sou uma das pessoas que se ocupam disso. Gostei. Achei divertido. Fiz umas coisas por minha conta e risco – toda a questão moçambicana. Gosto de política internacional, geo-política. A grande política, gosto de a pensar, estudei-a muito.

 

Gosta de ser sentir uma peça daquela grande máquina?

Jaime – Um amigo respondia com certa graça quando lhe perguntei como tinha entrado naquilo. “É sempre a mesma coisa. Um amigo que traz outro amigo, que é recomendado por outro amigo.” Ele também dizia que as coisas mais engraçadas que fazemos são aquelas que não sabemos se saíram da nossa cabeça, se foi alguém que nos sugeriu e que a gente nem percebeu quem… E é um mundo com uma certa capacidade de acção. A maior parte das vezes não é directa, mas é exercida junto das pessoas que depois decidem, que foram eleitas ou que têm poder. Sou uma pessoa bastante discreta. Gosto mais disto do que de andar aos gritos no meio da rua.

 

Foi uma actividade de que só se soube recentemente.

Maria José – Faz favor de explicar o que é que significa no dia a dia a necessidade desse silêncio… Pugnei pela publicação dos Jogos Africanos. Estava chegada a hora da libertação desse silêncio. Os miúdos, muitas vezes, nem percebiam o que é que o pai fazia. Umas coisas, sim – aulas na faculdade. Mas depois havia um tempo – viagens, ausências – que eles não percebiam bem. Eu seria das poucas pessoas, e por vezes a única, a saber.

Jaime – Um amigo, quando publiquei os Jogos Africanos, disse: “Assim soubemos o que é que andaste a fazer”.

 

Podia responder-lhe com uma frase essencial neste meio, segundo conta no livro: “Não faças perguntas”.

Jaime – Este livro respondeu a muitas coisas.

 

Há um episódio engraçado, quando encontra pela primeira vez Savimbi, em Paris. Por acaso, e sem o saberem, hospedaram-se no mesmo hotel.

Jaime – A Zezinha achou que eu tinha organizado tudo. Não tinha organizado nada.

 

Há coisas que nem a sua mulher pôde saber.

Maria José – Sim. E aceitei isso perfeitamente. Nunca fiz perguntas.

Jaime – A não confidencialidade compromete a maior parte das pessoas. Só tem de ser informada de uma coisa uma pessoa que faz parte do puzzle. Fora isso, não tem nada que saber.

 

No livro diz que a sensação de pertença a este grupo de decisores lhe faz bem ao ego.

Jaime – É claro. Sentia que era um privilégio participar nisso. Nós tínhamos sido exilados… Isto foi há 30 anos.

 

Era uma outra maneira de fazer História?

Jaime – Era. Totalmente diferente. [Fui] um português que pôde continuar a fazer coisas por Portugal. Tive a preocupação de informar as autoridades do meu país, fosse qual fosse o Governo, sobre coisas que tocassem directamente os interesses de Portugal. Salvo duas ou três excepções que não vou comentar, sempre respeitaram. Era uma lealdade ao Estado – não ao Governo.

 

Um exemplo da vossa/sua influência.

Jaime – No caso de Angola, tivemos influência e peso para trazer as negociações [do processo de paz] para cá. Eu fiz isso. Achei importante. Era uma forma de Portugal retomar um papel.

Maria José – Acho que temos de participar. Cada um participa como sabe, como pode, como quer. O Jaime participou assim. Foi um trabalho duro, aliciante, tinha aspectos rocambolescos. Eu acompanhava-o nalgumas viagens.

 

Era a vida dele à qual episodicamente assistia. Não era estar no projecto a dois, em igualmente de circunstâncias, como tinha acontecido no pós-revolução.

Maria José – Foi como os nossos projectos individuais se desenvolveram. Mas posso dizer que fui a companheira dele neste projecto, muitas vezes muda, silenciosa, à boleia. Sempre com a obrigatoriedade de não dizer a ninguém, nem mesmo dentro da nossa casa. Isso criava uma solidão a dois. É uma coisa que une. Eu fui fazendo outras coisas. Tem a ver com participar. Temos obrigação de participar. Gostamos da coisa pública.

Jaime – As razões da acção humana são múltiplas. Porque gostamos, porque é lúdico, pelo dever, até pelo interesse.

Editou um livro, a que já fez referência, que tem um título triste: Portugal: os Anos do Fim. Não parecem tristes.

Jaime – Nunca fomos. Nunca fui um melancólico. Mesmo aí. O título é apocalíptico. São coisas que nos põem em contacto com os limites da natureza humana.

 

Nunca tiveram nenhum tipo de amargura?

Maria José – Nunca.

Jaime – Eu tive outros sentimentos, não amargura. Raiva, raiva, fúria. No dia em que o general Spínola, 27 de Julho de 1974, anunciou oficialmente o fim do império português, tive um grande desgosto. Curei-me das coisas do império voltando a ele.

Maria José – E vergonha. O Ultramar era uma forma de ser português. Depois, nós tínhamos que sobreviver. Era um dia atrás do outro.

Jaime – Era procurar empregos que não chegavam.

Maria José – Era estar longe da Pátria. Longe, até porque não havia dinheiro para comprar bilhetes de avião. Era contar os tostões. Mas aquilo era inexorável. Era o vento da História que ia soprar inexoravelmente.

Jaime – Hoje, lucidamente, racionalmente, reconheço que um país com a dimensão de Portugal, e a partir do momento em que já não havia mais nenhuma potência com colónias, estava isolado. Era um regime exótico na Europa ocidental. Bastava qualquer coisa para um colapso.

Maria José – Doeu-nos sobretudo a forma como acabou. E foi gravíssima a história que se contou. Muito por culpa da inércia da direita.

Jaime – Têm medo.

Maria José – Uns têm medo. Outros têm preguiça.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010.

Maria José Nogueira Pinto morreu em 2011.

  

 

 

Gabriela Moita

07.07.13

«O questionar-me a respeito destas coisas vem de longe. Lembro-me de um texto que li no ciclo preparatório: «Elas remavam como homens». Nunca percebi isto. Devia ter 11 anos. Cheguei a casa e perguntei ao meu pai: «Elas remam. Porque é que é como homens? Elas não remam com os braços delas?» E lembro-me de sentir indignação».

É desta fibra que é feita a psicóloga Gabriela Moita, doutorada na Universidade do Porto com o tema: «Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico». Questões relacionadas com a orientação sexual e a construção da identidade são temas privilegiados no seu estudo.

Vive e trabalha no Porto.

 

 

A designação «homossexual» remonta ao século XIX.

A noção de que havia seres que eram diferentes entre si pela orientação sexual começa a surgir no século XIX. Até então, não era um substantivo, as pessoas não eram isto ou aquilo. Era um adjectivo, as pessoas eram uma coisa entre muitas outras.

 

A existência de relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo é tão antiga como o mundo. O que é que faz que isso deixe de ser apenas um dos atributos do indivíduo, uma coisa que não é complicada e que não tem sequer o carácter de substantivo, para passar a ser uma questão?

Era também complicado quando era, apenas, um adjectivo. Porque é que é complicado e não é aceite, é a grande questão. O que é que faz que seja um tema de tal maneira rejeitado que leva pessoas a matarem outras por terem este comportamento.

 

E então?

A grande rejeição tem a ver com uma questão religiosa, não podemos fugir disso. A vontade divina, (vem escrito na Bíblia), diz que o homem é complementar da mulher. Falamos da natureza de Deus, e a natureza é aquilo que Deus decidiu que era. A Bíblia só diz: «Não te deitarás com um homem como se fosse uma mulher». Não diz: «Não te deitarás com uma mulher como se fosse um homem». Isto tem a ver com a desvalorização da mulher.

 

Os relatos da homossexualidade feminina escasseiam. Quando se fala da Grécia Antiga, fala-se de homens e das suas relações homoeróticas.

Na Grécia havia uma instituição e não uma permissão. Quando se diz que na Grécia a homossexualidade era aceite, não é verdade. Na Grécia havia uma obrigação relativamente a um determinado tipo de comportamento sexual com pessoas do mesmo sexo. 

 

É por isso que era quase indigno para um jovem rapaz não merecer a afeição e o interesse intelectual e sexual de um homem mais velho, um protector cuja função seria a de iniciador?

A institucionalização da homossexualidade na Grécia tem a ver com essa atitude pedagógica. Ou seja, era suposto que homens ensinassem outros homens, neste caso adolescentes, a governar a cidade, e este ensino passava por uma relação de amor. Era desprestigiante para o adulto não ter o seu adolescente e para o adolescente não ter um homem mais velho que cuidasse dele e o ensinasse.

 

Quase todos estes homens tinham a sua família, tinham mulher e filhos. Qual era o conceito de família? A ideia base era a da procriação?

Exactamente. As mulheres eram procriadoras. Negligenciadas em quase toda a Grécia, cuidadíssimas em Esparta porque a noção de mulher procriadora era levada ao extremo. Eram mimadas e cuidadas pela sua potencialidade: para dar bons cidadãos, bons gestores da cidade. Não sei o que aconteceria a uma mulher que não pudesse engravidar...

 

Nas relações homossexuais com adolescentes o amor era também contemplado?

De uma forma instituída, estes homens tinham os seus amantes mais jovens. O que não quer dizer que não tivessem outros parceiros ou que não amassem outros homens. Era sobretudo uma relação de ensino; quem dominava era sempre o mais velho, e o mais novo dever-se-ia sentir interessado, apaixonado. Não sei se é possível definir se havia amor ou não. O amor não é muito falado. Mesmo a relação sexual era muito delimitada. Tinha que se manter uma assimetria entre o mais velho e o mais novo. Não era suposto que o mais novo tivesse prazer, por exemplo.

 

Não?

O mais novo permitia que o mais velho pudesse ter prazer. A relação era sobretudo entre as pernas. Não havia penetração nem anal, nem oral.

 

Porque é que havia uma delimitação tão precisa?

Porque o corpo daquele adolescente não vai pertencer a este homem. Pertence-lhe nesta fase, e não é uma coisa recíproca. Este desnível é uma regra absoluta. Que, de alguma maneira, se mantém na relação homem-mulher. A questão da dominação está aqui fortemente presente. Qualquer homem podia ter um relacionamento com outro homem. Desde que não governassem os dois a cidade. Ninguém se preocupava com o facto de um cidadão ter relações sexuais ou sentir o que quer que sentisse com um escravo ou um homem de condição inferior.

 

Quer dizer que não era a homossexualidade que estava em questão, mas a cidadania?

É a regra do domínio e a regra do poder.

 

Voltemos ao que está escrito na Bíblia: «Não te deitarás com um homem como se ele fosse uma mulher». O que está aqui implícito é uma depreciação da mulher.

A mulher é um reservatório. Deitar-se como se fosse com uma mulher é considerado uma abominação. Porque se vai pôr numa posição de subalternidade. É a grande questão da penetração. Do ser penetrado e penetrar.

 

Ainda na Grécia Antiga, a poetisa Safo, oriunda da ilha de Lesbos, (daí que hoje se diga que as mulheres homossexuais são sáficas ou lésbicas), é caso único no relato despreconceituoso de relações entre mulheres. Porquê?

Safo violou a norma do feminino e do masculino. Assumia-se também com obrigações pedagógicas, tinha escolas de ensino. Ela pensa e escreve quando as mulheres não têm que pensar. A não ser que fossem prostitutas. Não porque tivessem valor, mas para que os homens pudessem conversar com elas.

 

O que é que transpira deste período para a civilização romana?

Muda sobretudo este aspecto pedagógico. Roma caracteriza-se pelo pater-familiae. O patriarcado está instituído e o homem é dono da mulher e dos filhos, dos escravos e dos criados. Qualquer contacto de outro cidadão com a filha de, ou filho de, é grave: viola o direito do pater-familiae. Não há nenhuma referência negativa à homossexualidade. Qualquer homem pode ter outro – aliás, os imperadores romanos são disso famosos –, desde que o outro não seja pertença de ninguém.

 

A questão é a da posse?

É novamente o poder. É o território. Os filhos são território dos pais. Se fosse com prostitutos, escravos, estrangeiros, não era questionado.

 

O cenário é substancialmente diferente com a queda do Império Romano? Que marcas deixa a disseminação hegemónica dos princípios do Cristianismo?

São Paulo define o casamento como uma obrigação. O casamento heterossexual cria uma limitação à sexualidade. Há aqui uma outra coisa que vai estar sempre por detrás deste entendimento da homossexualidade como muito negativa, que é a noção da procriação. Com a entrada do Cristianismo, as pessoas deveriam casar-se para controlar os seus instintos. A sexualidade começa a ficar limitada, controlada pelo casamento, já que as pessoas não se conseguem controlar. Santo Agostinho é que vem dizer isto.

 

Mas porquê essa necessidade de controlar a sexualidade?

Na minha perspectiva, tem a ver também com o controle do património. Com o facto de as mulheres poderem ter filhos de outras pessoas e nunca se saber para onde vão os bens. É uma noção de território forte, de poder e de não partilha.

 

Porque é que a religião condena tanto a sexualidade?

Condena a sexualidade em geral. É por acréscimo que a homossexualidade passa a ser tão questionada. Questiona os papéis do homem e da mulher. Ouvi uma entrevista a um bispo que dizia que os papéis do homem e da mulher estão definidos e que são complementares. Mas não são complementares com iguais níveis de poder... São complementares havendo um que claramente subjuga o outro. Rigidifica estes papéis na hierarquia Deus-homem-mulher, atribuir a obrigatoriedade da complementaridade entre o homem e a mulher, sublinhando que só assim a Humanidade se estrutura, só assim cada ser humano está completo porque se encontra no outro...

 

Subjaz a esse discurso uma noção de harmonia e de harmonização dos diferentes? Diz-se que a homossexualidade é contra-natura porque não concorre para essa harmonia?

É para o que serve. Se formos fazer uma análise do social, em quase tudo se é hetero-qualquer coisa. Por exemplo, em relação à raça; há quase uma condenação da miscigenação. Porque é que de repente é muito útil falar da lei da química ou da física para os seres humanos? É de amor que estamos a falar. Por acaso, o amor integra, às vezes, a componente sexual. Mas estamos desde o princípio a falar de amor, da atracção que as pessoas têm por outras do seu sexo. Pessoas que têm um corpo.

 

Eu insisto em perguntar pelo perigo da sexualidade e da homossexualidade.

Perigo?

 

Porque é que se tentam impor tantas regras? Porque é que é uma questão tão vigiada?

As pessoas não têm de o reproduzir, mas o Cristianismo diz: «Crescei e multiplicai-vos». A ideia de que os seres são feitos para a reprodução é muito difícil negar na cabeça das pessoas. Aprendemos que o ser humano nasce, cresce, reproduz-se e morre.

 

Pode falar-se num instinto reprodutor? O instinto, por definição, é comum a todos.

É comum a todos e manifesta-se da mesma maneira.

 

Na sua perspectiva, existe instinto maternal e paternal?

Na minha perspectiva, não. Que o instinto existe, definimo-lo nós. Para além de haver pessoas que não o têm de todo, ele não se manifesta de forma semelhante. Isto passa a ser explicado como sendo educação – as pessoas não foram educadas de uma forma conveniente... O instinto não precisa de ser educado. Como é possível haver instinto com pais a matarem filhos, a violarem filhos, quando sabemos que as maiores atrocidades fazem-se dentro das famílias? A noção de família do Cristianismo define: um homem e uma mulher que se juntam, com uma obrigação de amor. Esta constituição de família obriga a que um discurso paralelo apareça. Que é destruir a homossexualidade, que é destruir uma possibilidade que o ser humano tem de fazer de forma diferente.

 

Um diferente que ameaça...

Uma ameaça a esta estrutura. Isto vai implicar rever a estrutura social. Provavelmente muitas pessoas ao lerem esta entrevista vão dizer: «Que coisa deplorável que esta mulher está a dizer!». Mesmo as pessoas mal tratadas dentro da família continuam com o discurso interiorizado de que a família é o local mais quentinho do mundo e o melhor e aquele que nos apoia. Ainda que levem pancada e vão parar ao hospital todos os dias. Penso que o controle da sexualidade passa pela tentativa de impor esta estrutura social ao ser humano. E que, melhor do que qualquer outra instância, a religião assumiu esse papel.

 

O conceito de família está em mudança. Hoje em dia, não só aceitamos como vivemos novas modalidades de família.

É o mesmo modelo de família repetido, igual. É mais do mesmo. Vou, com a mesma estrutura, fazer o mesmo, a ver agora se sou feliz. Como se só ali houvesse possibilidade de se ser feliz. Ser feliz é: ter uma pessoa de outro sexo ali ao lado, coabitar com essa pessoa, provavelmente reproduzir com essa pessoa. Vai tentando este cardápio com diferentes pessoas para ver se acerta. Dificilmente a maior parte de nós, educados nesta cultura, aceita que a felicidade pode ser encontrada sozinho. Ou sem filhos.

 

Disse que estamos a falar desde o princípio de amor. Quando se fala de homossexualidade parece que se fala exclusivamente de sexualidade e não de amor – este é, de resto, um estigma muito comum.

É engraçado que diga que se fala como se fosse um problema sexual, porque o que tenho visto escrito e dito por muitos colegas é que é um problema de amor. Que a homossexualidade é um problema que tem a ver com a incapacidade de amar. O que eu acho, perdoem-me os colegas, um perfeito disparate.

 

Colegas seus?

Psiquiatras, psicólogos, psicanalistas.

 

Uma incapacidade de amar uma pessoa de sexo diferente?

Incapacidade de amar, ponto. Daí a ideia generalizada de que as pessoas que gostam de outras do mesmo sexo não conseguem relações estáveis. Claro que isto já tem para trás um preconceito: o de que as relações têm de ser estáveis. E um outro preconceito que a psicologia trouxe: só a estabilidade de uma relação dá estrutura e segurança psicológica. E agora terei outros tantos colegas a dizer que estou louca. Cada passo que é dado, é dado com um quadro de leitura por detrás que rigidifica a possibilidade de escolha.

 

Falávamos de amor-sexo e da incapacidade de amar que os seus colegas atribuem ao homossexual.

Uma pessoa que ama outra do mesmo sexo tem muita dificuldade, nesta nossa estrutura social, primeiro, em aceitar este seu sentimento; vai passar por um caminho de espinhos, dolorosíssimo.

 

Porquê?

Porque organizamos o mundo cá dentro em função do exterior. Toda a nossa interioridade vai ser um espelho deste exterior. Muito cedo se define o que é dos meninos e o que é das meninas. Nos infantários as brincadeiras estão estruturadas para os meninos de uma maneira, para as meninas de outra. Entra em qualquer quarto de bebé e sabe se o bebé que lá vive é um menino ou uma menina.

 

Esse processo é muito vincado. O que é, em si mesmo, revelador.

Porquê? Porque das imensas perspectivas e teorias que existem sobre a explicação da homossexualidade (e que as pessoas têm tanta vontade de explicar, em vez de procurarem explicar o porquê da rejeição), uma das grandes teorias defende que os pais constroem os filhos. É preciso educá-los de forma a que não sejam homossexuais. É engraçado: se se parte do pressuposto que há formas na educação de evitar que se seja homossexual, está a admitir-se que se possa ser.

 

Voltemos à incapacidade de amar.

A criancinha desde muito cedo vai pensar-se a si própria como o mundo que vê. No dia em que percebe que não é igual ao mundo que vê, isto significa o quê? Que até que perceba que não é heterossexual, na cabeça dela, é-o. Até que saibamos que o nosso filho é homossexual, ele é heterossexual. A primeira expectativa que temos em relação a um ser que aparece no mundo...

 

É que corresponda à norma.

Quando não corresponde, é muito difícil. São anos e anos a negar-se a si próprio, na maior parte dos casos. A injuriar-se, como ouve dizer que deve ser feito às pessoas que têm aquele sentimento: é pecado, não deve ser assim, é contra a natureza, é uma aberração. A pessoa pensa: eu não posso ser um pecador (ou pecadora), eu não posso ser uma aberração, eu não posso ser uma pessoa que deve ser morta. Em quantas casas se ouve: «Esses gajos e essas gajas! Se isto se passasse com um filho meu, matava-o!».

 

Acha que se mata? A reacção dos pais, hoje, pode ser ainda tão violenta?

Pode. Pode não matar de facto, não matar o corpo, mas matar a relação em absoluto. Hoje, Setembro de 2003, digo-lhe que há pais que põem os filhos imediatamente fora de casa, mudam a sua vida em absoluto porque não se conseguem rever numa família onde aquilo aconteceu. Estamos a falar de um percurso dificílimo, em que a primeira fase é negar. Ou então perceber que não se pode negar, mas assumir todas estas coisas que estão à volta.

 

É por isso que frequentemente a auto-estima dos homossexuais é muito baixa?

Se viveram isto desta maneira, sim. A sensação é: não presto, Deus não me aceita, sou um pecador, sou uma anomalia. Se consegue ultrapassar esta fase, a outra pode ser: «Bom, se calhar sou só diferente». Mas é um salto muito grande. E é um salto que, sem nenhum tipo de ajuda, dificilmente se dá. E o não dar – e isto é muito importante que se diga – não significa que a pessoa não viva a sua homossexualidade, não sinta e não tenha práticas sexuais.

 

Nasce-se homossexual? Fica-se homossexual? Quando é que a pessoa percebe que é homossexual?

Pode acontecer em qualquer altura da vida. Muito cedo, muito tarde.

 

Peguemos no exemplo de um menino de oito anos que brinca continuamente com meninas e que tem trejeitos efeminados. Vulgarmente diz-se: «Vai dar em maricas». É possível perceber numa criança que a sua orientação sexual vai ser uma determinada? 

Dessa maneira não. Dessa maneira é possível ajudar essa criança a ler-se como homossexual. A sociedade está a alimentar um estereótipo que é o do género. Se este menino gosta das brincadeiras que as meninas gostam, significa que vai ter os sentimentos que as meninas têm. As outras coisas vêm por arrasto. É um disparate! Percebo que isto não seja uma resposta clara à sua questão e, sobretudo, a muitos pais, isto não tranquiliza nada. Mas independentemente do tipo de educação, da forma de vida, dos hábitos quotidianos, as pessoas são homossexuais ou heterossexuais. Em todas as culturas há pessoas que desde que nasceram até que morreram sentiram atracção por pessoas de sexo diferente do seu ou atracção por pessoas de sexo igual ao seu. E pessoas que sentiram atracção por pessoas, independentemente do sexo que têm. Há qualquer coisa inerente ao ser humano? Acho que há. Onde está, não sabemos, e não sei se interessa. Interessará do ponto de vista heurístico. O problema é depois o que se faz com isso.

 

As pessoas têm uma grande fixação nisto, se é uma questão biológica, se é uma questão cultural, se é uma questão familiar. Procuram detectar a raiz do problema para, pelo menos, se sossegarem.

Problema, está a ver? Tocou da forma chave nesta questão. Porque é que se quer tanto saber? Primeiro porque é considerado um problema, segundo para detectar a raiz, terceiro para curar. O erro inicial é pensar-se que é um problema! Quando há uma falta de entendimento relativamente à diferença é a pessoa que lê que tem um problema. Não é o diferente. A questão a pôr é: «O que é que se passa comigo que não me permite lidar com a diferença?»

 

Na etiologia da homossexualidade percebemos o cruzamento de factores genéticos, psicológicos, culturais?

Sim. Nasce-se pessoa. E nasce-se sexuado. E nasce-se com capacidade de amar. Ponto. Quem vamos amar? Como vamos amar? Com que idade vamos amar? O que é que podemos fazer quando amamos? É pela vida fora que tudo isso se constrói. Mas depois, há coisas que são irreversíveis. Dificilmente conseguirá – a não ser contra a natureza, e por natureza entenda-se estrutura, forma de sentir e de viver da pessoa – transformá-la numa coisa que ela não é. Oiço muitas pessoas que têm uma estrutura de vida pautada pela heterossexualidade dizerem: «Está bem, mas podia controlar-se!»

 

Em nome de quê?

Não sei. Estas pessoas dizem isto para elas próprias. Poderiam não ser heterossexuais? Poderiam controlar-se e viver de outra maneira? A questão levanta-se da mesma forma.

 

Um aspecto que causa perplexidade, sobretudo às famílias, é haver um filho cuja orientação sexual é diferente da dos irmãos. Porque os genes serão os mesmos, a família será a mesma, o tipo de educação e envolvência social serão os mesmos.

Quatro filhos são quatro seres diferentes. Com combinações genéticas diferentes. A educação, por mais semelhante, nunca é igual, porque as pessoas não são iguais.

 

Produz um efeito diferente porque é uma pessoa diferente, mesmo que receba a mesma informação?

Não é só isso. O todo é mais que a soma das suas partes. E disso não temos controle. Obviamente, como a Igreja diz, é possível dizer: «Os senhores não se vão relacionar com ninguém». Agora, dizer assim: «Os senhores e as senhoras não vão amar», não pode!

 

A adolescência é o período em que se descobre a sexualidade e em que as coisas se definem na maior parte dos casos?

Não.

 

O Relatório Kinsey, em 1953, apontava a seguinte estatística: 37% dos homens tinham experiências homossexuais na adolescência e apenas 4% eram homossexuais exclusivos. É uma diferença abissal.

Não sei quando se define a sexualidade. É na adolescência, com uma capacidade de usar o pensamento formal, que se começa a pensar na sexualidade. E o corpo, as hormonas começam a permitir-nos sentir outras coisas. Há uma permissão social para que naquela fase etária se experimente. Aqui vai-se definindo o que se sente, o que se pode fazer... Mas encontramos muitas pessoas que aos 40, 50 anos dizem: «Vivi a vida toda a ser quem não era. Tenho uma sexualidade que não é a minha. Sou capaz de muitas outras coisas que não consigo experimentar com a pessoa com quem vivo. Esta foi a vida que todos esperaram de mim e portei-me como toda a gente esperou que me portasse. Dava-me prazer corresponder. Mas no fundo, no fundo, nunca senti assim». E há pessoas que têm a coragem, nesta altura, de transformar empregos, de transformar a família. A coragem, sublinho; porque poderia ser lido de outra maneira.

 

Poderia ser lido como «disparate».

Ou egoísmo.

 

«Agora que foi para velho deitou tudo a perder».

Cá está novamente o cardápio. E mais: rigidifica etapas da vida, mata-nos antes de morrermos. Há pessoas que encontram uma determinada maneira de viver a sexualidade aos 15 e depois modificam-na aos 40 ou aos 50, ou aos 30 ou aos 20.

 

Quando a modificam aos 30 ou 40 anos não significa forçosamente que não tenham sido felizes antes.

Exactamente! É importantíssimo que diga isso.

 

É verdade que os homens, uma vez que experimentam relações homossexuais, não voltam às heterossexuais?

Não sei se pode generalizar.

 

Conhece algum homem que tenha tido uma relação homossexual e que tenha voltado a um comportamento heterossexual?

Não sei se dizia «voltar». Isso, numa determinada visão, caracterizaria a bissexualidade. Que é marcada passo a passo. Uma pessoa bissexual é a que se vai apaixonando ou vivendo a sua sexualidade ora com um homem ora com uma mulher. É marcada pela indiferença clara de que sexo tem o outro.

 

A bissexualidade ainda causa uma maior estranheza que a homossexualidade?

Causa.

 

A homossexualidade, como a heterossexualidade, são definidoras de um território. A bissexualidade é um estar entre os dois, é um não saber o que se quer. A leitura é essa.

Precisamos de previsibilidade. É difícil não saber o que se vai passar com a vida do outro. E isto é no mais comezinho do dia-a-dia: se for à mercearia, as pessoas estão a falar do outro que fez alguma coisa com que não estávamos a contar. É o que nos surpreende e deixa inquietos.

 

A insegurança do desconhecido.

Temos tendência a dizer: «É uma pessoa excelente. Podemos sempre contar com ela». Uma coisa muito valorizada, e que depois ninguém tem, é a constância. A constância dá uma aura de boas pessoas. Porque não enganam. Quem é assim? Traga-me o primeiro!

 

O bissexual tem normalmente uma preferência por um dos sexos?

Pode ter ou não ter. Não há regra. O ser bissexual é o ser que efectivamente usa as suas potencialidades. Tanto um ser homossexual como um ser heterossexual são limitados.

 

Freud dizia que somos todos potencialmente bissexuais.

Freud falava do perverso polimorfo. O que ele dizia era: todos nascemos bissexuais, mas depois, se nos desenvolvermos de uma forma adequada, tendemos para a heterossexualidade. É esta segunda parte que limita o discurso. O ser humano vai viver como? Com que regras? O tender para a heterossexualidade tem a ver com uma adaptação cultural.

 

Podemos considerar bissexual uma pessoa que tem uma relação emocional e sexual com alguém de sexo diferente e uma relação exclusivamente sexual com alguém do mesmo sexo?

Está a pedir-me para entrar naquilo que é a senda de maior polémica...

 

O que é que define os territórios? É-se homossexual, heterossexual, bissexual em função do pensamento, da prática, do desejo? Em função daquele que se ama, se deseja, com quem se tem relações sexuais?

Vai encontrar um estilhaço de teorias.

 

Qual é a sua?

A minha é aquela que cada pessoa definir. Só cada um é que sabe o que é. E só cada um é que sabe o que quer ser. Por exemplo, um homem que ama uma mulher, tem filhos dela, vive lindamente com ela, e às quartas-feiras à tarde tem uns encontros com uns rapazes, e adora aquilo.

 

É homossexual, é bissexual, é o quê?

Não sei! Perguntamos-lhe. Ele é que se vai definir. Se ele disser que é heterossexual tenho que lhe dizer que não porque, como gosta de rapazinhos, é homossexual? Então se tem uma relação óptima com uma mulher, se a ama... Se ele disser que é homossexual, eu digo-lhe que não?

 

Imagine que pode ter com a mulher uma relação que é mais afectiva e com os rapazes uma relação que é mais sexual...

O que é que o vai definir do ponto de vista da orientação? É o afecto ou é o prazer sexual? Ele é que sabe. A diversidade de situações vai fazer com que, se entrarmos pela questão tecnicista ou pela autoridade da medicina ou da psicologia ou da psiquiatria ou da psicanálise, sejam os técnicos a definir. Então, cada um vai definir à luz da sua grelha de leitura e acontece o seguinte: se for à pessoa X, a pessoa X diz-lhe que é homo; se for à pessoa Y, a pessoa Y diz-lhe que é hetero.

 

Para si todos os registos são válidos desde que as pessoas se revejam e se sintam bem neles?

É isso. Há um valor que tenho: o valor do direito do terceiro. A única regra aqui é não violar o espaço da outra pessoa. A única regra da sexualidade em geral é a do consentimento com consciência. E por isso o desvio quando falamos de abusos sexuais de crianças ou de pessoas que não têm capacidade de raciocinar. Gostava de lhe dar uma definição de homossexual ou de heterossexual, sabe? Mas não tenho.

 

Tinha antes de fazer a tese de doutoramento?

Ah, tinha! A sexologia tem imensas. Era muito simples. O homem de quem estávamos a falar, provavelmente porque o que há de constante é o hetero e a exclusão é o homo, diria: «Talvez seja homossexual». Lembro-me de perguntar às pessoas: «Em quem pensa com mais frequência? Homens ou mulheres?»

 

A pessoa pode pensar mais numa e desejar outra?

Pode. Pode gostar-se muito da pessoa X mas desejar a pessoa Z. O desejo e a constância do desejo determinavam a orientação sexual. A maior parte da bibliografia diz isto.

 

Evidentemente é possível ter uma relação sexual com uma pessoa e fantasiar com outra, e isto é válido para heterossexuais e homossexuais. Mas, insisto, o que é que prevalece, é a intensidade do desejo e da fantasia?

É o que a pessoa quiser. O que importa é aquilo a que a pessoa der mais valor.

 

É de uma indefinição absoluta! Não acha que as próprias pessoas precisam de se agarrar a uns quantos cânones na tentativa de se sentirem menos perdidas?

Pois precisam! Até conseguirem viver com isto. A grande dificuldade do homem é ser livre, é poder escolher. Então, se sinto assim, vivo assim e quero viver assim, o que é que faço? Eu tenho o direito e a possibilidade de escolher. E se calhar a obrigação. É muito mais fácil se me derem o guião... Assim não tenho que escolher. Pode ser complicadíssimo cá dentro, isso já é outra questão; mas tenho regras pré-definidas, não me culpabilizo.

 

É extraordinário que estejamos a falar há duas horas e não tenhamos abordado a culpa!

É verdade! A culpa aparece em todo o sentir que não devia lá estar. E não quer dizer que não se faça. Faz-se.

 

Há ainda as situações em que a pessoa sente e deseja, mas não pratica.

Claro. A religião usa muito isso. E sabe tão bem que se peca por pensamentos e omissões... Estão lá. A culpa funciona no medo. Mas acho que funciona pouco. A maior parte das pessoas, quando assaltada por um desejo forte, acaba por agir em função desse desejo. Na maior parte dos casos, não da melhor maneira. Acontece relativamente à homossexualidade, por exemplo: a pessoa sente que não pode desvirtuar a família, não se pode desvirtuar a si próprio em relação aos seus valores, e faz coisas de altíssimo risco.

 

E como renegar a culpa e enfrentar o medo?

Ah! Se tivesse resposta... Gostava muito de ter resposta para essa questão.

 

Outro exemplo: uma pessoa tem já uma família constituída quando descobre que a sua orientação sexual é outra. Pensa nos filhos: «vão achar que sou uma fraude. Construíram uma imagem do pai ou da mãe e agora, afinal, sou outra coisa». Deve ser muito complicado desestruturar e voltar a estruturar tudo.

É muito complicado. Mas olhe que deu a resposta à pergunta que fez: é preciso desestruturar e estruturar tudo.

 

Tem absolutamente de ser assim? Faz sentido viver uma vida dupla? «Tenho uma vida feliz com a minha mulher e depois às quartas-feiras à tarde vou ter com os rapazes...»

Não tenho uma resposta única. Há pessoas para as quais isso seria complicadíssimo. Há pessoas para as quais é a saída. Há pessoas que teriam que rebentar com tudo. Depende.

 

A despeito da aceitação da homossexualidade, a questão da família e dos filhos, a institucionalização da união, merecem muitas reservas.

Os filhos são o analisador último do efectivo entendimento. Usou uma palavra importantíssima, que é «aceitar», e não «entender». Muitas pessoas não vão conseguir entender nunca.

 

É uma incapacidade de base?

Pode ser. Na estrutura que a pessoa tem pode não haver a capacidade de entender. Há pais que com toda a sua moldura de vida, jamais terão abertura face ao novo. Nunca poderão entender, mas podem aceitar. Acho que este é o esforço que alguns pais poderão fazer por amor aos filhos. Quem ama aceita.

 

E amam da mesma maneira? Um pai ou uma mãe podem amar menos um filho porque ele confessa a sua homossexualidade?

Podem. Não sei bem o que é que acontece ao amor, mas a relação pode ser mais difícil. Terão que fazer o percurso de dor, sofrimento, isolamento, até de alguma destruição interna e de reelaboração que os próprios filhos tiveram que fazer. Uma família que sempre se viu de uma dada maneira, que sempre se projectou com determinado tipo de objectivos para os seus filhos e para si próprios, e que tem uma visão da homossexualidade com aqueles adjectivos terríveis que se ouve por aí...

 

Muitos pais alimentam a ilusão de que é uma coisa passageira, que com umas idas ao psicólogo de volta ao «bom caminho»…

Se se é, é. Não se muda. O bom caminho é poder ter uma vida digna sendo-se quem se é. Tanto os pais como os filhos podem ser ajudados nesse sentido. A serem salvos de uma visão destruidora e negativa de si próprios por terem este sentimento. Um sentimento que sempre ouvi dizer que era nobre, o amor.

 

É possível falar de diferentes homossexualidades? A masculina é diferente da feminina?

A sexualidade de cada pessoa é a de cada pessoa.

 

Mas é diferente o modo como a homossexualidade masculina e feminina são vistas socialmente? «Duas mulheres juntas é muito excitante. Dois homens juntos é uma aberração». É um discurso que se ouve frequentemente, sobretudo nos homens.

Nos homens! Muitas mulheres dir-lhe-ão o contrário. A elas, dois homens não faz impressão nenhuma, mas já duas mulheres... Porque o homem já é diferente de mim. Entendemos melhor o muito diferente do que o um bocadinho diferente. O muito diferente não tem nada a ver connosco. Duas mulheres juntas já é uma coisa mais próxima de mim. Tenho que renegar porque estou mais próxima de poder ser aquilo. Por isso é que se assistiu na História (e, olhe, estamos neste momento a assistir a isso) à estigmatização da homossexualidade ligando-a a várias outras coisas: ao abuso sexual, ao crime...

 

Para poder ser aberração?

Exacto. Se é homossexual mas também é criminosa, se destrói crianças, é uma coisa com que não terei nada a ver. Se é só uma pequena nuance, está muito próximo de mim. Por isso tendemos a transformar o diferente no infinitamente diferente. Para não nos tocar.

 

Na sociedade portuguesa a homossexualidade masculina está muito mais visível e assumida. Porque é que a feminina continua muito escondida?

Habitualmente as mulheres gostam de relações mais a dois, mais fechadas. Valorizam muito mais a exclusividade. Quando junta duas mulheres tem isto hiperbolizado. O que estou a dizer não tem nada de novo. Mesmo nas relações heterossexuais, muitas vezes isto acontece. «Foi a um jantar, não me convidou. O que é que isto quer dizer?» Este problema da fusão é muito mais habitual numa relação entre duas mulheres do que entre dois homens. Por exemplo, os homens têm tendência a ter mais relações extra-conjugais. Os homossexuais e os heterossexuais.

 

Significa que o facto de não vermos a homossexualidade feminina tão assumida como a masculina tem que ver com a natureza da relação?

Não. Tem mesmo a ver com o modo como lemos. Como é muito mais rejeitada a homossexualidade masculina... É muito mais rejeitado que um homem se porte como uma mulher – e ainda há muito esta ideia de que a homossexualidade e a feminilidade estão associadas. Dois homens juntos chamam mais a atenção do que duas mulheres juntas.

 

Faz sentido dissecar alguns rótulos? Há mesmo as camionistas e as hiper-femininas entre as lésbicas? Os gays e os bichas entre os homossexuais masculinos?

Está a falar da linguagem, não está a falar das pessoas.

 

Também estou a falar das pessoas porque julgo que a adopção da linguagem tem que ver com um determinado comportamento.

Os termos têm menos a ver com as pessoas do que com a classe social que os usa. Ou seja, não é o gay que é diferente do... Nem gosto de dizer os outros nomes. Há tanta coisa que se diz, mas tanta, que é do visível. Há muito mais diversidade no invisível do que a monotonia do visível.

 

O exibicionismo no visível tem que ver com quê?

Não sei bem o que quer dizer exibicionismo. Quando é que é exibicionismo? Quando a pessoa se apresenta muito diferente?

 

Sim. Neste contexto quer vulgarmente dizer que exibe a sua preferência e a sua orientação de forma ostensiva.

Di-lo? Como é que exibe?

 

No comportamento.

E como é que exibe?

 

Eu sei onde quer chegar.

Não, não. Estou mesmo a tentar perceber qual é o comportamento de que fala.

 

Assumindo trejeitos femininos, assumindo um comportamento que é de mulher.

Isso não é um comportamento homossexual. Está a falar-me de exibir a capacidade de ultrapassar a sua fronteira de género. Porque é que alguns homens, que também são homossexuais, gostam de ter um aspecto, de se vestir e de ter jeitos que se diria pertencer às mulheres? Olhe, a única coisa que sei dizer é que é porque gostam.

 

Não será que o fazem, também, porque aprenderam que ser homossexual era ser isso?

É verdade que podem ter aprendido isso, mas também é verdade que podem gostar disso e portanto não estão a exibir coisa nenhuma, é a sua forma de estar. Da mesma forma que se diz da mulher: «Porque é que ela anda de mini-saia, de botas de salto alto, de fatos justos, porque é que se está a exibir?» Apetece-lhe andar assim, porque é que se está a chamar àquilo exibição? A exibição está mais no olhar de quem vê do que de quem faz. O incomodar-me é da minha responsabilidade. Tenho de perceber porque é que aquele comportamento me incomoda. Sobretudo quando não me põe em causa.

 

Sobre os filhos nos casamentos gay: o que é que acontece – e este acontece quer dizer às referências, à personalidade – a uma criança que é educada por um casal homossexual, quer masculino, quer feminino? Existe uma diferença se o casal for constituído por duas mulheres ou por dois homens?

Habitualmente estas crianças não têm diferenças significativas quando comparadas com crianças educadas por casais heterossexuais ou que vivem em heterossexualidade. Esta é a primeira grande conclusão de todos os estudos que foram feitos – e são muitos! As pessoas sempre perguntam: terão estas crianças maior probabilidade de virem a ser homossexuais?

 

A sério que é essa a pergunta que fazem?

É. São os medos que as pessoas têm.

 

Pensei que se perguntassem pelas referências do masculino e do feminino.

Qual é o problema de um homem ser efeminado? O verdadeiro problema é se ele vem a ser homossexual. O verdadeiro problema de uma mulher ser muito masculina é se ela se torna homossexual. Mas a grande pergunta é sobre a probabilidade de a criança vir a ser homossexual.

 

Então e as referências do masculino e do feminino? É importante para uma criança ter a figura do pai e a figura da mãe, não é?

Essa era a grande questão que ainda não estava cá colocada! Eu acho que uma criança precisa de ter figuras importantes.

 

Que não têm de ser um homem e uma mulher?

Não. É sempre, sempre, sempre o argumento. E esse não tem a ver com a religião. Tem a ver com a psicanálise. Qual é o modelo de mãe da época de Freud? Afecto, dedicação, compreensão, carinho, cuidado, segurança, pratos, alimentação. Qual é o modelo de pai? A segurança a outro nível, autoridade, definição de limites. Isto é o que as crianças têm de ter. Agora se quem dá isto é o pai ou é a mãe, se são os vizinhos, se são os colégios... Quantas pessoas não foram criadas em colégios internos? Acha que todas aquelas pessoas que foram enfiadas em colégios internos têm traumas e são inadaptadas?

 

E socialmente, como é que se faz? Dentro de portas será mais fácil gerir este novo modelo. Mas, e a relação com o exterior, com os outros meninos que têm pais e mães convencionais, chamemos-lhes assim?

E os que não têm pais nem mães? A diversidade não é uma invenção de agora em que se reclama a diferença. A diversidade está aí. Quando faz a pergunta dessa maneira está a pensar em escolas do centro da cidade. Basta ir às periferias e no meio de 20 alunos, 15 vivem com tios, primos, vizinhos. Estes meninos têm esta diferença. Mas provavelmente vivem muito melhor porque têm dois adultos, independentemente do sexo desses adultos, que lhes dão tudo o que precisam: carinho, afecto, dedicação, construção, atenção, acompanhamento.

 

Porque é que se faz esta associação tão linear e imediata da homossexualidade à pedofilia? Porque são homens? Segundo os dados estatísticos, as raparigas são muito mais abusadas do que os rapazes.

Ser homossexual era ter todos os defeitos e mais um. Esta ligação da homossexualidade a tudo o que é perverso ou desviante ou mal entendido, não começa agora. Estamos a assistir outra vez à visibilidade de um discurso que já estava um bocadinho em off. Se formos aos anos 50 isto era o que havia de mais comum. Todos os abusadores eram homossexuais. Ser homossexual era ser abusador. O que caracteriza a pedofilia é a atracção que uma pessoa tem por crianças até à idade de 12, 13 anos. O que se faz com isto... Claro que me pode dizer: um pedófilo não terá tendência a praticar? Claro que sim, mas pode ter princípios.

 

Há pedófilos que não praticam?

Pois há. Estamos aqui a falar de uma coisa que na homossexualidade não se levanta.

 

O consentimento.

Exactamente. O consentimento consciente. Não há que confundir uma coisa com a outra. Nos jornais, como é que se fala destas pessoas que cometeram abusos? Pedófilos. Mas nem todos os pedófilos são abusadores. Chamar a um abusador pedófilo é retirar-lhe o peso brutal de ser um criminoso. Esta é a principal das questões: é preciso colocar o crime no lugar do crime. Este processo de aglutinação de duas palavras é muito perigoso. Pedofilia é uma palavra muito técnica. A melhor maneira de lhe dar leitura popular é juntá-la com outra que tenha força e transformá-la numa só. Se misturar aqui a homossexualidade, está a ver o caldinho? É misturar mais uma coisa, é o horror dos horrores, é voltar a trazer um fantasma que estava minimamente calado.

 

Num jantar de amigos perguntava-se aos presentes que orientação sexual preferiam para os filhos, no caso de a poderem escolher. Todos responderam que preferiam a heterossexual, nem que fosse para que o filho não sofresse os estigmas que os homossexuais sofrem. A sua resposta foi surpreendente: disse que antes de ter começado a estudar o tema provavelmente teria respondido da mesma maneira, mas que agora lhe é completamente indiferente.

É. Penso que esse discurso do querer proteger e por isso preferir a heterossexualidade ainda tem uma réstia de não entendimento. Se for mãe de alguém que é homossexual, vou ajudar a minha filha, apesar do contexto onde está, a viver bem com a sua forma de amar. Acho importante fazer parte de um contexto de mudança social. Sobretudo quando se tem convicções, e eu tenho-as fortemente. Esta estrutura social, com esta noção de família, põe a submissão a uma forma de vida acima do sujeito. Estou convencida de que o sujeito está acima destas submissões. Isto nem sequer é uma coisa especificamente relativa à homossexualidade. É uma coisa que tem a ver com o respeito pelo ser humano, por cada um na sua individualidade.

 

Foi isso que a fez estudar este tema?

Podia ser qualquer tema relativamente ao qual se estigmatiza o outro. Podiam ser questões de raça, podiam ser questões profissionais, podia ser o género, a masculinidade e a feminilidade. Tudo aquilo que faz com que se mantenha uma regra social a ponto de a considerar mais importante que o indivíduo.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em Setembro de 2003

José Gil (sobre Portugal)

02.07.13

Que significa: “Queremos a nossa vida?” Portugal, país atravessado por um medo de existir, deixou de ser um lugar de não-inscrição. Começou a deixar de ser esse lugar no dia 15 de Setembro. Contra o quê se manifestaram os portugueses?, além da TSU e das concretas medidas de austeridade? Foi por quê, além de ser contra quê? O que é que fez o povo sair à rua? O povo que “não é estúpido”. Que sabe, sem provas, da “corrupção avassaladora”? Que ergueu bandeiras onde se lia “Basta!” Antecâmara de uma revolução? Sob que palavras de ordem? José Gil, filósofo, tem Portugal no centro da sua reflexão. Está farto de bom senso, de palavras como “sabedoria”, de excessiva prudência.

Esta entrevista aconteceu na sua casa, terça-feira de manhã. Parecia que tinha passado muito tempo desde o fim de semana. Um tempo elástico, intenso, em que o mundo muda de lugar. Terá passado uma eternidade no momento em que lerem estas páginas. Mas o fundo de inquietação mantém-se, e a reflexão sobre o que ela significa, também.

 

 

O guerreiro Aquiles para o rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Parte do divórcio dos portugueses em relação aos seus políticos resulta deste sentimento de que eles, políticos, agem tendo em vista o seu proveito, e não o proveito do povo?

Sim. Os políticos estão divorciados, e divorciam-se eles próprios, do seu povo, por uma série de razões. Não há dúvida de que há um proveito próprio. Uma mais-valia do poder, do Estado, de que se aproveitam. E não deixam sequer restos para o povo. Mas acho que há outra coisa, que é muito mais enigmática nesta manifestação. Quer começar por aqui?

 

Quero. A manifestação de 15 de Setembro parece traduzir uma zanga com os políticos. Além dos assuntos concretos pelos quais as pessoas se manifestaram, fica expresso naquele movimento um divórcio com a classe política.

É divórcio, mas não é zanga. Não me parece que se tenha chegado a esse ponto. O que não quer dizer que não se vá para esse ponto. Na expressividade ainda não há zanga. Não houve na manifestação senão insultos, poucos; e como havia de tudo, pessoas politizadas, membros de partidos, é natural que aparecessem. Mas na maioria dos casos, e na superfície da manifestação, não havia nem palavras de ordem nem uma zanga generalizada.

O que esta manifestação exprimiu, antes de mais, no seu carácter enigmático, foi a afirmação de uma presença.

 

Uma afirmação de presença?

Não era uma presença política, não era uma reivindicação, não era uma manifestação militante, activista, passiva. Era uma manifestação que se disse ordeira – “Ah, que dignidade...”. Foi muito mais do que isso. As pessoas quiseram manifestar-se por manifestar-se. Dizer: “Eu existo. Eu sou uma presença. Tenho direito porque existo.” Porquê? “Porque estou constantemente a ser excluído. Ameaçado de exclusão pelo desemprego. Ameaçado em relação ao futuro. E o Governo não olha para mim.” Se quiser caracterizar numa palavra, isto não se situa num plano sociológico ou político. Situa-se, num plano dos direitos, do direito, num plano metafísico.

 

Ter uma presença é diferente de ter uma voz? Naquele momento, sábado, se as pessoas diziam que estavam presentes, não era clara que voz era a delas.

A presença significa: “Eu estou inscrito. Eu existo”. Vozes gritaram: “Isto é histórico. É um marco e vai continuar”. O que quer isto dizer? Quer dizer: “Nós queremos ser inscritos porque nos desinscrevem”. E a prova de que nos desinscrevem é que no dia seguinte, ontem, hoje, o Governo e os responsáveis não dizem nada. Querem desinscrever [a força do que aconteceu]. Os media não estão muito longe. Não se pensa suficientemente o significado desta manifestação. Não se pensa o que é que ela representa na modificação da relação povo-poder numa democracia como a nossa. Não se pensa o que é que quer dizer: “Queremos a nossa vida!”.

 

Há uma fractura em relação ao paradigma anterior, de não-inscrição (de que fala no seu livro “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”)?   

Acho que há. A sociedade portuguesa está a mudar. Pode voltar     

para a estagnação anterior – não creio. Está a mudar e caracteriza-se por uma enorme confusão. Há forças contrárias, umas que predominam e que dominam as outras, mas que são forças de inscrição contra forças de não-inscrição, forças de democratização contra forças de não-democratização, forças de afirmação do poder do povo contra forças que não querem esse poder do povo. Com essa presença, vem muito mais, e isso é que tem de ser pensado. O que está implícito nesta manifestação não é pensado.

 

É o quê?

O que está implícito é: “Nós já não podemos mais com a opacidade”. Não sabemos nada, nada sobre corrupção. A corrupção [em Portugal] é avassaladora. Sobre a maneira de governar, sobre a promiscuidade, sobre a falta de legalidade nos negócios, sobre as dificuldades que as reformas estruturais estão tendo, cada vez mais, e porquê: não conhecemos nada no nosso país.

Sabe, vivi em países totalmente corruptos, como a Córsega. Sei o que é a corrupção. Via-a. Atravessava as instituições. Vejo isso aqui. Somos pequenos. Tudo se mexe. A comer no mesmo lago, dos mesmo peixes. Ah!

 

Os portugueses foram subestimados? Foram apelidados de mansos, inundados de imagens da Grécia, de Espanha (onde as pessoas saíram à rua assim que começaram as medidas de austeridade reivindicando o seu futuro). No sábado pareceu existir um orgulho em participar. E uma vontade de dizer que não amoucham sempre. Isto faz-lhe sentido?

Quase. Não acho que haja ainda uma tomada de palavra. A expressividade foi quase silenciosa. Foi, digo-o mais uma vez, uma afirmação de presença e de existência. E de direito aos direitos. Quando falava de metafísica, não estava a exagerar nada. A palavra de ordem foi: “Nós queremos a nossa vida”. Espantoso!

 

Que é que acha que quer dizer essa frase?

Quer dizer que nós estamos desapropriados da nossa vida. Porque as condições para termos uma vida, e para darmos continuidade à nossa vida através dos nossos filhos e netos, estão desaparecidas. 

 

No fundo, quer dizer que desapareceu o horizonte de futuro e que isso foi fundamental para levar as pessoas à rua?

Ah, sim! O futuro e o presente. A existência presente. Esta manifestação, só pela presença, implica uma crítica extraordinária ao tipo de sociedade e de democracia que estamos a viver. Implica uma crítica das metamorfoses da democracia em que supostamente estamos, mas em que já não estamos. Cada vez mais vamos obedecendo, obedecendo, íamos obedecendo.

Depois há outro ponto: há um perigo de violência. De expressividade de violência. A comparação que faz com os gregos, tem razão num certo nível. Os gregos exprimem imediatamente; é um povo mediterrânico, há outros que também exprimem imediatamente e que estão no Mediterrâneo. Nós não estamos bem no Mediterrâneo. Nós não exprimimos. Sobretudo que não se mostre o conflito. Mas somos um povo violento. Basta saber a percentagem de violência doméstica na nossa população, a percentagem de crimes passionais. Temos é uma grande capacidade de esconder [essa violência].

 

Em que momento é que a exprimimos? Em que momento ela não pode ser mais contida?

Quando os mecanismos de transformação dessa violência em aparência de doçura se quebram. E isso é quando um grau de violência superior aparece da parte daqueles que fazem violência. Repare, se a manifestação fosse violenta não se diria: “Ah, o povo português, que dignidade...”. Não, seriam indignos. A violência faz cadeia, contágio, e se sofro violência acabo por manifestar violência. Acontece que o povo português está a sofrer uma violência inaudita da parte dos nossos governantes. Qual foi o pretexto, o causa ocasional para esta manifestação?

 

A TSU.

A TSU em que a injustiça, a violência da injustiça já nem foi coberta. Era de tal maneira evidente... O que é que se passou na cabeça dos nossos dirigentes para julgarem que nada havia de acontecer?, que se podia fazer tudo aos portugueses! Esmaga-se mais e mais e mais. Não foi o ministro das Finanças que disse: “Eu não espero reacções...”? Espantoso.

 

A imagem que está a ser difundida como a imagem da manifestação é a de um jovem, muito jovem e bonita, abraçada a um polícia. As reacções a essa fotografia são de orgulho, porque ela acentua o nosso pacifismo e dignidade. É uma sedução da autoridade para a causa dos manifestantes e uma diminuição da violência expectável.

Nesse gesto dessa rapariga há todo um passado, uma memória. Lembra-se de fotografias e filmes em que o povo, no 25 de Abril, ia oferecer aos soldados cravos para pôr na espingarda.

 

Uma das palavras de ordem desta manifestação é herdada dos tempos da revolução: “O povo unido jamais será vencido”. Também se disse abundantemente que o povo não saía à rua desta maneira desde o 25 de Abril ou o 1 de Maio de 74. O que é que isto quer dizer?

Vejo isso dentro deste quadro de que falei – o de uma sociedade que está a mudar. Por exemplo, no que respeita à conflitualidade das relações. Já não temos medo de conflitos. A assimilação do 25 de Abril vem em farrapos. Em discursos ideológicos, partidários, que também estavam na manifestação. Eu não acho que isto tenha a ver com o 25 de Abril.  

 

Mesmo que muitas das pessoas que vimos na manifestação (e a afluência era transversal) sejam aqueles que viveram o 25 de Abril, aqueles que se desapontaram com o país, e os filhos desses?

Não vejo senão nisto: na mesma afirmação de existência e iniciativa, que houve também no 1º de Maio, que foi o 25 de Abril, mas não nas correntes ideológicas bem marcadas do 25 de Abril e que não havia aqui (embora manifestadas pelos militantes socialistas, comunistas e eventualmente pela direita).

 

Foi uma surpresa para si a dimensão desta manifestação?

Foi e não foi. Estava incerto. Não sabia o que é que isto ia dar. O que me parecia era que isto... isto o quê? A tensão entre diversos vectores opostos, que implicam uma grande confusão, tinha de se manifestar. Em que medida, e como é que se ia manifestar, não sabia. Surpreendeu-me imenso, e isso achei notável, que fosse assim.

Pode continuar agudizando-se a expressão. Agudizando-se no sentido de uma violência expressiva. Se amanhã houver uma manifestação de 500 mil pessoas – é imenso, 500 mil pessoas – já não estou convencido que tenha o mesmo carácter de afirmação de presença, afirmação de direitos, silenciosa. E é preciso ver o que continua a fazer, ou a não fazer, o Governo. Vamos lá ver: o Governo ainda não falou!

 

Não falou porque não sabe como lidar com isto?

Ah, pois. Não sabem. E estão a fazer cálculos políticos.

 

Voltamos ao proveito próprio de que Aquiles acusava Agamémnon? E à vergonha que resulta de se estar ocupado com isso.

Absolutamente. É por cálculo, e manifesta como é verdadeira a percepção popular do divórcio dos políticos. Aparentemente fazem as suas manobras como se não houvesse crise. Falam da crise como se eles não estivessem em crise, enquanto que nós estamos em crise. Insisto: se isto foi uma manifestação para marcar um acontecimento histórico, para que ele se inscrevesse, o Governo está a fazer tudo – como fazia o Sócrates – para que não se inscreva nada. Como se não tivesse existido. Até Paulo Portas.

O que está a fazer Paulo Portas é esperteza política, manigâncias. Esta manifestação era contra as manobras políticas, também. Se bem que predominasse a afirmação, mais do que a reacção. Era mais por (por qualquer coisa, que não era imediatamente político) do que contra (o Governo). Era um “contra” que era envolvido por um “por”.

 

Viram-se na manifestação pessoas a agitar panelas. Dois significados. O da pobreza (donas de casa a agitarem panelas vazias) e o dos “tachos”, que os políticos imerecidamente têm e que lhes permite prosseguir a sua vida, desligados da população. É um sinal do aumento da tensão, da escalada que começou e não sabemos onde vai parar?

Com certeza. Até pela novidade na maneira de manifestar – com tachos. E se tem esse significado...

 

Sou eu que o interpreto assim.

Vamos aceitá-lo. Falou de escalada? Sim. Mas há sempre uma contaminação. Na sociedade, cada família, cada pessoa pensa só em si, tem estratégias de sobrevivência; o que daria uma sociedade atomizada, e mesmo de afastamento uns com os outros, eventualmente de hostilidade. Há isso e há o vector contrário: “Nós queremos estar juntos”. Isto também se manifestava na própria manifestação – um prazer de estar juntos, sem a exigência de uma palavra de ordem, que unisse e fizesse uma massa politizada.

 

É o prazer de ver que o amigo, o vizinho, o familiar, outro igual a nós, sente o mesmo que nós, e, sem que tenhamos combinado, sai à rua como nós?

É verdade. Mas o que me faz hesitar em ir mais longe é a pergunta: e no dia seguinte? No dia seguinte, as relações de vizinhança vão modificar-se ou voltar ao mesmo? A resposta que tenho é: a tendência é voltar ao mesmo. O que é muito esquisito.

 

Voltam ao mesmo porque não têm uma ideologia, uma bandeira, ninguém que os mobilize?

Não digo ideologia. Mas sim, porque não há uma bandeira. Não há ainda. Não há uma expressividade formulada que una as pessoas. Não quero dizer que disto vai nascer uma ideologia. Uma ideologia não nasce de um dia para o outro. Nem vai nascer um novo discurso nem uma nova política. Mas que está inscrita uma nova maneira de fazer política, de se apresentar perante o poder e de querer e exigir uma outra democracia, uma outra transparência, está.

 

O problema é mais fundo, e o seu âmbito mais largo, do que o da discussão das medidas de austeridade, nomeadamente a TSU. Isto pode ser uma coisa que rasga a forma como nos relacionamos com a política e os políticos?

Acho que sim. Temos de falar em Portugal em duas superfícies, uma que cobre a outra. A crise fez vir à primeira superfície o que está profundamente escondido (desde a corrupção ao aproveitamento pessoal da mais-valia do poder). A austeridade desnuda. Despoja. É como uma espécie de raio-X: já não se vêem as camisas nem nada, a pessoa fica nua. A sociedade ficou nua, está ficando nua. Veja que se manifestam cada vez mais escândalos. E ainda é muito pouco. Mas estão a manifestar-se uma série de mecanismos que têm sido aceites (as pessoas fechavam os olhos, e vivíamos assim). Com manifestações deste tipo, isto passa para a tona da vida social, para a segunda superfície. Passa a haver no espaço público uma expressão possível da indignação.

Houve alguém que se imolou.  A Primavera Árabe começou com uma pessoa que se imolou, na Tunísia.

 

Foi lido como um sinal de desespero.

É. Não é lido com tendo um significado de protesto contra este tipo de encobrimento que faz esta sociedade. O tipo imolou-se! A progressão na expressividade será tal que um dia haverá um indivíduo que se imola e não haverá a mesma reacção que está a haver agora.

 

Porque já aconteceu.

Sim.

 

Uma das coisas que minam a confiança dos portugueses na democracia é que tudo parece inconsequente. Existe uma fraca reparação das injustiças, uma noção de que as coisas não funcionam e que, por isso, “não vale a pena”. As coisas vão mudar?, as pessoas vão começar a exigir uma sequência?

Estou de acordo com isso: as pessoas exigem. Mas ainda não se formula. Que essa exigência está encerrada, implícita, na manifestação, estou convicto que sim. Se isto vai ter uma consequência e se se vai desenvolver, não estou certo. Já não há a força do recalcamento (para usar este termo psicanalítico) que houve até agora da parte do que esconde.

O que é que pode dar isto? Não se pode modificar completamente, como tanta gente queria. Como se bastasse uma manifestação para que o Governo se modificasse. Não. O Governo, os poderes, os poderes económicos – que são o poder; lembre-se que o Sócrates foi-se embora por causa dos banqueiros; bastaram eles reunir-se – estão a fazer tudo para que isto volte à mesma.

 

O silêncio de Cavaco, surpreende-o?

Vai ser quebrado, como toda a gente diz. Ele saberá, na sua sabedoria... Estamos inquinados por uma série de bom senso.

 

Excessivo bom senso?

Oh, [estou] farto disso! Há o vocabulário do bom senso. Um dos termos é “sabedoria”. Vamos justificar a sabedoria de Cavaco Silva: se não falou é porque..., e temos uma série de razões sábias.

 

Cavaco convocou um conselho de sábios.

Claro. Mas com que atraso em relação aos acontecimentos. E isso acalma os espíritos.

 

Foi também por cálculo político que ele não reagiu mais prontamente? Quis primeiro perceber como é que Portas reagia, como é que o povo reagia, como é que a comunicação social reagia? Como é que Passos reagia às reacções imediatas?

Será. Mas também poderá ter sido porque não é um homem que provoque acontecimentos sem uma prudência enorme. Há uma prudência que pode significar uma falta de visão política. Mas que as pessoas, o povo, acham que já tarda que fale, já. E já tarda porque isto exige imediato. Mas assim se acalma. É uma outra maneira de esmagar e apagar as raivas, as cóleras, as impaciências das pessoas.

 

Não alimentar a chama?

Não alimentar a chama. Apagar. Sabe que isto é muito antigo... Já no antigo regime era assim. Não estou a fazer uma ligação. Mas como procedimento político, é geral.

 

Durante muito tempo, e com a imagem da sua acção executiva (como PM), Cavaco foi um referencial para muitos portugueses. Desde a sua reeleição, por uma série de factores, o seu capital reputacional foi diminuindo. Os portugueses precisam de ter uma figura na qual se revêem, à qual recorrem? Como se fosse um pater familias, alguém em quem se podem refugiar.

Não é refugiar. É investir as suas forças. E isso acho necessário. Um rei, numa monarquia constitucional, se não gastar muito dinheiro, pode ser um personagem necessário. Não sei se é o pater famílias ou outra coisa, do ponto de vista do fio de coesão nacional. Mas o que irradia da Presidência da República é extremamente importante. Como imagem. Uma imagem que é exemplar, que induz comportamentos. Portanto que condiciona as pessoas. Precisamos de alguém. É uma imagem que é como um heterónimo de Pessoa. Uma encarnação fictícia. Precisamos de um foco unificador de forças.

 

Cavaco é também um perdedor neste processo de divórcio entre os portugueses e os políticos? Não se revelou esse foco aglutinador.

Depende das circunstâncias. Perdedor em relação a quê? À sua popularidade, ao que ele quer, ao seu desempenho enquanto PR? Perdedor porque não reagiu imediatamente? Perdedor relativamente a que imagem? Ao que as pessoas viam nele? Perdedor porque fica descredibilizado, porque não foi um foco unificador? É possível. Não se sabe a importância que isto vai ter. Isto muda tanto... É um dos factores da tal confusão em que estamos. Possivelmente amanhã o contexto é tal que o papel do PR já tem de ser outro, e apaga-se a fase precedente. É difícil fazer uma previsão e criar uma linearidade do tempo histórico.

 

Olhando para o passado recente e para o socratismo: isto é uma dupla desilusão? Houve uma zanga enorme com José Sócrates e uma aposta e desejo de mudança personificados por Passos Coelho.

É uma dupla desilusão. Não penso que a segunda desilusão seja muito grande. Porque as pessoas votaram sobretudo contra Sócrates. Não votaram por Passos Coelho. Passos nunca foi a esperança. Nem promoveu a imagem da mudança. Foi uma coisa muito ténue, rápida, que passou: que se ia mudar Portugal. Muito rapidamente se percebeu que os pesadíssimos mecanismos nacionais estavam a tomar novamente a primazia.

 

Foi também essa desilusão que os levou à rua?

Não. Isto foi a insuportabilidade da injustiça pessoal e da injustiça do Estado. Ultrapassou tudo. Agora vamos poder tirar dos trabalhadores dinheiro para dar aos patrões? Directamente. É demais! (Para que isto possa entrar na iniciativa concreta de um Governo, é porque há qualquer coisa naqueles cérebros que não está a funcionar.) Admitimos todas as injustiças, no sistema judiciário português, no sistema educativo, no sistema de saúde, a corrupção, os contratos, as parcerias [PPP], o clientelismo, etc. Tudo isso o povo sabe. Não tem provas, mas sabe e aceita. Até quando? Subiu, subiu, subiu, subiu. E agora já fazem injustiças não encobrindo? “Não somos parvos a este ponto.” O povo português não é estúpido.

 

Do outro lado: temos compromissos perante os nossos credores, e temos de cumprir isso a que estamos obrigados. Há uma necessidade de injectar dinheiro na economia e capitalizar os bancos. Mais do que tudo: estamos integrados num sistema europeu que, não só não permite desvalorizar a moeda, como está, também ele, e não apenas do ponto de vista financeiro, mas político, em crise. Que caminhos, então? Que soluções?

Há uma série de argumentos utilizados (que somos obrigados a isto, etc.) e que são mal empregados porque com isso se quer justificar tudo. Então, tudo o que se faz é justificado (se não aceitássemos a Troika, íamos para a bancarrota e o resultado seria muito pior). Isto é uma falácia, não funciona.

Estamos enquadrados num sistema capitalista global, de neo-liberalismo – esquisito, em Portugal...

 

Porquê?

Porque é um neo-liberalismo em que o Estado intervém mais [do que qualquer entidade privada]. Não o podemos negar e não vamos pensar que há uma revolução possível.

 

Não?

Não. Não há pensamento revolucionário nenhum. Com a queda do Muro de Berlim, acabou. Há umas tentativas, aqui e ali, mas não se renovou. O socialismo sofre imenso com isso. Apoiava-se na doutrina marxista dizendo: marxismo mais liberdade. Não vendo que a liberdade depende também do que o marxismo dizia. O que é que se pode fazer? Necessariamente temos de aceitar este quadro que nos é imposto. Mas aceitar não significa que vamos aceitar tudo. Há um quadro global e uma política local. Essa política local pode ter limites cada vez mais alargados. Por exemplo, as reformas estruturais podem ser de tal tipo que se procure corrigir – mais do que corrigir: abolir, destruir – uma série de injustiças de Estado.

Para isso é preciso uma vontade forte. Que seja uma vontade política, que liberte as vontades individuais e da sociedade civil. A corrupção não se combate sem uma vontade forte, à beira do autoritarismo. Este à beira é uma margem infinita. É paradoxal.

 

É perigoso, porque à beira do autoritarismo?

Não. Como é que vai combater a corrupção, onde todos são primos, imbricados uns nos outros? Não é um despotismo iluminado. Estou a dizer: uma vontade política forte de querer combater a corrupção e de o fazer.

Estamos obrigados a cumprir o que a Troika [nos manda]. Ao mesmo tempo, as reformas estruturais, podemos enviesá-las. Enviesá-las no sentido de [garantir] uma maior justiça, distribuindo melhor, sistematicamente, estruturalmente, os sacrifícios. É uma questão de justiça. Não se pode tirar aos pobres para dar aos ricos.

Não se trata, por isso, neste momento, de sonhar com um novo 25 de Abril e uma nova revolução. Enquanto não houver um pensamento que nos mostre a sustentabilidade da nossa economia, o equilíbrio do nosso orçamento – sem a Troika – temos de cumprir [o memorando]. Mas não somos obrigados a cumprir desta maneira. Cumprir obedecendo, como os tais horríveis bons alunos.

 

Como, então?

Vou repetir o que toda a gente diz: vamos ver se não se pode negociar com a Troika, e elevar, mostrar de outra maneira a cabeça. Somos um povo! A Troika vai ganhar com isso. Isto é que é a usura: empresto, mas com os juros tais que fico a ganhar se vocês forem capazes. Vão ser capazes.

 

Esperava que se fizessem reformas estruturais com a vinda da Troika? Que a Troika nos obrigasse a isso para garantir o cumprimento do memorando?

Não. De maneira nenhuma. A Troika não nos obriga a nada. A Troika quer é o dinheirinho no fim do mês, e que Portugal seja um bom país nas normas do capitalismo habitual. Mas na Noruega o capitalismo é o sistema. Os autarcas pagam imensos impostos. Em Portugal, também. A diferença é que quando se pergunta a um norueguês: “Não acha que é demais? Não contesta esses impostos que lhe levam imenso do seu salário?”, a resposta é esta: “Dou muito à câmara, mas vejo o que a câmara faz por mim. Está a ver aquele jardim, para os nossos filhos? Estou a ver onde é que o meu dinheiro está a ser gasto”.

 

Em Portugal não vemos, e esse é o problema?

Onde é que está? Essa é a injustiça do Estado. Para onde vai esse dinheiro que pagamos? Isto no fundo é muito simples. Não é preciso ler “O Capital”, mais Keynes, mais [outros autores]. Aqui em Portugal as coisas são sumárias.

 

O que é chato é que isto é uma longa história. Não conseguimos sair dela.

Pois não.

 

É descoroçoante.

É descoroçoante. É preciso que, se não nos exprimimos, que nos esforcemos a exprimir. Que nós falemos. Há forças vectoriais contrárias, um grande desejo de fazer outra coisa, de não ir pela norma única. Esse desejo mistura-se com velhas utopias, reactivações do 25 de Abril, muita coisa. Mas há qualquer coisa de diferente. E depois há o velho barco que afunda todos os outros. O monstro, como dizia o Nietzsche. Que aqui tem a figura do Estado. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios, em 2012

 

 

 

 

 

  

 

 

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