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Anabela Mota Ribeiro

Judite de Sousa

10.12.13

Aos 18 anos, o currículo de Judite de Sousa tinha duas linhas. Aos 51, não seria excessivo se dissesse senhora-televisão. Em Março de 2010 protagonizou uma transferência televisiva inesperada. Trinta e dois anos depois, trocou a RTP pela TVI. O começo de uma vida nova. Eis o retrato de uma mulher que foi jornalista por acaso.

Não vive obcecada com o ecrã. “Como procurei acumular competências televisivas nas mais diversas disciplinas do jornalismo, que não passam exclusivamente pelo ecrã, encaro o futuro com tranquilidade.” No dia em que os encontrámos, Judite de Sousa exercitaria uma competência televisiva que nunca abandonou: a reportagem. Eusébio completaria 70 anos no dia seguinte, e Judite preparava-se para ir ao seu encontro, numa taberna onde almoça diariamente.

Encontrámo-nos no hotel Ritz. Usava um vestido de seda laranja e um casaco de cor contrastante revestido de pedrarias. Longe vão os tempos em que precisava de um blazer para ser credível – a expressão foi usada por ela não há muitos anos. Assume uma enorme disponibilidade para a conversa. Mede bem o que diz, diz coisas que nunca disse, diz as coisas que quer dizer.

O momento em que José Sócrates se referiu ao seu ordenado, superior ao dele, primeiro-ministro, foi há uma eternidade, na encarnação RTP. Há quase um ano que está na TVI. É directora-adjunta de Informação, além de jornalista que faz o que é preciso fazer. Para se ter uma noção do poder dela basta lembrar a apresentação do seu livro A Vida é um Minuto – O Poder da Imagem, onde fala da relação entre o jornalismo e a política. O poder político, financeiro e social compareceu.

Licenciou-se em História. É casada com o presidente da Câmara de Sintra, o social-democrata Fernando Seara. Tem um filho do primeiro casamento.

 

 

Comecemos pelos seus 50 anos. O que é que representou fazer 50 anos?

Já fiz 51. Custou-me horrores quando fiz 30 anos. Foi um período da minha vida cheio de dúvidas, de incertezas. Correspondeu à fase da separação do pai do meu filho, estava de malas feitas para Lisboa. Mas fazer 40 anos não me custou nada e fazer 50 também não. Sinto-me lindamente.

 

Uma grande mudança aconteceu na sua vida pelos 50.

Foi aos 50 anos como podia ter sido aos 49, aos 48. Não há qualquer tipo de coincidência no facto de eu ter decidido deixar a RTP aos 50 anos de idade.

 

O que fica claro é que é um ciclo, um ciclo muito longo, que se encerra com a saída da RTP. E uma disponibilidade para começar de novo numa fase em que as coisas tendem à estabilização.

Tem razão. Assinei contrato na última semana de Março [de 2010], Portugal é resgatado [pelo FMI e UE] cerca de um mês depois. Estou convencida de que, se a mudança tivesse decorrido algumas semanas mais tarde, a PRISA e a Media Capital não me iriam contratar. As condições do país alteraram-se significativamente, as condições das empresas alteraram-se dramaticamente. Mudei na altura certa, em função da minha realidade pessoal e da própria realidade do país e das empresas.

 

Isso ocorreu-lhe quando estava em negociações? A ideia de um resgate já pairava há algumas semanas.

Quando estou em negociações, o resgate é uma coisa de que se fala em surdina, mas nenhum responsável político ousava verbalizar o problema. A informação da TVI mudou muito; o elemento que relevo, fundamental na percepção objectiva dessa mudança, foi o facto de o pedido de ajuda financeira que Portugal foi obrigado a fazer ter passado pela informação da TVI.

 

Refere-se às entrevistas aos presidentes dos principais bancos?

Muitas pessoas não perceberam por que é que andava a entrevistar banqueiros todos os dias. A verdade é que as entrevistas foram feitas numa segunda, numa terça, numa quarta e numa quinta; 48 horas depois o primeiro-ministro estava a pedir ajuda financeira. No dia 31 de Março entrevistei, no Terreiro do Paço, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e pus-lhe a questão do pedido de resgate. Respondeu que não. No dia 4 de Abril, a primeira entrevista é com Carlos Santos Ferreira, que diz, de uma forma explícita, que é preciso pedir ajuda externa. No dia seguinte foi Ricardo Espírito Santo Salgado.

 

A ideia de fazer as quatro entrevistas foi uma espécie de cheque-mate à chegada? Um modo de dizer que era capaz de mobilizar quatro dos homens mais poderosos do país e intervir na cena política portuguesa?

Foi. Foi intencional. Naquela semana em que estava em casa, à espera que chegasse o dia 1 de Abril, pensei muito sobre o que estava a acontecer no país. O dinheiro estava a escassear, e quando o dinheiro escasseia pensa-se no ministro das Finanças e nos homens que têm dinheiro para sustentar a economia. Pus-me ao telefone. Falei com a assessora de imprensa do ministro Teixeira dos Santos e depois falei com os homens do BCP, do BES, do Totta Santander e do BPI. E fiquei à espera das respostas.

 

Contacta os assessores de imprensa? Não pega no telefone para falar directamente com Fernando Ulrich?

Com alguns, trato directamente. Com o Fernando Ulrich falo directamente; talvez por ter sido jornalista, há um tipo de relação diferente. Mas não falo directamente com o Ricardo Salgado, passo sempre pelo Paulo Padrão [assessor].

As repostas surgiram logo no dia seguinte. Só mais tarde vim a perceber que aproveitaram o meu convite para acertar uma posição conjunta de forma a fazer um ultimato a José Sócrates. Acabei por, com aquelas entrevistas, fazer parte de uma narrativa que foi meticulosamente preparada pelos banqueiros.

 

Do ponto de vista da satisfação pessoal, era um modo de dizer à PRISA: “Tomem lá, eu valho isto!”?

Eles já sabiam, se não soubessem é porque andavam distraídos. É essa diferença que realmente faço. O Presidente da República deu a primeira entrevista desde que foi reeleito à TVI, há cerca de dois meses. O ministro das Finanças deu a primeira entrevista à TVI, bem como o ministro da Saúde.

 

Diz que deu à TVI por humildade e simpatia pelos colegas? Deram-lhe a entrevista a si. Diria o quê, se estivesse na RTP?

Se estivesse na RTP seria uma entrevista à Grande Entrevista da Judite de Sousa. Mas não quero ser pretensiosa e prefiro que sejam os leitores da sua entrevista a tirar as conclusões. O meu nome conta, como é óbvio, faço isto há muitos anos.

 

Explique-me o desejo de mudar. De certeza que teve inúmeros convites ao longo da sua carreira.

Não tive, está enganada. Não faço parte desse grupo de pessoas que diz que está sempre a ser convidada para isto ou para aquilo. Convite, tive um, feito há dez, 12 anos, pelo José Eduardo Moniz, numa altura em que éramos muito próximos. As pessoas sempre olharam para mim com respeito, mas pensando: “Ganha bem, tem estatuto, faz um programa de referência. Por que é que vai mudar?”. Aquilo que comecei a sentir foi uma vontade íntima de mudança.

 

Que radica onde?

Chegamos a uma fase dos nossos percursos em que colocamos interrogações sobre a nossa vida, sobre o nosso devir. Muitas vezes, quando essas interrogações se colocam a nível pessoal surgem as separações ou os divórcios. A mim, esse tipo de interrogação colocou-se a nível profissional. Tinha chegado ao topo na RTP e percebi que a empresa não tinha mais nada para me dar, nomeadamente ao nível da estrutura. Sentia vontade de partir para uma nova vida.

 

Como quem se casa de novo e vai constituir uma nova família.

Sim. Encarar novos projectos, conhecer novas pessoas, fazer coisas que na RTP já não tinha espaço para fazer, e na TVI tenho. Não me apetecia acabar a minha carreira e dizer a mim própria: “Comecei a trabalhar na RTP com 18 anos, tenho 65 e vou-me reformar estando na RTP”. É uma coisa de que me orgulho, de ter tido a coragem de mudar aos 50 anos de idade.

 

Qual era o risco, verdadeiramente?

Havia muitos riscos. Na RTP tinha uma posição consolidada do ponto de vista profissional, fazia um programa de referência na televisão portuguesa. Tinha um bom salário para a média da empresa, já não falando para a média do país. Era directora-adjunta da informação. O que é que queria mais? Não queria mais nada, podia continuar por mais dez, 15 anos naquele registo. Quis arriscar no sentido de me testar a mim própria, deixar a minha zona de conforto. Vamos ver se consigo ser tão feliz e eficaz profissionalmente na TVI como fui na RTP.

Estava claro, no momento da negociação, que não iria ter um programa de entrevista autónomo em grelha. Iria ter carta branca para fazer todas as entrevistas que quisesse, mas dentro do jornal das 20 horas.

 

Não queria transplantar aquilo que tinha sido a sua imagem de marca?

Não estava nos planos da empresa abrir espaço em grelha para um programa de entrevista. Não tendo um programa autónomo, as pessoas com quem todas as semanas conto para serem entrevistadas por mim poderiam dizer: “Ó Judite, tenha paciência mas não quero ir ao jornal das oito da TVI, antes quero ir ao programa X ou ao programa Y, da RTP ou da SIC”. Corri este risco. Ao fim destes nove meses, para felicidade minha, nunca ninguém me disse que não. O outro risco era trabalhar numa estação com o perfil editorial da TVI, muito diferente do da RTP.

 

Isso era desafiante para si? Tem que ver com a relação com José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes, que imprimiram no canal uma marca editorial da qual divergiu, quer a título pessoal quer a título profissional?

Nunca divergi porque nunca foi a minha linha. Em termos pessoais começou a haver um afastamento. Não se pode ver a questão nesses termos. Quem queria introduzir alterações no posicionamento da estação não era eu nem o José Alberto de Carvalho. Quem sentia que existia um problema de credibilidade na estação eram os accionistas espanhóis e portugueses da Media Capital; por isso é que vieram contratar pessoas que, pela avaliação e pelos estudos de mercado que fizeram, correspondiam a esse perfil. Disse que iria para a TVI fazer o jornalismo que sempre fiz, e no qual acredito piamente.

 

Não é um acerto de contas? Estou a perguntar pelo gozo íntimo de estar naquela casa, que tinha sido dirigida por dois ex-amigos, e que tinha uma marca de informação diferente da sua.

De forma alguma. Não há qualquer tipo de ressentimento. Nunca permiti que a esfera pessoal e a esfera profissional se contaminassem uma à outra. Obviamente que me dá muita satisfação criar valor para a empresa, colocar em antena todas as semanas pessoas que durante anos não queriam lá ir. Esse passado não é o meu passado, não quero ter nada a ver com isso, essa agenda não é a minha agenda.

 

Apesar de tentar que não exista qualquer contaminação entre as relações pessoais e as profissionais, o convite que recusou foi o início do fim da relação com Moniz e Moura Guedes?

Talvez. Na altura não podia aceitar o convite, estava a começar a Grande Entrevista, estava a construir aquele projecto.

 

Estava a construir o seu espaço autonomamente? Era a protégée de Moniz. Foi ele que a convidou a vir para Lisboa.

Tive oportunidades profissionais ao longo da vida, mas lutei muito para as conseguir, nunca nada me foi dado. As grandes oportunidades que tive na RTP não aconteceram na direcção do José Eduardo Moniz. Estive na Bósnia, no Ruanda, no Zaire, em Hong Kong e em Macau quando foram as transferências; são trabalhos que relevo e que aconteceram nas direcções do Manuel Rocha e do Joaquim Furtado. A minha vinda para Lisboa é em 1991, o Zé Eduardo sai da RTP três anos depois.

 

Quando é que sentiu, apesar de Moniz não ser seu chefe directo, que não precisava da aprovação dele?

Nunca precisei dessa aprovação. Há um grande desfasamento entre a realidade e a percepção da realidade – é como a alegoria da caverna do Platão.

 

Nunca aconteceu acabar uma entrevista e telefonar-lhe a perguntar se correu bem?

Não, nunca aconteceu.

 

Quem é essa pessoa a quem fala, a perguntar se correu bem?

É o meu marido. É mesmo só ao meu marido. Na RTP havia uma pessoa a quem eu perguntava, também, o meu maior amigo na RTP, actual director-adjunto de informação, o Vítor Gonçalves.

 

Quando é que começou a ter confiança em si?

Sempre tive confiança em mim. Apesar do meu aspecto frágil, de alguma timidez, profissionalmente sou muito segura de mim. Sei bem o que é a terra firme. Não sou uma deslumbrada, sou muito crítica, exigente comigo própria. Tenho feito algumas coisas bem conseguidas mas também tenho feito muitas asneiras.

 

Essa segurança é uma construção. E voltamos à miúda dos 18 anos...

Aos 18 anos não se é nada. Eu era uma jovem que começou a ser jornalista por acaso, como poderia ter sido outra coisa qualquer.

 

As coisas foram acontecendo. Sempre dei tudo o que tinha e o que não tinha para que as coisas resultassem. Quando ao fim de meses, de anos de trabalho as coisas vão resultando, consegue-se afirmar a diferença e começa-se a construir uma imagem própria. Vai-se delimitando o nosso espaço. Não há aqui uma estratégia definida. Deu-se a circunstância de ver cada desafio profissional como o último da minha vida. Ainda hoje sou assim.

 

Quando olha para o seu percurso e para quem é, o que é que lhe deixa esse sentimento de urgência, que determina essa entrega?

Sempre me realizei muito através do trabalho. Desse ponto de vista sou marxista [riso]. Encontro no trabalho uma esfera de afirmação e de realização pessoal que se confundem. Deixei cair muita coisa ao longo da vida. Ao nível dos afectos, das relações com os outros, das minhas opções como mulher.

 

É uma coisa de que raramente as pessoas de sucesso falam: do que tiveram de prescindir para estarem onde estão. Pode concretizar?

Muitas vezes, o meu filho, pequenino, foi às consultas de pediatria com as empregadas, e não com a mãe. Não tive mais filhos, podia ter tido. Ter mais tempo para mim própria. Só recentemente é que comecei a conceder-me tempo. Durante anos não tive tempo de olhar para mim.

 

Durante anos foi uma espécie de patinho feio que jogava tudo noutro tabuleiro, o da realização profissional?

Não, mas tenho noção de que sempre vivi muito focada na carreira. Curiosamente, desde que estou na TVI, e apesar de toda a gente dizer que trabalho muito, encaro o trabalho com mais distensão.

 

Se calhar porque já conseguiu.

Não. Quando diz que já consegui está a partir do princípio que uma pessoa consegue, e que a partir daí já não entra em declínio.

 

O seu fantasma é o do declínio?

Não tenho fantasma nenhum.

 

Aquele contra o qual exercita o músculo todos os dias.

Fazer televisão é como andar de bicicleta: tem que se estar sempre a pedalar. Se se deixa de pedalar pára-se, e se se pára pode-se cair. O meu entendimento sobre o fazer televisão é este. Não quero cair, quero continuar a pedalar. Mas não é por uma questão de notoriedade. É por querer continuar a dar cartas do ponto de vista profissional. É a mesma coisa que saber envelhecer bem.

Saber manter em televisão implica um grande exercício de humildade. Implica que aos 50 anos de idade não se tenha problema algum em sair às seis da manhã para ir fazer reportagem a Matosinhos, a casa dos pais do Domingos Paciência.

 

É fácil cair?

Para nos mantermos bem profissionalmente, e como players importantes no mercado, temos que saber gerir as nossas carreiras, com inteligência e com bom senso. Isso passa por não nos deslumbrarmos com aquilo que pensamos de nós próprios, nem com aquilo que os outros dizem ou pensam, ou escrevem sobre nós. Manter uma grande relação com o terreno. Continuar a fazer reportagem a vida inteira. Vai chegar um momento em que vou estar sem cara para fazer entrevistas ou para apresentar jornais. A realidade europeia não é como a norte-americana, não comporta uma Barbara Walters, com 80 anos, que continua a fazer programas em prime time. Espero terminar a minha carreira como o Fernando Pessa, com muita dignidade, contando histórias.

 

É evidente na maneira como está no ecrã uma assunção da feminilidade, um uso de jóias, um carácter festivo que não tinha.

Quando vejo as minhas imagens dos anos 90 só me dá vontade de rir [riso]. Aqueles casacos com enchumaços, o cabelo horrível. Nunca tive ninguém que me dissesse que ficava mais bonita loira do que morena, que me ficam melhor as cores claras do que as escuras. Quem mudou a minha cara foi a Cristina Gomes, que é uma das melhores maquilhadoras do país, para mim a melhor. A Marina Cruz foi determinante na alteração do meu visual em termos de cabelo.

 

Quem era antes da televisão? Vamos atrás, a si e às suas circunstâncias, para perceber como veio dar a esse sítio.

Esta Judite de Sousa que conhecemos nasce no Porto. Cresce com a mãe, com as tias maternas e com a avó materna. Cresce sem pai porque os pais nunca foram casados. Faz o ciclo preparatório na Escola Pêro Vaz de Caminha e o liceu no Carolina Michaëlis. Fui sempre marrona [riso]. Aos 18 anos, em razão das dificuldades financeiras da família, e das suas próprias, precisa de arranjar um emprego. O jornal que se lia na minha casa era o Jornal de Notícias, que a minha mãe comprava religiosamente aos sábados e aos domingos. Sempre me interessei pelas notícias, não sabendo o que era o jornalismo. E via muita televisão, a RTP, claro. Adorava ver os Festivais da Canção, deliciava-me com as lantejoulas da Alice Cruz, com os vestidos da Ana Zanatti, com os filmes da Elizabeth Taylor.

 

Sonhava com elas, com esse glamour?

Não, o que queria mesmo era ser professora. Respondi a um anúncio que vinha publicado no Jornal de Notícias, que não fazia referência à RTP, mas que pedia dois jornalistas estagiários para uma empresa pública de comunicação social. Mandei o meu currículo, que eram duas linhas. Judite de Sousa, nascida em 1960, 2º ano do Curso Complementar do Liceu com média de 18, e a minha fotografiazinha.

 

Como é que era aos 18 anos?

Era uma espécie de Beatriz Costa, tinha o cabelo preto com uma franjinha. “Ninguém me vai contactar”, pensei. Isto foi em Agosto. Na véspera de Natal recebo um telefonema em casa. Estava seleccionada para fazer uns testes no Monte da Virgem no âmbito do concurso. Quando cheguei estavam 500 pessoas. “Coitada de mim”... Era a que tinha menos habilitações e era a mais nova. Havia muita gente de Letras, Psicologia, Engenharia, quase todos licenciados.

 

Em que é que consistiam os testes?

Os testes eram exigentes. Era preciso falar, escrever um texto com base em notícias de jornais, fazer um improviso para a câmara sobre um tema à escolha, e uma língua estrangeira. Passadas duas ou três semanas telefonaram-me a dizer que tinham sido admitidas duas pessoas, eu e um jovem licenciado em Filosofia, o Fernando Maia Cerqueira, vice-presidente da Ongoing. Foram estas duas almas que entraram nesse concurso público em 1979. O meu primeiro ordenado foram nove contos, duzentos e cinquenta [escudos], que utilizei logo para tirar a carta de condução. Depois estivemos cinco meses em Lisboa a fazer um curso de jornalismo televisivo no centro de formação da RTP. Passado um ano fui para Macau.

 

É um pouco difícil imaginá-la com 18 anos, vinda do nada, e com a garra suficiente para ser escolhida entre aquelas pessoas.

Entrei no mercado de trabalho [nestas condições]. Hoje não entraria. Digo isto com muita pena, mas nos últimos 30 anos as condições, em termos de desigualdade social, agravaram-se dolorosamente. Se fosse hoje não seria a pessoa que sou. Entrei para os quadros da RTP sem conhecer ninguém. A minha mãe não conhecia ninguém. Orgulho-me muito desse passado.

 

Que tipo de conversas tinha com a sua mãe?

Tínhamos uma relação de grande proximidade. A minha mãe era uma trabalhadora têxtil, uma mulher de trabalho. Saía às cinco da manhã, via-a ao fim do dia. Praticamente fui criada com a minha avó materna. Nunca teve que se preocupar comigo, nunca lhe dei trabalho. Fiz parte do quadro de honra do Carolina durante anos. A minha mãe nunca me pediu para ser boa aluna. Sempre apresentei resultados. Emprestava os meus cadernos e os meus livros às minhas amigas de bairro, porque fazia muitos sublinhados, tirava muitas notas. A partir dos 18 anos dá-se um afastamento físico. Começo a trabalhar. Quando regresso de Macau sou outra pessoa, e caso.

 

A marca da sua mãe em si, mais do que tudo, é a do trabalho?

É. Há bocado falei em Marx; também tem a ver com a minha militância na UEC [União dos Estudantes Comunistas], há coisas que ficaram, ficarão para sempre. Tenho muito respeito pelas pessoas que lutam para conseguir o que querem na vida. Os meus modelos são pessoas que sempre trabalharam muito. Como naquele livro do Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, dedicado aos filhos dos homens que nunca foram meninos. A minha mãe sempre lutou muito para criar condições para que nada me faltasse, e eu sempre procurei transmitir esta mensagem ao meu filho.

 

Tinha um quarto seu?

Dormíamos no mesmo quarto.

 

Por que é que nunca se perdeu?

É uma boa pergunta. Sempre tive uma boa cabeça. Comecei a fumar com 16 anos e levei uma sova da minha mãe que nem imagina. Mas nunca toquei em drogas. Nunca fumei haxixe na vida, não sei o que é. Sempre soube distinguir o bem do mal.

 

O âmbito da minha pergunta era mais amplo. Seria fácil não trabalhar, seria fácil não persistir no caminho do estudo, perdendo o norte.

Não, sempre existiu essa cultura de exigência.

 

Quem é que queria impressionar?

É uma coisa que tem a ver com a minha natureza. As minhas memórias são de uma miúda que se sentava sempre na primeira fila, mas não era para impressionar os professores, era para aprender melhor. Às vezes levava umas grandes reguadas porque na escola primária, a D. Alice, a minha professora, fazia perguntas para o ar, ou dirigidas a colegas, e se elas demorassem mais de dez segundos a responder, eu respondia antes delas. Era feio fazer isso. Não tive ninguém a puxar por mim, a impor-me horários para estudo, a dizer-me que devia seguir este caminho e não aquele, que a melhor opção profissional era esta e não aquela.

 

E com o seu pai, que tipo de contacto é que teve?

Conheci o meu pai já numa fase avançada da minha vida. Tinha dez anos. Sou uma pessoa marcada pela ausência da figura paterna. A partir do momento em que conheci o meu pai mantivemos uma relação não de pai e filha. Só existem relações de pais e filhos quando existe uma proximidade intensa ao nível dos afectos. Há situações que os laços de sangue não resolvem.

 

Ele era aquilo que sonhava? Uma criança que cresce sem o pai faz uma mitificação de quem é essa pessoa, das coisas que podem fazer juntos.

Não, nunca tinha pensado nisso. O meu pai pura e simplesmente não existia na minha vida, e quando passou a existir foi em circunstâncias que também não interferiram muito no meu quotidiano.

 

Quando é que passou a ser feliz?

Quando comecei a trabalhar. Este trabalho ou outro qualquer. Ter a minha autonomia, ter o meu espaço, a ideia da realização através do trabalho, foram sempre os meus principais valores. Isso aconteceu com o jornalismo mas estou convencida de que aconteceria também se me tivesse dedicado a uma carreira no ensino.

 

Quando regressou de Macau, foi estudar.

Já era uma jornalista minimamente conhecida, apresentava o País, País e o País Regiões, e fui para os bancos do liceu de Gaia fazer o 12º ano. Quando voltei de Macau achava, e bem, que para fazer bom jornalismo tinha que ter um bom enquadramento cultural. Entrei na Faculdade de Letras do Porto, onde fiz História, já casada, já grávida. Começa a perceber o que quis dizer há pouco? Uma pessoa que trabalha, estuda, tem uma gravidez, tem um filho e está casada, estas cinco coisas ao mesmo tempo, alguma vai ficar para trás.

 

O que ficou para trás foi o casamento?

De certa forma.

 

O que é que mudou tanto em Macau? Voltou de lá outra pessoa.

Foi óptimo. Como deve imaginar, depois do que lhe contei, nunca tinha andado de avião. Acho que só tinha ido uma vez a Vigo com a minha mãe, comprar bacalhau e azeite, aquelas coisas que se iam comprar à Galiza porque eram mais baratas. Em Macau não havia televisão, havia a Rádio Macau, em cantonense. Daí que saiba falar um bocadinho de chinês. Com algum treino ainda posso entrevistar o presidente da Three Gorges [riso].

 

Conte mais da aventura em Macau.

Primeiro que se chegasse a Hong Kong, eram 48 horas. O avião parava em tudo o que era sítio. Comecei por viver no Hotel Sintra. Fazia o horário da manhã, começava a trabalhar às cinco. Fumava imenso, tomava muitos cafés. Estamos em 1979. Comprava tudo aquilo de que gostava. Ganhava nove contos, duzentos e cinquenta na RTP, fui para Macau ganhar 50. E tinha tudo pago, a casa, a água, a luz e o telefone.

 

Passou a ter uma camisola de caxemira de cada cor, uma blusa de seda de cada cor?

Era uma desvairada, uma consumista. Quando voltei de Macau o meu pai disse-me: “Trazes dinheiro para comprar um carro?”. “Não, gastei o dinheiro todo” [riso]. Passava quase todos os fins-de-semana em Hong Kong (conheço Hong Kong como a palma da minha mão). Aproveitei para conhecer o sudoeste asiático. Quis fazer 21 anos em Pequim. Fui de comboio, três dias a partir de Hong Kong. Passei o Natal de 1980 no Japão, onde vi uma orquestra sinfónica a tocar na principal avenida de Tóquio, umas 300 pessoas. Cresci muito como mulher e como pessoa através destas experiências.

 

Abriu-a para o mundo. E profissionalmente?

Tive uma grande oportunidade. O Afonso Rato era amicíssimo do cônsul da França em Hong Kong, e em Maio de 1981, quando se realizam as eleições presidências francesas, em que o François Mitterrand é eleito pela primeira vez, o Afonso diz: “Queres ir a Paris fazer as eleições francesas? Os franceses de Hong Kong oferecem-nos a viagem”. Nunca tinha ido a Paris. Foi o meu primeiro trabalho como enviada especial.

 

Quando é que o dinheiro deixou de determinar a sua vida?

Nunca determinou. Nunca dei importância nenhuma ao dinheiro, sou completamente desprendida. Não sou uma tola, não tenho dívidas, tenho o empréstimo da minha casa. O meu contrato na TVI não foi negociado por mim, foi negociado pelo meu advogado.

 

Já está numa escala em que não é o próprio a negociar o contrato, é o advogado.

Não sou boa a negociar. Gosto dos meus prazeres, gosto dos meus pequenos luxos. Estamos em tempo de crise, é difícil falar disso.

 

Casou com um homem rico.

Acha? [riso] Casei com um homem de uma família tradicional das Beiras. Quanto à riqueza, vivemos do nosso trabalho, é importante que se saiba.

 

Ia perguntar se tinha orgulho em ser você a sustentar as suas jóias e as suas malas?

Tenho. Toda a minha história de vida não condiz com dependências em relação a terceiros, sejam de que natureza for. Sempre quis depender de mim própria. Aquilo que tenho, aquilo que as pessoas vêem, é resultado do meu trabalho. Ser dependente de um homem é uma coisa terrível na minha cabeça. Isso remete para a ideia da dondoca.

 

O seu marido é autarca e é do PSD. Se agora estivesse na RTP, teria uma tutela que é da mesma cor política.

Quando a tutela era do Nuno Morais Sarmento também estava na RTP, e também era directora-adjunta de informação. Nunca fui prejudicada nem beneficiada em termos de estrutura por ser [uma tutela] do PS ou do PSD. Fui directora-adjunta de informação com um governo do PS e com um governo do PSD. Para felicidade minha, creio que as pessoas que tutelam a área da comunicação social sempre olharam para mim com respeito profissional. Eu sou eu e aquilo que represento profissionalmente, e aquilo que valho profissionalmente.

 

Em relação à actividade política do seu marido, tem cuidados extraordinários para delimitar zonas de influência?

Raramente vou a Sintra. Fui à câmara, tratar de questões que tinha que tratar com ele, umas três ou quatro vezes em 12 anos. Nunca fui a festinhas de bombeiros, nunca fui aos teatrinhos que existem na vila ou nas aldeias próximas. Fui ao Centro Cultural Olga Cadaval ver os cantores de que gosto (Luís Represas, Rui Veloso, Mariza ou Pedro Abrunhosa) meia dúzia de vezes, e sempre muito discreta. Nunca estive envolvida em actividades partidárias, em jantares de partidos. Sou convidada, mas nunca fui a jantares oficiais em que se levam as mulheres.

O Manuel Luís Goucha quando me vê chama-me a primeira-dama de Sintra, mas sei que é por graça, e acho graça. A verdade é que nunca permiti que houvesse esse tipo de colagem. Isto em termos pessoais. Do ponto de vista profissional, toda a gente percebeu ao longo dos anos que uso o mesmo registo quando entrevisto um político do PSD, do PS, do PCP ou do BE.

 

Não se aconselha com ninguém?

Com os meus livros.

 

O que é que lê?
Ensaios, romances. Leio Fernando Savater, sou muito ajudada por ele a pensar a vida. Leio ensaios sobre comunicação, sobre comunicação política. Agora estou a reler os clássicos, a Anna Karenina, o Phillip Roth, que descobri há cerca de dois anos.

 

A zona dos afectos, no seu discurso, é aquela que a faz ter mais hesitações, ou uma tremura na voz.

Não estabeleço com as pessoas grande proximidade ao nível dos afectos, esse é o meu calcanhar de Aquiles. Preciso de gostar muito de alguém para me dar a conhecer integralmente. Como tenho essa característica, há pessoas que me acham distante, e que até podem confundir essa distância com uma certa arrogância. Mas não é real. “O ser humano tem muitas esquinas”. Encontrei esta frase num romance da Rosa Montero e é a minha cara.

 

Queria perguntar se se prepara para dar entrevistas como se prepara para fazer entrevistas?

Preparo-me [riso]. Só dou entrevistas quando tenho alguma coisa para comunicar. Não sou uma tonta que ande a dar entrevistas por dá cá aquela palha – esse exercício é descredibilizador. Agora vou entrar numa fase de algumas entrevistas porque passam 12 meses sobre a minha entrada na TVI; é natural que as pessoas tenham curiosidade em saber como estou, o que é que penso. E claro que me preparo porque uma pessoa consciente deve preparar o que diz. Respeito muito a comunicação, quer seja através da pergunta quer seja através da resposta.

 

 

Publicada originalmente no Público, em Janeiro de 2012

 

 

Teresa Pina

10.12.13

Teresa Pina assume como seu o espírito da Amnistia Internacional: “Lutar para pôr fim aos abusos e violações de direitos humanos em todo o mundo, acreditando que essa luta se faz todos os dias, em todos os lugares”. A nova directora-executiva da secção portuguesa explica porque é que é preciso continuar a lutar.

A Amnistia Internacional é provavelmente a maior ONG do mundo. Tem mais de três milhões de membros e apoiantes, está em 150 países. Em Portugal tem cerca de 11 mil sócios e uma equipa de 12 pessoas agora dirigida por Teresa Pina. A nova directora-executiva foi jornalista da SIC-Notícias e assessora de imprensa de José Sócrates. Estudou Direito, fez um mestrado sobre liberdade de expressão. Tem 40 anos, um filho que nasceu em Maio e uma vida nova.

 

 

No filme de Renoir, “This Land is Mine”, Charles Laughton lê a Declaração Universal dos Direitos Humanos e diz que é o mais belo texto que alguém já escreveu. Subscreveria isso?

Sim. E sublinharia que em democracia, em Estados de direito, as coisas nunca estão ganhas. Quando chegaram os primeiros relatos de Guantánamo parecia impossível que aquela prisão existisse, no berço de uma terra de liberdades. Havia pessoas detidas, sem acusação formal, violando todas as normas de Direito internacional e os mais elementares princípios de justiça. É uma situação contra a qual a Amnistia Internacional [AI] se tem batido e que demonstra que some things are not given things. Temos de lutar por elas todos os dias, do zero.

 

Vamos começar pelo princípio – antes de mais: é o princípio?, Londres e o mestrado que foi fazer na Birkbeck College.

Não é bem o princípio. Sempre fiz voluntariado durante a faculdade, em várias organizações. Na APAV, na Comunidade Vida e Paz com sem-abrigo. Sempre tive vontade de participar. Porquê? Quando me candidatei a este lugar, foi uma das perguntas que me fizeram, e não sei bem responder.

 

Depois de anos no mundo do trabalho, meteu licença sem vencimento e voltou a estudar. O que é que foi mais surpreendente numa babel como Londres?

A coisa mais impressionante foi perceber que, em relação a Portugal, Londres ou Paris ou Berlim são de facto o centro. São mundos imensos onde acontece tudo, onde se pode ter várias vidas.

 

Também estava a começar uma nova vida. Não sabia era isso. Ou sabia? Intuía, pelo menos?

Era uma pausa sabática. A médio prazo, gostaria de aplicar os conhecimentos que adquiria de alguma forma. Mas nunca pensei que fosse esta. Uma coisa de que me apercebi assim que cheguei: não ia ter tempo para ir a todas as conferências que havia só na minha faculdade e só na minha área (nem falo de cinema ou de outras disciplinas). Tudo era apetecível. Com os melhores especialistas – da ONU, de instituições do mundo inteiro.

 

Conferências para discutir, por exemplo, o quê?

A invasão do Iraque. Um dos meus professores foi advogado do movimento que tentou levar Tony Blair a tribunal. Trabalha no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem casos importantíssimos, foi signatário dessa proposta. Nessas conferências tínhamos a impressão de que participávamos nas coisas que acontecem no mundo. De um modo directo, imediato.

 

O que é que aprendeu nas aulas?

Nos trabalhos para [fazer] em casa, pediam-nos que organizássemos uma série de documentos, legislação internacional, textos de autores. Eu fazia, essencialmente, uma reprodução, por vezes crítica, de outros. Mas os meus professores começaram a perguntar-me porque é que nunca dava a minha opinião. O que eu devia fazer nos meus essays era começar por dizer o que pensava e ter um argumentário para o sustentar (baseando-me nos autores que tivesse lido). Em Portugal (e falo da minha experiência) somos ensinados a reproduzir o que vem nos livros. Mas ninguém nos faz ver que o mais importante é saber pensar.

 

Quando isso aconteceu, era uma mulher intelectualmente madura.

Exacto. Mas academicamente, foi uma revolução.

 

Tinha uma opinião sobre cada um dos assuntos? As situações têm uma complexidade tal que faz que a resposta não seja preto e branco.

Havia temas em relação aos quais tinha uma opinião formada. Por exemplo, como jornalista, tinha estado na Holanda a fazer reportagem sobre o uso do véu islâmico e o multiculturalismo holandês. Reflecti sobre o assunto. Mas sobre o uso de véus integrais, não tenho uma resposta líquida. A própria AI reconhece que há áreas em que a resposta é cinzenta.

 

Começou a trabalhar na Amnistia em Londres, logo depois de se ter instalado. Era um complemento, uma extensão prática do mestrado?

O meu objectivo era ter qualquer coisa que me permitisse praticar inglês. Achei que o que fazia sentido era uma ONG de direitos humanos. Ver como é que funcionavam na prática. Por sorte, havia procura de pessoas a falar português.

 

Por causa da África lusófona e do Brasil?

Sim. Foi uma grande oportunidade. Não falava assim tanto inglês (falava mais português) [riso], mas foi a maneira de entrar. Fiquei como voluntária.

 

Quanto tempo demorou a sentir que a televisão era uma coisa longínqua?

O movimento, as oportunidades, a excelência de Londres é tanta que ao fim de uma semana já nem me lembrava do que é que fazia em Portugal. É verdade. Rapidamente somos envolvidos e nos esquecemos da vida que tínhamos.

 

Um ano depois, regressou a Lisboa. Animada com que espírito?

Quando voltei, não pensei, por contraste, que Portugal era o fim do mundo e que não havia nada para fazer. Achei que podia aplicar muitas das coisas que aprendi. Por ter uma formação heterogénea, e por ter tido e criado estas oportunidades, tinha vontade de fazer coisas diferentes do jornalismo. Ou, continuando no jornalismo, de fazer coisas diferentes daquelas que fazia. Voltei com vontade de mudar muita coisa. E muito mais aberta.

 

Quis ser advogada, jornalista? Fez uma incursão na política (e já lá vamos) antes da AI. Tem um caminho errático.

Por falar em coisas que não são lineares: comecei por estudar Medicina, [num tom irónico] por três singelos meses. Fiz Direito. Já queria o Jornalismo. Mas queria um curso que me ajudasse a compreender o funcionamento das instituições, as relações entre os órgãos de soberania, os diversos poderes. No fundo, o que sempre quis foi fazer uma coisa que tivesse impacto público – no sentido de contribuir para a causa pública.

 

Trabalhou como assessora de imprensa de José Sócrates. A política pareceu-lhe um caminho possível?  

Tinha curiosidade em participar nesse mundo. O que é que aprendi? Que não é fácil governar um país [riso]. Fiquei a conhecer melhor o país real. Apesar de ser jornalista e de lidar com assuntos de política todos os dias, não tinha isso. No país real podemos perceber a distância que há entre um programa de televisão, onde se discute com os melhores comentadores ou jornalistas, e a vida das pessoas.

 

Desencantou-se com o jornalismo?

Não. Desencantar não é o termo. Trabalhar em televisão, quase sempre em estúdio, consome muito as pessoas. O próprio modelo esgota-as. Chega a ser angustiante o conforto do estúdio, a discussão teórica, interminável. São tantas horas, todos os dias... Eu queria fazer outras coisas. Tendo desenvolvido outros interesses, achei que tinha chegado a altura de [seguir outro caminho].

 

Como é que foi dar à AI em Portugal?

Vi um anúncio no jornal. Concorri. E fiquei. Houve várias provas, um processo de meses. Para começar, uma longa prova em inglês, com mais de cem candidatos, que era eliminatória. Na fase seguinte houve uma entrevista com um júri internacional. E por fim testes psicotécnicos, também com carácter eliminatório.

 

Como descreveria os portugueses em relação ao tema dos direitos humanos?

Creio que os portugueses são um povo profundamente tolerante. Mesmo que se diga que Portugal é um país inculto, distanciado dos grandes temas, os portugueses registam com desagrado a violação dos direitos humanos. Em relação à pena de morte (para os delitos comuns, Portugal foi o primeiro país da Europa a abolir a pena de morte), continuamos a ser um país de referência. Um país avançado como o Japão recentemente voltou a aplicar a pena de morte. Ao mesmo tempo, os episódios de violência doméstica continuam a ser barbaramente frequentes em países como Portugal e Espanha, o que diz bastante sobre a situação da mulher e o respeito pelos seus direitos.

 

É fácil mobilizar as pessoas para as causas da Amnistia?

A alma da AI são os voluntários, as pessoas que reservam uma parte das suas vidas a lutar pelos direitos humanos. Apesar da crise, constatamos que as pessoas querem participar, querem contribuir, inclusive financeiramente. Nos últimos seis meses houve um aumento da participação e de angariação de membros.

 

Entretanto teve um bebé. Em breve regressará ao trabalho. Tem já prioridades definidas?

Quando saí (de licença de maternidade) uma das apostas em Portugal, como noutros países, era referente aos países do Norte de África e Médio Oriente. O desafio é apoiar nas suas aspirações democráticas e na luta por direitos e justiça social as populações que viveram a Primavera Árabe. Estas revoluções levaram às ruas populações inteiras e deram às mulheres lugares de destaque. Uma delas, a jornalista e activista iemenita Tawakkul Karman, foi uma das três mulheres distinguidas com o Nobel da Paz de 2011. Eram coisas impensáveis há uns tempos, e ainda mais se pensarmos que se tratou de um movimento espontâneo que derrubou, um após outro, ditadores de regimes sanguinários com décadas. Infelizmente, países como a Síria não conheceram essa abertura, e noutros a repressão persiste. Mas é uma Primavera que certamente se estenderá por muitas outras estações e que a Amnistia não se cansará de apoiar.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2012.