Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Catarina Furtado

11.12.13

Falou da Maria Beatriz. Referiu-se a ela como «a minha filha», e só uma vez lhe chamou Beatriz. Antes de se chamar assim, a criança que nasceu no Dia da Espiga era chamada pelo pai e pela mãe de Papoila.

Encontrámo-nos num café perto de casa, com vista para o rio e os telemóveis alinhados sobre a mesa. Falou com esperada paixão da felicidade em que vive. Do que a fez ultrapassar os seus limites e inseguranças. De gostar de antecipar as coisas para não ser submergida por elas. De não desmerecer o pai. De assumir a honestidade como linha essencial. De ser a Catarina Furtado e de isso já ser uma identidade. A nossa menina é já uma mulher madura.

 

 

No outro dia estava a vê-la no «Dança Comigo» e achei-a mais parecida com a sua mãe. Perguntei-me se essa identificação, mesmo em termos físicos, não se acentuou depois de ter passado pela maternidade. Isto já lhe ocorreu?

Não. Não me lembro da minha mãe numa fase em que gostaria de me lembrar dela: grávida da minha irmã. Mas vi fotografias. Durante a minha gravidez falava com a minha mãe e usava o cabelo muito à semelhança do que ela usava nos anos 60. Depois de ter a minha filha, isso não me ocorreu mais. Não sou parecida com a minha mãe, a minha irmã é muito mais.

 

Durante a gravidez, essa imagem foi procurada?

Não, foi comentada. Na minha cabeça há uma imagem [que corresponde a] ser mãe. Um bocadinho lírica, do ponto de vista estético. O cabelo é escorrido, uma imagem branca, em que os olhos brilham imenso. Tentei recriar isso de alguma forma.

 

Essa visão da maternidade é romântica, algo encantatória. Antes de começarmos a gravar dizia-me que a maternidade é muito mais do que uma coisa maravilhosa.

É diabólica.

 

Por ser uma coisa que vai além do seu querer, do seu ser? Como uma possessão.

Há coisas que se comprovam, confirmam o que eu pensava. Mas fui confrontada com outras, uma série de surpresas. A forma como, por exemplo, me fui adaptando à minha filha… Há aquelas mães que demoram a gostar dos filhos, há aquelas mães que têm uma paixão imediata. Fui mais por aí. Mas fui surpreendida, porque imaginava-me super-protectora, aflita com tudo e sou muito despreocupada.

 

Descobriu-se outra?

A maternidade também me deu uma visão diferente daquilo que eu achava que era. [A minha filha] é um vício grande, é uma dependência saudável. Confronta-me permanentemente com o ter paciência, com os limites. O amor incondicional: existe uma expressão para o designar, mas na prática é um sentimento. É uma coisa que vem do umbigo. E onde me senti mais livre até hoje foi em São Tomé e Príncipe, num sítio onde achei que estava no umbigo do mundo. Aquilo não nos deixa tombar, põe-nos na vertical, é o centro, é o mais indispensável. A filha é isso também.

 

O que foi condição para a sua liberdade?

Ter espaço, muito espaço. Tudo aquilo respirava... Obviamente que há a vida antes de se ter um filho e depois de se ter um filho. As coisas que mais se alteram são do dia-a-dia. Eu fugi algumas vezes e agora já não posso, porque tenho-a a ela. Tenho que lhe dar atenção, e um dia tenho que lhe dar satisfações.

 

Como é que a sua filha é simultaneamente expressão de liberdade e a prende aos dias e à responsabilidade?

Ter um filho não é uma prisão. Há a responsabilidade de educar, mas é muito mais livre do que se possa pensar. Desde que se consiga organizar o lado prático, é uma folha em branco, onde nós as duas, ou os três, podemos desenhar. E isso é criar, é estar livre. Faço o paralelismo com o sítio onde respirei muito....

 

A sua vida, nesta fase, é dominada pela bebé e pela descoberta. É um momento em que a vida acontece deveras, em que não se está a cumprir calendário.

O meu medo é que a vida aconteça depressa de mais. Que ela se desenrole mais depressa do que eu desejaria. Eu vejo o tempo passar e não me apetecia nada ver o tempo passar. Ela cresce muito depressa, eu faço muita coisa ao mesmo tempo e gostava de não estar tão consciente dessa passagem. Gostava de segurar mais o tempo.

 

Cristalizá-lo. A infância também é mitificada como um tempo ideal. Mas depois existe o processo inelutável do crescimento.

Não sei se a infância foi o tempo ideal da minha vida. Foi uma das passagens da minha vida em que fui muito feliz, de facto. Tive uma atmosfera fantástica para poder ser criança.

 

A maternidade pô-la em contacto com a sua própria história e com a sua infância?

Em algumas situações, não muito.  A infância dela será muito diferente da que tive. Havia uma liberdade diferente. Brincava na rua, com caricas, no passeio de casa, no Bairro Alto, em Campo de Ourique. Hoje em dia, não sei se não ficarei com receio que ela brinque na rua... Como é que faço para que ela não seja igual a todas as crianças, não fique a ver televisão e só a ver televisão?

 

Debate-se com os dilemas da educação. Perguntaram a Freud se havia uma educação que era a certa. E ele respondeu que se podia experimentar qualquer uma, porque estavam todas erradas.
A certa é aquela que nos convém, que nos veste. Quando eles vêm para casa são minúsculos, e somos confrontados, “se a meio da noite acontece alguma coisa, o que é que faço?”. E houve uma intuição imediata, uma espécie de kit que saltou que nem Sport-Billy, tive ferramentas para tudo, para as birras, o choro, as cólicas.

 

O parto: antecipava-o como um momento difícil?

Sempre tive esperança que as coisas corressem muito bem, também pelas minhas características_ diziam-me que tenho anca de parideira. Mas não deixei de ter medo. Sempre desejei muito que fosse um parto normal, apesar de poder ser mais doloroso. Tive epidural só até um certo ponto, porque não queria ficar demasiado anestesiada. Senti a minha filha nascer. Foi um dia abençoado, o Dia da Espiga, e sempre foi chamada de Papoila por mim e pelo João... Alguém escreveu muito bem esta história...

 

Quais são os agentes de mudança nas nossas vida? Normalmente, têm que ver com a morte e com o nascimento. E com o amor, claro. Estas são as forças motrizes?

Da minha vida? Felizmente tem sido o amor, e agora o nascimento. A morte ainda está em stand-by. O trabalho, às vezes, também nos move.

 

Tem a noção de nada do que está para trás subsiste com a mesma força?

Há muita gente que diz que assim que nasce uma criança tudo é completamente secundário. Eu não digo isso. Estou apaixonada pela minha filha, ela é a minha prioridade, mas não estou a sofrer de uma amnésia geral, enclausurada entre os babetes e as fraldas. Tenho conseguido gerir as coisas muito bem. Temos conseguido as duas namorar imenso. Na prática, produzo menos em termos de trabalho. Comecei a trabalhar muito cedo, porque me foi pedido. Mas nesta primeira fase digo que não a muitos convites.

 

Continua a existir enquanto pessoa, e não exclusivamente na dimensão de mãe.

É mais superficial, mas também fundamental, a questão do corpo e da mãe enquanto mulher. É muito importante a mulher continuar a gostar dela, dar-se bem consigo. (Agora passamos da Máxima para a Cosmopolitan!) Vejo imensas mães, quando vão às consultas, têm o brilho de terem sido mães, estão com seu rebento; mas depois estão um bocadinho esquecidas de si próprias, engordaram muito ou já não ligam àquilo que vestem… Eu saí da maternidade e não saí nada com vontade de “ai, meu Deus, o chinelo”. Eu sabia, eu sou muito desconfiada e faço muitas previsões; sabia que, se me arrastasse, era eu, era ela, era o casamento.

 

Tem uma vontade enorme de antecipar as coisas para não ser supreendida e submergida por elas. Diz que a maternidade é diabólica no sentido de ir além do que pôde imaginar. Foi a única coisa que verdadeiramente ultrapassou os seus limites?

Acho que sim. E o amor também. Não me posso alongar muito, porque não gosto, depois, que estas coisas sejam publicadas. Mas no amor também.

 

Antecipa o que vai ser a sua vida daqui a cinco anos, dez anos?

Não penso. Tenho vontades, em vez de ter uma estratégia montada. Por exemplo, tenho imensa vontade de voltar a fazer teatro. Essas vontades precipitam que as coisas aconteçam, porque sou empreendedora por natureza.

 

Por um lado, quer imenso antecipar as coisas e controlá-las. Isso pertencesse ao imediato, a um lastro de tempo que é curto. A longo prazo, não premedita, não planeia.

Eu quero antecipar para não ser surpreendida, mas também para poder controlar as coisas. Quero ser eu a passar pelas coisas e não as coisas a passarem por mim.

 

Mas isso implica sempre uma atitude de domínio em relação às circunstâncias.

Tenho essa permanente característica. Depois há esse paradoxo: não gosto de projectar as coisas a longo prazo. Tira-me uma magia de que também gosto.

 

Tudo aconteceu muito cedo na sua vida. Durante estes anos, houve uma procura daquilo que é a sua identidade e propósito? Ziguezagueou entre o jornalismo e a apresentação, no apogeu do sucesso mudou-se para Londres para estudar representação, tornou-se embaixadora das Nações Unidas.

Sim, continuo nessa procura. Já não procuro é ter uma definição para mim.. Com 34 anos, continuo a explorar os campos, mas deixei de me preocupar em ter uma identidade.

 

Ou então é uma identidade múltipla: é-se isto e aquilo e aqueloutro.

Acontece-me imensas vezes. Antigamente ficava inquieta, e como queria muito afirmar-me numa área ou noutra e que me levassem a sério… Acontece imensas vezes perguntarem-me nos guichets: “Que profissão é que ponho?”. Uns dias digo apresentadora, outros dias digo actriz.

 

Quando é que essa inquietação amainou?

Fui acalmando à medida que fui fazendo coisas com as quais me senti bem, e que tinham um feed-back de respeito. Hoje em dia, com toda a imodéstia, sinto que conquistei um lugar, ou vários lugares. Isso está muito claro em mim, e deu-me uma grande segurança. Não quer dizer que cada projecto que eu assuma não tenha aquele nervoso inicial, para que as coisas corram bem, e não quero falhar. Foi de há cinco anos cá. Comecei a trabalhar muito enquanto embaixadora das Nações Unidas. Foi importante a mudança para a RTP. No teatro produzi e representei essa peça.

 

Enquanto embaixadora das Nações Unidas, é fácil pensar que o que mais impressiona é o contacto com a miséria absoluta...

Trabalho muito lá fora. Tenho um mini-poder que me deu confiança para ir para a frente com as ideias que tenho, apesar de não ter quase nenhum bolso de manobra. Não é um trabalho remunerado, em Portugal há dificuldades de apoio, mas eu mexo-me para conseguir as coisas.

 

O que acabou por acontecer é que ser a Catarina Furtado transformou-se, por si só, numa identidade, independentemente das áreas em que se manifesta.

Hoje em dia é um bocadinho isso.


Mesmo que não tenha um poder extraordinário em termos financeiros, tem um nome que é reconhecido e atendido. Por exemplo, se telefonasse para a presidência, estou certa de que o Professor Cavaco Silva atenderia o telefone. Como é que se mede o poder?

Dinheiro, muito. Influência, sim, mas acaba sempre no dinheiro. Confronto-me com isso. Há um lado que funciona muito bem sem dinheiro: palestras, ir a escolas, influenciar os jovens, fazer debates, promover a informação – vou pelos meus meios. Tenho alguma influência, e sou atendida. Há imensas reuniões, tiram-me fotografias no gabinete, mas depois falta o dinheiro.

 

Libertou-se da imagem de ser “a filha do Joaquim Furtado”. Mesmo assim, exigia para si um rigor e uma excelência de que ele se orgulhasse. Como se não pudesse desmerecer a reputação do seu pai e a educação que ele lhe deu. Isto tem alguma coisa que ver com a sua insegurança?

Acho que sim. Queria provar que não foi em vão a educação dele e da minha mãe, que ouvi atentamente os sermões em relação à língua portuguesa, que sei que não é “póssamos”. E queria que ele gostasse daquilo que eu faço. Hoje sei que eles são muito orgulhosos de mim.

 

Os filhos imaginam que só se forem extraordinários e corresponderem às expectativas é que merecem um amor incondicional.

Havia até agora um receio de não corresponder àquilo que eles tinham na ideia para mim. Mesmo sendo eles aquele tipo de pais que nunca quiseram que eu fosse médica, nem advogada, nem nada disso. Mas que correspondesse muito à integridade, à honestidade, aos princípios. Sei que nisso, tanto eu como a minha irmã, foi [tudo passado a] papel químico!

 

Quando lhe escrevem nas cartas “quero ser a tua irmã” ou “quero ser a Catarina Furtado”, que significado tem isto para essas pessoas? Aparecer na televisão e ganhar dinheiro? Como é que o dinheiro e a fama mudaram a sua vida?

Sinto um agradecimento por as pessoas gostarem de mim, serem aquilo que se chama minhas fãs. Mas, por outro lado, tenho imensa dificuldade em percebê-las. E não é com nenhuma leviandade que respondo às cartas. A não ser coisas concretas, a pedirem ajuda ou conselhos, nas coisas do género das que acabou de dizer, há uma embriaguez em relação à realidade que me faz confusão. Apesar de fazer parte do espectáculo, é demasiado irreal. Quanto ao dinheiro e à fama, agradeço sempre imenso, em segredo.

 

A Deus? A quem?

Não sei muito bem a quem, mas sussurro. Se calhar a Deus. E não é pela fama ou dinheiro, é pela harmonia de coisas, é por sentir que fui abençoada. Eu não queria ter mais dinheiro do que tenho, não preciso. Não tenho sonhos de ter um barco, uma casa em Itália, outra em Los Angeles. Tenho essa segurança, que me dá imensa auto-estima: consegui estar onde estou só pelo trabalho.


Ainda que materialmente a vida da sua filha possa ser mais confortável do que aquela que os seus pais tiveram...

Vou passar-lhe exactamente aquilo que recebi. É aí que quer chegar?

 

Não é bem. No fundo, penso no que é que fica quando os anéis se vão embora.

Essa é uma boa imagem. Está o meu pai, a minha mãe, eu, a minha filha e o meu marido. Se os anéis forem ao ar, fica aquilo que foi transmitido. Está no sangue, na pele. Não está nessas coisas. Isso é fundamental que ela saiba.

 

O que é que pode correr mal na sua vida? O que é que poderia significar um desabamento?

A morte e doença.

 

E se as pessoas deixassem de gostar de si?

Acho impossível! As pessoas de quem eu gosto, as pessoas da minha vida? Completamente impossível. Até porque quem semeia colhe...

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima

 

 

 

 

Judite de Sousa

10.12.13

Aos 18 anos, o currículo de Judite de Sousa tinha duas linhas. Aos 51, não seria excessivo se dissesse senhora-televisão. Em Março de 2010 protagonizou uma transferência televisiva inesperada. Trinta e dois anos depois, trocou a RTP pela TVI. O começo de uma vida nova. Eis o retrato de uma mulher que foi jornalista por acaso.

Não vive obcecada com o ecrã. “Como procurei acumular competências televisivas nas mais diversas disciplinas do jornalismo, que não passam exclusivamente pelo ecrã, encaro o futuro com tranquilidade.” No dia em que os encontrámos, Judite de Sousa exercitaria uma competência televisiva que nunca abandonou: a reportagem. Eusébio completaria 70 anos no dia seguinte, e Judite preparava-se para ir ao seu encontro, numa taberna onde almoça diariamente.

Encontrámo-nos no hotel Ritz. Usava um vestido de seda laranja e um casaco de cor contrastante revestido de pedrarias. Longe vão os tempos em que precisava de um blazer para ser credível – a expressão foi usada por ela não há muitos anos. Assume uma enorme disponibilidade para a conversa. Mede bem o que diz, diz coisas que nunca disse, diz as coisas que quer dizer.

O momento em que José Sócrates se referiu ao seu ordenado, superior ao dele, primeiro-ministro, foi há uma eternidade, na encarnação RTP. Há quase um ano que está na TVI. É directora-adjunta de Informação, além de jornalista que faz o que é preciso fazer. Para se ter uma noção do poder dela basta lembrar a apresentação do seu livro A Vida é um Minuto – O Poder da Imagem, onde fala da relação entre o jornalismo e a política. O poder político, financeiro e social compareceu.

Licenciou-se em História. É casada com o presidente da Câmara de Sintra, o social-democrata Fernando Seara. Tem um filho do primeiro casamento.

 

 

Comecemos pelos seus 50 anos. O que é que representou fazer 50 anos?

Já fiz 51. Custou-me horrores quando fiz 30 anos. Foi um período da minha vida cheio de dúvidas, de incertezas. Correspondeu à fase da separação do pai do meu filho, estava de malas feitas para Lisboa. Mas fazer 40 anos não me custou nada e fazer 50 também não. Sinto-me lindamente.

 

Uma grande mudança aconteceu na sua vida pelos 50.

Foi aos 50 anos como podia ter sido aos 49, aos 48. Não há qualquer tipo de coincidência no facto de eu ter decidido deixar a RTP aos 50 anos de idade.

 

O que fica claro é que é um ciclo, um ciclo muito longo, que se encerra com a saída da RTP. E uma disponibilidade para começar de novo numa fase em que as coisas tendem à estabilização.

Tem razão. Assinei contrato na última semana de Março [de 2010], Portugal é resgatado [pelo FMI e UE] cerca de um mês depois. Estou convencida de que, se a mudança tivesse decorrido algumas semanas mais tarde, a PRISA e a Media Capital não me iriam contratar. As condições do país alteraram-se significativamente, as condições das empresas alteraram-se dramaticamente. Mudei na altura certa, em função da minha realidade pessoal e da própria realidade do país e das empresas.

 

Isso ocorreu-lhe quando estava em negociações? A ideia de um resgate já pairava há algumas semanas.

Quando estou em negociações, o resgate é uma coisa de que se fala em surdina, mas nenhum responsável político ousava verbalizar o problema. A informação da TVI mudou muito; o elemento que relevo, fundamental na percepção objectiva dessa mudança, foi o facto de o pedido de ajuda financeira que Portugal foi obrigado a fazer ter passado pela informação da TVI.

 

Refere-se às entrevistas aos presidentes dos principais bancos?

Muitas pessoas não perceberam por que é que andava a entrevistar banqueiros todos os dias. A verdade é que as entrevistas foram feitas numa segunda, numa terça, numa quarta e numa quinta; 48 horas depois o primeiro-ministro estava a pedir ajuda financeira. No dia 31 de Março entrevistei, no Terreiro do Paço, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e pus-lhe a questão do pedido de resgate. Respondeu que não. No dia 4 de Abril, a primeira entrevista é com Carlos Santos Ferreira, que diz, de uma forma explícita, que é preciso pedir ajuda externa. No dia seguinte foi Ricardo Espírito Santo Salgado.

 

A ideia de fazer as quatro entrevistas foi uma espécie de cheque-mate à chegada? Um modo de dizer que era capaz de mobilizar quatro dos homens mais poderosos do país e intervir na cena política portuguesa?

Foi. Foi intencional. Naquela semana em que estava em casa, à espera que chegasse o dia 1 de Abril, pensei muito sobre o que estava a acontecer no país. O dinheiro estava a escassear, e quando o dinheiro escasseia pensa-se no ministro das Finanças e nos homens que têm dinheiro para sustentar a economia. Pus-me ao telefone. Falei com a assessora de imprensa do ministro Teixeira dos Santos e depois falei com os homens do BCP, do BES, do Totta Santander e do BPI. E fiquei à espera das respostas.

 

Contacta os assessores de imprensa? Não pega no telefone para falar directamente com Fernando Ulrich?

Com alguns, trato directamente. Com o Fernando Ulrich falo directamente; talvez por ter sido jornalista, há um tipo de relação diferente. Mas não falo directamente com o Ricardo Salgado, passo sempre pelo Paulo Padrão [assessor].

As repostas surgiram logo no dia seguinte. Só mais tarde vim a perceber que aproveitaram o meu convite para acertar uma posição conjunta de forma a fazer um ultimato a José Sócrates. Acabei por, com aquelas entrevistas, fazer parte de uma narrativa que foi meticulosamente preparada pelos banqueiros.

 

Do ponto de vista da satisfação pessoal, era um modo de dizer à PRISA: “Tomem lá, eu valho isto!”?

Eles já sabiam, se não soubessem é porque andavam distraídos. É essa diferença que realmente faço. O Presidente da República deu a primeira entrevista desde que foi reeleito à TVI, há cerca de dois meses. O ministro das Finanças deu a primeira entrevista à TVI, bem como o ministro da Saúde.

 

Diz que deu à TVI por humildade e simpatia pelos colegas? Deram-lhe a entrevista a si. Diria o quê, se estivesse na RTP?

Se estivesse na RTP seria uma entrevista à Grande Entrevista da Judite de Sousa. Mas não quero ser pretensiosa e prefiro que sejam os leitores da sua entrevista a tirar as conclusões. O meu nome conta, como é óbvio, faço isto há muitos anos.

 

Explique-me o desejo de mudar. De certeza que teve inúmeros convites ao longo da sua carreira.

Não tive, está enganada. Não faço parte desse grupo de pessoas que diz que está sempre a ser convidada para isto ou para aquilo. Convite, tive um, feito há dez, 12 anos, pelo José Eduardo Moniz, numa altura em que éramos muito próximos. As pessoas sempre olharam para mim com respeito, mas pensando: “Ganha bem, tem estatuto, faz um programa de referência. Por que é que vai mudar?”. Aquilo que comecei a sentir foi uma vontade íntima de mudança.

 

Que radica onde?

Chegamos a uma fase dos nossos percursos em que colocamos interrogações sobre a nossa vida, sobre o nosso devir. Muitas vezes, quando essas interrogações se colocam a nível pessoal surgem as separações ou os divórcios. A mim, esse tipo de interrogação colocou-se a nível profissional. Tinha chegado ao topo na RTP e percebi que a empresa não tinha mais nada para me dar, nomeadamente ao nível da estrutura. Sentia vontade de partir para uma nova vida.

 

Como quem se casa de novo e vai constituir uma nova família.

Sim. Encarar novos projectos, conhecer novas pessoas, fazer coisas que na RTP já não tinha espaço para fazer, e na TVI tenho. Não me apetecia acabar a minha carreira e dizer a mim própria: “Comecei a trabalhar na RTP com 18 anos, tenho 65 e vou-me reformar estando na RTP”. É uma coisa de que me orgulho, de ter tido a coragem de mudar aos 50 anos de idade.

 

Qual era o risco, verdadeiramente?

Havia muitos riscos. Na RTP tinha uma posição consolidada do ponto de vista profissional, fazia um programa de referência na televisão portuguesa. Tinha um bom salário para a média da empresa, já não falando para a média do país. Era directora-adjunta da informação. O que é que queria mais? Não queria mais nada, podia continuar por mais dez, 15 anos naquele registo. Quis arriscar no sentido de me testar a mim própria, deixar a minha zona de conforto. Vamos ver se consigo ser tão feliz e eficaz profissionalmente na TVI como fui na RTP.

Estava claro, no momento da negociação, que não iria ter um programa de entrevista autónomo em grelha. Iria ter carta branca para fazer todas as entrevistas que quisesse, mas dentro do jornal das 20 horas.

 

Não queria transplantar aquilo que tinha sido a sua imagem de marca?

Não estava nos planos da empresa abrir espaço em grelha para um programa de entrevista. Não tendo um programa autónomo, as pessoas com quem todas as semanas conto para serem entrevistadas por mim poderiam dizer: “Ó Judite, tenha paciência mas não quero ir ao jornal das oito da TVI, antes quero ir ao programa X ou ao programa Y, da RTP ou da SIC”. Corri este risco. Ao fim destes nove meses, para felicidade minha, nunca ninguém me disse que não. O outro risco era trabalhar numa estação com o perfil editorial da TVI, muito diferente do da RTP.

 

Isso era desafiante para si? Tem que ver com a relação com José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes, que imprimiram no canal uma marca editorial da qual divergiu, quer a título pessoal quer a título profissional?

Nunca divergi porque nunca foi a minha linha. Em termos pessoais começou a haver um afastamento. Não se pode ver a questão nesses termos. Quem queria introduzir alterações no posicionamento da estação não era eu nem o José Alberto de Carvalho. Quem sentia que existia um problema de credibilidade na estação eram os accionistas espanhóis e portugueses da Media Capital; por isso é que vieram contratar pessoas que, pela avaliação e pelos estudos de mercado que fizeram, correspondiam a esse perfil. Disse que iria para a TVI fazer o jornalismo que sempre fiz, e no qual acredito piamente.

 

Não é um acerto de contas? Estou a perguntar pelo gozo íntimo de estar naquela casa, que tinha sido dirigida por dois ex-amigos, e que tinha uma marca de informação diferente da sua.

De forma alguma. Não há qualquer tipo de ressentimento. Nunca permiti que a esfera pessoal e a esfera profissional se contaminassem uma à outra. Obviamente que me dá muita satisfação criar valor para a empresa, colocar em antena todas as semanas pessoas que durante anos não queriam lá ir. Esse passado não é o meu passado, não quero ter nada a ver com isso, essa agenda não é a minha agenda.

 

Apesar de tentar que não exista qualquer contaminação entre as relações pessoais e as profissionais, o convite que recusou foi o início do fim da relação com Moniz e Moura Guedes?

Talvez. Na altura não podia aceitar o convite, estava a começar a Grande Entrevista, estava a construir aquele projecto.

 

Estava a construir o seu espaço autonomamente? Era a protégée de Moniz. Foi ele que a convidou a vir para Lisboa.

Tive oportunidades profissionais ao longo da vida, mas lutei muito para as conseguir, nunca nada me foi dado. As grandes oportunidades que tive na RTP não aconteceram na direcção do José Eduardo Moniz. Estive na Bósnia, no Ruanda, no Zaire, em Hong Kong e em Macau quando foram as transferências; são trabalhos que relevo e que aconteceram nas direcções do Manuel Rocha e do Joaquim Furtado. A minha vinda para Lisboa é em 1991, o Zé Eduardo sai da RTP três anos depois.

 

Quando é que sentiu, apesar de Moniz não ser seu chefe directo, que não precisava da aprovação dele?

Nunca precisei dessa aprovação. Há um grande desfasamento entre a realidade e a percepção da realidade – é como a alegoria da caverna do Platão.

 

Nunca aconteceu acabar uma entrevista e telefonar-lhe a perguntar se correu bem?

Não, nunca aconteceu.

 

Quem é essa pessoa a quem fala, a perguntar se correu bem?

É o meu marido. É mesmo só ao meu marido. Na RTP havia uma pessoa a quem eu perguntava, também, o meu maior amigo na RTP, actual director-adjunto de informação, o Vítor Gonçalves.

 

Quando é que começou a ter confiança em si?

Sempre tive confiança em mim. Apesar do meu aspecto frágil, de alguma timidez, profissionalmente sou muito segura de mim. Sei bem o que é a terra firme. Não sou uma deslumbrada, sou muito crítica, exigente comigo própria. Tenho feito algumas coisas bem conseguidas mas também tenho feito muitas asneiras.

 

Essa segurança é uma construção. E voltamos à miúda dos 18 anos...

Aos 18 anos não se é nada. Eu era uma jovem que começou a ser jornalista por acaso, como poderia ter sido outra coisa qualquer.

 

As coisas foram acontecendo. Sempre dei tudo o que tinha e o que não tinha para que as coisas resultassem. Quando ao fim de meses, de anos de trabalho as coisas vão resultando, consegue-se afirmar a diferença e começa-se a construir uma imagem própria. Vai-se delimitando o nosso espaço. Não há aqui uma estratégia definida. Deu-se a circunstância de ver cada desafio profissional como o último da minha vida. Ainda hoje sou assim.

 

Quando olha para o seu percurso e para quem é, o que é que lhe deixa esse sentimento de urgência, que determina essa entrega?

Sempre me realizei muito através do trabalho. Desse ponto de vista sou marxista [riso]. Encontro no trabalho uma esfera de afirmação e de realização pessoal que se confundem. Deixei cair muita coisa ao longo da vida. Ao nível dos afectos, das relações com os outros, das minhas opções como mulher.

 

É uma coisa de que raramente as pessoas de sucesso falam: do que tiveram de prescindir para estarem onde estão. Pode concretizar?

Muitas vezes, o meu filho, pequenino, foi às consultas de pediatria com as empregadas, e não com a mãe. Não tive mais filhos, podia ter tido. Ter mais tempo para mim própria. Só recentemente é que comecei a conceder-me tempo. Durante anos não tive tempo de olhar para mim.

 

Durante anos foi uma espécie de patinho feio que jogava tudo noutro tabuleiro, o da realização profissional?

Não, mas tenho noção de que sempre vivi muito focada na carreira. Curiosamente, desde que estou na TVI, e apesar de toda a gente dizer que trabalho muito, encaro o trabalho com mais distensão.

 

Se calhar porque já conseguiu.

Não. Quando diz que já consegui está a partir do princípio que uma pessoa consegue, e que a partir daí já não entra em declínio.

 

O seu fantasma é o do declínio?

Não tenho fantasma nenhum.

 

Aquele contra o qual exercita o músculo todos os dias.

Fazer televisão é como andar de bicicleta: tem que se estar sempre a pedalar. Se se deixa de pedalar pára-se, e se se pára pode-se cair. O meu entendimento sobre o fazer televisão é este. Não quero cair, quero continuar a pedalar. Mas não é por uma questão de notoriedade. É por querer continuar a dar cartas do ponto de vista profissional. É a mesma coisa que saber envelhecer bem.

Saber manter em televisão implica um grande exercício de humildade. Implica que aos 50 anos de idade não se tenha problema algum em sair às seis da manhã para ir fazer reportagem a Matosinhos, a casa dos pais do Domingos Paciência.

 

É fácil cair?

Para nos mantermos bem profissionalmente, e como players importantes no mercado, temos que saber gerir as nossas carreiras, com inteligência e com bom senso. Isso passa por não nos deslumbrarmos com aquilo que pensamos de nós próprios, nem com aquilo que os outros dizem ou pensam, ou escrevem sobre nós. Manter uma grande relação com o terreno. Continuar a fazer reportagem a vida inteira. Vai chegar um momento em que vou estar sem cara para fazer entrevistas ou para apresentar jornais. A realidade europeia não é como a norte-americana, não comporta uma Barbara Walters, com 80 anos, que continua a fazer programas em prime time. Espero terminar a minha carreira como o Fernando Pessa, com muita dignidade, contando histórias.

 

É evidente na maneira como está no ecrã uma assunção da feminilidade, um uso de jóias, um carácter festivo que não tinha.

Quando vejo as minhas imagens dos anos 90 só me dá vontade de rir [riso]. Aqueles casacos com enchumaços, o cabelo horrível. Nunca tive ninguém que me dissesse que ficava mais bonita loira do que morena, que me ficam melhor as cores claras do que as escuras. Quem mudou a minha cara foi a Cristina Gomes, que é uma das melhores maquilhadoras do país, para mim a melhor. A Marina Cruz foi determinante na alteração do meu visual em termos de cabelo.

 

Quem era antes da televisão? Vamos atrás, a si e às suas circunstâncias, para perceber como veio dar a esse sítio.

Esta Judite de Sousa que conhecemos nasce no Porto. Cresce com a mãe, com as tias maternas e com a avó materna. Cresce sem pai porque os pais nunca foram casados. Faz o ciclo preparatório na Escola Pêro Vaz de Caminha e o liceu no Carolina Michaëlis. Fui sempre marrona [riso]. Aos 18 anos, em razão das dificuldades financeiras da família, e das suas próprias, precisa de arranjar um emprego. O jornal que se lia na minha casa era o Jornal de Notícias, que a minha mãe comprava religiosamente aos sábados e aos domingos. Sempre me interessei pelas notícias, não sabendo o que era o jornalismo. E via muita televisão, a RTP, claro. Adorava ver os Festivais da Canção, deliciava-me com as lantejoulas da Alice Cruz, com os vestidos da Ana Zanatti, com os filmes da Elizabeth Taylor.

 

Sonhava com elas, com esse glamour?

Não, o que queria mesmo era ser professora. Respondi a um anúncio que vinha publicado no Jornal de Notícias, que não fazia referência à RTP, mas que pedia dois jornalistas estagiários para uma empresa pública de comunicação social. Mandei o meu currículo, que eram duas linhas. Judite de Sousa, nascida em 1960, 2º ano do Curso Complementar do Liceu com média de 18, e a minha fotografiazinha.

 

Como é que era aos 18 anos?

Era uma espécie de Beatriz Costa, tinha o cabelo preto com uma franjinha. “Ninguém me vai contactar”, pensei. Isto foi em Agosto. Na véspera de Natal recebo um telefonema em casa. Estava seleccionada para fazer uns testes no Monte da Virgem no âmbito do concurso. Quando cheguei estavam 500 pessoas. “Coitada de mim”... Era a que tinha menos habilitações e era a mais nova. Havia muita gente de Letras, Psicologia, Engenharia, quase todos licenciados.

 

Em que é que consistiam os testes?

Os testes eram exigentes. Era preciso falar, escrever um texto com base em notícias de jornais, fazer um improviso para a câmara sobre um tema à escolha, e uma língua estrangeira. Passadas duas ou três semanas telefonaram-me a dizer que tinham sido admitidas duas pessoas, eu e um jovem licenciado em Filosofia, o Fernando Maia Cerqueira, vice-presidente da Ongoing. Foram estas duas almas que entraram nesse concurso público em 1979. O meu primeiro ordenado foram nove contos, duzentos e cinquenta [escudos], que utilizei logo para tirar a carta de condução. Depois estivemos cinco meses em Lisboa a fazer um curso de jornalismo televisivo no centro de formação da RTP. Passado um ano fui para Macau.

 

É um pouco difícil imaginá-la com 18 anos, vinda do nada, e com a garra suficiente para ser escolhida entre aquelas pessoas.

Entrei no mercado de trabalho [nestas condições]. Hoje não entraria. Digo isto com muita pena, mas nos últimos 30 anos as condições, em termos de desigualdade social, agravaram-se dolorosamente. Se fosse hoje não seria a pessoa que sou. Entrei para os quadros da RTP sem conhecer ninguém. A minha mãe não conhecia ninguém. Orgulho-me muito desse passado.

 

Que tipo de conversas tinha com a sua mãe?

Tínhamos uma relação de grande proximidade. A minha mãe era uma trabalhadora têxtil, uma mulher de trabalho. Saía às cinco da manhã, via-a ao fim do dia. Praticamente fui criada com a minha avó materna. Nunca teve que se preocupar comigo, nunca lhe dei trabalho. Fiz parte do quadro de honra do Carolina durante anos. A minha mãe nunca me pediu para ser boa aluna. Sempre apresentei resultados. Emprestava os meus cadernos e os meus livros às minhas amigas de bairro, porque fazia muitos sublinhados, tirava muitas notas. A partir dos 18 anos dá-se um afastamento físico. Começo a trabalhar. Quando regresso de Macau sou outra pessoa, e caso.

 

A marca da sua mãe em si, mais do que tudo, é a do trabalho?

É. Há bocado falei em Marx; também tem a ver com a minha militância na UEC [União dos Estudantes Comunistas], há coisas que ficaram, ficarão para sempre. Tenho muito respeito pelas pessoas que lutam para conseguir o que querem na vida. Os meus modelos são pessoas que sempre trabalharam muito. Como naquele livro do Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, dedicado aos filhos dos homens que nunca foram meninos. A minha mãe sempre lutou muito para criar condições para que nada me faltasse, e eu sempre procurei transmitir esta mensagem ao meu filho.

 

Tinha um quarto seu?

Dormíamos no mesmo quarto.

 

Por que é que nunca se perdeu?

É uma boa pergunta. Sempre tive uma boa cabeça. Comecei a fumar com 16 anos e levei uma sova da minha mãe que nem imagina. Mas nunca toquei em drogas. Nunca fumei haxixe na vida, não sei o que é. Sempre soube distinguir o bem do mal.

 

O âmbito da minha pergunta era mais amplo. Seria fácil não trabalhar, seria fácil não persistir no caminho do estudo, perdendo o norte.

Não, sempre existiu essa cultura de exigência.

 

Quem é que queria impressionar?

É uma coisa que tem a ver com a minha natureza. As minhas memórias são de uma miúda que se sentava sempre na primeira fila, mas não era para impressionar os professores, era para aprender melhor. Às vezes levava umas grandes reguadas porque na escola primária, a D. Alice, a minha professora, fazia perguntas para o ar, ou dirigidas a colegas, e se elas demorassem mais de dez segundos a responder, eu respondia antes delas. Era feio fazer isso. Não tive ninguém a puxar por mim, a impor-me horários para estudo, a dizer-me que devia seguir este caminho e não aquele, que a melhor opção profissional era esta e não aquela.

 

E com o seu pai, que tipo de contacto é que teve?

Conheci o meu pai já numa fase avançada da minha vida. Tinha dez anos. Sou uma pessoa marcada pela ausência da figura paterna. A partir do momento em que conheci o meu pai mantivemos uma relação não de pai e filha. Só existem relações de pais e filhos quando existe uma proximidade intensa ao nível dos afectos. Há situações que os laços de sangue não resolvem.

 

Ele era aquilo que sonhava? Uma criança que cresce sem o pai faz uma mitificação de quem é essa pessoa, das coisas que podem fazer juntos.

Não, nunca tinha pensado nisso. O meu pai pura e simplesmente não existia na minha vida, e quando passou a existir foi em circunstâncias que também não interferiram muito no meu quotidiano.

 

Quando é que passou a ser feliz?

Quando comecei a trabalhar. Este trabalho ou outro qualquer. Ter a minha autonomia, ter o meu espaço, a ideia da realização através do trabalho, foram sempre os meus principais valores. Isso aconteceu com o jornalismo mas estou convencida de que aconteceria também se me tivesse dedicado a uma carreira no ensino.

 

Quando regressou de Macau, foi estudar.

Já era uma jornalista minimamente conhecida, apresentava o País, País e o País Regiões, e fui para os bancos do liceu de Gaia fazer o 12º ano. Quando voltei de Macau achava, e bem, que para fazer bom jornalismo tinha que ter um bom enquadramento cultural. Entrei na Faculdade de Letras do Porto, onde fiz História, já casada, já grávida. Começa a perceber o que quis dizer há pouco? Uma pessoa que trabalha, estuda, tem uma gravidez, tem um filho e está casada, estas cinco coisas ao mesmo tempo, alguma vai ficar para trás.

 

O que ficou para trás foi o casamento?

De certa forma.

 

O que é que mudou tanto em Macau? Voltou de lá outra pessoa.

Foi óptimo. Como deve imaginar, depois do que lhe contei, nunca tinha andado de avião. Acho que só tinha ido uma vez a Vigo com a minha mãe, comprar bacalhau e azeite, aquelas coisas que se iam comprar à Galiza porque eram mais baratas. Em Macau não havia televisão, havia a Rádio Macau, em cantonense. Daí que saiba falar um bocadinho de chinês. Com algum treino ainda posso entrevistar o presidente da Three Gorges [riso].

 

Conte mais da aventura em Macau.

Primeiro que se chegasse a Hong Kong, eram 48 horas. O avião parava em tudo o que era sítio. Comecei por viver no Hotel Sintra. Fazia o horário da manhã, começava a trabalhar às cinco. Fumava imenso, tomava muitos cafés. Estamos em 1979. Comprava tudo aquilo de que gostava. Ganhava nove contos, duzentos e cinquenta na RTP, fui para Macau ganhar 50. E tinha tudo pago, a casa, a água, a luz e o telefone.

 

Passou a ter uma camisola de caxemira de cada cor, uma blusa de seda de cada cor?

Era uma desvairada, uma consumista. Quando voltei de Macau o meu pai disse-me: “Trazes dinheiro para comprar um carro?”. “Não, gastei o dinheiro todo” [riso]. Passava quase todos os fins-de-semana em Hong Kong (conheço Hong Kong como a palma da minha mão). Aproveitei para conhecer o sudoeste asiático. Quis fazer 21 anos em Pequim. Fui de comboio, três dias a partir de Hong Kong. Passei o Natal de 1980 no Japão, onde vi uma orquestra sinfónica a tocar na principal avenida de Tóquio, umas 300 pessoas. Cresci muito como mulher e como pessoa através destas experiências.

 

Abriu-a para o mundo. E profissionalmente?

Tive uma grande oportunidade. O Afonso Rato era amicíssimo do cônsul da França em Hong Kong, e em Maio de 1981, quando se realizam as eleições presidências francesas, em que o François Mitterrand é eleito pela primeira vez, o Afonso diz: “Queres ir a Paris fazer as eleições francesas? Os franceses de Hong Kong oferecem-nos a viagem”. Nunca tinha ido a Paris. Foi o meu primeiro trabalho como enviada especial.

 

Quando é que o dinheiro deixou de determinar a sua vida?

Nunca determinou. Nunca dei importância nenhuma ao dinheiro, sou completamente desprendida. Não sou uma tola, não tenho dívidas, tenho o empréstimo da minha casa. O meu contrato na TVI não foi negociado por mim, foi negociado pelo meu advogado.

 

Já está numa escala em que não é o próprio a negociar o contrato, é o advogado.

Não sou boa a negociar. Gosto dos meus prazeres, gosto dos meus pequenos luxos. Estamos em tempo de crise, é difícil falar disso.

 

Casou com um homem rico.

Acha? [riso] Casei com um homem de uma família tradicional das Beiras. Quanto à riqueza, vivemos do nosso trabalho, é importante que se saiba.

 

Ia perguntar se tinha orgulho em ser você a sustentar as suas jóias e as suas malas?

Tenho. Toda a minha história de vida não condiz com dependências em relação a terceiros, sejam de que natureza for. Sempre quis depender de mim própria. Aquilo que tenho, aquilo que as pessoas vêem, é resultado do meu trabalho. Ser dependente de um homem é uma coisa terrível na minha cabeça. Isso remete para a ideia da dondoca.

 

O seu marido é autarca e é do PSD. Se agora estivesse na RTP, teria uma tutela que é da mesma cor política.

Quando a tutela era do Nuno Morais Sarmento também estava na RTP, e também era directora-adjunta de informação. Nunca fui prejudicada nem beneficiada em termos de estrutura por ser [uma tutela] do PS ou do PSD. Fui directora-adjunta de informação com um governo do PS e com um governo do PSD. Para felicidade minha, creio que as pessoas que tutelam a área da comunicação social sempre olharam para mim com respeito profissional. Eu sou eu e aquilo que represento profissionalmente, e aquilo que valho profissionalmente.

 

Em relação à actividade política do seu marido, tem cuidados extraordinários para delimitar zonas de influência?

Raramente vou a Sintra. Fui à câmara, tratar de questões que tinha que tratar com ele, umas três ou quatro vezes em 12 anos. Nunca fui a festinhas de bombeiros, nunca fui aos teatrinhos que existem na vila ou nas aldeias próximas. Fui ao Centro Cultural Olga Cadaval ver os cantores de que gosto (Luís Represas, Rui Veloso, Mariza ou Pedro Abrunhosa) meia dúzia de vezes, e sempre muito discreta. Nunca estive envolvida em actividades partidárias, em jantares de partidos. Sou convidada, mas nunca fui a jantares oficiais em que se levam as mulheres.

O Manuel Luís Goucha quando me vê chama-me a primeira-dama de Sintra, mas sei que é por graça, e acho graça. A verdade é que nunca permiti que houvesse esse tipo de colagem. Isto em termos pessoais. Do ponto de vista profissional, toda a gente percebeu ao longo dos anos que uso o mesmo registo quando entrevisto um político do PSD, do PS, do PCP ou do BE.

 

Não se aconselha com ninguém?

Com os meus livros.

 

O que é que lê?
Ensaios, romances. Leio Fernando Savater, sou muito ajudada por ele a pensar a vida. Leio ensaios sobre comunicação, sobre comunicação política. Agora estou a reler os clássicos, a Anna Karenina, o Phillip Roth, que descobri há cerca de dois anos.

 

A zona dos afectos, no seu discurso, é aquela que a faz ter mais hesitações, ou uma tremura na voz.

Não estabeleço com as pessoas grande proximidade ao nível dos afectos, esse é o meu calcanhar de Aquiles. Preciso de gostar muito de alguém para me dar a conhecer integralmente. Como tenho essa característica, há pessoas que me acham distante, e que até podem confundir essa distância com uma certa arrogância. Mas não é real. “O ser humano tem muitas esquinas”. Encontrei esta frase num romance da Rosa Montero e é a minha cara.

 

Queria perguntar se se prepara para dar entrevistas como se prepara para fazer entrevistas?

Preparo-me [riso]. Só dou entrevistas quando tenho alguma coisa para comunicar. Não sou uma tonta que ande a dar entrevistas por dá cá aquela palha – esse exercício é descredibilizador. Agora vou entrar numa fase de algumas entrevistas porque passam 12 meses sobre a minha entrada na TVI; é natural que as pessoas tenham curiosidade em saber como estou, o que é que penso. E claro que me preparo porque uma pessoa consciente deve preparar o que diz. Respeito muito a comunicação, quer seja através da pergunta quer seja através da resposta.

 

 

Publicada originalmente no Público, em Janeiro de 2012

 

 

Teresa Pina

10.12.13

Teresa Pina assume como seu o espírito da Amnistia Internacional: “Lutar para pôr fim aos abusos e violações de direitos humanos em todo o mundo, acreditando que essa luta se faz todos os dias, em todos os lugares”. A nova directora-executiva da secção portuguesa explica porque é que é preciso continuar a lutar.

A Amnistia Internacional é provavelmente a maior ONG do mundo. Tem mais de três milhões de membros e apoiantes, está em 150 países. Em Portugal tem cerca de 11 mil sócios e uma equipa de 12 pessoas agora dirigida por Teresa Pina. A nova directora-executiva foi jornalista da SIC-Notícias e assessora de imprensa de José Sócrates. Estudou Direito, fez um mestrado sobre liberdade de expressão. Tem 40 anos, um filho que nasceu em Maio e uma vida nova.

 

 

No filme de Renoir, “This Land is Mine”, Charles Laughton lê a Declaração Universal dos Direitos Humanos e diz que é o mais belo texto que alguém já escreveu. Subscreveria isso?

Sim. E sublinharia que em democracia, em Estados de direito, as coisas nunca estão ganhas. Quando chegaram os primeiros relatos de Guantánamo parecia impossível que aquela prisão existisse, no berço de uma terra de liberdades. Havia pessoas detidas, sem acusação formal, violando todas as normas de Direito internacional e os mais elementares princípios de justiça. É uma situação contra a qual a Amnistia Internacional [AI] se tem batido e que demonstra que some things are not given things. Temos de lutar por elas todos os dias, do zero.

 

Vamos começar pelo princípio – antes de mais: é o princípio?, Londres e o mestrado que foi fazer na Birkbeck College.

Não é bem o princípio. Sempre fiz voluntariado durante a faculdade, em várias organizações. Na APAV, na Comunidade Vida e Paz com sem-abrigo. Sempre tive vontade de participar. Porquê? Quando me candidatei a este lugar, foi uma das perguntas que me fizeram, e não sei bem responder.

 

Depois de anos no mundo do trabalho, meteu licença sem vencimento e voltou a estudar. O que é que foi mais surpreendente numa babel como Londres?

A coisa mais impressionante foi perceber que, em relação a Portugal, Londres ou Paris ou Berlim são de facto o centro. São mundos imensos onde acontece tudo, onde se pode ter várias vidas.

 

Também estava a começar uma nova vida. Não sabia era isso. Ou sabia? Intuía, pelo menos?

Era uma pausa sabática. A médio prazo, gostaria de aplicar os conhecimentos que adquiria de alguma forma. Mas nunca pensei que fosse esta. Uma coisa de que me apercebi assim que cheguei: não ia ter tempo para ir a todas as conferências que havia só na minha faculdade e só na minha área (nem falo de cinema ou de outras disciplinas). Tudo era apetecível. Com os melhores especialistas – da ONU, de instituições do mundo inteiro.

 

Conferências para discutir, por exemplo, o quê?

A invasão do Iraque. Um dos meus professores foi advogado do movimento que tentou levar Tony Blair a tribunal. Trabalha no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem casos importantíssimos, foi signatário dessa proposta. Nessas conferências tínhamos a impressão de que participávamos nas coisas que acontecem no mundo. De um modo directo, imediato.

 

O que é que aprendeu nas aulas?

Nos trabalhos para [fazer] em casa, pediam-nos que organizássemos uma série de documentos, legislação internacional, textos de autores. Eu fazia, essencialmente, uma reprodução, por vezes crítica, de outros. Mas os meus professores começaram a perguntar-me porque é que nunca dava a minha opinião. O que eu devia fazer nos meus essays era começar por dizer o que pensava e ter um argumentário para o sustentar (baseando-me nos autores que tivesse lido). Em Portugal (e falo da minha experiência) somos ensinados a reproduzir o que vem nos livros. Mas ninguém nos faz ver que o mais importante é saber pensar.

 

Quando isso aconteceu, era uma mulher intelectualmente madura.

Exacto. Mas academicamente, foi uma revolução.

 

Tinha uma opinião sobre cada um dos assuntos? As situações têm uma complexidade tal que faz que a resposta não seja preto e branco.

Havia temas em relação aos quais tinha uma opinião formada. Por exemplo, como jornalista, tinha estado na Holanda a fazer reportagem sobre o uso do véu islâmico e o multiculturalismo holandês. Reflecti sobre o assunto. Mas sobre o uso de véus integrais, não tenho uma resposta líquida. A própria AI reconhece que há áreas em que a resposta é cinzenta.

 

Começou a trabalhar na Amnistia em Londres, logo depois de se ter instalado. Era um complemento, uma extensão prática do mestrado?

O meu objectivo era ter qualquer coisa que me permitisse praticar inglês. Achei que o que fazia sentido era uma ONG de direitos humanos. Ver como é que funcionavam na prática. Por sorte, havia procura de pessoas a falar português.

 

Por causa da África lusófona e do Brasil?

Sim. Foi uma grande oportunidade. Não falava assim tanto inglês (falava mais português) [riso], mas foi a maneira de entrar. Fiquei como voluntária.

 

Quanto tempo demorou a sentir que a televisão era uma coisa longínqua?

O movimento, as oportunidades, a excelência de Londres é tanta que ao fim de uma semana já nem me lembrava do que é que fazia em Portugal. É verdade. Rapidamente somos envolvidos e nos esquecemos da vida que tínhamos.

 

Um ano depois, regressou a Lisboa. Animada com que espírito?

Quando voltei, não pensei, por contraste, que Portugal era o fim do mundo e que não havia nada para fazer. Achei que podia aplicar muitas das coisas que aprendi. Por ter uma formação heterogénea, e por ter tido e criado estas oportunidades, tinha vontade de fazer coisas diferentes do jornalismo. Ou, continuando no jornalismo, de fazer coisas diferentes daquelas que fazia. Voltei com vontade de mudar muita coisa. E muito mais aberta.

 

Quis ser advogada, jornalista? Fez uma incursão na política (e já lá vamos) antes da AI. Tem um caminho errático.

Por falar em coisas que não são lineares: comecei por estudar Medicina, [num tom irónico] por três singelos meses. Fiz Direito. Já queria o Jornalismo. Mas queria um curso que me ajudasse a compreender o funcionamento das instituições, as relações entre os órgãos de soberania, os diversos poderes. No fundo, o que sempre quis foi fazer uma coisa que tivesse impacto público – no sentido de contribuir para a causa pública.

 

Trabalhou como assessora de imprensa de José Sócrates. A política pareceu-lhe um caminho possível?  

Tinha curiosidade em participar nesse mundo. O que é que aprendi? Que não é fácil governar um país [riso]. Fiquei a conhecer melhor o país real. Apesar de ser jornalista e de lidar com assuntos de política todos os dias, não tinha isso. No país real podemos perceber a distância que há entre um programa de televisão, onde se discute com os melhores comentadores ou jornalistas, e a vida das pessoas.

 

Desencantou-se com o jornalismo?

Não. Desencantar não é o termo. Trabalhar em televisão, quase sempre em estúdio, consome muito as pessoas. O próprio modelo esgota-as. Chega a ser angustiante o conforto do estúdio, a discussão teórica, interminável. São tantas horas, todos os dias... Eu queria fazer outras coisas. Tendo desenvolvido outros interesses, achei que tinha chegado a altura de [seguir outro caminho].

 

Como é que foi dar à AI em Portugal?

Vi um anúncio no jornal. Concorri. E fiquei. Houve várias provas, um processo de meses. Para começar, uma longa prova em inglês, com mais de cem candidatos, que era eliminatória. Na fase seguinte houve uma entrevista com um júri internacional. E por fim testes psicotécnicos, também com carácter eliminatório.

 

Como descreveria os portugueses em relação ao tema dos direitos humanos?

Creio que os portugueses são um povo profundamente tolerante. Mesmo que se diga que Portugal é um país inculto, distanciado dos grandes temas, os portugueses registam com desagrado a violação dos direitos humanos. Em relação à pena de morte (para os delitos comuns, Portugal foi o primeiro país da Europa a abolir a pena de morte), continuamos a ser um país de referência. Um país avançado como o Japão recentemente voltou a aplicar a pena de morte. Ao mesmo tempo, os episódios de violência doméstica continuam a ser barbaramente frequentes em países como Portugal e Espanha, o que diz bastante sobre a situação da mulher e o respeito pelos seus direitos.

 

É fácil mobilizar as pessoas para as causas da Amnistia?

A alma da AI são os voluntários, as pessoas que reservam uma parte das suas vidas a lutar pelos direitos humanos. Apesar da crise, constatamos que as pessoas querem participar, querem contribuir, inclusive financeiramente. Nos últimos seis meses houve um aumento da participação e de angariação de membros.

 

Entretanto teve um bebé. Em breve regressará ao trabalho. Tem já prioridades definidas?

Quando saí (de licença de maternidade) uma das apostas em Portugal, como noutros países, era referente aos países do Norte de África e Médio Oriente. O desafio é apoiar nas suas aspirações democráticas e na luta por direitos e justiça social as populações que viveram a Primavera Árabe. Estas revoluções levaram às ruas populações inteiras e deram às mulheres lugares de destaque. Uma delas, a jornalista e activista iemenita Tawakkul Karman, foi uma das três mulheres distinguidas com o Nobel da Paz de 2011. Eram coisas impensáveis há uns tempos, e ainda mais se pensarmos que se tratou de um movimento espontâneo que derrubou, um após outro, ditadores de regimes sanguinários com décadas. Infelizmente, países como a Síria não conheceram essa abertura, e noutros a repressão persiste. Mas é uma Primavera que certamente se estenderá por muitas outras estações e que a Amnistia não se cansará de apoiar.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2012. 

 

 

 

Fernando Medina

08.12.13

Fernando Medina é um socratista no defeso? É um político ambicioso? O futuro do PS passa por ele? Foi secretário de Estado de Vieira da Silva, primeiro no Emprego, depois na Economia. Foi porta-voz do PS. O futuro do PS passa, indiscutivelmente, pela sua geração. A que cresceu em liberdade.

Licenciou-se em Economia no Porto, fez um mestrado em Sociologia Económica no ISEG. Foi assessor de António Guterres, em 2000. Foi dirigente associativo. Está para ser muitas coisas. É deputado do PS. 

  

Vou falar com um socratista no defeso?

[gargalhada] É um bom arranque.

 

Provocador.

Exactamente. Diria que sim, no sentido da convergência com as prioridades políticas que foram assumidas na governação do Partido Socialista, e que todos os dias surgem reforçadas como prioridades essenciais para o nosso desenvolvimento e para ter um modelo alternativo ao modelo de baixo salário. E não, no sentido personalista que a sua pergunta tem. Sempre tive, tenho, autonomia crítica de pensamento para não haver esse acantonamento.

 

Também posso perguntar de outra maneira: se estou a falar com o Fernando Medina, com o ex-secretário de Estado do Governo Sócrates, e se sente que tem neste PS, que não é aquele em que teve maior protagonismo, a liberdade para falar em nome próprio, apesar do seu estatuto de deputado.

A entrevista é com o Fernando Medina, deputado do PS, ex-membro do Governo do PS. Tenho um único chapéu, que sou eu, com esse passado. O PS é um. Está num ciclo diferente, mantém uma extraordinária capacidade para acolher a diversidade e para fazer o debate no seu seio. Sinto-me confortável neste espaço, onde sempre disse o que pensava.

 

Então pergunto ao Fernando Medina (e não ao partido) se seria possível fazer diferente do que vem sendo feito pelo Governo PSD, a despeito do vínculo ao memorando com a Troika que o PS assinou.

Há três coisas nucleares sobre gerir este programa de ajustamento que correspondem a erros que nos estão, e nos vão, sair muito caros. O primeiro dos quais é política externa. Esta é uma crise sistémica, não é uma crise nacional. É uma crise da construção da zona euro no seu fundamental, não é uma crise de dívida pública.

 

Dado isso por adquirido, sabemos também que nem todos os países têm a mesma dívida pública nem reagiram da mesma maneira ao embate da crise.    

Já lá vou. (Uma das características do tempo em que vivemos é que não podemos cair na simplificação de problemas complexos.) Política externa. Portugal assinou um acordo numa circunstância política dada, onde as correlações de forças a nível europeu eram as que eram, e não eram favoráveis a um melhor programa do que aquele que tivemos. Pelo contrário. As circunstâncias políticas eram de um exacerbamento do discurso moral sobre o sul da Europa, no qual Portugal está, e sobre um determinado caminho de saída da crise.

 

Discurso moral?

É o traço dominante, do norte virtuoso contra o sul cigarra (na expressão que alguém trouxe recentemente), e que marcou o desenho dos programas de ajustamento. Hoje o quadro é muito diferente, fruto da vitória de Hollande, mas, fundamentalmente, do alargamento da crise. O alargamento da crise a países como Espanha ou Itália obrigou a uma mudança do quadro europeu.

O que Portugal deve ter é uma atitude de aproveitar ao máximo todos os pontos de liberdade que conseguir dentro da negociação da política europeia, ao mesmo tempo que, dentro desse espaço, não se equivoca em que lado está.

 

Foi para si surpreendente (estou a perguntar se realmente o surpreendeu) o endurecimento das medidas de austeridade depois de Draghi e o BCE terem dado uma folga ao avançar com o novo programa de compra de dívida?

Não me surpreendeu. Essa é a crítica frontal que se pode fazer a este Governo, e que faço com clareza, sem ser o primeiro. Quando [Manuela] Ferreira Leite, na entrevista [à TVI], questiona: “O que é que se passa com as negociações? Eu teria ido bater o pé”; quando Maria João Rodrigues afirma que tem dúvidas sobre o modo como o Governo português se defendeu relativamente à situação europeia – isso resulta de uma convicção clara: o Governo português não teve nunca, desde o início, uma estratégia de procurar a melhoria do programa de ajustamento. Acha que é o correcto, que deve ser aplicado, porque isso expiará os nossos pecados. Ao longo do último ano assistimos a várias declinações, algumas particularmente infelizes, que espelham isto mesmo: a sintonia com o fundamental do programa – que isto é um problema de despesa, que é um problema de dívida, que é um problema de nível salarial na competitividade, e que temos de fazer o ajustamento neste caminho e desta forma.

 

Mais do que tudo, isto torna patente uma determinada estratégia? Um entendimento diferente do memorando?

[Revela] a existência de uma estratégia que, na minha opinião, é errada. E aqui voltamos à raiz do problema. Esta crise (não estou a escamotear os inúmeros problemas que a sociedade portuguesa tem, que a economia portuguesa tem) não tem isso na sua origem. Acho até surpreendente que uma parte das nossas elites (não só partidárias) vão repetindo à exaustão o problema da origem da crise e a sua solução não olhando para o que se passa na Europa toda.  

Dois países. Um já está intervencionado e o outro será uma questão de dias e de cosmética (sob a forma como se vai falar). Países que durante anos foram apontados como sendo exemplares na gestão das suas finanças públicas e do ponto de vista das reformas estruturais [tendo em vista a] competitividade. Falo da Irlanda e de Espanha. Encontraremos toneladas de relatórios, de FMI’s, UE’s, a elogiar todos os processos! E constatamos pelos indicadores objectivos que os níveis de dívida, no caso da pública, eram relativamente baixos.

 

Mas o país com que nos comparavam era a Grécia, e não a Irlanda e a Espanha. A percepção era a de que estávamos muito mais afundados.     

O que vivemos hoje nos países periféricos é uma realidade que decorre da mesma circunstância. Aderimos a uma moeda que foi percepcionada, porque tinha instrumentos próprios que o asseguravam aos mercados, como sendo um moeda sem risco. O que levou à convergência quase total das taxas de juro dentro dos vários estados soberanos. Se vir o que foi a evolução dos spreads desde a adesão ao euro até às vésperas da crise fica impressionada com a convergência. Convergência que aconteceu independentemente das evoluções das dívidas públicas dos países. A crise deflagra quando este mecanismo de seguro é quebrado.

As melhores pessoas para explicar isto são insuspeitas, porque não são nem portuguesas nem socialistas. George Soros, Martin Wolf do Financial Times. Quando se quebra o seguro depois da falência do Lehman Brothers; quando se percebe, porque [Angela] Merkel o diz, que afinal não há nenhum mecanismo de seguro e que cada país está entregue às suas responsabilidades... Isto começou por onde? Pelos bancos, pelo impacto da falência dos bancos. Seguidamente dá-se o estalar da crise grega. De 2009 para a frente assistimos a um recrudescer da crise, com tomadas de decisão ao nível do Conselho Europeu que... nem sei como qualificar; mas que não tinham em vista resolver a crise. Tudo isto vai acontecendo até à tomada de decisão recente do BCE – de credor de último recurso.

 

Posso inferir, a partir do que disse, que estão a tentar salvar o euro e o projecto europeu, e essa pessoa não é Angela Merkel? A chanceler alemã, com uma liderança firme, e que defende os interesses da Alemanha, pôs em risco todo o projecto europeu?

Julgo que pôs, que põe. Ainda é cedo para dizermos como vamos sair disto. Seguramente vamos sair pior. Muito pior.

 

Em que é que se traduz o “pior” e o “muito pior”?

Cresci numa época em que a Europa era vista como um grande espaço de liberdade e uma referência de desenvolvimento. Aquilo com que a minha geração e as seguintes vão ter de lidar é com o realinhamento do país face a uma realidade europeia fracturada entre os países do norte e os países do sul. Ainda não sabemos como é que é tudo isto se vai casar. Tudo está a acontecer a uma velocidade vertiginosa. Há quatro anos, quando a crise estourou, pensar em discutir o fim do euro, era absurdo. 

 

A falência do Lehman Brothers, primeira grande deflagração da crise, também seria impensável, não muito tempo antes.

É verdade. Mas uma parte importante da Economia viveu sempre de estudar as crises financeiras, o seu deflagrar e as suas respostas. Mas tínhamos uma expectativa diferente de como se resolveria. Achávamos que a Europa, quando chegasse a altura, agiria. A decisão do BCE vem em 2012. Não veio em 2009. Três anos de sangria até que viesse uma decisão de estabilização. Este tempo de resposta espelha a fractura norte-sul. A sangria foi nos países da periferia. Quando se falou dos primeiros fundos de resgate, Merkel não queria. A sua primeira resposta foi que era um programa americano, e não europeu. Poucas semanas depois estava a intervir nos seus bancos.

Vamos assistir nos próximos anos a uma recomposição desta Europa, que não sabemos como vai terminar. Vai ter um teste de fogo decisivo nos próximos meses. Muito do que se passar no futuro vai ter a ver com a forma como se lidar com a Grécia.

 

A intervenção do BCE faz, para já, ganhar tempo.

Não sabemos quanto, mas faz ganhar tempo, em relação à Itália e à Espanha. Ajuda naturalmente Portugal e a Irlanda. Mas não resolve o problema grego.

 

No Financial Times desta semana diz-se que é preciso que Portugal não se confunda com a Grécia. Durante meses deixámos de ouvir essa comparação (porque fomos o bom aluno de que fala o Governo); esse fantasma reapareceu?

Sou economista de formação. Tenho mais tendência para procurar na realidade económica do que nos feelings, nas imagens que o sistema vai criando sobre si próprio. Na base dessas percepções está a evolução dos indicadores económicos, e é isso que está em causa. Não seremos a Grécia se o programa funcionar, se for bem aplicado, e se a nossa situação for objectivamente diferente. Se nos aproximamos de uma situação em que a dívida pública chegará, pelas contas que agora são apresentadas, aos 124% do PIB..., estamos relativamente próximo da situação grega. Estamos num patamar diferente daquele em que esperávamos estar. 

 

Isso devolve-nos à questão inicial. O que é que era possível fazer de diferente. Segundo ponto.

O segundo ponto tem a ver com a atitude de prudência ou radicalismo na execução do programa. O programa prescrevia-nos duas coisas dificílimas. Pressupunha um contexto em que a economia internacional recupera, e uma redução dos níveis de dívida do sector privado em simultâneo com o sector público. Precisávamos de ter uma abordagem o mais cautelosa possível. Sabendo que o programa ia ter impacto recessivo na economia – estava inscrita no programa essa projecção – era tentar que ele fosse o menor possível. E tentar preservar ao máximo a economia como forma de preservar ao máximo o sistema social (que está assente na economia, no emprego, nos salários). Tivemos do Governo uma abordagem inversa. O objectivo era passar de um défice de 7,5 para 4,5 e com probabilidade o défice ficará nos 6,5. Foi feita uma terapia de choque ad initium à espera que tudo funcionasse quando nenhuma racionalidade apontava nesse sentido. Julgo que este é o grande erro na condução da política económica.

 

É isso que desamarra o PS da assinatura do memorando? Durante meses, mesmo estando na oposição, a sua acção estava tolhida pela assinatura. A partir de que momento o PS se pôde desamarrar?

O PS não se desamarra disso. Nem se está a desamarrar nem se pode desamarrar. Os que dizem (vou falar de algumas propostas políticas da extrema-esquerda) que temos uma alternativa, que é reestruturar e rasgar com a Troika, [incorrem] numa falsidade. Isto é não ter uma solução para os portugueses. Até a um regresso pleno e auto-suficiente aos mercados, que, na actual conjuntura, me parece extremamente difícil, incerto...

 

Em 2013 é impossível?

Pode haver formas de entrada mais graduais, e com a intervenção do BCE vão melhorar as condições de acesso ao mercado da dívida. Agora, que necessitamos de uma parceria com a dita Troika, é claro.

 

Então o caminho é a renegociação?

O caminho é ajustar em permanência o memorando aos interesses do país e às reais capacidades de ele ser bem executado e sucedido. António José Seguro tem sido irrepreensível na forma como se tem referido a isso. Estamos comprometidos com o memorando que assinámos, e não é só uma questão de honrar a assinatura. É ter a consciência de que necessitamos do apoio das instituições internacionais durante este tempo que estamos a viver. Vamos ver durante quanto tempo precisamos mais. Espero que seja o mais curto possível. Coisa diferente: a forma como o memorando é executado. Começa-se a ganhar hoje a consciência de que as coisas não estão a correr bem e a funcionar. É como a frase que Bill Clinton dizia na convenção democrática: o problema da estratégia dos republicanos é um problema com a aritmética. Aqui, também é um problema com a aritmética. Numa economia em queda, é impossível que o rácio da dívida pública não dispare.

 

O PS perfila-se como uma alternativa, no imediato, para resolver esse problema com a aritmética? Clara Ferreira Alves escrevia no Expresso da semana passada: “Se o PS existisse, este Governo já não existia”. É um modo de dizer como o PS tem sido (ou não tem sido) oposição.

A resolução do problema com a aritmética: antes do PS, é o país que está confrontado com ela. É a esse debate que estamos a assistir. Ou temos um plano de estabilização económica, de modo a estancar uma situação de bola de neve que só degradará os indicadores – todos – ou vamos para a estratégia que o Governo apresentou: siga em frente, acelerar e em força. Temos assistido a um debate intenso sobre a TSU e a crise política [que daí resultou]; ninguém reparou com tanta atenção no resto da conferência de imprensa onde foram apresentadas as linhas de orientação do orçamento.

 

Acredita que este Governo tem condições para acabar a legislatura?

Depende muito das escolhas em matéria de política económica neste OE e da capacidade para fazer a inversão. Se a estratégia for a de prosseguir da mesma forma, vamos ter uma situação de crise política, e mais cedo do que mais tarde. Não é possível pedir mais um sacrifício que não se demonstre que não tem qualquer tipo de resultado. 

 

Onde é que cortaria especificamente na despesa, sem cortar na despesa social?

Deixe-me recolocar a questão: nós não temos um problema de despesa. Nem Portugal tem, à entrada da crise e agora, indicadores de nível despesa pública que sejam maiores do que a generalidade dos países europeus.

 

Está consciente que se eu pusesse em título: “Nós não temos um problema de despesa”, pareceria bombástico.

Percebo-o no tempo em que vivemos. Portugal tem em 2011 um nível de despesa pública no PIB de 48,9%. A média da União a 27 é 49,1% e da Zona Euro é 49, 4%. (Fonte: Eurostat). Hoje fala-se da despesa pública como um mal. Como se toda a despesa pública fosse desperdício. Gordura. Grande parte da despesa pública está concentrada em pagamentos de pensões, funcionalismo público – estão aqui 65, 70% do bolo. Lembro-me bem de Eduardo Catroga dizer: “Temos de cortar no Estado gordo e paralelo”. Criou-se esta ideia mirífica de que há uma estratégia orçamental alternativa – a de cortar no desperdício.

 

Quem o ouve, parece que não há desperdício...

Claro que há. Mas algum político que lhe diga que tem uma estratégia para fazer redução de despesa assente no combate ao desperdício e à gordura, ou é ignorante ou está a mentir. O Governo cometeu esse pecado. Porque é que vê uma contradição tão grande entre o que o Governo prometeu e o que fez? Porque o que prometeu não era possível ser feito.  

 

Outra coisa é o problema da dívida.

É evidente que temos uma crise de endividamento global que atingiu os níveis que atingiu pela forma como o euro foi construído. Em moeda própria, nunca Portugal teria os níveis que tem. O endividamento é muito maior no sector privado que no público. Dois terços da dívida externa é privada. Está nos bancos estrangeiros que detêm os títulos sobre as hipotecas das nossas casas, empresas portuguesas e uma parte no Estado. 

 

Recuemos ao socratismo. A narrativa que se ouve nas ruas, nos cafés, nos taxis é a de que os bancos e o capital são poupados e os sacrifícios recaem sobre o cidadão comum. Isto começou com os casos BPN e BPP, com a intervenção nesses bancos?

É um discurso clássico da extrema-esquerda portuguesa. O PCP fê-lo antes do BPN e há-de fazê-lo depois de qualquer crise.

 

Pergunto de outro modo: porque é que acha que se intervencionou o BPN e o BPP? Porque é que não os deixaram falir?

É uma decisão muito controversa. Só tenho uma boa explicação: o momento. Não tomei a decisão, não participei na decisão, não fiz parte da equipa. Por isso estou à vontade para falar sobre esse tema.

 

Até para dizer que discorda?

Neste caso não vou dizer. Não consigo ter esse juízo crítico. A dificuldade de quem tem de tomar decisões é que as decisões não se tomam no abstracto. Nós, hoje, tomaríamos a decisão hoje. Mas a decisão teve de ser tomada num momento em que as televisões abriam com a falência do Northern Rock em Inglaterra. A questão avaliada foi: no meio da tempestade, vamos conseguir explicar às pessoas que isto é um caso de polícia e não é um caso de solvência do sistema financeiro? E se não conseguirmos, vamos ter uma corrida aos bancos? Foi esse o risco [ponderado] por quem tomou a decisão. Respeito muito quem tem de tomar as decisões difíceis nos momentos em que elas se colocam.

 

Nessa altura já tinha falido o Lehman Brothers.

E sabe do intenso debate que ainda hoje existe sobre as consequências de se ter deixado falir o Lehman Brothers.

 

Como se escrevia no Negócios na altura, num país como os EUA deixa-se falir um gigante como o Lehman Brothers. Num país como Portugal, invocando o perigo de risco sistémico, fazem-se intervenções em bancos onde tudo cheira mal.

Não acompanho essa crítica relativamente à decisão da nacionalização. A decisão tomada foi de prudência sobre a estabilidade do sistema financeiro. Mas há algo que posso dizer-lhe sobre o BPN: depois de tomada a decisão [de nacionalizar], a situação do BPN tinha de ter sido resolvida mais rapidamente. Muito tempo, muitos anos para um dossier destes não ser fechado. Sei as razões da opção que foi tomada: uma tentativa de privatização do banco e de uma valorização máxima dos activos que o banco tinha. Mas o dossier devia ter sido encerrado com mais rapidez, qualquer que fosse o cenário. Esta é a crítica que posso fazer. Uma crítica à nacionalização, não consigo fazer. Não consigo porque não sabemos o que teria acontecido no cenário alternativo. Os riscos eram muito elevados.

 

Não sei se já passou o tempo suficiente para fazer a exumação do cadáver do socratismo, ou se está disposto a fazê-lo. Em todo o caso, queria perguntar-lhe se a nacionalização do BPP e do BPN é verdadeiramente o começo do fim.

[pequeno silêncio]

 

E estou a dar de barato que o começo do fim não foi o Freeport e o caso da licenciatura de Sócrates, os processos paralelos que macularam a imagem do PM.

Primeiro, uma resposta à provocação do cadáver do socratismo: o balanço e a avaliação do que foram os mandatos de José Sócrates deve ser feita e tem de ser feita. Por todos. Sobre as linhas fundamentais do que foi o projecto político, acho que estão correctas. Com decisões controversas, erradas (não há nenhum Governo que não as cometa). O que precipitou a situação [de crise] política em relação a Sócrates foi a emergência da crise internacional (quantos governos caíram na Europa por causa da crise? Faço a pergunta ao contrário: mas há algum que se tenha mantido?). 

 

Viveu a situação por dentro. Era secretário de Estado e já era porta-voz do PS no contagem decrescente para o fim. Sócrates foi acusado de estar em negação. A Troika chegou com o chumbo do PEC IV, mas também quando os banqueiros disseram que estavam descapitalizados e precisavam de ajuda. A situação era inevitável e o pedido de ajuda deveria ter acontecido mais cedo?

Nesse ponto Sócrates foi muito injustiçado. Por todos os lados. Desde o momento em que a crise estalou, houve duas percepções: a negação da Europa relativamente à gestão da crise (foi a estratégia do “cada um que trate de si”); e Sócrates teve a consciência clara das dificuldades do quadro europeu...

 

Traduzido na célebre frase: “O mundo mudou”?

Não. Isso foi mais tarde. Os governos invertem, entre 2009 e 2010, de políticas expansionistas para políticas contraccionistas. Temos decisões do Conselho Europeu a exortar os países a estimular o investimento público para, meses depois, [aconselharem] políticas de contenção e rigor. A expressão “o mundo mudou” encaixa-se aí. Eu referia-me ao período anterior. Sócrates tentou até à última ter uma solução diferente da que conhecíamos na Grécia. Foi essa a luta do PEC IV. Era a forma de o Estado dizer: “Eu comprometo-me com isto, desta forma, e evito um resgate completo”. À espera de decisões a nível europeu – a tão esperada decisão do BCE, que aparece dois anos depois – ou da flexibilização dos mecanismos do fundo de estabilização. Foi nisso que Sócrates jogou, até ao limite.

 

Então não foram os banqueiros a exigir que se fizesse o pedido de ajuda? A discussão era: quem manda realmente? Os banqueiros ou os políticos?

Não, não, não. Sócrates tinha a noção de que o chumbo do PEC IV levava ao pedido de intervenção. Era uma decorrência. Conversámos sobre isso. Que lutou por uma alternativa diferente, lutou. Foi pena não ter sido bem sucedido. Ou não o deixarem ser bem sucedido.

 

É verdade que os bancos estavam sobrealavancados em relação às regras de Basileia? Tinham-vos feito saber isso? Alguém os deixou sobreendividarem-se.

Pergunta-me se devia ter havido uma intervenção prévia sobre diminuir rácios de endividamento dos bancos? Ao longo da última década? Que eu saiba, não. Está agora a ser feito num clima recessivo. Quando ouve dizer que as empresas não têm crédito, percebe de onde é que o problema vem.

A dificuldade era continuar o processo que tinha sustentado a situação financeira; isto é, os bancos fazerem aquisição de dívida pública e fazerem um refinanciamento no BCE. Hoje, essa é a realidade. A percentagem de dívida de curto prazo detida na mão de estrangeiros é residual. Ela só está num sítio: na banca nacional. Que continua a ter uma importância decisiva na detenção da dívida pública portuguesa.

A estratégia então desenhada a nível europeu era: são os bancos a comprar a dívida, que depois colocam no BCE, como forma de evitar e contornar o financiamento directo do Banco Central. Faça-se.

 

Tem 39 anos. Tinha – não sei se continua a achar que tem – um futuro brilhante à sua frente. É a sua geração que pode fazer disto uma coisa diferente? Sente esse peso? Sente que o seu momento ainda vai chegar? Muitas perguntas numa só, mas o foco é o da geração, do que se pode ainda fazer.   

Há dois aspectos críticos que vão marcar o quadro [futuro]. O primeiro vai ser a nossa relação com a Europa. A Europa vai conseguir retomar o papel simbólico de liberdade, desenvolvimento, esperança, que foi posto em causa? Se não conseguir, como é que Portugal se reposiciona? No fundo, é o desafio que o Prof. Adriano Moreira lançou há dias, da redefinição do que é um conceito de interesse estratégico nacional num quadro diferente daquele em que passámos os últimos 30 anos. Não posso dizer que esteja optimista.

O segundo aspecto cruza com aquilo de que há pouco falava: com o processo de desenvolvimento do país. Se há coisa que se impõe às próximas gerações é ter uma ideia clara do que são os pontos de bloqueio no país.

 

O principal está nos recursos humanos? Estou a falar com um ex-secretário de Estado do Emprego, que seguiu depois com o ministro Vieira da Silva para a Economia.

Competimos num contexto aberto, em que há [mão de obra] muito mais barata, que não queremos nem vamos voltar a ser. Mas ainda não temos a quantidade e a qualidade dos factores críticos que nos permitem estar no pelotão da frente. O erro crasso – e em algumas áreas quase criminoso – é abdicar de uma política de qualificação dos recursos humanos. Sabe quantas pessoas trabalham nas empresas portuguesas que têm o ensino secundário, bacharelato, licenciatura, mestrado, doutoramento? Tudo somado, é um milhão e meio. O país tem um problema de produtividade? Tem. Mas é um problema que reside essencialmente nesta fractura. A percentagem de população na agricultura é o dobro da percentagem que têm os países desenvolvidos. Se queremos fugir do modelo de desenvolvimento assente em mão de obra barata, fazemos isso com que base? Se não há política a, permanentemente, ampliar essa base, para tentar recuperar século e meio de atraso, não teremos [hipótese]. Há uma clivagem na sociedade portuguesa, até cognitiva. Temos um Portugal moderno, avançado, desenvolvido, que compete, que ganha lá fora, no sector empresarial, artístico, científico. Esse Portugal moderno olha muitas vezes para si e tenta descobrir porque é que o país não cresce, não funciona. O grande problema não está nesse Portugal. O problema é que esse Portugal moderno é muito pequeno. Por cada um que completou o ensino secundário completo, dois não completaram. Tem ideia que um miúdo de 15 anos, em média, ao entrar no décimo ano, está a ultrapassar a educação dos seus pais?

 

Com essa idade, desta geração, não.

Pois. Ter essa noção, leva-nos a um conjunto de políticas diferentes. Depois, tendo a consciência de que é essa a nossa realidade – a da fractura – como é que se lida com isto de forma a assegurar a coesão social e a igualdade de oportunidades?

 

Vamos repegar o segundo dos pontos de que falou inicialmente, quando lhe perguntei o que faria de diferente, antes de apresentar o terceiro.

Este fim de semana lia os jornais e as opiniões resumiam-se a isto: precisamos de mais austeridade porque não há outro caminho. Olho para os números e pergunto: “Como é possível propor isto?” Claro que há diferenças entre a direita e a esquerda, claro que há! É preciso sobretudo fazer a estabilização do PIB. Não digo crescimento. Não digo porque temos de ser realistas face aos recursos que temos à disposição.

 

E porque a dívida é para pagar?

Só teremos condições para a pagar quando tivermos uma economia a crescer, ou, pelo menos, estabilizada. Passámos de indicadores de dívida, no início do programa, que não chegavam a 110% do PIB e vão em 124%. A nossa dívida está a crescer.

 

Que é que, na sua opinião, aconteceria se não pagássemos a dívida? Cheia um pouco a conversa do Syriza na Grécia, eu sei. Mas levemos o exercício até às últimas consequências.

Acho que essa questão tem de ser posta com clareza. Se me perguntar como é que se paga uma dívida de 160% do PIB, eu digo: “Não paga”. Se estiver em recessão, não paga. Espero que tenhamos condições para evitar uma reestruturação da dívida. Ou então que, acontecendo, se dê no quadro de um processo ordenado e consensualizado. Um processo unilateral de reestruturação da dívida – de ameaça: não pagamos – é desastroso. 

 

Consegue resumir o terceiro ponto?

O terceiro ponto é a coesão. É irmos juntos nisto. Como comunidade. Evitar fracturas de natureza política, social. Disse este conjunto de coisas ao ministro das Finanças na primeira audição sobre o programa da Troika que tivemos. Disse-lhe: “A questão essencial é combater os quatro riscos à execução do programa. O risco da economia, da coesão social, política europeia e consenso político.” Se tivesse havido essa abordagem, muitas coisas ao longo deste ano seriam diferentes. No meio disto, precisávamos de colocar o problema da privatização das Águas de Portugal ou da RTP? Precisávamos de duplicar um programa de austeridade como foi feito? Precisávamos de ter introduzido uma fractura do ponto de vista social como aquela que é feita com o corte dos subsídios? Era necessário ter entrado para uma aventura política chamada TSU? E uma parte disto foi colocado exclusivamente por uma questão ideológica (o papel do Estado, o peso do Estado).

 

Não estava à espera de o ouvir dizer que é um animal feroz. Não é o seu estilo. Mas foi assim que Sócrates se apresentou numa entrevista, antes de ser PM. Estou a voltar ao ponto da partida (o de ser um socratista no defeso) para lhe perguntar se tem a ambição de uma carreira política?

Não. Se gosto da intervenção na vida pública, se isso me realiza? Sim. Se a política pública é o ponto central da minha motivação e aplicação, é. O exercício de cargos políticos e públicos: vejo-os com muita liberdade e autonomia. Devemos ter o desprendimento de não fazer da vida política uma carreira, uma profissão. A partir daí perde-se a possibilidade, até, de fazer uma entrevista como esta e de dizer o que se pensa.

  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

Pág. 2/2