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Anabela Mota Ribeiro

Fernando Medina

08.12.13

Fernando Medina é um socratista no defeso? É um político ambicioso? O futuro do PS passa por ele? Foi secretário de Estado de Vieira da Silva, primeiro no Emprego, depois na Economia. Foi porta-voz do PS. O futuro do PS passa, indiscutivelmente, pela sua geração. A que cresceu em liberdade.

Licenciou-se em Economia no Porto, fez um mestrado em Sociologia Económica no ISEG. Foi assessor de António Guterres, em 2000. Foi dirigente associativo. Está para ser muitas coisas. É deputado do PS. 

  

Vou falar com um socratista no defeso?

[gargalhada] É um bom arranque.

 

Provocador.

Exactamente. Diria que sim, no sentido da convergência com as prioridades políticas que foram assumidas na governação do Partido Socialista, e que todos os dias surgem reforçadas como prioridades essenciais para o nosso desenvolvimento e para ter um modelo alternativo ao modelo de baixo salário. E não, no sentido personalista que a sua pergunta tem. Sempre tive, tenho, autonomia crítica de pensamento para não haver esse acantonamento.

 

Também posso perguntar de outra maneira: se estou a falar com o Fernando Medina, com o ex-secretário de Estado do Governo Sócrates, e se sente que tem neste PS, que não é aquele em que teve maior protagonismo, a liberdade para falar em nome próprio, apesar do seu estatuto de deputado.

A entrevista é com o Fernando Medina, deputado do PS, ex-membro do Governo do PS. Tenho um único chapéu, que sou eu, com esse passado. O PS é um. Está num ciclo diferente, mantém uma extraordinária capacidade para acolher a diversidade e para fazer o debate no seu seio. Sinto-me confortável neste espaço, onde sempre disse o que pensava.

 

Então pergunto ao Fernando Medina (e não ao partido) se seria possível fazer diferente do que vem sendo feito pelo Governo PSD, a despeito do vínculo ao memorando com a Troika que o PS assinou.

Há três coisas nucleares sobre gerir este programa de ajustamento que correspondem a erros que nos estão, e nos vão, sair muito caros. O primeiro dos quais é política externa. Esta é uma crise sistémica, não é uma crise nacional. É uma crise da construção da zona euro no seu fundamental, não é uma crise de dívida pública.

 

Dado isso por adquirido, sabemos também que nem todos os países têm a mesma dívida pública nem reagiram da mesma maneira ao embate da crise.    

Já lá vou. (Uma das características do tempo em que vivemos é que não podemos cair na simplificação de problemas complexos.) Política externa. Portugal assinou um acordo numa circunstância política dada, onde as correlações de forças a nível europeu eram as que eram, e não eram favoráveis a um melhor programa do que aquele que tivemos. Pelo contrário. As circunstâncias políticas eram de um exacerbamento do discurso moral sobre o sul da Europa, no qual Portugal está, e sobre um determinado caminho de saída da crise.

 

Discurso moral?

É o traço dominante, do norte virtuoso contra o sul cigarra (na expressão que alguém trouxe recentemente), e que marcou o desenho dos programas de ajustamento. Hoje o quadro é muito diferente, fruto da vitória de Hollande, mas, fundamentalmente, do alargamento da crise. O alargamento da crise a países como Espanha ou Itália obrigou a uma mudança do quadro europeu.

O que Portugal deve ter é uma atitude de aproveitar ao máximo todos os pontos de liberdade que conseguir dentro da negociação da política europeia, ao mesmo tempo que, dentro desse espaço, não se equivoca em que lado está.

 

Foi para si surpreendente (estou a perguntar se realmente o surpreendeu) o endurecimento das medidas de austeridade depois de Draghi e o BCE terem dado uma folga ao avançar com o novo programa de compra de dívida?

Não me surpreendeu. Essa é a crítica frontal que se pode fazer a este Governo, e que faço com clareza, sem ser o primeiro. Quando [Manuela] Ferreira Leite, na entrevista [à TVI], questiona: “O que é que se passa com as negociações? Eu teria ido bater o pé”; quando Maria João Rodrigues afirma que tem dúvidas sobre o modo como o Governo português se defendeu relativamente à situação europeia – isso resulta de uma convicção clara: o Governo português não teve nunca, desde o início, uma estratégia de procurar a melhoria do programa de ajustamento. Acha que é o correcto, que deve ser aplicado, porque isso expiará os nossos pecados. Ao longo do último ano assistimos a várias declinações, algumas particularmente infelizes, que espelham isto mesmo: a sintonia com o fundamental do programa – que isto é um problema de despesa, que é um problema de dívida, que é um problema de nível salarial na competitividade, e que temos de fazer o ajustamento neste caminho e desta forma.

 

Mais do que tudo, isto torna patente uma determinada estratégia? Um entendimento diferente do memorando?

[Revela] a existência de uma estratégia que, na minha opinião, é errada. E aqui voltamos à raiz do problema. Esta crise (não estou a escamotear os inúmeros problemas que a sociedade portuguesa tem, que a economia portuguesa tem) não tem isso na sua origem. Acho até surpreendente que uma parte das nossas elites (não só partidárias) vão repetindo à exaustão o problema da origem da crise e a sua solução não olhando para o que se passa na Europa toda.  

Dois países. Um já está intervencionado e o outro será uma questão de dias e de cosmética (sob a forma como se vai falar). Países que durante anos foram apontados como sendo exemplares na gestão das suas finanças públicas e do ponto de vista das reformas estruturais [tendo em vista a] competitividade. Falo da Irlanda e de Espanha. Encontraremos toneladas de relatórios, de FMI’s, UE’s, a elogiar todos os processos! E constatamos pelos indicadores objectivos que os níveis de dívida, no caso da pública, eram relativamente baixos.

 

Mas o país com que nos comparavam era a Grécia, e não a Irlanda e a Espanha. A percepção era a de que estávamos muito mais afundados.     

O que vivemos hoje nos países periféricos é uma realidade que decorre da mesma circunstância. Aderimos a uma moeda que foi percepcionada, porque tinha instrumentos próprios que o asseguravam aos mercados, como sendo um moeda sem risco. O que levou à convergência quase total das taxas de juro dentro dos vários estados soberanos. Se vir o que foi a evolução dos spreads desde a adesão ao euro até às vésperas da crise fica impressionada com a convergência. Convergência que aconteceu independentemente das evoluções das dívidas públicas dos países. A crise deflagra quando este mecanismo de seguro é quebrado.

As melhores pessoas para explicar isto são insuspeitas, porque não são nem portuguesas nem socialistas. George Soros, Martin Wolf do Financial Times. Quando se quebra o seguro depois da falência do Lehman Brothers; quando se percebe, porque [Angela] Merkel o diz, que afinal não há nenhum mecanismo de seguro e que cada país está entregue às suas responsabilidades... Isto começou por onde? Pelos bancos, pelo impacto da falência dos bancos. Seguidamente dá-se o estalar da crise grega. De 2009 para a frente assistimos a um recrudescer da crise, com tomadas de decisão ao nível do Conselho Europeu que... nem sei como qualificar; mas que não tinham em vista resolver a crise. Tudo isto vai acontecendo até à tomada de decisão recente do BCE – de credor de último recurso.

 

Posso inferir, a partir do que disse, que estão a tentar salvar o euro e o projecto europeu, e essa pessoa não é Angela Merkel? A chanceler alemã, com uma liderança firme, e que defende os interesses da Alemanha, pôs em risco todo o projecto europeu?

Julgo que pôs, que põe. Ainda é cedo para dizermos como vamos sair disto. Seguramente vamos sair pior. Muito pior.

 

Em que é que se traduz o “pior” e o “muito pior”?

Cresci numa época em que a Europa era vista como um grande espaço de liberdade e uma referência de desenvolvimento. Aquilo com que a minha geração e as seguintes vão ter de lidar é com o realinhamento do país face a uma realidade europeia fracturada entre os países do norte e os países do sul. Ainda não sabemos como é que é tudo isto se vai casar. Tudo está a acontecer a uma velocidade vertiginosa. Há quatro anos, quando a crise estourou, pensar em discutir o fim do euro, era absurdo. 

 

A falência do Lehman Brothers, primeira grande deflagração da crise, também seria impensável, não muito tempo antes.

É verdade. Mas uma parte importante da Economia viveu sempre de estudar as crises financeiras, o seu deflagrar e as suas respostas. Mas tínhamos uma expectativa diferente de como se resolveria. Achávamos que a Europa, quando chegasse a altura, agiria. A decisão do BCE vem em 2012. Não veio em 2009. Três anos de sangria até que viesse uma decisão de estabilização. Este tempo de resposta espelha a fractura norte-sul. A sangria foi nos países da periferia. Quando se falou dos primeiros fundos de resgate, Merkel não queria. A sua primeira resposta foi que era um programa americano, e não europeu. Poucas semanas depois estava a intervir nos seus bancos.

Vamos assistir nos próximos anos a uma recomposição desta Europa, que não sabemos como vai terminar. Vai ter um teste de fogo decisivo nos próximos meses. Muito do que se passar no futuro vai ter a ver com a forma como se lidar com a Grécia.

 

A intervenção do BCE faz, para já, ganhar tempo.

Não sabemos quanto, mas faz ganhar tempo, em relação à Itália e à Espanha. Ajuda naturalmente Portugal e a Irlanda. Mas não resolve o problema grego.

 

No Financial Times desta semana diz-se que é preciso que Portugal não se confunda com a Grécia. Durante meses deixámos de ouvir essa comparação (porque fomos o bom aluno de que fala o Governo); esse fantasma reapareceu?

Sou economista de formação. Tenho mais tendência para procurar na realidade económica do que nos feelings, nas imagens que o sistema vai criando sobre si próprio. Na base dessas percepções está a evolução dos indicadores económicos, e é isso que está em causa. Não seremos a Grécia se o programa funcionar, se for bem aplicado, e se a nossa situação for objectivamente diferente. Se nos aproximamos de uma situação em que a dívida pública chegará, pelas contas que agora são apresentadas, aos 124% do PIB..., estamos relativamente próximo da situação grega. Estamos num patamar diferente daquele em que esperávamos estar. 

 

Isso devolve-nos à questão inicial. O que é que era possível fazer de diferente. Segundo ponto.

O segundo ponto tem a ver com a atitude de prudência ou radicalismo na execução do programa. O programa prescrevia-nos duas coisas dificílimas. Pressupunha um contexto em que a economia internacional recupera, e uma redução dos níveis de dívida do sector privado em simultâneo com o sector público. Precisávamos de ter uma abordagem o mais cautelosa possível. Sabendo que o programa ia ter impacto recessivo na economia – estava inscrita no programa essa projecção – era tentar que ele fosse o menor possível. E tentar preservar ao máximo a economia como forma de preservar ao máximo o sistema social (que está assente na economia, no emprego, nos salários). Tivemos do Governo uma abordagem inversa. O objectivo era passar de um défice de 7,5 para 4,5 e com probabilidade o défice ficará nos 6,5. Foi feita uma terapia de choque ad initium à espera que tudo funcionasse quando nenhuma racionalidade apontava nesse sentido. Julgo que este é o grande erro na condução da política económica.

 

É isso que desamarra o PS da assinatura do memorando? Durante meses, mesmo estando na oposição, a sua acção estava tolhida pela assinatura. A partir de que momento o PS se pôde desamarrar?

O PS não se desamarra disso. Nem se está a desamarrar nem se pode desamarrar. Os que dizem (vou falar de algumas propostas políticas da extrema-esquerda) que temos uma alternativa, que é reestruturar e rasgar com a Troika, [incorrem] numa falsidade. Isto é não ter uma solução para os portugueses. Até a um regresso pleno e auto-suficiente aos mercados, que, na actual conjuntura, me parece extremamente difícil, incerto...

 

Em 2013 é impossível?

Pode haver formas de entrada mais graduais, e com a intervenção do BCE vão melhorar as condições de acesso ao mercado da dívida. Agora, que necessitamos de uma parceria com a dita Troika, é claro.

 

Então o caminho é a renegociação?

O caminho é ajustar em permanência o memorando aos interesses do país e às reais capacidades de ele ser bem executado e sucedido. António José Seguro tem sido irrepreensível na forma como se tem referido a isso. Estamos comprometidos com o memorando que assinámos, e não é só uma questão de honrar a assinatura. É ter a consciência de que necessitamos do apoio das instituições internacionais durante este tempo que estamos a viver. Vamos ver durante quanto tempo precisamos mais. Espero que seja o mais curto possível. Coisa diferente: a forma como o memorando é executado. Começa-se a ganhar hoje a consciência de que as coisas não estão a correr bem e a funcionar. É como a frase que Bill Clinton dizia na convenção democrática: o problema da estratégia dos republicanos é um problema com a aritmética. Aqui, também é um problema com a aritmética. Numa economia em queda, é impossível que o rácio da dívida pública não dispare.

 

O PS perfila-se como uma alternativa, no imediato, para resolver esse problema com a aritmética? Clara Ferreira Alves escrevia no Expresso da semana passada: “Se o PS existisse, este Governo já não existia”. É um modo de dizer como o PS tem sido (ou não tem sido) oposição.

A resolução do problema com a aritmética: antes do PS, é o país que está confrontado com ela. É a esse debate que estamos a assistir. Ou temos um plano de estabilização económica, de modo a estancar uma situação de bola de neve que só degradará os indicadores – todos – ou vamos para a estratégia que o Governo apresentou: siga em frente, acelerar e em força. Temos assistido a um debate intenso sobre a TSU e a crise política [que daí resultou]; ninguém reparou com tanta atenção no resto da conferência de imprensa onde foram apresentadas as linhas de orientação do orçamento.

 

Acredita que este Governo tem condições para acabar a legislatura?

Depende muito das escolhas em matéria de política económica neste OE e da capacidade para fazer a inversão. Se a estratégia for a de prosseguir da mesma forma, vamos ter uma situação de crise política, e mais cedo do que mais tarde. Não é possível pedir mais um sacrifício que não se demonstre que não tem qualquer tipo de resultado. 

 

Onde é que cortaria especificamente na despesa, sem cortar na despesa social?

Deixe-me recolocar a questão: nós não temos um problema de despesa. Nem Portugal tem, à entrada da crise e agora, indicadores de nível despesa pública que sejam maiores do que a generalidade dos países europeus.

 

Está consciente que se eu pusesse em título: “Nós não temos um problema de despesa”, pareceria bombástico.

Percebo-o no tempo em que vivemos. Portugal tem em 2011 um nível de despesa pública no PIB de 48,9%. A média da União a 27 é 49,1% e da Zona Euro é 49, 4%. (Fonte: Eurostat). Hoje fala-se da despesa pública como um mal. Como se toda a despesa pública fosse desperdício. Gordura. Grande parte da despesa pública está concentrada em pagamentos de pensões, funcionalismo público – estão aqui 65, 70% do bolo. Lembro-me bem de Eduardo Catroga dizer: “Temos de cortar no Estado gordo e paralelo”. Criou-se esta ideia mirífica de que há uma estratégia orçamental alternativa – a de cortar no desperdício.

 

Quem o ouve, parece que não há desperdício...

Claro que há. Mas algum político que lhe diga que tem uma estratégia para fazer redução de despesa assente no combate ao desperdício e à gordura, ou é ignorante ou está a mentir. O Governo cometeu esse pecado. Porque é que vê uma contradição tão grande entre o que o Governo prometeu e o que fez? Porque o que prometeu não era possível ser feito.  

 

Outra coisa é o problema da dívida.

É evidente que temos uma crise de endividamento global que atingiu os níveis que atingiu pela forma como o euro foi construído. Em moeda própria, nunca Portugal teria os níveis que tem. O endividamento é muito maior no sector privado que no público. Dois terços da dívida externa é privada. Está nos bancos estrangeiros que detêm os títulos sobre as hipotecas das nossas casas, empresas portuguesas e uma parte no Estado. 

 

Recuemos ao socratismo. A narrativa que se ouve nas ruas, nos cafés, nos taxis é a de que os bancos e o capital são poupados e os sacrifícios recaem sobre o cidadão comum. Isto começou com os casos BPN e BPP, com a intervenção nesses bancos?

É um discurso clássico da extrema-esquerda portuguesa. O PCP fê-lo antes do BPN e há-de fazê-lo depois de qualquer crise.

 

Pergunto de outro modo: porque é que acha que se intervencionou o BPN e o BPP? Porque é que não os deixaram falir?

É uma decisão muito controversa. Só tenho uma boa explicação: o momento. Não tomei a decisão, não participei na decisão, não fiz parte da equipa. Por isso estou à vontade para falar sobre esse tema.

 

Até para dizer que discorda?

Neste caso não vou dizer. Não consigo ter esse juízo crítico. A dificuldade de quem tem de tomar decisões é que as decisões não se tomam no abstracto. Nós, hoje, tomaríamos a decisão hoje. Mas a decisão teve de ser tomada num momento em que as televisões abriam com a falência do Northern Rock em Inglaterra. A questão avaliada foi: no meio da tempestade, vamos conseguir explicar às pessoas que isto é um caso de polícia e não é um caso de solvência do sistema financeiro? E se não conseguirmos, vamos ter uma corrida aos bancos? Foi esse o risco [ponderado] por quem tomou a decisão. Respeito muito quem tem de tomar as decisões difíceis nos momentos em que elas se colocam.

 

Nessa altura já tinha falido o Lehman Brothers.

E sabe do intenso debate que ainda hoje existe sobre as consequências de se ter deixado falir o Lehman Brothers.

 

Como se escrevia no Negócios na altura, num país como os EUA deixa-se falir um gigante como o Lehman Brothers. Num país como Portugal, invocando o perigo de risco sistémico, fazem-se intervenções em bancos onde tudo cheira mal.

Não acompanho essa crítica relativamente à decisão da nacionalização. A decisão tomada foi de prudência sobre a estabilidade do sistema financeiro. Mas há algo que posso dizer-lhe sobre o BPN: depois de tomada a decisão [de nacionalizar], a situação do BPN tinha de ter sido resolvida mais rapidamente. Muito tempo, muitos anos para um dossier destes não ser fechado. Sei as razões da opção que foi tomada: uma tentativa de privatização do banco e de uma valorização máxima dos activos que o banco tinha. Mas o dossier devia ter sido encerrado com mais rapidez, qualquer que fosse o cenário. Esta é a crítica que posso fazer. Uma crítica à nacionalização, não consigo fazer. Não consigo porque não sabemos o que teria acontecido no cenário alternativo. Os riscos eram muito elevados.

 

Não sei se já passou o tempo suficiente para fazer a exumação do cadáver do socratismo, ou se está disposto a fazê-lo. Em todo o caso, queria perguntar-lhe se a nacionalização do BPP e do BPN é verdadeiramente o começo do fim.

[pequeno silêncio]

 

E estou a dar de barato que o começo do fim não foi o Freeport e o caso da licenciatura de Sócrates, os processos paralelos que macularam a imagem do PM.

Primeiro, uma resposta à provocação do cadáver do socratismo: o balanço e a avaliação do que foram os mandatos de José Sócrates deve ser feita e tem de ser feita. Por todos. Sobre as linhas fundamentais do que foi o projecto político, acho que estão correctas. Com decisões controversas, erradas (não há nenhum Governo que não as cometa). O que precipitou a situação [de crise] política em relação a Sócrates foi a emergência da crise internacional (quantos governos caíram na Europa por causa da crise? Faço a pergunta ao contrário: mas há algum que se tenha mantido?). 

 

Viveu a situação por dentro. Era secretário de Estado e já era porta-voz do PS no contagem decrescente para o fim. Sócrates foi acusado de estar em negação. A Troika chegou com o chumbo do PEC IV, mas também quando os banqueiros disseram que estavam descapitalizados e precisavam de ajuda. A situação era inevitável e o pedido de ajuda deveria ter acontecido mais cedo?

Nesse ponto Sócrates foi muito injustiçado. Por todos os lados. Desde o momento em que a crise estalou, houve duas percepções: a negação da Europa relativamente à gestão da crise (foi a estratégia do “cada um que trate de si”); e Sócrates teve a consciência clara das dificuldades do quadro europeu...

 

Traduzido na célebre frase: “O mundo mudou”?

Não. Isso foi mais tarde. Os governos invertem, entre 2009 e 2010, de políticas expansionistas para políticas contraccionistas. Temos decisões do Conselho Europeu a exortar os países a estimular o investimento público para, meses depois, [aconselharem] políticas de contenção e rigor. A expressão “o mundo mudou” encaixa-se aí. Eu referia-me ao período anterior. Sócrates tentou até à última ter uma solução diferente da que conhecíamos na Grécia. Foi essa a luta do PEC IV. Era a forma de o Estado dizer: “Eu comprometo-me com isto, desta forma, e evito um resgate completo”. À espera de decisões a nível europeu – a tão esperada decisão do BCE, que aparece dois anos depois – ou da flexibilização dos mecanismos do fundo de estabilização. Foi nisso que Sócrates jogou, até ao limite.

 

Então não foram os banqueiros a exigir que se fizesse o pedido de ajuda? A discussão era: quem manda realmente? Os banqueiros ou os políticos?

Não, não, não. Sócrates tinha a noção de que o chumbo do PEC IV levava ao pedido de intervenção. Era uma decorrência. Conversámos sobre isso. Que lutou por uma alternativa diferente, lutou. Foi pena não ter sido bem sucedido. Ou não o deixarem ser bem sucedido.

 

É verdade que os bancos estavam sobrealavancados em relação às regras de Basileia? Tinham-vos feito saber isso? Alguém os deixou sobreendividarem-se.

Pergunta-me se devia ter havido uma intervenção prévia sobre diminuir rácios de endividamento dos bancos? Ao longo da última década? Que eu saiba, não. Está agora a ser feito num clima recessivo. Quando ouve dizer que as empresas não têm crédito, percebe de onde é que o problema vem.

A dificuldade era continuar o processo que tinha sustentado a situação financeira; isto é, os bancos fazerem aquisição de dívida pública e fazerem um refinanciamento no BCE. Hoje, essa é a realidade. A percentagem de dívida de curto prazo detida na mão de estrangeiros é residual. Ela só está num sítio: na banca nacional. Que continua a ter uma importância decisiva na detenção da dívida pública portuguesa.

A estratégia então desenhada a nível europeu era: são os bancos a comprar a dívida, que depois colocam no BCE, como forma de evitar e contornar o financiamento directo do Banco Central. Faça-se.

 

Tem 39 anos. Tinha – não sei se continua a achar que tem – um futuro brilhante à sua frente. É a sua geração que pode fazer disto uma coisa diferente? Sente esse peso? Sente que o seu momento ainda vai chegar? Muitas perguntas numa só, mas o foco é o da geração, do que se pode ainda fazer.   

Há dois aspectos críticos que vão marcar o quadro [futuro]. O primeiro vai ser a nossa relação com a Europa. A Europa vai conseguir retomar o papel simbólico de liberdade, desenvolvimento, esperança, que foi posto em causa? Se não conseguir, como é que Portugal se reposiciona? No fundo, é o desafio que o Prof. Adriano Moreira lançou há dias, da redefinição do que é um conceito de interesse estratégico nacional num quadro diferente daquele em que passámos os últimos 30 anos. Não posso dizer que esteja optimista.

O segundo aspecto cruza com aquilo de que há pouco falava: com o processo de desenvolvimento do país. Se há coisa que se impõe às próximas gerações é ter uma ideia clara do que são os pontos de bloqueio no país.

 

O principal está nos recursos humanos? Estou a falar com um ex-secretário de Estado do Emprego, que seguiu depois com o ministro Vieira da Silva para a Economia.

Competimos num contexto aberto, em que há [mão de obra] muito mais barata, que não queremos nem vamos voltar a ser. Mas ainda não temos a quantidade e a qualidade dos factores críticos que nos permitem estar no pelotão da frente. O erro crasso – e em algumas áreas quase criminoso – é abdicar de uma política de qualificação dos recursos humanos. Sabe quantas pessoas trabalham nas empresas portuguesas que têm o ensino secundário, bacharelato, licenciatura, mestrado, doutoramento? Tudo somado, é um milhão e meio. O país tem um problema de produtividade? Tem. Mas é um problema que reside essencialmente nesta fractura. A percentagem de população na agricultura é o dobro da percentagem que têm os países desenvolvidos. Se queremos fugir do modelo de desenvolvimento assente em mão de obra barata, fazemos isso com que base? Se não há política a, permanentemente, ampliar essa base, para tentar recuperar século e meio de atraso, não teremos [hipótese]. Há uma clivagem na sociedade portuguesa, até cognitiva. Temos um Portugal moderno, avançado, desenvolvido, que compete, que ganha lá fora, no sector empresarial, artístico, científico. Esse Portugal moderno olha muitas vezes para si e tenta descobrir porque é que o país não cresce, não funciona. O grande problema não está nesse Portugal. O problema é que esse Portugal moderno é muito pequeno. Por cada um que completou o ensino secundário completo, dois não completaram. Tem ideia que um miúdo de 15 anos, em média, ao entrar no décimo ano, está a ultrapassar a educação dos seus pais?

 

Com essa idade, desta geração, não.

Pois. Ter essa noção, leva-nos a um conjunto de políticas diferentes. Depois, tendo a consciência de que é essa a nossa realidade – a da fractura – como é que se lida com isto de forma a assegurar a coesão social e a igualdade de oportunidades?

 

Vamos repegar o segundo dos pontos de que falou inicialmente, quando lhe perguntei o que faria de diferente, antes de apresentar o terceiro.

Este fim de semana lia os jornais e as opiniões resumiam-se a isto: precisamos de mais austeridade porque não há outro caminho. Olho para os números e pergunto: “Como é possível propor isto?” Claro que há diferenças entre a direita e a esquerda, claro que há! É preciso sobretudo fazer a estabilização do PIB. Não digo crescimento. Não digo porque temos de ser realistas face aos recursos que temos à disposição.

 

E porque a dívida é para pagar?

Só teremos condições para a pagar quando tivermos uma economia a crescer, ou, pelo menos, estabilizada. Passámos de indicadores de dívida, no início do programa, que não chegavam a 110% do PIB e vão em 124%. A nossa dívida está a crescer.

 

Que é que, na sua opinião, aconteceria se não pagássemos a dívida? Cheia um pouco a conversa do Syriza na Grécia, eu sei. Mas levemos o exercício até às últimas consequências.

Acho que essa questão tem de ser posta com clareza. Se me perguntar como é que se paga uma dívida de 160% do PIB, eu digo: “Não paga”. Se estiver em recessão, não paga. Espero que tenhamos condições para evitar uma reestruturação da dívida. Ou então que, acontecendo, se dê no quadro de um processo ordenado e consensualizado. Um processo unilateral de reestruturação da dívida – de ameaça: não pagamos – é desastroso. 

 

Consegue resumir o terceiro ponto?

O terceiro ponto é a coesão. É irmos juntos nisto. Como comunidade. Evitar fracturas de natureza política, social. Disse este conjunto de coisas ao ministro das Finanças na primeira audição sobre o programa da Troika que tivemos. Disse-lhe: “A questão essencial é combater os quatro riscos à execução do programa. O risco da economia, da coesão social, política europeia e consenso político.” Se tivesse havido essa abordagem, muitas coisas ao longo deste ano seriam diferentes. No meio disto, precisávamos de colocar o problema da privatização das Águas de Portugal ou da RTP? Precisávamos de duplicar um programa de austeridade como foi feito? Precisávamos de ter introduzido uma fractura do ponto de vista social como aquela que é feita com o corte dos subsídios? Era necessário ter entrado para uma aventura política chamada TSU? E uma parte disto foi colocado exclusivamente por uma questão ideológica (o papel do Estado, o peso do Estado).

 

Não estava à espera de o ouvir dizer que é um animal feroz. Não é o seu estilo. Mas foi assim que Sócrates se apresentou numa entrevista, antes de ser PM. Estou a voltar ao ponto da partida (o de ser um socratista no defeso) para lhe perguntar se tem a ambição de uma carreira política?

Não. Se gosto da intervenção na vida pública, se isso me realiza? Sim. Se a política pública é o ponto central da minha motivação e aplicação, é. O exercício de cargos políticos e públicos: vejo-os com muita liberdade e autonomia. Devemos ter o desprendimento de não fazer da vida política uma carreira, uma profissão. A partir daí perde-se a possibilidade, até, de fazer uma entrevista como esta e de dizer o que se pensa.

  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012