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Anabela Mota Ribeiro

Sobrinho Simões (sobre Portugal)

03.11.13

Somos gente de minifúndio, individualista. Gente de sol e de sal que não precisou de se organizar em grupo. Que nunca fez a Revolução Industrial. Gente que tem dificuldade em distinguir o saber da erudição, o essencial do acessório. (Isto, Sobrinho Simões aprendeu-o quando viveu na Noruega, e, depois, nos Estados Unidos.) E somos uma gente que, num cenário de crise aguda como o que vivemos, se entreajuda.  

Sobrinho Simões tem uma inteligência prodigiosa e, ao contrário dos seus alunos, que apesar de serem excepcionais não têm uma narrativa sobre a realidade, a sua visão é integradora, global, capilar.

Aos 65 anos é um dos maiores especialistas mundiais em cancro da tiróide. Fundou e dirige o IPATIMUP, é professor na faculdade de Medicina do Porto. Recebeu o Prémio Pessoa. 

 

 

No ano novo temos a expectativa de que o futuro vai ser radioso, de que nos vamos regenerar. Este talvez seja o primeiro em muitos anos em que temos a impressão de esbarrar num muro. Tem uma mensagem de esperança, apesar de tudo?

Sou pouco sensível ao “nós, portugueses”. Acho que estamos mesmo metidos na Europa.

Como passo a vida a circular e a trabalhar com gente que pertence ao meu extracto social, sei como é que vivem os médicos, os internos, os alunos. Não sei como é que vive o povo.Sei por interposta pessoa. Pelos meus filhos, pela minha mulher, pela minha secretária. O que tenho sentido é que este muro não é “nós, portugueses”, é “nós, europeus”. Estive recentemente em Manchester e em Sheffield, cidades industriais. Esse muro, também o senti lá. Não senti pior reacção, numa reunião em Portugal, com patologistas ou médicos, do que senti em Inglaterra, com patologistas e médicos. É a sensação de que nós, europeus, e nós portugueses, chegámos ao fim de um determinado modelo de organização social.

 

É o modelo que começou no pós-Guerra, fundado com a Comunidade do Carvão e do Aço, assente na ideia de uma Europa solidária. É isso que se está a extinguir?

É. Nasci em 1947 e quase todos os amigos da minha idade nasceram no pós-guerra. Crescemos numa sociedade que produziu riqueza muito à custa da exploração de riquezas alheias. O desenvolvimento da Europa e do Ocidente fez-se à custa da África, da Ásia e da América Latina.

 

Uma assimetria norte/sul que agora está a provocar consequências visíveis e irreversíveis?

Sim. É inevitável o empobrecimento da Europa. Sou optimista na acção, mas muito pessimista na análise. E não arranjo grandes soluções de acção. A minha avaliação é pessimista. Como é que saímos disto?

 

Essa é a pergunta que todos nos fazemos.

Muita gente tem uma retórica voluntarista. Aumentar a competitividade – é óbvio. Mas como é que isso se faz? Como é que conseguimos retomar o crescimento para manter os níveis de conforto que atingimos? Não me dou com gente da massa, não sei como é que um banqueiro ou um financeiro vê isto. Dou-me com gente que trabalha. O trabalho foi desvalorizado nos últimos dez, 15 anos.

 

O trabalho ou o conhecimento?

Ambos. O meu filho esteve cinco anos em Inglaterra, no Hammersmith, um dos melhores sítios do mundo para [tratar] a leucemia; como médico. Durante cinco anos não teve um único colega inglês. Em Inglaterra os miúdos inteligentes já não vão para engenheiros nem para médicos. Vão para financeiros, para marketeers.

 

Para aqueles que vivem em função da eficácia, do resultado?

Sim. Uma das coisas que mais me entristecem é a pouca importância que na Europa se dá a ser engenheiro ou médico. Ser gestor é considerado melhor do que ser o tipo que trabalha. Em Portugal nunca gostámos de trabalhar (no sentido anglo-saxónico).

 

Tendo em vista a produtividade e o resultado? Porquê? Porque não se enriquecia a trabalhar. A não ser em casos excepcionais, médicos ou cirurgiões muito famosos. Isto é verdade para a Andaluzia, para a Sicília. O Mediterrâneo nunca foi muito estimulador de que trabalhar é bom. Trabalhar era uma coisa que era preciso.

 

Apesar de tudo, no caso dos médicos, há uma reputação social, que não se traduz no dinheiro, mas que sempre foi significativa. Essa, acha que se perdeu?

Está-se a perder.

 

Com a sobrevalorização do dinheiro?

Sim, do dinheiro e das medidas de sucesso. Agora, os meus netos, quando vão para a escola, o que comparam entre si são as roupas, os gadgets ou os carros que os pais têm. Identificamos o sucesso com a aquisição de bens materiais, e nunca foi fácil adquirir esses bens à custa do trabalho.

Agora estou a inventar, mas estou convencido de que a ideia de ganhar dinheiro fácil, em Portugal, foi sempre uma ideia sedutora. Ninguém era socialmente muito valorizado por trabalhar.

 

Temos a corrente do “chico-espertismo”...

E também fomos sempre mais comerciantes que industriais, o que, no limite, traduz alguma sedução pela facilidade. A indústria nunca foi um objectivo. Não tivemos muita gente que quisesse ser industrial.

Parte do que se diz dos europeus do sul – a nossa falta de organização – é também fruto de alguma sedução por modelos organizacionais de comércio simples. Não é por acaso que muitos tipos do sul da Europa se estabelecem com uma pequena mercearia, um café, um pequeno restaurante.

 

Uma iniciativa individual.

Muito individual, que não exige organização. E isso é incompatível com a indústria.

 

Nunca fizemos uma Revolução Industrial. O que significa que não aprendemos a funcionar em grupo. Não percebemos como somos imprescindíveis ao grupo, como, se nos atrasarmos, é o grupo todo que espera.

O que é novidade nesta crise europeia é que isto podia ter atingido só os países do sul, com essas características. Mas os países do centro da Europa não estão seguros de que o seu modelo de organização social seja suficientemente forte para manter os níveis de bem-estar a que se alcandoraram. A Alemanha não vai conseguir continuar a vender carros se tiver uma competição feroz de países que se desenvolveram socialmente. (Países com grandes assimetrias sociais. Trabalho muito na China e a diferença é obscena entre os muito ricos e os muito pobres. No Brasil há também um gap enorme.)

 

A Alemanha, ela própria, está a sentir na pele o deslocamento da indústria para oriente.

Mas têm conseguido, e bem, ser os sujeitos da acção.

A grande vantagem da Revolução Industrial foi ter forçado uma organização social, num mundo eficiente, com avaliação de desempenho, com recompensa/castigo – o que tinha muito a ver com a sua religião. E com o seu clima. É mais fácil fazer isto quando não se tem calor. Ser pequeno, periférico, pobre e católico, e solar, e salgado, tudo isto são factores que não aguçam o engenho.

 

Ao mesmo tempo, aguçam o engenho a título individual. Essa é uma das idiossincrasias dos portugueses, ou não? O desenrascanço é isso.

É porque não precisávamos de nos associar. O clima é crucial. As pessoas não morriam de frio à noite. Na Alemanha, no norte da Europa, em França ou em Inglaterra morre-se de frio. Uma das coisas mais difíceis de perceber é por que é que o ser humano é altruísta.

 

Qual é a sua explicação?

Não sei. Se eu tiver um frango, por que raio é que lhe hei-de dar meio frango a si? Posso precisar de si se quiser matar o inimigo, e quero que tenha força física. Há muita gente que diz que o altruísmo da espécie humana é fruto do paroquialismo. Era a forma de uma paróquia se defender, primeiro, e, depois, de ganhar a terra e os bens de outra paróquia. Mas há características biológicas que sugerem que as crianças, ao nascerem, incorporam características do altruísmo.

 

Por que é que somos individualistas no sul da Europa?

Há uma coisa que é óbvia entre nós: durante muitos anos a organização social portuguesa permitia que um tipo, individualmente, se safasse. Outras organizações sociais, mais calvinistas, mais luteranas, mais do centro da Europa, não permitiam. Desenvolvemos o “chico-espertismo” porque não temos grande consciência social.

 

Nem sentido da vigilância em relação ao grupo.

Um tipo que enriquece ilegitimamente na nossa cultura não é sancionado negativamente. Pelo contrário. É considerado um herói por ter enganado o Estado.

 

A vigilância seria considerada uma espécie de delação.

Traição. Em países periféricos e pequenos, [prevalece] o pequeno grupo, a família. Somos minifundiários. Casámos uns com os outros durante gerações. Somos uma sociedade de altíssimo contexto.

 

Já não há relações consanguíneas, mas continuamos a casar dentro do mesmo grupo social, dentro do mesmo grupo de trabalho. Em Portugal não existe mobilidade social por (quase) nenhuma via, muito menos pela do casamento.

Exacto. Em Portugal há mobilidade social pelos partidos e há alguma pelo desporto, mas não é expressiva. Houve alguma pela Ciência, mas essa faz com que os miúdos saiam de Portugal. Nunca ouvi um inglês dizer que vai sair com os cunhados no fim de semana. Brother in law é uma coisa que praticamente não se usa noutras culturas. Aqui qualquer reportagem na televisão tem um cunhado ou uma cunhada [riso].

 

Há um sentido tribal.

É muito tribal por sermos pequenos, por sermos periféricos. Ninguém vinha cá casar connosco. Emigrámos muito, fizemos filhos em África e na América Latina; os filhos ficaram lá e incorporámos às vezes as filhas. A nossa incorporação genética, quer da África subsariana, quer do norte de África, quer da América Latina, é sempre por via feminina.

 

Por que é que temos tão pouco o sentimento de pertença?

Não sei porquê, mas é muito nítido. O Alexandre Alves Costa na sua última aula, na Faculdade de Belas Artes, contou uma história muito engraçada. O Rei D. Luís andava a passear de barco na nossa costa e perto da Afurada [bairro em Gaia] encontrou um barco de pescadores. O iate real aproximou-se e o rei na amurada apercebeu-se de que estavam a falar português. Perguntou: “São portugueses?”. E eles disseram: “Não, meu senhor, somos da Póvoa do Varzim”[riso]. Nunca tivemos necessidade de nos organizarmos.

 

Basta-nos a protecção da Póvoa do Varzim?

Do nosso pequeno mundo.

 

Voltemos atrás. Apesar dessa veia comercial acentuada, o “senhor doutor”, que podia ser um médico, um advogado, um juiz, eram muito estimados socialmente. E isso era por via do conhecimento. Como é que isso deixou de ser válido?

O doutor foi sempre muito privilegiado socialmente. Foi sempre uma espécie de gazua para ter um emprego. A melhor maneira de aceder ao funcionalismo público era ser doutor. Depois isto estendeu-se às autarquias. Era um emprego.

 

Era um garante de um emprego.

Era. Confundimos sempre, na nossa cultura, emprego com trabalho.

 

Ainda não ultrapassámos isso?

Não. Nos países anglo-saxónicos é muito diferente. O que é importante é o job, não é o emprego. A pessoa distingue-se pelo que faz e não pelo seu rótulo. Parte do prestígio dos médicos advinha da circunstância de responderem a uma necessidade premente das populações: a fragilidade da doença. Mas não eram ricos. Os meus bisavós dos dois lados eram médicos na província e não eram ricos, viviam do seu trabalho.

O conhecimento vulgarizou-se com o acesso massificado ao ensino, que é a grande revolução em Portugal, assim como antes teria sido a pílula e a televisão.

 

No pós 25 de Abril?

Sim. Com aspectos muito positivos. Também com aspectos horríveis (o número de iniciativas comerciais indecentes que não garantiram qualidade). Antes desta massificação, era uma elite que tinha acesso ao título. Esse título garantia um emprego e ainda por cima era um bem escasso. Há outra coisa: a circulação de informação passou a ser muito grande.

 

É outra grande revolução, sobretudo nos últimos dez anos, por causa da Internet.

Exacto. É o acesso às palavras, que é muito português e muito latino. As pessoas chegaram às palavras e pensam que já sabem. Isso criou (falsas) impressões de literacia que não existem tanto assim. 

 

Houve ainda o acesso à palavra na televisão e na rádio, nos órgãos de comunicação social. Foi importante.

Importantíssimo.

 

Vê-se, no modo como as pessoas participam nos programas, que acreditam que a sua história, a sua narrativa tem lugar.

Isso é engraçado. A coisa pior dos meus alunos actuais, de Medicina, alunos estupendos, muitíssimo bem-educados, uma capacidade de mobilizar extraordinária, muito obedientes em termos do que é a frame, é que não têm narrativa.

 

Narrativa acerca deles próprios, da sua história, da história do país?

E do que estão a aprender. Aprendem de uma forma fragmentária. As tentativas de dar protagonismo a histórias individuais, os fóruns radiofónicos, são uma experiência social espantosa. Forçam as pessoas a contar uma história, a ter uma opinião que não seja apenas “gosto, não gosto”. Isso, em si mesmo, não é mau. O problema é a ausência de validação.

 

Como assim?

Como massificámos o ensino e desprestigiámos os professores, como passámos a ter todos acesso aparente à Internet, e toda a gente tem opiniões, como nos tornámos todos muito vocais, de repente, em Portugal, não há uma validação do conhecimento.

 

Uma validação por quem? Vale tudo o mesmo?

Não vale. O que é que fizeram os países anglo-saxónicos que também tiveram esse problema? Vale a avaliação que mostra que aquilo é valioso.

 

Quem é que a faz?

O mercado, em relação aos bens transaccionáveis. O nosso problema é que nos tornámos todos emissores de verdades. A cacofonia atingiu coisas inaceitáveis, com uma incapacidade absoluta de distinguir o essencial do acessório. E isso não é só culpa dos meios de comunicação social. É culpa dos políticos.

 

Porquê?

Eles são os grandes emissores. Se tivessem capacidade de distinguir o essencial do acessório não introduziriam tanto ruído, que depois é acompanhado pela comunicação social.

Nos países nórdicos a distinção entre o fundamental e o acessório é sempre muito nítida. São marcados por uma cultura protestante, treinados pela Revolução Industrial e há uma instância de regulação que funciona.

 

Isso levanta um problema delicado, o da confiança nas instituições de validação. Em Portugal é, de um modo geral, diminuta. E nem sequer vamos falar da Justiça, garante da democracia, na qual as pessoas têm uma confiança reduzida.

Se tiver que identificar uma das coisas mais negativas da sociedade portuguesa é uma grande desconfiança em relação às instituições. Nunca tivemos muitas instituições, e foram sempre muito personalizadas.

 

Ou seja, é um indivíduo que faz a instituição funcionar. Não são os procedimentos, identificados e automatizados, que fazem que a máquina funcione sozinha.

Sim. Nunca criámos mecanismos de avaliação com recompensa/castigo regulares. Em parte porque somos todos primos e cunhados uns dos outros, e não temos distanciamento suficiente. Nem número de pessoas suficiente. Na avaliação dos artigos científicos para revistas portuguesas é uma chatice. Somos sempre os mesmos.

Outra razão pela qual o conhecimento, em todo o mundo, deixou de ser tão importante (a não ser quando dá origem a patentes e a dinheiro) foi porque se percebeu que, à medida que conhecíamos mais, tínhamos mais incerteza. Todo o conhecimento que temos vindo a adquirir sobre fenómenos biológicos, meteorológicos, tem-nos permitido perceber muitíssimo bem a complexidade e tem-nos aumentado a incerteza.

 

É uma coisa boa?

Não assusta nada os cientistas, que adoram isso, vivem disso. Mas tem aumentado a descrença da população. A segunda coisa: as pessoas de repente perceberam que não tínhamos resolvido o problema da morte. Foi uma pancada muito grande.

 

Apesar da euforia da investigação científica...

Afinal as pessoas continuam todas a morrer.

 

Em resumo, e para fechar o tópico: o conhecimento vulgarizou-se, deixou de garantir um emprego...

Também é verdade que a população deixou de respeitar [as figuras de referência, os advogados, os médicos, os juízes] porque estes não eram exemplares. À medida que os juízes passaram a estar envolvidos em meios de comunicação social, a dar muitas opiniões, o direito de reserva deixou de ser tão utilizado. E os políticos introduziram ruído no sistema de uma forma que retirou dignidade à política. Portugal tem poucos exemplos.

 

É uma frase terrível. Voltando à ideia inicial: precisamos, não só de um horizonte futuro como de modelos.

Estamos metidos num conjunto europeu que deixou de ser uma almofada confortável. No caso português não temos exemplos pessoais, não temos exemplos institucionais. A Fundação Gulbenkian é uma excepção. Criou uma lógica que persistiu ao longo do tempo, com aspectos positivos e negativos. O Supremo Tribunal de Justiça: não consideramos. O Tribunal de Contas, com o Guilherme Oliveira Martins, é [considerado] fruto da categoria do seu presidente.

 

Mais uma vez não é a instituição…

É a pessoa.

 

Apesar disto, e paralelamente a isto, o desenvolvimento da Ciência em Portugal é espantoso. Todas as semanas lemos notícias sobre descobertas importantes, concursos que foram ganhos por investigadores portugueses. É resultado da aposta que foi feita nesta área? Ao mesmo tempo ouvimos o discurso de que não há dinheiro, e que se está a desinvestir.

Houve uma aposta de vários governos na Ciência. Tivemos a sorte de ter durante dois períodos muito grandes como ministro da Ciência o Mariano Gago. Um tipo fora de série. Como partimos de valores muito baixos, tivemos crescimentos que são de facto recordes mundiais. Mas então, por que é que somos tão bons em Ciência e não somos tão bons nas universidades?

 

Boa pergunta. Até porque a maior parte das vezes os laboratórios de investigação estão dentro das universidades.

É uma pergunta crucial. É possível, ou não, reproduzir nas universidades o modelo que se introduziu na Ciência? Eu acho que não é. Na Ciência fez-se avaliação com recompensa/castigo. A Ciência, por sistema, recorreu a concursos de avaliação (de mérito, de projectos, de pessoas, de instituições) recorrendo a avaliadores externos.

 

Estrangeiros?

Sim. Ou portugueses estrangeirados.

 

O que quer dizer que a aposta foi na meritocracia?

Claro. É preciso ser justo: é difícil introduzir meritocracia em estruturas tão complexas como a universidade. É mais fácil num instituto de investigação, uma coisa pequenina. É um problema grave. Ou conseguimos passar o modelo utilizado na Ciência para as universidades, e as universidades recuperam aquilo que foram na Idade Média (os motores do desenvolvimento), ou as universidades transformam-se em estruturas burocráticas, administrativas, uma espécie de liceus melhorados.

 

É só um problema de escala?

De escala, de organização. Há uma multiplicidade de vectores. Na universidade é-se julgado não só pela ciência que se faz mas também pelo ensino que se consegue dar aos alunos, e pela assistência que se presta aos doentes. E não é líquido que o melhor investigador seja o melhor médico para operar um doente. E não é o melhor investigador que é o melhor professor. A função social da universidade é muito complexa, a Ciência foi uma espécie de ilha.

 

No mundo globalizado em que vivemos, na Ciência, ou se funciona numa lógica internacional ou não se funciona?

Sempre se funcionou. Desde há 20 anos que funcionamos, somos todos internacionais.

 

O que significa que se não forem suficientemente bons para entrar nessa roda, não existem.

Não existem. A isso é que chamo o castigo. O castigo não é uma punição, é o desaparecimento do mapa.

 

As universidades, ao contrário dos institutos, têm um duplo padrão, e nem sempre assente nesse mecanismo de prémio e castigo. Basta olhar para a reputação de certas universidades privadas... Isso não existe na Ciência. Nem que seja pelo que acabou de apontar.

O sistema ficou distorcido pelo número enorme de instituições privadas que apareceram, pela sedução (por parte do ensino privado) de ganhar dinheiro com diplomas. Os politécnicos foram capturados, em muitos casos, pelas estruturas locais dos partidos. PS e PSD, ambos se portaram mal nisso. Enquanto na Ciência se mantinha um sistema pequeno, com internacionalização e com avaliação internacional, com elementos que permitiam que a pessoa subisse ou descesse, tornámos o ensino superior numa espécie de prolongamento dos empregos dos políticos, dos amigos e dos primos dos políticos.

É a captura dos interesses do Estado central e das autarquias pelos partidos. E como em Portugal o sistema oscilou entre dois partidos muito próximos, e muito ligados por interesses, nunca tivemos alternativa.

 

O “centrão” é um grande problema ao desenvolvimento do país, com as suas ramificações?

É um problema terrível. O sistema de empregos para a classe política foi sempre feito à custa de enxertos progressivos, nas empresas públicas, nas empresas participadas, nos institutos politécnicos. A Ciência está ao lado, é uma história de sucesso.

 

Incontaminada.

Indiscutível.

 

Falta foco?

Foco e organização. Quando digo foco é a separação do essencial do acessório. Temos uma coisa retórica de andar à volta, não separamos. E depois liderança, com governação.

 

Para a implementação.

E para introduzir mecanismos de recompensa/castigo. Trabalhei em muitos países da Suiça alemã e na Áustria, e os resultados positivos são distribuídos a quem merece. Quem não merece não recebe. Há 30 porcento que não teve bónus no fim do ano, 70 porcento teve. Estes 30 porcento percebem que lhes estão a dizer que têm que mudar de vida.

 

Em Portugal, como não se confia nos critérios de avaliação, acha-se que os 30 porcento que não receberam bónus, não receberam porque estão a ser perseguidos. Não tem a ver com o seu mérito ou com o seu desempenho, tem a ver com razões políticas, ideológicas, pessoais.

É a desconfiança e a falta de massa crítica, de pessoas suficientemente distanciadas para serem avaliadores.

 

Já explicou as razões que tornaram possíveis este milagre na Ciência. Em tempo de crise, tudo pode ruir de um momento para o outro?

De um momento para o outro, não há nada que se destrua. Temos duas hipóteses: cortar 40 porcento a toda a gente, ou ver quais são as instituições que estão a produzir bem e apoiá-las, e ver quais são as que estão a produzir mal e desactivá-las ou obrigá-las a reconverterem-se, a desaparecerem ou a associarem-se a outras. O que este Governo está a fazer são cortes cegos, em tudo. O IPATIMUP está com 50 porcento de cortes desde 2006. O anterior Governo já nos tinha feito um corte inaceitável e agora tivemos mais.

Percebo que uma empresa não viva de subsídios. Pode ser apoiada na fase de lançamento ou se tiver problemas de tesouraria; mas tem como lógica o lucro. Uma universidade, um hospital ou um instituto de investigação têm que ser subsidiados. Não têm que ser totalmente subsidiados, mas não há em parte nenhuma do mundo civilizado um hospital ou uma universidade que dê lucro.

 

Nem as grandes universidades ou grandes institutos americanos, noruegueses?

Não. O que vão buscar em patentes é uma coisa da ordem dos cinco porcento do seu budget. O que acontece nesses países é que há muito mais filantropia. Isso não temos. Mas a produção de riqueza por prestação de serviços ou de criação de patentes é uma percentagem mínima.

 

Pode gerar receitas?

Posso pôr um instituto a gerar receitas. Em vez de um instituto de investigação passa a ser um instituto de análises clínicas. O instituto de investigação tem que ter uma parte substancial do seu metabolismo assegurado pelo Estado ou pela autarquia. Depois podem-se introduzir mecanismos de estímulo – o Estado entra com “X” se conseguirmos criar “Y”. Estamos com 49 porcento de cortes. Vamo-nos adaptando, mas a adaptação faz-se à custa de perda de qualidade, e de [as instituições] não serem sustentáveis.

 

Como vê a emigração dos investigadores? Há cada vez mais emigração de gente qualificada.

Estamos a perder miúdos que podiam ficar cá e que vão para o estrangeiro. Em si mesmo não é mau, porque estes miúdos são muito bons em qualquer lugar e um dia podem voltar. Não é tanto a necessidade de os manter; é que eles, aqui, não têm a certeza de ter condições. Não se ganha muito bem na Ciência.

 

Qual é o ordenado médio de um investigador que tenha 30 anos?

2500 euros brutos. Estamos a falar de pessoas doutoradas e que não fazem mais nada senão isto. Alguns desses nossos investigadores começam a ter a possibilidade de ser contratados a dez ou a 20 porcento pelas universidades. Fazem o que gostam, isso tem um valor incalculável. Mas só podem fazer o que gostam se criarmos as condições mínimas.

 

Quais são?

Além da água, da luz, são os equipamentos que estão a ser utilizados pelos competidores, que são caríssimos e têm uma vida média que não é muito grande. Exigem renovação. Tem que ser o Estado ou a tal filantropia a assegurar isso.

 

No fundo, ganham os concursos mas deixam de ter condições que lhes permitam fazer a investigação que lhes permite ganhar novos concursos.

É isso mesmo. Isto não vai ruir de um momento para o outro, mas é daqui a dois, três anos porque já não vão ganhar projectos europeus.

 

Significa que têm unhas mas não têm guitarra.

Estamos a ter cada vez menos guitarras. E a universidade também. A minha faculdade pode aumentar a prestação de serviços, mas se estivermos a prestar serviços que têm valor comercial, não estamos a ensinar nem a investigar, nem a fazer desenvolvimento para o futuro. Não podemos, em relação a algumas coisas, transformá-las todas em laboratórios e hospitais privados. Um hospital universitário recebe por ano 300 alunos, e que tem de ensinar 300 alunos que queremos que sejam muito bons médicos.

Aquilo que dizia em relação aos ingleses, que deixaram de ir para Medicina e para Engenharia: isso não acontece entre nós. Não há esta deriva para ganhar dinheiro rapidamente na finança ou nos seguros.

 

Está continuamente a viajar, mas sediado no Porto. O mundo mudou muito desde o tempo em que esteve na Noruega ou nos Estados Unidos a investigar. Estar fora possibilitou um olhar sobre Portugal com uma maior radicalidade. Hoje, continua a ter esse olhar agudo sobre Portugal, sobre as nossas interrogações, as nossas certezas?

Quando fui para a Noruega tinha 32 anos, ia descobrir o mundo. Tinha estado muitas vezes no estrangeiro, mas sempre como turista. Quando comecei a dar aulas regularmente nos Estados Unidos, passados cinco anos, fui aprender como é que se ensinava. E depois trouxe isso para cá.

Quando fui para a Noruega e para os Estados Unidos era muito português. Agora não me sinto português. Sinto que faço parte de uma comunidade que faz diagnóstico de cancro, por exemplo. Tenho pena quando comparo as condições que têm de equipamento, mas não tenho nenhum complexo. Portugal deu um salto, está um país extraordinário. A nossa Medicina compara-se positivamente com a maior parte das medicinas europeias.

 

Uma vez disse-me que quando foi para a Noruega, de repente, percebeu que um dos problemas em Portugal era não saber fazer a pergunta certa. O que é isso de fazer a pergunta certa?

É distinguir o essencial do acessório.

 

Continua a ser um problema português?

É indiscutível. É o que se vê na televisão quando se vê comentário político. O número de vezes em que há interpretações sobre o que o Presidente disse, o que queria dizer... Isto não faz nenhum sentido num país anglo-saxónico.

A Noruega estava a passar de pobre para rica, mas continuava a ser muito frugal. Não é por acaso que eles dizem “you”, e eu tenho que dizer: “A avó importa-se?”. Em vez de dizer à senhora enfermeira: “You”, digo: “A senhora enfermeira importa-se de...”. As formas de comunicação em português traduzem uma ausência absoluta de sentido de foco e de eficiência.

 

E de equidade.

Conservamos uma sociedade classista, já não com as características do regime anterior, mas continua a ser uma sociedade que não simplifica. Se perguntar a um interno americano: “O que é que isto é?”, ele sabe quais são as coisas mais frequentes e as menos frequentes. A primeira coisa em que pensa é na mais frequente, e diz-me. Faço a mesma pergunta em Portugal e o nosso interno tem uma tendência enorme para misturar as coisas mais frequentes com as menos frequentes; e, como temos uma cultura muito retórica, e de influência da Universidade de Coimbra, temos tendência para pôr em primeiro lugar aquilo que é mais raro mas que revela sabedoria. Preferimos demonstrar que somos eruditos mas não acertar, do que ser eficientes.

 

Porque é que acha que é assim?

Porque a eficiência nunca foi recompensada. A erudição é recompensada.

A segunda coisa é o próprio acto de perguntar. Não temos tradição de perguntar. Em Portugal só se pergunta quando se sabe, que é uma coisa que não faz sentido. Gostamos de passar por eruditos.

 

E a pergunta pode revelar a nossa ignorância.

E o falhanço na nossa cultura é mortal. Os Estados Unidos são muito mais empreendedores, e todos os nórdicos, luteranos e calvinistas. Porque é tentativa e erro.

 

Nesses países, falhar não tem mal.

Tem é que se tentar. Tem que se perceber porque é que falhou e na vez seguinte não fazer tão mal. Somos pouco empreendedores. Primeiro porque andamos à procura do emprego. Depois porque o hands on nunca foi considerado uma coisa boa. Ir trabalhar à hora certa, uma coisa considerada normalíssima em sociedades que tiveram a Revolução Industrial, não é considerado entre nós uma coisa boa. O estatuto que deve existir é que o tipo não tem horário. Não há nenhuma sociedade organizada em que o pessoal da secretaria começa às horas que lhe dá na real gana.

 

Ninguém gosta de perder nada. Muito menos o estatuto. Temos uma expressão que traduz isto bem: “Perder nem a feijões”.

Sinto isso em mim. Odeio [perder]. Vivo de fazer perguntas. Se tiver de identificar aquilo que me tem mantido um velho no activo é o aprender, é a curiosidade.

 

Uma última pergunta, que é um retorno ao ponto de partida. Pedi-lhe uma mensagem de esperança. Se isto fosse um corpo, acreditaríamos que podemos magoar-nos muito no confronto com o muro, mas que não vamos morrer. Alguns morrerão, apesar de tudo. Há alguma coisa que possa dizer?

Os partidos viveram de criar e vender ilusões, e de nos endividar para o futuro. Isto é impossível nesta altura. Se tiver que identificar uma coisa positiva nesta crise é que os partidos políticos e os políticos já não podem continuar a ganhar eleições vendendo-nos uma ilusão que se verificou que não é sustentável. Pode ser um salto extraordinário. Temos que mudar substancialmente a representação partidária. Que não pode continuar a ser só as rapaziadas das concelhias e das distritais. Já ninguém aguenta. Outra coisa. Está a observar-se alguma reentrada da sociedade civil na vida portuguesa. Voltámos a ter algumas dádivas filantrópicas, pessoas que morrem e que nos deixam [montantes]. E pessoas que me escrevem a dizer que podem vir ajudar. As pessoas perceberam que é necessário proteger as instituições e as pessoas.

 

Esse é um novo paradigma de participação.

É. Sou o mais social-democrata que há, não tenho nada de neoliberal. Quero que o Estado seja eficiente, que proteja os mais frágeis, mas acho que não podemos passar a vida a pendurar-nos no Estado. Esta situação de crise vai obrigar-nos a repensar algumas coisas. Tenho a certeza de que vai forçar os países a mudar, e tenho observado atitudes [que revelam] um interesse pelo próximo.

 

Um maior comprometimento de cada um com a sua vida e com a vida daquele que lhe é próximo?

Isso. Tenho muita pena de os chineses serem vítimas de corrupção, mas não acho os chineses meus irmãos. Acho meus irmãos esta gente que confiou em mim. A crise tirou-nos algumas características megalómanas, e pode, porque nos obrigou à humildade do dia-a-dia, ajudar a que sejamos úteis aos nosso irmão. Não sou crente! O nosso problema é que não temos na política exemplos que sejam mobilizadores.

 

Que cheguem a horas, que sejam competentes e que se ocupem do seu irmão.

São muito self-centered. Foram feitos na retórica. O fazer não é valorizado.

Foi por fora, foi à bruta, e está a ser muito injusto do ponto de vista da distribuição interna, mas sinto no ar uma mudança positiva, de entreajuda.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

 

 

 

 

 

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