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Anabela Mota Ribeiro

José Luís Peixoto

12.12.13

Em Livro há tanques de lavar roupa, a matança do porco, com os respectivos guinchos, foguetes, notas de conto pregadas com alfinetes no manto da santa, aborto com agulha de renda, casas com fachada de azulejos, comer a maçã no prato sujo do jantar, gente que trabalha sem respeito pelo corpo. Além disso, Livro conta uma história que Peixoto não viveu, mas os pais, sim: a da emigração para França nos anos 60.

José Luís Peixoto nasceu em 1974. É um fenómeno nas letras portuguesas. Está traduzido em várias línguas. Há pessoas que esperam duas horas numa fila para ter um autógrafo. Qual o segredo?

 

 

No livro há um pedido de namoro: “Se namorares comigo dou-te um pombo, 100 escudos e um livro”. Porquê estas três coisas? Parecem créditos que se apresentam para se seduzir alguém…

Esse episódio nasce de um pedido semelhante que foi feito pelo meu pai quando tinha sete anos – não à minha mãe. Perguntam-me muitas vezes porque é que o romance se chama Livro. É uma pergunta irmã gémea de outra: este livro é sobre quê? É confortável ter uma resposta como: é sobre a emigração portuguesa nos anos 60.

 

Porque cabe numa frase, porque cabe em 30 segundos de televisão? Sem a obrigatoriedade da concisão, o que é que responderia?

Esse livro de que se fala, e que é prometido no pedido de namoro, é o livrão. Fiquei com esta expressão de uma entrevista que li ao escritor brasileiro Raduan Nassar, quando lhe perguntaram quais tinham sido os livros que o tinham influenciado; respondeu que tinha sido o livrão. Referia-se à vida, a esse enorme livro. Este meu romance tem livros dentro, mas o livrão é a principal influência. Por isso também fui buscar aspectos concretos do meu anedotário pessoal, como esse pedido de namoro.

 

Os seus pais foram emigrantes em França, antes do seu nascimento. No Livro cita Flaubert e a celebérrima frase “Bovary c’est moi”. “Livro c’est vous”?

Pode ser apontado como o mais autobiográfico dos meus livros. Paradoxalmente é o menos autobiográfico, no sentido em que os acontecimentos factuais desse romance passam-se num tempo em que ainda não era nascido. O romance começa em 1948, as primeiras 200 páginas acontecem até 1974, que é o período em que nasci. Mas o romance está muito ligado a mim, porque eu não sou apenas as minhas experiências. Sou todo esse universo de histórias, importantes na minha formação, na criação do meu imaginário e da minha compreensão do mundo.

 

Livro está prenhe de uma linguagem que é rural, antiga, particular de um povo. Porquê?

Há muitas palavras que me deu prazer escrever porque não as conhecia escritas. Não existem nos dicionários que tenho nem constam no Google. Esconderelhos (que usávamos quando brincávamos na minha infância às escondidas). Plancho (que significa nu). Há ainda as palavras trazidas ou criadas pela emigração, aportuguesadas do francês, como “auto-rutas”. “Vacanças” é uma palavra símbolo, representa aquilo que neste romance tentei tratar sem ironia, com dignidade, com ternura. Somos nós. É algo de que não devemos envergonhar-nos.

 

Há uma leitura política que se pode fazer, a partir do livro, do que era aquele Portugal. Uma das personagens fala violentamente de Salazar. Fala-se do 25 de Abril.

Estamos habituados a que nos contem a história na perspectiva dos factos, dos números, dos grandes decisores. Mas a história que aparece no livro é contada por um povo. A emigração de que falo no livro é económica. Quando são levantados os motivos que os levam a França, os imediatos não são, aparentemente, os económicos. Essa razão está subentendida. Não achei necessário sublinhá-la em demasia. Há uma descrição do Portugal que estavam a deixar e que era um país que, em muitos aspectos, não lhes dava a oportunidade de serem felizes.

 

A primeira frase do livro é: “A mãe pousou o livro nas mãos do filho”. Depois, é como se o livro fosse o veículo que nos leva através do tempo e dos personagens.

Tento que este romance, que é dado pela mãe ao filho na primeira frase, seja percebido no final como o exemplar que o leitor tem nas mãos. É claro que aí se quebram algumas lógicas e dimensões, mas as palavras permitem quebrar essas dimensões.

 

Há um jogo de palavras que associa “mãe” e “livro”. Esta mãe que deixa o livro nas mãos da criança é também aquela que a abandona. Esse livro é metaforicamente a mãe, um vestígio dela.

A questão da orfandade está presente em alguns dos meus romances, nomeadamente n´O Cemitério de Pianos. Tenho um livro de poesia chamado A Criança em Ruínas. Essa orfandade é o sentimento que resulta de ter perdido a rede debaixo do trapézio. Que se calhar nunca esteve completamente lá. Nós é que a criámos.

 

Neste livro há três pais que não são pais completamente. Ou seja, pais biológicos que não são pais afectivos, e vice-versa. A pergunta que se impõe é: afinal, o que é ser pai?

Penso muito nessas questões, como forma de perceber quem sou, quais são as minhas fraquezas, as minhas forças, ter uma consciência de mim, não me enganar a mim próprio. Mas não consigo perceber porque é que surge com tanta força e tão recorrentemente a questão da filiação. Não consigo abandoná-la ou não a trabalhar. Todos os meus romances tratam dessa questão – não é a única, mas está muitíssimo presente. Tenho as minhas razões para considerar a questão da paternidade tão importante; uma delas é a importância da figura paterna na minha vida; outra, o facto de ter perdido o meu pai de uma forma chocante; outra, a de ter sido pai, eu próprio, quase um ano depois. Foi uma passagem de uma condição a outra (de filho a pai) muito rápida.

 

Estreou-se com Morreste-me, que escreveu depois da morte do seu pai.

Escrevi-o com 21 anos, o Nenhum Olhar com 23. Eu ainda não conseguia perceber uma coisa que uma personagem de Livro diz: “A minha mãe é uma mulher: espirra, tosse”. Este é um livro onde as personagens não são míticas. Tentam ser humanas nos dois sentidos da palavra: pela sua fragilidade e pela sua bondade. 

 

A sua mãe leu este livro?

Acho que sim. Não falamos sobre isso. Todos os livros que publique, o primeiro que toque, faço-lhe um sinal e esse é o livro da minha mãe – sou mesmo um menino da mamã [riso]. À minha mãe devo, não só a vida, mas o escrever livros. É a dona da linguagem que está nesse romance. Encheu-me de um ritmo e uma narrativa que nunca pára. Ela nunca pára, gosta muito de falar!

 

A família é o assunto preferido dela?

O único assunto dela é o nosso mundo. O nosso mundo são as pessoas que nós conhecemos. A minha mãe não fala sobre a crise económica. 

 

Porque é que escreveu este livro agora?

É o livro que consigo escrever agora. É o melhor que consigo fazer agora. Tudo é altamente pensado, é fruto de uma montanha imensa que tenho orgulho em ter conseguido trepar. Sem querer profanar histórias de ninguém, essa é a minha viagem, a minha travessia. Tenho muita sorte e estou muito contente por ter chegado aqui.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em Outubro de 2010