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Anabela Mota Ribeiro

Buenos Aires

06.09.13

CAFÉ TORTONI

Entra-se no Tortoni como se entra num daguerreótipo. Respira-se um tempo que deixou de existir. Ao canto, estão homens distintos a jogar dominó. Numa sucessão irregular de mesas, os turistas conferem a beleza dos vitrais e folheiam o Lonely Planet. Noutras mesas, os clientes de todos os dias lêem o jornal e molham o croissant no capuccino. As colunas são imponentes, a madeira é maciça, os tampos das mesas de um mármore antigo.

Se forem originais, e tudo indica que sejam, têm 150 anos – o café foi fundado em 1858. As paredes estão revestidas a espelhos, os argentinos famosos têm o retrato dependurado. Carlos Gardel era aqui Carlitos, Jorge Luís Borges participava em animadas tertúlias. Hillary Clinton ou Susan Sontag leram livros e conversaram no Tortoni.

Ler e conversar é o que de melhor se pode fazer no Tortoni. Também há quem trabalhe; um grupo de homens de cabelo puxado com brilhantina reúne nas mesas do fundo e debita alarvidades como “Uma mulher é mais cara do que um cavalo”. Uma provocação machista para indignar as mulheres que passam e conquistar ascendente sobre sus compañeros.

À noite, para lá das cortinas de veludo vermelho, dança-se o tango – há espectáculos todas as noites.

Às dez da manhã, as cortinas das janelas estão corridas e os candeeiros art deco estão acesos. À tarde será a mesma coisa. O tempo não escorre. O tempo escorre segundo leis próprias: as do Tortoni.

www.cafetortoni.com.ar

 

 

CEMITÉRIO DA RECOLETA

Borges augurava para si um lugar no cemitério da Recoleta. Passeava nesta famosa necrópole, por entre ciprestes altíssimos, como quem atravessa uma avenida, saboreando o verde. É bizarro que a maior atracção turística de Buenos Aires seja o seu cemitério – e não é por Eva Péron estar aqui enterrada. Borges falava da “conjugação do mármore e da flor, as pracetas com a frescura de pátios, e os muitos ontens da história hoje parada e única”.

As agências imobiliárias, instaladas no bairro homónimo, o melhor da cidade, disputam igualmente um talhão do cemitério. A única possibilidade de ali “ser depositado” – para usar outra expressão do poeta – é pertencer a uma família que tenha um jazigo. Um cenário imutável, a não ser que uma delas se desfaça desse pedaço da sua história e da sua genealogia. Um quinhão de terra pode custar entre 40 e 50 mil dólares.

As ruas do cemitério são uma sucessão de mármore de Carrara e granito lustrado. As portas dos jazigos têm batentes. Os vitrais, belíssimos, introduzem luz no interior. Há uma pequena Notre Dame, com as respectivas rosetas. Há uma abóbada que poderia ter sido feita por Gaudí. Há histórias contadas em vitrais e em esculturas funerárias. Há anjos que pedem clemência à morte.

No cemitério vivem 80 gatos. Porquê? Porque os alimentam.

Onze e meia da manhã: uma missa está a decorrer na capela. Um pequeno grupo vela o corpo. Entre eles, estão duas crianças de colo. Também elas foram despedir-se.

Bairro da Recoleta, entrada gratuita.

 

LIVRARIA EL ATENEO

É uma maravilha em forma de livraria. A El Ateneo está instalado num velho teatro, do início do século XX, com frescos no tecto, camarotes debruados a dourado e cortinas de veludo. Um espaço que poderia ter sido filmado por Visconti e que mantém o esplendor de quando ali se ia ao teatro. A conversão deu-se em 2000 e os responsáveis pela mudança procuraram preservar a traça original.

Buenos Aires é uma cidade de livrarias e cafés; para saber como são os porteños, talvez importe vê-los aí, que é o mesmo que vê-los em casa. Na El Ateneo, eles percorrem as lombadas em busca de um título, conversam baixinho sobre isto e aquilo, ocupam um camarote e enfiam-se num livro pela tarde fora. É uma livraria silenciosa, com uma música de fundo que resulta das conversas e dos passos das pessoas que a frequentam. É uma das maiores livrarias da América Latina e alberga 100 mil títulos.

De certo modo, continua a ser um teatro: o antigo foyer serve de entrada, e ali estão as novidades e os livros mais vendidos, na plateia, onde antes estavam cadeiras estão agora estantes, o palco foi transformado em café e espaço de conferências. No subsolo funciona a secção infantil, nos pisos superiores estão CD’s, DVD’s e livros técnicos. A iluminação é operática e rapidamente se esquece a chuva que cai lá fora ou a rua fervilhante. Fica-se impregnado de um espírito. Que habita em nós, mesmo depois de abandonarmos a sala. Como quando vamos ao teatro e vemos uma peça de que gostamos muito.

Avenida Santa Fé.

 

BAIRRO PALERMO

Palermo era o bairro preferido do escritor Jorge Luís Borges. Na primeira metade do século XX, era um subúrbio com ruas de terra batida, frequentado por compadritos e rufias. Homens que lavavam a honra a sangue, à facada. Um bairro de “esquinas desamparadas”. Não há hoje quaisquer vestígios dessa atmosfera de perigo e sensualidade – ainda que uma parte do bairro continue a chamar-se Palermo Viejo.

É um bairro imenso subdividido em várias partes. Palermo Hollywood designa uma área onde coexistem estúdios de televisão e cinema – por exemplo. Palermo Soho concentra restaurantes e bares, galerias de artes e lojas de criadores nacionais. Os restaurantes estão sempre cheios e a oferta é variada: cozinha árabe, marroquina, italiana, chinesa, japonesa, brasileira, mexicana, francesa, e, sobretudo, argentina.

A Argentina é um país carnívoro graças à sua carne mundialmente famosa: suculenta, tenra, saborosa. Por carne deve entender-se vitela – as carnes brancas ou de caça têm outra designação. Uma parrilha traz para a mesa bife de chouriço, morcela, entrecosto, lombo, vazia…, assada na brasa, temperada apenas com sal. O vinho que melhor acompanha a parrilha é Cabernet Sauvignon, Malbec (a melhor casta produzida na Argentina) ou Sirah.

O frequentador de Palermo faz psicanálise como quem pratica um desporto nacional. Começa na adolescência e fala da relação com o terapeuta com a facilidade com que diz que a comida está na mesa!

Palermo, nordeste de Buenos Aires. 

 

HUMAWACA

Imagine uma pele que funciona como uma segunda pele. Um couro de vaca que assume múltiplas formas e funções e vive acoplado ao corpo de quem o usa. Foi este o ponto de partida da Humawaca, uma das mais interessantes marcas argentinas, especializada em acessórios em pele.

A “sela” é a peça mais idiossincrática da Humawaca. Parece, exactamente, uma sela, mas é uma mochila. Há em diversas cores e materiais – em pêlo malhado, em couro vermelho e lustroso, com alças ajustáveis… Há também pastas para revestir o computador, sacos de fim de semana, porta moedas, pochettes, porta chaves, blocos de notas, carteiras com bolsinhos interiores, bolsinhos laterais... Há peças que se chamam “vertebrada” e que permitem a recriação de diferentes volumes e formas.

A oferta é múltipla e internacionalmente reconhecida. Vende-se no Harrods, em Londres, vendeu-se numa mostra de artistas argentinos no MoMA, em Nova Iorque. Em Buenos Aires existem três pontos de venda, nas principais zonas comerciais.

É suficientemente cool para despertar o interesse da Wallpapper, que já escreveu sobre ela, bem como da Condé Nast Traveler. O preço é considerado excessivo para os locais, mas bastante acessível às bolsas europeias. A qualidade da pele é extraordinária – não é só a carne argentina que é superlativa… A Humawaca só usa couro nacional: de uma macieza sem fim.

www.humawaca.com

 

 

ANTIGUIDADES

Numa feira de rua pode encontrar-se uma pochette forrada a cetim e com pedras incrustadas. Preço: 7 euros. Numa loja de esquina pode encontrar-se uma camisa de noite – a quem terá pertencido uma peça tão íntima? – de nylon preto, com um rebordo de renda em estado impecável. Preço: 3 euros. Há também vestidos vintage de uma elegância aristocrática, com a cauda levemente danificada ou amarelecida pelo tempo. Preço: 25 euros.

Buenos Aires é um paraíso para quem gosta de peças com história. No mercado de San Telmo, o bairro onde se concentram o maior número de antiquários, há uma feira todos os fins de semana onde famílias decadentes se despedem da vida requintada. Talheres de prata, louças exemplares, casacos de pele...

As fachadas em volta estão degradadas, os pátios interiores abundam. No mercado que ocupa a zona central do bairro, uma construção do fim do século XIX, vendem-se laranjas e taças de champanhe em bancas contíguas, bifes do lombo e discos de Gardel.

Os vidros são especialmente delicados e evocam um período em que Buenos Aires era gloriosa, sofisticada, “europeia”.

Mas se San Telmo é o bairro dos antiquários, a verdade é que por toda a cidade abundam as feiras e as lojas. O único problema é o transporte…

Por toda a cidade, em especial San Telmo.

 

TANGO

Talvez o tango seja sinónimo de volúpia. É uma dança impudica, impetuosa, carnal. Começou por ser dançada pelos marinheiros que aportavam em La Boca com as mulheres que estavam disponíveis – um guia irónico dirá que estas não pertenciam à Ordem das Carmelitas… Durante décadas, o tango esteve circunscrito a esse espaço marginal. Quando extravasou para as casas das famílias, passou, simplesmente, a exprimir um desejo de se ser arrebatado.

Em Buenos Aires dança-se tango em todo o lado. Vê-se dançar, aprende-se a dançar. Numa rua pedonal, num café ou clube para turistas, em casas de espectáculo. É sempre um jogo de sedução à vista de todos, com movimentos desenhados a vermelho e a negro. Canta-se o coração esquartejado a navalha. Toca-se o bandoneón – uma espécie de acordeão – como se ele fosse uma extensão dos braços e do peito.

Algumas moradas: "Lo del Chino", nos arredores, em Pompeya, com cantores de época: um lugar autêntico não aconselhável a turistas aburguesados. Bono e Wim Wenders foram e adoraram.

“TANGO” fica a uns metros do Obelisco, onde antes funcionou um velho cinema. Outro lugar: "Michellangello", mais tradicional e senhorial. O "LA Viruta", em Palermo, é um salão para dançar e ver dançar.

 

 

Onde ficar:

Hotel Faena, em Puerto Madero. Um antigo armazém recuperado por Philip Stark. Branco, dourado, com unicórnios a sair das paredes… Há controvérsias quanto à decoração. O spa foi apontado como um dos melhores lugares do mundo para fazer ioga. Um dos lugares mais trendy da cidade.

 

Para fazer compras:

Galerias Pacífico, na rua Florida. Edifício esplendoroso do início do século XIX, recentemente transformado em centro comercial. A arquitectura é sumptuosa. Tem uma pequena Tiffany’s no interior. Para comprar roupa ou artigos em pele. Para comer uma espetada ou beber um copo de tinto. Ou, simplesmente, para ver os argentinos na vida de todos dias.

 

Para comer:

Restaurante Casa Cruz, em Palermo. O interior é sofisticado, negro, como o de um night club. A frequência é cosmopolita. Desde 2004 que a Casa Cruz está na rota dos que gostam de comer bem, com estilo. O chefe Martitegui supervisiona a cozinha, bem como a de outro restaurante moderno – o Olsen. Peça no hotel para fazer reserva – quando a reserva é feita do hotel, há sempre lugar.

 

Para circular:

O táxi é o meio de transporte ideal. É extremamente barato e permite, em conversas com os taxistas, ficar a par da vida do país – por machismo ou apurada consciência política, falam com desdém da presidente Cristina Kirschner. Mas a linha de metro é eficaz. Os argentinos orgulham-se de terem tido metro muito cedo: a linha A de Buenos Aires começou a funcionar em 1913.  

 

 

Pedro Mexia (Quest. Proust)

01.09.13

Proust disse que uma necessidade de ser amado e cuidado era a sua característica mais marcante. Mais do que ser admirado. Qual é a sua?

 

Temo que a minha característica mais marcante seja ser muito pouco marcante.

 

Qual é a qualidade que mais aprecia num homem? Proust falou de “charme feminino”...

 

Lealdade. E uma gestão sensata da agressividade.

 

E numa mulher? Ele mencionou “franqueza na amizade” – golpe baixo para as mulheres ou sagaz comentário?

 

«Charme feminino», mas não especialmente «sedução feminina».

 

Ternura, desde que acompanhada de um charme físico..., era o valor mais precioso nas amizades de Proust. E nas suas?

 

A soma das respostas anteriores.

 

Vontade fraca e incapacidade para entender, foi a resposta que deu quando lhe perguntaram qual era o seu principal defeito. Partilha destes defeitos? E que outros pode apontar?

 

Dos «pecados mortais» o meu mais mortal é a preguiça.

 

Qual é a sua ocupação favorita? Amar, disse ele...

 

«Amar» é caricato como «ocupação». Passo muito tempo a ler, e não trocava por quase nada.

 

Qual é o seu sonho de felicidade? A resposta de Proust é esquiva: não fala de molhar madalenas no chá e diz que não tem coragem de o revelar... Mas que não é grandioso e que se estraga se for posto em palavras. O que é que compõe o seu quadro de felicidade?

 

Não tenho sonhos quando estou acordado. E raramente uso a palavra «felicidade».

 

O que é que na sua cabeça seria a maior das desgraças? Proust respondeu, aos 20 anos: “Nunca ter conhecido a minha mãe e a minha avó”. Mas aos 13 respondeu apenas quando lhe perguntaram pela maior dor: “Ser separado da mamã”.

 

A maior desgraça é perdermos as pessoas que amamos. Ou as coisas que amamos, como, no meu caso, a minha biblioteca.

 

Quando lhe perguntaram o que é que gostaria de ser, respondeu: “Eu mesmo”, aos 20, e Plínio, o Novo, aos 13. As suas respostas seria diferentes? Quem gostaria de ter sido aos 13 anos? E agora?

 

Aos 13 anos alguém aventureiro. Aos 34, alguém tranquilo mas com talento.

 

Proust gostaria de viver num país onde a ternura e os sentimentos fossem sempre correspondidos. O país onde gostaria de viver existe deveras? Onde fica?

 

Um país onde os sentimentos fossem sempre correspondidos seria um colónia penal. Não gosto de países metafóricos. Gosto de viver em Lisboa.

 

Quais são os seus escritores preferidos? No momento em que respondeu, Proust lia com especial prazer Anatole France e Pierre Loti.

 

Beckett, Kierkegaard, Pavese, Eliot, Tchekhov, porque foram os primeiros cinco em quem pensei.

 

E os poetas? Ele mencionou dois, e um deles faz parte das listas eternas: Baudelaire.

 

Eliot. Mais quatro em quem pense de imediato: Baudelaire, Wallace Stevens, Cavafis, Camões.

 

Qual é o seu herói de ficção preferido? Aos 13 anos, Proust falou de Sócrates e Maomé como figuras históricas de eleição... E aos 20, referindo-se às mulheres, elegeu Cleópatra.

 

Não gosto especialmente de «heróis», mas há um «protagonista» com quem empatizo: Krapp, o velho que ouve memórias em bobines na peça de Beckett Krapp’s Last Tape.

 

 

Quem é o seu compositor preferido? Aos 13 anos, escreveu Mozart, aos 20 Beethoven, Wagner, Schumann. Mas Proust não podia conhecer Tom Jobim ou Cole Porter...

 

Compositor clássico, Schubert. «Songwriter» contemporâneo, Leonard Cohen.

 

Proust não foi contemporâneo de Rothko. E escolheu Da Vinci e Rembrandt como pintores favoritos.

 

Os cinco primeiros que me ocorrem: Vermeer, Hopper, Magritte, Mondrian, De Stael.

 

Quem são os seus heróis da vida real? Ele apontou dois professores.

 

Admiro muita gente, especialmente os corajosos.

 

“Das minhas piores qualidades”, respondeu o escritor da “Recherche” quando lhe perguntaram do que gostava menos. E no seu caso?

 

Abomino a mentira cruel, incluindo as mentiras «misericordiosas».

 

Que talento natural gostaria de ter? As respostas de Proust são óptimas: “Força de vontade e charme irresistível”!

 

Aspas aspas na resposta do Marcel.

 

Como gostaria de morrer? “Um homem melhor do que sou, e mais amado”.

 

Que depois se lembrassem de mim como um tipo decente.

 

Proust era condescendente em relação às faltas que conseguia compreender. Quais são aquelas que irreleva?

 

Nisso, sou como um confessor: quase todas as «faltas», num determinado contexto, podem ser perdoadas.

 

Por fim, preferiu não responder qual era o seu lema, temendo que isso lhe trouxesse má sorte... É supersticioso como Proust? O que é que o faz correr?

 

Não sou supersticioso, mas gosto de números redondos e efemérides.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2010

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