Júlio Machado Vaz
A caricatura que o Herman faz de si é a do homem mergulhado na cadeira a ler poemas.
É muito elogioso da parte dele. Nem sei bem onde é que eles foram buscar aquilo. Quer dizer, sei, ao Sexualidades.
Mas revê-se nesse papel do homem caracol, o homem fechado sobre a sua casa?
Do homem caracol, sim; basicamente a ler poemas, se calhar é uma atenção que o Herman tem comigo. Não tenho uma visão tão idílica de mim próprio.
Qual acha que é a visão que as pessoas têm de si? Estamos a falar de um homem e das suas múltiplas imagens.
Há imagens que têm a ver com a televisão. Há um tique, mais que verdadeiro, do tipo a escorregar pelo sofá abaixo. Cheguei a ter pequenos truques de realização para não me afundar tanto. Instalou-se a dúvida em muitas pessoas se eu era mesmo assim ou se estava artisticamente négligé.
O négligé dá muito mais trabalho.
Claro. Todos conhecemos figuras da nossa vida pública que têm um négligé artístico e caríssimo. Fico espantado com o preço que têm algumas peças de roupa aparentemente corriqueiras.
Quanto é que custa a sua camisola? De certeza que não vai à feira de Espinho comprar camisas.
Por acaso, camisolas não; mas camisas, com frequência.
Mas vai você?
Não, não. Aí sou um verdadeiro explorador das amizades. Tenho velhas amizades frequentadoras de feiras, Custóias, por exemplo, a quem eu lanço, de vez em quando, um SOS. «Precisava de umas camisas, estou sem meias» ...
São mulheres?
Normalmente são mulheres. No que toca a roupa e after shaves vivi sempre à custa das minhas amigas que no Natal me abasteciam para o ano inteiro. Depois passei a vestir mais à custa do meu filho mais velho, que tem uma capacidade extraordinária de me convencer que preciso de fazer compras quando lhe apetece fazer compras. O Guilherme passa por aqui e leva-me a um centro comercial ou a uma loja na moda mas que não faço ideia que está na moda.
Tem uma espécie de desdém pela mundaneidade?
Não, desdém é uma palavra chata, implica um olhar oblíquo, a partir de cima.
Foi de propósito.
Tem a ver com a dificuldade que tenho em mover-me nesses sítios. Quando fiz o Sexualidades outra das imagens era a de um snobe portuense que recusava os convites para a vida social lisboeta por só se dar com a nata do porto. Era completamente errado; as pessoas não acreditavam que também não fazia vida social no Porto. Começo por ser um tipo de sair pouco. Saio para ir a casa de um amigo beber um copo, conversar um bocado, ver o Benfica e ter os desgostos inerentes a ser benfiquista.
Porque é que é benfiquista numa terra de portistas?
Provavelmente porque sou muito influenciável; sou o mais novo da minha geração na família e toda a gente era benfiquista.
Também podia ser ao contrário. Podiam ser todos portistas...
Um filho único com uma mãe benfiquista, uma avó benfiquista e três primos direitos benfiquistas, teria de ter uma personalidade muito forte para não ser benfiquista. Depois, toda a gente gosta de ganhar. Tenho 48 anos, quando adolescente o Benfica ganhava quase sempre.
Aos 48 anos...
Aos 48 anos ser benfiquista é prova de coerência masoquista! [gargalhada]
Aos 48 anos já só se tem paciência para aquilo que dá prazer.
Isso também é verdade. Houve uma fase em que as coisas aqui no Porto eram um bocado desagradáveis; as pessoas pensavam que eu não saía porque sentia que era melhor que os outros. Era complicado explicar que sou extremamente preguiçoso, que a vida nocturna começa cada vez mais tarde, a horas em que estou na cama, e que prefiro ficar em casa com um livro, com música. Se os miúdos estiverem, então, não me passa pela cabeça sair. Mas isso não passa por nenhum tipo de desdém.
Há um princípio de prazer.
Eu prefiro mil vezes ir a uma sessão de fim de tarde, fazer um bom jantar tardio e depois vir para casa calmamente. Assim como não faço julgamentos de valor sobre os que fazem outra coisa também me parece abusivo decidir que só por causa disso sou um bicho de jardim zoológico.
Ou um deprimido.
Ou um deprimido. Mas isso é outra questão. Nunca fui uma pessoa com um enorme prazer na vida. Eu não tenho uma visão eufórica da vida. Antes do Sexualidades, no Carlos Cruz Quarta Feira, a minha afirmação mais controversa não tinha nada a ver com sexo; o Carlos perguntou-me se eu acreditava na felicidade e eu disse-lhe que não, que só acreditava em momentos felizes. Isto deu uma discussão extraordinária. Houve quem dissesse que não; e isso eu acho fascinante, essa ideia de que se pode ser feliz 24 horas por dia, 7 dias por semana, 12 meses por ano.
Consegue sentir inveja desse estado?
Porque não? Eu tenho um respeito enorme pela inveja, um sentimento tão aceitável, tão humano. Ser feliz 12 meses por ano... Eu não sou assim. Penso que a maior parte da vida são pequenas variações ao longo de uma linha isoeléctrica; depois há picos para cima e para baixo. Gosto de acreditar que ainda tenho capacidade para apreciar os bons e já aceito com mais bonomia os maus. Mas, voltando à tua pergunta, se me pedisses, com tudo o que isso tem de impossível, para me diagnosticar em termos psiquiátricos, eu não teria pejo algum em dizer que estaria muito mais próximo de um registo sub depressivo que dum registo hipo maníaco.
Mas é também esta lucidez extraordinária, que os psiquiatras têm, que o faz estar nesse estado sub depressivo?
Não creio.
Falo de inteligência e consciência das coisas.
Eu poderia aceitar discutir nesses termos se estivéssemos a falar de uma determinada fase da minha vida. Esta sensação paradoxal de que a vida é um privilégio raro e fascinante e, ao mesmo tempo, não é propriamente uma festa é qualquer coisa que me acompanha desde a adolescência. Desconfio que a minha profissão acentuou alguns traços da minha personalidade. A psiquiatria é um mundo apaixonante onde nunca me aborreci e onde tive a sensação que havia muita solidão e muita tristeza.
O contacto com o sofrimento transforma as pessoas?
Há colegas meus que nunca estiveram deprimidos ou ansiosos. Eu não me posso gabar disso, mas também não faço disso uma tragédia. Ter conhecido eu próprio o que é a depressão e a ansiedade ajuda a entender alguém que diz «O Sr. Dr. não pode entender o que estou a sentir». A medicina ocidental é muito no reino da dor e da morte; mas não do sofrimento. Nós não somos educados medicamente para lidar com o sofrimento. Quando escrevi O Sexo dos Anjos um dos textos começava assim «A psiquiatria é a arte da distância; a vida também» . No outro dia reli aquilo e achei que não mudava uma letra. Andar à roda da boa distância, para que a pessoa não se sinta nem abandonada nem invadida, é complicado. E isso tanto se dá num consultório como na vida em geral.
Neste equilíbrio entre a dor e o prazer, estava a pensar que, grosso modo, aquilo que o Júlio estudou afincadamente foi a noção de dependência. Dependência, até, da ideia de prazer, do outro, da complementaridade. Até parece que somos educados para sentir apenas o prazer, como se esse fosse o nosso patamar admissível e não fosse possível residir bem na dor.
Eu diria que neste momento somos educados para todas as formas de dependência. Quando se fala de sociedade de consumo até parece que se está só a falar de marcas de whiskey e de gillete para fazer a barba. Nunca tivemos uma sociedade tão individualista onde impera a lei da selva e onde, simultaneamente, se empurra o indivíduo para não ter uma verdadeira autonomia. Nunca houve uma sociedade que marcasse tão vincadamente a ideia de que o caminho da felicidade está fora de nós. Ou se pode comprar ou se pode ter. Há autores que dizem que hoje em dia o que é importante não é o Ser mas o Ter. O Ter podem ser BMW ou namoradas ou orgasmos, por exemplo. As drogas também correspondem muito a isso e são muitas vezes tentativas desadequadas de adaptação. Quando se pára, fica um vazio dentro que é preciso preencher.
Com um BMW ou um orgasmo.
Se for um BMW não faz tão mal ao fígado, muito embora pior para a carteira. Mas voltando à tua questão, eu não sei muito bem se nós somos educados para o prazer. Na sexualidade, por exemplo, confunde-se prazer com desempenho. As pessoas não são educadas para ter prazer erótico mas para serem bons amantes, para serem eficazes na cama. É transpor para o sexo a visão geral da eficácia.
É por isso que você não gosta de gravatas? Estava a assaltar-me a imagem tão anos noventa dos homens e das mulheres de fato e de gravata.
Mas eu nunca gostei de gravatas.
A única vez que o vi de gravata foi no programa do Carlos Cruz.
Curto e grosso, se quiseres, tentei aparecer com um ar respeitável. Quando discuti o Sexualidades com o Carlos disse-lhe que não podia aparecer um ano de gravata, tinha de ser eu.
Porque é que aceitou fazer o programa? Estava plenamente consciente do que isso ia modificar na sua vida?
Eu acho que não estava minimamente. Alguma da bonomia com que eu aguentei as partes desagradáveis (que foram muito menores que as agradáveis) do Sexualidades tiveram a ver com uma santa inconsciência. Vinha das Biomédicas e d’ O Sexo dos Anjos e ingenuamente pensei «Bom, vou para a televisão e quais são as diferenças? P´ra já sinto-me solitário por não ter o Aurélio e o José Gabriel; e depois, além do som, há imagem». Podes avaliar bem o que isto revela não só de ingenuidade mas de estupidez
Olhe que é bonito ter essa ingenuidade aos quarenta anos.
Lembro-me de ter visto o primeiro programa num hotel em Carcavelos com o Chico Allen Gomes que ia gravar comigo na manhã seguinte. Vimos o programa num profundo silêncio, viro-me para o Chico, que é uma espécie de irmão mais velho para mim, e pergunto-lhe «E tu que achas?» E o Chico fez um sorriso maquiavélico e disse «Eu gostei. Boa sorte, vais ser trucidado». [riso]
Passou a noite a falar com a mãe e os amigos?
Não.
A sua estreia em televisão e ninguém lhe telefonou?
Agora que o dizes, não. Fui para a cama calmamente a seguir.
Mas teve vontade desse eco, ou não?
Para falar com toda a franqueza, além desse, devo ter visto mais um ou dois programas. Porque sou hipercrítico. Nesse primeiro programa fiquei aterrorizado com a cor da camisa que, desconfio muito, era do José Luís Judas e que a Zita (Zita Judas, realizadora) tinha arranjado porque eu ia de escuro e desaparecia no cenário. A minha mãe, pelo contrário, ficou encantada com aquela cor berrante. E não gostei de me ver como um boneco articulado a seguir as três câmaras. No dia seguinte o Chico e eu encontrámos umas pessoas à entrada que, afinal, eram uns jornalistas. Foi o primeiro embate e foi hilariante. Uma senhora perguntou-me «Como é que está a ser esta mudança e o que é que já aprendeu?» E eu respondi com grande naturalidade «Já me apercebi que estou completamente fora de moda e que um homem que se preze não usa peúgas brancas».
Isso é uma história... Está a falar a sério?
Mas eu usava meias brancas. Tinha ouvido numa gravação alguém dizer «Não suporto tipos de meias brancas» E eu...
A seguir escondeu-se mais no caracol?
Não foi preciso. Nunca tive a sensação de passar demasiado tempo em Lisboa.
E na vida do Porto? O que mudou, afinal, na sua vida?
A primeira coisa que fiz foi uma assembleia magna dos Machadinhos. As únicas pessoas que podiam fazer com que o programa acabasse eram eles. E isto não foi encarado com ligeireza.
Porque é que o Júlio faz referências constantes aos seus filhos e nunca fez uma referência explícita a uma mulher?
[pausa] Há dois tipos de razões diferentes porque há dois tipos de mulheres: a minha ex-mulher e as outras todas. A minha ex-mulher é a mãe dos meus filhos. Lembro-me sempre duma resposta brilhante do Dr. Álvaro Cunhal sobre a sua vida privada passada «Essa senhora refez a sua vida; seria uma falta de elegância referir-me a ela». Subscrevo isso 300% em relação à mãe dos meus filhos com quem, aliás, tenho uma relação de grande cordialidade. Tenho orgulho por termos conseguido divorciar o divórcio de duas pessoas casadas da relação pai mãe de dois filhos. As outras, tal como os amigos íntimos, fazem parte da minha vida privada; e eu nunca falo da minha vida privada, exceptuando o que tem a ver com os meus filhos.
Mas eles são também muito privados e o Júlio tem menos pudor em falar deles.
É verdade. Mas é-me muito difícil falar de mim sem falar deles. Primeiro era um pai com dois filhos, agora são três homens. Falo deles tão distraído que houve uma altura em que desisti de tentar controlar isso. Por outro lado, o que digo da relação com os meus filhos nunca invade a sua privacidade.
Temos aqui um homem que apresenta um conjunto de características que as mulheres apreciam sobremaneira.
Deus te pague.
Um homem desejado que se resguarda e em relação ao qual não se sabe absolutamente nada.
Essa é apenas uma das imagens. É curioso porque voltamos ao início. Essa fantasia de que falas, é só uma das fantasias. Outra das fantasias com que eu convivi foi que nunca falava de mulheres porque era homossexual. Ou que aparecia de Volvo à saída dos liceus femininos. Quando se quer fantasiar não há limite. Pensei que não fazer vida social fizesse diminuir as fantasias; como psi devia ter percebido que a ausência ainda é mais geradora de fantasias.
Não sente uma nostalgia por ter perdido a sua alma gémea? No Muros fala de uma intimidade assustadora e depois pergunta «Onde está a minha alma gémea».
Penso que estou muito mais nos meus livros do que nos programas de televisão, arriscar-me-ia a dizer que O Sexo dos Anjos está a meio do caminho. A intimidade é assustadora. Nesse primeiro encontro com os jornalistas alguém me perguntou se, vivendo só, não me assustava a ideia de viver sozinho. Respondi «Assusta-me mais envelhecer ao pé de alguém com quem não me sinta bem». É algo que continuaria a dizer hoje. Não encaro um divórcio com ligeireza; é sempre o falhanço de um projecto.
Não teve vontade de refazer a sua vida?
Parte-se do princípio que para se refazer a vida é preciso casar outra vez.
Foi a expressão que usou citando o Dr. Cunhal.
Nunca me aconteceu ficar muito assustado por estar sozinho e baixar os meus critérios para poder não estar sozinho.
Isso parte de um pressuposto quase narcisista. Nenhuma preenche os requisitos para se encaixar na minha forma.
Não é rigorosamente isso. Com o passar dos anos, com o egoísmo e os tiques, as probabilidades vão sendo menores. O Woody Allen gosta de citar o Groucho Marx e dizer «Nunca seria sócio de um clube de que eu fosse membro». Com franqueza, vejo com muita dificuldade, se fosse mulher, eu viver comigo mesmo [riso]. Seria uma tarefa hercúlea.
Porque é que se acha tão difícil?
Sou um bom exemplo das pessoas que são bons amigos, que são solidárias, que nem dificultam muito a vida a quem se move à volta e que são quase execráveis no quotidiano de uma vivência em conjunto. A velha expressão Mau Feitio assenta-me como uma luva. Um mau feitio dentro de muros. Eu acho isso e, como já me foi dito várias vezes, tenho de me render.
Então não o assusta envelhecer sozinho?
Em primeiro lugar não estou sozinho. Não consigo imaginar o que seria de mim sem os Machadinhos. Mesmo em sentido mais lato eu não vivo só, não sou monástico. Depois, tenho bons amigos. Tenho gente da minha geração que está a viver sozinha há tanto tempo como eu e que nunca jantou em casa sozinha, fica completamente deprimida. Eu tive sorte.
Aprendeu a viver deprimido.
[riso] Exceptuando os primeiros tempos e por razões puramente funcionais, por ser um típico filho único sem qualquer capacidade de sobrevivência, viver sozinho foi muito menos catastrófico do que imaginava.
Estou com esta conversa toda porque não me parece que tenha uma relação linear com o envelhecimento e com a idade. Por casualidade ou não o primeiro herói de que fala no Muros é o Peter Pan.
O que me assusta mais no envelhecer é achar que há partes da minha cabeça que não envelhecem ao mesmo ritmo das minhas articulações e do meu colesterol. A expressão que me ouvi pronunciar e sobre a qual depois pensei é Envelhecer com dignidade. Vou fazer 49 anos e há partes minhas que se riem à gargalhada do bilhete de identidade e acham espantoso que tenha colesterol que exige dieta. Mas não penso que seja uma coisa que se passe só comigo; estou sempre a encontrar isso, na clínica e fora dela. As pessoas perguntam-me «Será que eu sou normal?»
No fundo, nas coisas prosaicas você é um homem tremendamente normal.
Nesse aspecto sim. Envelhecer bem tem que ser, inevitavelmente, uma arte; e é uma arte que ainda não domino bem, ainda estou a aprender. Porque é que há coisas tão tristes como dar uma aula de Sexualidade na Terceira Idade, pôr dois idosos a beijarem-se na boca e uma data de gente rebentar à gargalhada? Porque há esse imperialismo da juventude?
O Garcia Marques escreveu Ridículo na idade deles, na nossa uma obscenidade.
Psicologicamente sinto-me melhor comigo agora do que me sentia há vinte anos. Mas há umas coisas que me irritam: canso-me com mais facilidade.
Como é que imagina que vai ser daqui a vinte anos?
Com tudo a correr bem imaginava-me com a casa ao pé de Vieira do Minho feita (teoricamente será a primeira obra do meu filho mais velho). A casa das vindimas da família, dos meus netos. Quando as pessoas me perguntam com que personagem me identifico mais no Muros eu digo que é com aquela avó que tem uma nostalgia terrível do clã. Eu sou o mais novo da minha geração na família e já não conheci a família em Paredes de Coura, com a quinta e os verões e quarenta e tal tipos a dormirem no bilhar por já não haver mais camas. Eu nunca tive isso, fui sempre citadino. Tive cedo a noção de que um dia iria reconstruir esse tipo de coisas. Mas normalmente não há dinheiro para isso aos vinte e tal.
Começou a ganhar dinheiro a sério com a televisão? O dinheiro foi um argumento válido para fazer o programa?
De maneira nenhuma, eu aceitei o programa antes de saber quanto é que iria ganhar. Eu sou, comparado com o português médio, um homem rico; mas sempre quis o dinheiro pelo que me podia proporcionar em termos de qualidade de vida. Nunca fez sentido estar a enriquecer, ter dinheiro, multiplicar o dinheiro. Cá em casa é como numa mercearia e imperam duas regras de ouro: Não gastar mais do que se tem e A qualidade das férias depende do que se gastou durante o ano. O terreno de Vieira do Minho, que não é negociável, foi sempre pensado como um recomeço de saga familiar.
Um investimento mais familiar que imobiliário.
Nem mais. Eu vejo-me calmamente em Vieira do Minho a ler os livros que não tive tempo de ler, a ouvir a música que não tive tempo de ouvir.
Leva-se a sério enquanto escritor?
Não, não me podia levar porque nunca escrevi nada que não fosse em andamento; e isso é algo que considero incompatível com o rótulo de escritor. O próprio romance foi escrito de uma forma desadequada, grande parte de Muros foi escrito na Galiza, à noite. Se voltar a publicar ficção, o que não é garantido, gostaria que fosse escrito calmamente.
Gostava de ter o talento de um muito bom escritor?
Claro!
Se lhe fosse dado um talento à escolha, escritor, cantor, galã de cinema, qual é que inveja mais?
O Chico Buarque, porque alia o talento musical à extraordinária capacidade de ultrapassar os papéis de género e escrever poesia para homem e mulher.
O Chico Buarque vai muito bem consigo. Há pouco, quando falava de si enquanto homem desejado por mulheres, queria referir-me a um recato quase feminino que inebria as mulheres por lhes despertar o instinto maternal.
Se quiseres, o Chico Buarque é o expoente máximo disso.
Há aqui um aparente paradoxo: é um homem de um enorme pudor mas que acaba por escolher a medicina, a psiquiatria e, dentro desta, a toxicodependência e a sexualidade que o expõem. Parece que não foi feito para a arena pública e, no entanto, não consegue sair dela.
Consigo, se eu tivesse querido manter-me na arena pública teria sido muito fácil e eu hoje estou completamente fora da primeira linha dos colunáveis.
Está com os livros, por exemplo.
Um tipo não pode deixar de fazer o que quer só porque isso acarreta exposição. Mas é verdade que na escrita sou muito mais permissivo em relação a mim mesmo que num programa de rádio ou televisão.
Uma coisa que me chamou a atenção no seu romance foi uma dedicatória ao seu pai. Deve ter sido um fardo terrível ser filho e neto de quem é. Contudo, pensava eu que as suas relações mais fortes eram com as mulheres e com a sua mãe.
Por isso é que a dedicatória é ao meu pai. A dedicatória é «Por me telefonar todos os dias». Mais uma vez é a questão do afecto entre os homens. Tenho uma relação infinitamente mais visceral com minha mãe que com meu pai; e tenho uma imensa nostalgia, como é frequente entre os homens, de uma relação que tivesse sido mais visceral com meu pai. A dedicatória do Muros é uma espécie de armistício, é uma forma de lhe dizer « Aos 46 anos de idade, aceito que há maneiras diferentes de gostar, tu tens a tua, eu tenho a minha, isso não significa que gostemos menos um do outro ». Porque eu sou um tipo muito físico no gostar e o meu pai não é. Apesar disso, há não sei quantos anos, telefona-me todos os dias. Foi um bom passo. Teria detestado que o meu pai tivesse morrido sem lhe ter feito aquela dedicatória. Nunca me passou pela cabeça dedicar à minha mãe. Aliás, uma dedicatória semelhante à minha mãe seria quase ofensiva, não faria sentido nenhum.
Se em miúdo tivesse de fazer queixinhas fazia à mãe?
Eu não fui um miúdo de queixinhas. Os filhos únicos vivem no mundo dos adultos. Mas se tivesse de as fazer seria à minha mãe, sim. Até porque a força motriz da família era ela. Tratava-se, afinal, de uma cumplicidade: nós dois éramos preguiçosos e ela cuidava dos seus homens que só serviam para estudar.
A competência dela era cuidar dos seus homens. Era a sua forma de os fazer depender.
Exactamente, mesmo que possa parecer sinal de um horrível machismo, eu não consigo pensar na situação dessa maneira. Toda a gente lucrava. Ela tinha os seus homens que reduzia à impotência e ineficácia nas áreas que eram completamente dela. Na minha opinião insofismável tinha sozinha uma personalidade mais forte que nós os dois juntos. Minha mãe foi sempre uma rocha. Nunca consegui olhar para as mulheres como o sexo fraco. É uma expressão que claramente pertence à mitologia [riso]. O paradoxo da imagem pública entronca muito aí.
Tinha dois pais públicos.
Um pai professor universitário, de quem fui aluno.
Que nota é que ele lhe deu?
Não pôde fazer-me exame. Quando fiz as duas cadeiras, entrei eu e saiu ele.
Que nota teve nas cadeiras dele?
Tive 19, 19. Ser filho de um catedrático era uma herança pesada. Mas havia do outro lado um peso ainda maior porque a minha mãe era uma figura pública a outro nível. Quando era puto levava-me para a Figueira da Foz quando ia cantar e eu ficava aterrorizado.
Aterrorizado com quê?
Não percebia como aguentava aquilo. Ela cultivava ferozmente a sua privacidade. A imagem que tenho dela é a coser, a ouvir a Emissora 2 tardes inteiras e a evitar todo o tipo de exposição pública. Não entendia como é que depois, à sexta e ao sábado, ela estava naquelas coisas.
O seu pai também ia?
Ás vezes ia. O meu pai tinha um orgulho espantoso na minha mãe.
Do que é que sente particular orgulho na sua vida?
Do que eu me sinto mais orgulhoso é, evidentemente, da relação que tenho com os meus filhos. Em termos profissionais... É difícil falar disso porque eu não me sinto particularmente orgulhoso da minha trajectória profissional. Como professor universitário faltou-me sempre uma dimensão clássica, a investigação. Mesmo na tese de doutoramento as partes que me agradam mais não são as de investigação numérica mas sim as impressionistas do meu ensino da sexologia. Isso implicou uma opção, eu disse a mim próprio que não chegaria a ser um professor catedrático. O que significa que em termos de sucesso universitário eu poderia descrever-me como um falhado; continuo a ser um professor auxiliar, ponto final. Pesa-me não ter sido capaz de formar uma equipa.
As equipas admiram-lhe, sobretudo, uma capacidade de conciliar pessoas e situações.
Depois, sou eu a sair delas. Não sei dirigir a partir de telefonemas, faxes, mapas de férias, etc; só consigo dirigir equipas pequenas. Neste momento tenho uma equipa pequena em Adaúfe (Centro de recuperação de toxicodependentes) e penso que isso foi, claramente, uma fantasia reconstrutiva. Portanto, em termos profissionais não me é muito fácil falar em sucesso. Gosto de fazer clínica mas admito um certo cansaço ao cabo de vinte anos.
Ainda recebe primeiras consultas?
Não, faço muito pouca clínica. O que ainda acaba por me dar prazer são as aulas, mesmo que tenham passado 25 anos.
Mesmo assim como é que se sente no mundo académico? A popularidade é uma coisa que desperta invejas incontroláveis.
Eu não limitaria isso ao académico. Diria, com algumas excepções, que as coisas mais desagradáveis que foram ditas a meu respeito vieram do meio académico e do meio médico.
Isso doeu-lhe particularmente?
Por vezes doeu-me muito por vir de pessoas que eu conhecia. Não é muito vulgar as pessoas dizerem que sou incompetente nas áreas em que trabalho; mas aconteceu chegar a congressos, estar numa mesa onde todos eram apresentados enquanto professores universitários e eu enquanto estrela de televisão. Claramente a roçar o insultuoso. Se um tipo fala e é entendido por toda a gente qualquer coisa está errada.
Deixe-me ser freudiana de fim-de-semana: Parece que não é compatível o rigor académico de seu pai com a capacidade de falar com toda a gente de sua mãe. O Júlio é a fusão dos dois.
Sou filho de um homem que tinha Professor Catedrático escrito na testa como um ferrete e de uma mulher que tem a quarta classe e subiu a pulso e se meteu nos institutos para aprender línguas. Isso foi muito bom para mim e habituou-me a lidar com todo o tipo de pessoas.
Há coisas fundamentais para si, como a honestidade e a honra. Nessa multiplicidade de imagens quando identificam isso, você sente-se gratificado?
Todos nós gostamos de ser gostados. E o resto são cantigas.
Ainda sente uma margem considerável para o encanto? O seu discurso é sempre dúbio: há o homem que gosta de ser gostado mas que tem uma lucidez que quase impossibilita o encanto.
Estou a caminho dos 50. Continuo a ter capacidade para me encantar mas, um, só me meto em coboiadas de trabalho se me sentir encantado; dois, estou a readquirir a capacidade de me encantar com coisas que não têm a ver com trabalho. E isso eu não quero perder.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 1998