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Anabela Mota Ribeiro

Os mais lidos em Janeiro

31.01.14

Os conteúdos mais lido do blog em Janeiro foram:

 

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2º Isabel do Carmo (dicas para emagracer)

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3º João Taborda Gama

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4º Emília, Miguel e Sérgio

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5º Pilar del Río

http://anabelamotaribeiro.pt/pilar-del-rio-85027

 

 

Eduardo Barroso

30.01.14

Em Março deste ano (2009), a equipa do cirurgião Eduardo Barroso fez o seu milésimo transplante hepático. A comemoração faz-se dias 20 e 21 de Novembro, na Gulbenkian.

Barroso convidou “os muito bons no mundo” a virem a Lisboa assinalar o facto. Mas convidou apenas “aqueles que os ajudaram”. Por “os” entenda-se o seu serviço, no Hospital Curry Cabral.

A comemoração serve de pretexto a um retrato na primeira pessoa.

Eduardo Barroso tinha decidido que não dava mais entrevistas. Mas deu. Queria falar dos mil transplantes. Não queria falar especialmente da distinção de que foi alvo, na China, apesar de ela ser muito recente. Como se isso não lhe interessasse. Não estava a fazer o número do modesto. Uma distinção na China afaga o ego e tal. Mas ele já sabe, e há muito, que é um dos melhores do mundo. Mas do seu serviço, da sua equipa, de como funciona esta máquina afinada, disso ele queria falar.

“Se for ao meu hospital, que é um hospital do Serviço Nacional de Saúde, eu não tenho desculpa. Tenho tudo para fazer bem. Tenho um bloco operatório que é dos melhores do mundo, uma equipa que é das melhores, uma tecnologia que me foi oferecida. O que é que me falta? Camas, e que o Governo (qualquer que ele seja) perceba que é um crime que a minha equipa não esteja só a fazer estas coisas. A minha equipa não devia estar a fazer hérnias e apendicites. Obrigam os meus cirurgiões a fazer urgências normais! É como ter um fórmula 1 para ir fazer compras no Chiado”. 

Comecei por outro lado. Esclareci, na conversa introdutória, que esta pretende ser uma entrevista-retrato. Ele não queria que se falasse apenas de ser um membro do clã Soares, dos charutos, do futebol. Não queria que se potenciasse um lado apatetado com que por vezes aparece. Nem com a língua demasiado destravada. Mas falou de quase tudo, e com grande naturalidade. Do pai ausente e jogador, da miséria sexual que se vivia no Portugal fascista, da amizade fraterna com Marcelo Rebelo de Sousa, de como sempre soube que ia ser um dos melhores, dos pesos na consciência.

Eduardo Barroso tem 60 anos. Só agora está a doutorar-se. Ganha muito dinheiro. Podia ganhar mais. Tem um ordenado líquido de dois mil euros líquidos. “Vai ser a minha reforma. Preocupa-me”.

Conversa em sua casa, no centro de Lisboa.

 

 

Porque é que não usa o apelido do seu pai, Garcia da Silva?

Boa pergunta. Na escola primária era o Eduardo Garcia. Durante o liceu fui o Eduardo Garcia da Silva. Na faculdade fui eleito delegado de curso e começaram a tratar-me por Barroso; por causa do meu irmão [Mário], do [meu primo] Alfredo, por causa da parte associativa e política – era sobrinho da Maria Barroso, que ia ler poemas. Até que um dia o Professor Jorge Horta disse: “Ninguém te conhece por Garcia da Silva. Tens de passar a ser Barroso”. No anfiteatro, em frente a 300 pessoas. O Professor Jorge Horta tinha sido professor do meu pai. O meu pai, que foi um pai ausente, costumava dizer na brincadeira: “Vocês são todos uns filhos da mãe”.

 

Furioso, porque não usavam os apelidos dele?

O Mário, [cineasta], é Barroso. A Graça – não sei se a viu dançar? – era Barroso. Para a minha mãe era simpático. Foi ela que nos educou e ajudou. O meu pai foi para a Índia e ficou lá até à invasão. Quando regressou já trouxe uma nova mulher. Os meus filhos são Garcia da Silva. Há uns tempos criticaram-me: “Ele usa o Barroso por interesse”. É inteiramente falso! Até ao 25 de Abril, Barroso não era [um apelido] brilhante. Não era o sobrinho do primeiro-ministro e do presidente da República. Era o sobrinho de um proscrito. Não era um cartão de visita que trouxesse benefícios no Portugal da ditadura. Tentei tudo para ser Garcia da Silva.

 

Porquê? No fundo, é a sua relação com o seu pai que está em causa.

É. O meu pai teve outro filho de outro casamento, o José Manuel Marinho. Havia aqui uma coisa quase de destino.

 

Destino? E porque é que tinha pena?

Eu nasci em 49. Só aos 12 anos é que conheci o meu pai. Foi para a Índia tinha eu um ano. O meu pai era médico militar e médico do Governador. O meu avô tinha sido reitor do liceu de Goa, e o meu pai nasceu lá. Eu tinha um desgosto enorme. Andei numa escola conservadora. Não era conservadora…, não é justo dizer isso da melhor escola de Lisboa, o Lar da Criança, da Bertinha Ávila de Melo. Foi onde fiz a primária e onde conheci o Marcelo Rebelo de Sousa. 

 

E aí era um Garcia da Silva.

Tenho uma história espantosa com uma colega, por quem tive uma paixoneta aos nove, dez anos, e que reencontrei na faculdade. “Ó Barroso, tens o mesmo nome que um colega meu da escola, de quem gostava muito, o Eduardinho”. “Eu sou o Eduardinho!”. Ela foi a melhor aluna do país na admissão à faculdade. Ana Maria. Foi uma pessoa de quem gostei muito.

 

Uma introdução ao primeiro amor?

Foi uma paixão muito duradoura. Durante anos, o meu sonho era que íamos os quatro, eu, o Marcelo e ela, passear.

 

O que é que o Marcelo estava a fazer nesse triângulo?

O Marcelo era o meu melhor amigo. Daqueles que ficam para a vida inteira. O quarto…, eu arranjava uma namorada para o Marcelo! Até ao quinto, sexto ano do liceu, pensei na Ana. Depois acabou por morrer no meu imaginário. Mas na faculdade percebi logo que era ela. Pareceu-me demasiado sofisticada, bonita. Já não era para a minha pedalada. Nenhuma namorada gira, com 16, 17 anos, olhava para os rapazes da mesma idade.

 

Excepto quando eles eram giros.

Olhe que eu não era mau. Nunca me correu mal a vida. Depende de para que se quer uma namorada.

 

Para quê?

A relação que o meu filho tem com a namorada (ele tem 24 anos e namoram desde os 17) era impensável no meu tempo. A nossa sexualidade era muito reprimida. Ninguém pensava fazer alguma coisa com uma namorada. Tinha-se uma namorada e depois tinha-se outras coisas.

 

Como é que era? Com estrangeiras?

Era com o que havia. Sim, com estrangeiras. Ia a Paris visitar o meu irmão Mário, que tratava de mim. Não imagina o que foi a minha ida a Paris em 68. Quando, em Portugal, contei as histórias do que me aconteceu, pensavam que estava a exagerar – e não contei metade! O meu irmão Mário tem só mais 16 meses do que eu, mas tem a mania que tem mais dez anos. Ele sabia que a vida sexual do irmão era uma tragédia. Estar em Paris, com o meu irmão e os amigos, e no fim de dois ou três jantares, as coisas surgirem com naturalidade, foi o deslumbramento.

 

Na sua cabeça, as mulheres que se “preservavam” eram as sérias, eram as mulheres para casar?

Só tinha um amigo que ia para a cama com a namorada. Era uma inveja bestial! Nós andávamos sempre à espera que houvesse algumas abébias. Contam-se pelos dedos de uma mão as namoradas que tive com essa idade e com quem tive uma relação semelhante à que têm hoje os nossos filhos. Entrar nos jardins da Sorbonne e ver dez pares a fazer amor, era uma coisa impensável! Aqui, não havia sítio para estar, sequer. Não havia dinheiro para hotéis. Passava-se o tempo nas filas de trás do cinema.

 

Onde estávamos era na ausência do seu pai, na infância.

Na escola, era o único que tinha os pais separados. Os pais do Marcelo e da Ana Maria tratavam-me com muita ternura. A Bertinha tinha uma preferência pelo Marcelo e por mim. Mas eu tinha muito desgosto por não ter o pai que eles tinham. Durante o liceu, quando foi a invasão de Goa, lembro-me de chorar por pensar que o meu pai tinha morrido. Mas era um pai que eu não sabia quem era.

 

Ele tinha dinheiro? Quem é que pagava a escola, esse estilo de vida?

A minha mãe trabalhava, era engenheira química. Tinha três filhos no Lar da Criança. Não tinha dinheiro para aquilo. (O meu pai era muito irregular a mandar os dinheiros. Vivíamos com desequilíbrio económico). A Bertinha disse: “O Eduardo fica, com uma bolsa”. Nunca paguei. Vim a saber depois que o meu pai, quando veio da Índia, trouxe uma jóia à Bertinha. De gratidão. Ela só me contou isso há poucos anos. Fiquei tão contente que o meu pai se tivesse lembrado de dar um alfinete à Bertinha.

 

E como era a relação com a sua mãe?

A minha mãe era o sustentáculo daquilo tudo. Um poço de ternura, mas um pouco deprimida. Chorava à noite. Punha-se a ouvir fados. Eu adoro fados. Havia um que ouvia repetidamente, da Lucília do Carmo. “Agora que entre nós tudo acabou, depois de tantas zangas e castigos, agora que tu estás vivo e eu também estou, podemos afinal ser bons amigos”. Era complicado não ter uma família feliz.

 

Durante esses anos, a imagem do pai era ocupada em parte por Mário Soares?

Também. Mas tinha outro tio, esse sim, que foi como se fosse meu pai (o José Manuel Duarte). Ia lá jantar uma ou duas vezes por semana, tinha o meu prato à mesa. O tio Mário tinha a sua vida própria; também esteve muito tempo no exílio e preso. Só mais tarde nos aproximámos muito. Sou da idade do João [Soares]. Entre o primeiro e o quinto ano de liceu, fomos colegas de carteira.

 

Esteve entretanto no Colégio Moderno. Experiência marcante?

Quando passámos para o liceu, a minha mãe trabalhava e fazia ginástica no Sporting – tinha uma vida muito ocupada –, e internou-nos no Colégio Moderno. Eu queria ter ido para o Pedro Nunes com o Marcelo. Fizeram uma turma com os grandes alunos. Eu era muito bom; devo dizer que foi a única vez que fiquei à frente do Marcelo. De estar internado, até gostei. Da coisa gregária. Do desporto. De ter sido delegado de turma – fui sempre.

 

Foi sempre esta criatura solar, egocêntrica, para quem os outros olham?

Egocêntrica? Você não me conhece!, porque é que eu hei-de ser egocêntrico? Eu tenho uma carta com o meu perfil psicológico aos meus oito anos. E está lá tudo. Dizia que eu me tornava antipático porque não gostava de perder. Que era muito competitivo e queria ser sempre o melhor. Que tinha grandes qualidades de líder. Que tinha facetas de alguma vaidade e narcisismo.

 

Reconhece-as como sendo características fundamentais?

Acho que sim. Entendo que devemos fazer um esforço para ser melhor do que os outros. Isso é que nos mantém ao nível dos mais altos standards. A ambição, neste país, é tida por coisa pejorativa. Eu sempre fui muito ambicioso. Claro que ao ler aquilo – quando tenho a mania que sou desportista e sei perder – percebo que provavelmente não sei desde os oito ou nove anos. Também lá estava o brio.

 

E a capacidade de liderança.

Coisa esquisita: a Bertinha criou umas casas e os alunos eram organizados em casas. O equivalente a grupos. As casas competiam com jornais de parede, estrelas para os melhores alunos, no desporto. Os melhores eram os presidentes de cada casa. Eu preferi ser tesoureiro da casa de S. Roque, que tinha o Marcelo como presidente, do que ser presidente da casa de S. Pedro.

 

Preferia ser o número dois dele do que tentar que ele fosse o seu número dois.

Ele ser o número dois era impensável. Ele não quereria. Um teve que ceder, cedi com naturalidade. Do que me lembro, até aos dez anos, não é da minha casa: é do Lar da Criança. Na minha casa não havia ninguém: eram duas empregadas e a minha mãe que chegava a seguir ao jantar.

 

A sua mãe foi atleta do Sporting. A sua relação com o Sporting vem daí?

Também. Quando nasci, o meu pai fez-se sócio do Sporting. Podia ter sido um médico brilhante… Mas habituou-se à vida das colónias. Uma vida de desbunda. Era novo, gostava da vida, era mulherengo. Quando o fui ver pela primeira vez, não sabia quem ele era. Só das fotografias. Ele estava aos pulos no aeroporto. Com uns calções brancos e os galões militares. Os filhos estavam a chegar, entregues a um amigo, numa viagem que demorava 30 horas. O meu pai jogava muito. Bridge.

 

Dizia-me que o Público não tem o bridge ao domingo, o que é uma maçada. Aprendeu com o seu pai, presumo.

Aprendi a jogar bridge na Índia. Quando o meu pai regressou a Lisboa, só o via em duas ocasiões: quando precisava de um parceiro para jogar bridge, ou para o futebol.

 

O Bridge era uma forma de estar com o pai?

Sim, isso e o Sporting. Depois íamos comer um bife ao Nicola. No quinto ano da faculdade tive uma apendicite e tinha um exame no dia seguinte. “O pai veja lá, não quero ser operado, quero fazer o exame”. Começaram por me pôr uns sacos de gelo, atrasar a operação – já fiz isso com um jovem que ia casar no dia seguinte e que tinha uma peritonite. Fiquei a jogar bridge, com o meu pai, o José Gameiro e outro, e fiz directa até ao exame. O meu pai ainda me chateou porque só tive 18. Fiz o exame aflito com dores. Acabei às 11 e fui operado às 11 e meia.

 

Exigia tanto assim de si?    

Tinha um lado louco. Quando se é novo, não se gosta muito disso… O meu pai morreu num dia em que foi ao casino e lhe correu mal. Morreu de enfarte. Ia ao casino todas as noites – uma tragédia. Não bebia. Fumava muito, cigarros. Era um jogador compulsivo, estragou a sua vida com o jogo. Eu, aliás, tenho esse gene.

 

Chegou a jogar?

Sim. Proibi-me de jogar a mim próprio. Há dez anos que não entro num casino. Gostava muito daquilo. Ainda agora fui à China e fui mostrar Macau à minha mulher; eu não queria ir ao casino, mas o guia insistiu. Fiz quatro lances, ganhei, e parei! Inacreditável. Não parei por forretice. Parei porque aquilo não me estava a dar gozo. Para dar gozo tinha de estar ali umas horas e jogar à fartazana.

 

Alguma vez sentiu vergonha do seu pai?

Vergonha, não. Mas grandes problemas económicos, sim. Grandes dívidas de jogo. Percebi que também gosto daquilo, daquela adrenalina – sobretudo roleta. Perde-se o dinheiro, trama-se a vida. No dia em que ele morreu, depois de fechar a igreja onde esteve a ser velado, fui ao casino jogar nos números dele. Apetecia-me comunicar às pessoas que o meu pai tinha morrido. Toda a gente sabia. “Vou fazer-te esta homenagem”. Sete, 17, 27, 31. Perdi tudo.

 

Foi para se despedir dele.

Sim. O meu pai, quando morreu, tinha 75 anos; foi há 12 anos. Percebia, quando era tão generoso a dar-me dinheiro, que as coisas tinham corrido bem. Outras vezes, estava teso. Continuava a fazer consultório, tinha uma clínica enorme. Geralmente cravava o último doente para o pôr no casino. [pausa] Mas você só tem a família, o jogo, o Édipo!

 

Estou só a tentar compreendê-lo. Já vamos aos transplantes.

Eu não me queixo disto. Eu adorava jantar em casa dos meus amigos…

 

Adorava a normalidade?

Exacto. E os meus amigos adoravam o meu pai. Já viu o que é jantar fora com o meu pai e os meus amigos, o criado não vir e o meu pai pegar fogo à cortina? O meu pai não era pai. Os outros pais diziam: “Não fumes, não bebas”. O meu pai dizia: “Então, namoradas? Essa não presta. Não bebes um copo?”. É verdade que sempre fui um grande estudante.

 

Ele gostava disso?

Eu pensava que ele não ligava, mas quando fiz exame de anatomia, tive 18. Fazer Anatomia era tão formal que nesse dia fui ao barbeiro, e usei um fato com colete que a minha mãe mandou fazer num alfaiate do Conde Redondo. Havia uma balaustrada e o meu pai estava em cima, sem eu sonhar que o meu pai ia ver um exame meu. Deu-me cinco contos – “Vai festejar!”. E desapareceu. Penso que até estava comovido.

 

Comove-se?

Sim, qualquer coisa e fico logo com um nó na garganta. Tive algumas tragédias na vida, mas não lhe vou falar disso. Já tive ocasião de chorar muito.

 

Além do bridge e do Sporting, outra coisa o ligava ao seu pai: a Medicina. Decidiu ser médico por causa do seu pai?

O meu pai tinha um desprezo profundo pelos cirurgiões. Quando escolhi a especialidade, os bons alunos não escolhiam cirurgia. Sempre quis ser cirurgião. Acho que tem a ver com o [facto de ser] manual. Em criança, abria os ursos de peluche da minha irmã. O meu pai achava que não éramos médicos, que éramos magarefes.

 

O interesse pela cirurgia tem que ver com o extirpar a raiz do mal?

Sim, sim. Houve uma fase da minha vida em que estava dependente da cirurgia. Ao cabo de dez dias de férias tinha umas saudades de operar… uma coisa patológica.

 

É um compulsivo.

Sim, só que aí foi bom. Nunca experimentei cocaína, heroína, coisa nenhuma. Nunca passei de uns charros – em Paris, no Maio de 68. Mas nunca gostei.

 

Fez-se um cirurgião de sucesso. O seu pai assistiu a isso?

Assistiu. Esteve no meu último exame da carreira hospitalar. (Os meus exames sempre tiveram anfiteatros cheios). Um dos elementos do júri fez-me um elogio que o meu pai detestou. O Dr. Jorge Girão, que eu admirava muito. “Nunca conheci um cirurgião que tivesse a capacidade de se relacionar com os doentes da maneira brilhante com que você se relaciona – isto sem sacrificar os valores científicos”. À saída, o meu pai dizia: “Foi um elogio mixuruco!”. Eu achei que foi o maior elogio que me fizeram na vida profissional. Não estava em causa a capacidade técnica. Eu já tinha estado em Cambridge, já era um cirurgião destacado.

 

Porque é que esse elogio o comove tanto?

Estou sempre a atirar isto à cara aos meus colaboradores. Às vezes, numa visita, mais importante do que propor uma intervenção, está a festa na mão de uma senhora de idade. Um colega dizia-me: “Ó Eduardo, tu tocas muito nos doentes”. Sempre foi o meu estilo. Dou muitos beijos na testa das minhas doentes. Sai-me.

 

Com quem aprendeu essas coisas?

Por mim. E com o meu chefe, Câmara Pestana. Foi meu mestre na cirurgia. Ensinou-me que é proibido tratar um doente pelo número da cama. Nenhum dos meus colaboradores se atreve a dizer: “O doente da cama 15 tem febre”. O senhor Joaquim, que está na cama 15, tem febre. Doentinho? Não. Só se tiver seis ou sete anos. Ensinou-me a relação delicada e cuidadosa com os doentes. Nisso, não tenho rival. Não há-de ouvir-me um elogio técnico a mim próprio ou à minha equipa.

 

Porquê?

Tenho sete cirurgiões a trabalhar comigo a quem ensinei tudo o que é importante. Alguns já são melhores do que eu. Isto é que é um elogio técnico. Não há no mundo – não estou a dizer na Europa, estou a dizer: no mundo – nenhum serviço de transplantes e cirurgia do fígado que tenha os sete cirurgiões que eu tenho. Na China, mostrei os nossos números…

 

Foi à China receber um prémio pelo “extraordinário contributo” nesta área.

Eles já me conhecem. Se apresento 140 transplantes feitos por ano, nos últimos anos, sabem que é verdade. Quando começámos, diziam: “Lá está o bazófias do português”. Disseram: “Mas tens sete cirurgiões seniores?!”. Se em Portugal fôssemos maiores, estaria condenado a que alguns fossem saindo, a que fossem convidados para ir para outro sítio. Um, agora, vai sair. Percebo que tem que ter as suas asas.

 

Partilha o que sabe porque não teme a concorrência? Não teme que sejam melhores e que o suplantem?

Mas eu quero que eles me suplantem! Tenho jovens com 35, 37 anos, que já fizeram 400 cirurgias do fígado! Eu, com a idade deles, tinha feito 20, 25 e já era um expert. Já viu?, eu tenho ali a nata da cirurgia portuguesa para os próximos anos. Dá-me um orgulho brutal.

 

Como é que se transformou no cirurgião que é?

A mim, não me espantou. Sempre achei que naquilo em que me metesse havia de ser um dos melhores. Alguém que na escola primária já era dos melhores alunos, que fez o liceu e continuou a ser dos melhores, que jogou futebol e era dos melhores (fui convidado para jogar na Académica e no Oriental, profissional, mas o meu pai não me deixou); na faculdade, continuei a ser dos melhores; no internato de cirurgia, fui dos mais novos do país a fazer os concursos. E depois ia chegar a cirurgião e não era dos melhores?

 

Podia ser o melhor e não ser capaz de montar esta equipa que tem. Esta máquina.

Para se ser melhor, é preciso [praticar]. Quando trabalhei no Amadora-Sintra, o outro director de serviço tinha trabalhado com um grande cirurgião hepático. Nunca tinha feito – ele – uma cirurgia ao fígado, e tinha 50 e tal anos. Está tudo dito, não é? O que comecei por fazer foi… fazer, e quando fazia, ensinava, e quando ensinava, deixava as pessoas andar para a frente. Quando me fizeram aquele ataque miserável [na revista Visão], insinuando que eu não fazia as cirurgias e que depois as recebia… Apresentaram-me como um pária, como um chulo do trabalho dos meus colaboradores. Quando, na minha opinião, aquilo devia ser enaltecido.

 

“Aquilo” é dar-lhes a possibilidade de fazerem sozinhos. Mas não fez sempre isso.

Houve uma altura em que não deixava ninguém operar. Foi a fase da minha formação. Quando vim de Cambridge queria fazer tudo, sozinho. Ninguém sabia fazer, tinha de ser eu a ensinar. Mas depois, percebi que tinha de promover os melhores. Hoje, tenho os três melhores europeus a trabalhar comigo.

 

Foi para Cambridge em 1983. Foi lá, verdadeiramente, que aprendeu o que sabe?

Aprendi a fazer transplantes. O meu professor em Cambridge é um candidato ao prémio Nobel. É um cientista, também.

 

Cambridge reforçou a sua auto-estima?

Em Cambridge percebi que era muito melhor do que os gajos. Já era. Fui para lá com 35 anos. Eles – os gajos que me formaram – eram melhores do que eu no transplante – que eu não sabia o que era. Fora o transplante, eu era muito melhor. Porquê? Eu tinha números de cirurgia em que eles nem acreditavam. “Lá está o gabarola!”. Só mais tarde perceberam que era verdade. Tínhamos uma escola de cirurgia de urgência, única na Europa. Que destruíram. A Unidade de Urgência Cirúrgica de S. José, onde me formei. Chegávamos a fazer 20 a 23 operações por dia. Hoje, no meu serviço, fazem-se uma a duas por dia. 

 

Mas onde é que radica toda essa confiança?

A confiança vem de perceber que somos iguais aos outros, quer cá dentro, quer lá fora. Com trabalho, com estudo, com o prazer que eu tinha a aprender… O Dr. Câmara Pestana deu-me muitas oportunidades; uma vez veio à sala onde eu estava a fazer uma cirurgia complicada. “Precisas de mim?”. Como eu hoje faço com os meus. Ficou meia hora atrás de mim, a ver como eu fazia, e saiu com ar trombudo: “Já não precisas de mim!”. Ficou-me gravado. Claro que eu precisava dele! A estes jovens, às vezes apetece-me dizer: “Não estou cá a fazer nada!”. Estão na força da destreza física, do prazer de operar… 

 

Ainda tem prazer em operar?

Tenho menos. Tenho mais prazer, agora, em que me chamem por uma dificuldade, e eu resolver a dificuldade.

 

Ser o velho mestre.

Talvez. Às vezes acho que me chamam para me manter a auto-estima. Também já me chamaram em situações em que fui fundamental. Quando eu fiz o primeiro transplante, você não imagina a situação dramática em que eu estava!

 

Nunca tem medo de falhar?

Ah, imenso. Ainda agora, este jovem, testemunha de Jeová, a quem fizemos um transplante, e que não aceitou que fizéssemos transfusões, fez-nos [medo]. Não me pergunte o que faria se ele precisasse de sangue; acho que não lhe faria transfusão, porque aceitámos essa condição.

 

Como é que vive com os seus falhanços?

Pessimamente. Um doente morre-nos, não por um erro – o erro em Medicina tem muito que se lhe diga – mas por uma opção que tomámos, e que se revelou não ser a correcta, tenho meia dúzia desses casos na minha consciência.

 

Na consciência?

Sim. Que a opção foi errada. Na altura, com a convicção de que era a correcta. Mas que conduziu à morte do doente.

 

E depois, vai-se abaixo? Como é que é?

Vou-me abaixo. Quando comecei o programa [de transplante] com o Dr. Pena, correram-nos bem os três primeiros. No quarto, correu bem, mas o doente já estava em morte cerebral – não avaliámos bem. O quinto, correu bem, fomos jantar à Portugália, mas o doente morreu-nos dois dias depois. Eu não queria fazer mais. Queria desistir. O Dr. Pena aguentou aquilo, e fizemos 22 bem. Não quero imaginar o que teria sido se o sexto também tivesse sido uma tragédia.

 

Achou que não era bom?

Achei que não tínhamos condições estruturais. Quando vim de Cambridge, eu sabia que sabia fazer transplantes. 

 

Esta entrevista está a acontecer sobre a hora do jantar. A seguir vai fazer um programa de televisão. E às seis da manhã vai fazer um transplante. Tem a cabeça muito arrumada.

Pensa que tenho de me concentrar para ir dizer umas boutades sobre futebol? Nem me lembro que estou no programa! 

 

Não há nada que interfira na concentração de que precisa para operar?

Não. Não.

 

Uma crise em casa, nem isso?

Eu tive a prova de fogo: tive uma crise familiar, a mais grave que se pode ter na vida, e consegui continuar a trabalhar e a dirigir um serviço. Às vezes sabe Deus como? Sim. Se toda a gente percebeu que eu não estava a 100%? Toda a gente percebeu. Uma vez fui ter com o meu director do Amadora-Sintra e disse: “Vou parar, vou desistir da Medicina”. Dois ou três dias depois, disse: “Desculpe aquela fraqueza”. Claro que tudo influencia. Até o Sporting perder um jogo decisivo – o meu estado de espírito não é o mesmo. Se no dia a seguir à morte da minha mãe fui operar com o mesmo estado de espírito? Não fui. Há coisas em que ainda sou imprescindível. Por exemplo, uma re-intervenção em vias biliares.

 

Porquê o fígado?

O meu mestre era perito em vias biliares. Veio o fígado por acréscimo. Achei que precisava de aprender a fazer o transplante, e fui para Cambridge.

 

Em que condições foi?

Era um jovem cirurgião da clínica privada, florescente, a começar a operar muito, a ganhar muito dinheiro. Chegava ao fim do mês e tinha para charutos, para carro. Aos 35 anos, decidi que ia deixar aquilo tudo, e ia para um sítio onde ia ser tratado como um cão. Nos primeiros seis meses em Inglaterra, chegava a casa e dizia à Manuela [mulher]: “Vamos fazer as malas, não estou para aturar isto”. É-se tratado como um cirurgião de quinta. Eu tinha vendido o meu Alfa-Romeo (giríssimo), tinha deixado casa própria (um duplex), o consultório…

 

Esses brinquedos já não o entretinham. Precisava de se superar?

A razão é essa. Eu precisava de aprender. Tinha a convicção de que o transplante viria a ser uma rotina. E na altura, havia um centro na Europa e outro nos Estados Unidos, com resultados mixurucos.

 

Qual é o papel do dinheiro na sua vida?

Em Cambridge arruinei-me. Comi o volante, as jantes e tal. Tive muitos apoios, e esgotou-se o dinheiro que tinha. Não é impunemente que se está dois anos, apenas, com uma bolsa de 300 libras. Nessa altura, troquei. Hoje, se fôssemos fazer isto que fazemos na privada – era assim [estala o dedo], amanhã. Quando deixei a CUF Descobertas, abdiquei de muitos milhares de euros por mês.

 

O que resulta da reportagem da Visão é que estava deslumbrado com o dinheiro.

Que é que posso fazer? Aquilo fez-me chorar convulsivamente! Eu que tinha deixado de ganhar metade do que ganhava para ir para os hospitais [públicos], e apresentarem-me como um mercenário que só fazia isto por dinheiro… Quando comecei, cheguei a vir da Madeira, pagar o meu bilhete de avião e voltar. Os transplantes não eram pagos. Não fui eu que inventei o regime de pagamento dos transplantes. Apareceu quando o Governo da altura, há 15 anos, resolveu criar um regime de incentivos para que as pessoas fizessem transplantes, e não estava previsto que chegasse a este volume.  

 

Como é que tudo se processa?

Com o dinheiro que o Hospital me dá por transplante, que não chega a metade do que o Hospital recebe, eu pago a mais de 150 profissionais. Ninguém recebe uma hora extraordinária. Só ganhamos se fizermos, mas estamos sempre prontos. E se estivéssemos dois meses sem fazer, estava toda a gente de prevenção na mesma. Aquilo foi uma coisa deliberada, para me atacar.

 

Atacá-lo pessoalmente?

Sim. Aliás, a “cacha” foi oferecida a uma colega sua da SIC, que me ligou. “Vamos lixar o Barroso”. Sei exactamente quem vendeu aquilo ao jornalista [da Visão]. Quando ele me perguntou: “Não faz um transplante de rim há cinco anos?”. Eu, que fiz mais de 350 transplantes de rim, e que ensinei a fazer transplante de rim a imensa gente, caí na ingenuidade de dizer: “Não, talvez há dez”. Eu não percebi que ele ia pôr: “Não faz um transplante renal e recebe o dinheiro”. Não percebi que o que estava em questão era o dinheiro. Aquilo foi também porque eu estava na ASST [Autoridade para os Serviços de Sangue e da Transplantação], e era para atingir o Correia de Campos. Feriu-me muito. Espero não encontrar essa pessoa na rua…

 

É do estilo de dar bengaladas?

Sim, tenho uma no carro. Também por causa de um colega seu e de uma coisa que escrevi n’ A Bola. Tenho essas duas coisas para resolver. O Marcelo disse-me: “Não o processes”.

 

Continua próximo do Marcelo? Foi a única pessoa de quem não se importou de ser número dois.

É verdade. Espero que ele seja só candidato a presidente da República. Porque vou ter que apoiá-lo. Quando ele foi presidente do partido, eu ia votar pela primeira vez PSD. Chegou a sair n’ A Capital: “Sobrinho do clã Soares apoia Marcelo”.

 

A política, nunca o seduziu?

Não.

 

No PREC foi com o José Gameiro para Cuba, no Alentejo, trabalhar como médico.

Isso foi na infância. Criámos o serviço médico à periferia. Na altura, tudo era político. Foi uma fase muito generosa, ingénua. Eu era do MES, mas não me deixaram ser deputado. Fui para o MES porque me fui oferecer ao PS, com o Daniel Sampaio, e não nos aceitaram. Éramos uns perigosos… sociais-democratas! A política nunca foi o meu campeonato. É verdade que eu nunca fui daquela esquerda. A destruição da hierarquia da competência e do valor individual era para mim uma contradição inultrapassável. Achava que não somos todos iguais. Você tem um Figo, um Ronaldo, um Quaresma, e tem mais 700 jogadores; alguns, não prestam para nada. Aceitamos isto para os jogadores de futebol, mas na carreira médica achamos que todos podem fazer tudo e o doente que se lixe. Não é verdade! 

 

Como são as suas mãos?

Normalíssimas. Fui operado em 75. Cortei os tendões a jogar futebol no Alentejo. Achei que não ia ser cirurgião. Se não fosse um grande cirurgião, era aí um grande internista, um grande psiquiatra.

 

Um grande.

Claro, tinha de ser dos melhores. Sabe que a cirurgia não está aqui [nas mãos]. Está aqui [na cabeça].

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009

   

 

Dürer

30.01.14

Um gentilhuomo fita a posteridade com assertividade e mistério. É um artista reputado, que regressa a Nuremberga depois de uma (fundante) viagem a Itália, e se revê ao espelho do seguinte modo: olhar compenetrado, cosmopolita, enamorado de si. Albrecht Dürer retrata-se em 1498 e escreve: «Pintei-o segundo a minha figura. Tinha 26 anos». Naquele ano aconteciam coisas tão extraordinárias quanto a chegada à Índia pela armada de Vasco da Gama ou uma majestosa Virgem nos Rochedos pintada por Leonardo da Vinci. O artista alemão publicara já Apocalipsis, viajara por uma Europa em ebulição, bebera do espírito do seu tempo. Quando posa, sabe da eternidade que lhe é reservada, mercê da modernidade e experimentação, e sabe, sobretudo, que deixou de ser um ourives filho de um ourives.

No famoso auto-retrato de 1498, Dürer usa uma indumentária sofisticada. A escolha denuncia as suas viagens («A minha capa francesa saúda-o e a minha roupa italiana também!», escreve numa carta) e uma promoção social que o destaca dos artesãos do seu tempo. Em lugar de mostrar as mãos com que materializa o seu trabalho, opta por escondê-las numas luvas de pelica, reservadas aos homens de estatuto social superior. É um artista consciente de si mesmo, que se projecta como quer ser recordado. Tem a noção de que o trabalho oficinal fora elevado a uma nova condição. Aquilo que faz, é arte.

A janela que rasga para o exterior, ainda no auto-retrato de 1498, confirma a presença da Renascença. Há um mundo que se desvenda, em perspectiva, e que contempla campos cultivados ou o degelo nas montanhas. Na Europa opera-se uma mudança absoluta de paradigma a partir de um núcleo de cidades italianas. Um quadro de florescimento económico possibilita, e coincide, com um desenvolvimento das vias da cultura. Carlos V é eleito imperador com a preciosa ajuda do banqueiro Fugger, (de quem tomou de empréstimo 850,000 florins), e aglutina o sacro império romano, os Países Baixos e o império espanhol. Gutenberg imprime a primeira Bíblia em 1460 e levanta pela primeira vez questões relacionadas com a reprodução mecânica. A pulverização da riqueza e a afirmação do homem como medida de todas as coisas, (denominador de todos os Renascimentos), permitem a abolição de uma noção teocrática da existência. Anos mais tarde, cerca de 1517, Nuremberga é tocada pelo espírito da Reforma e devora os escritos de Lutero. Erasmo de Roterdão protagoniza o pensamento humanista e revela-se uma celebridade. Era um mundo estilhaçado, em reinvenção, e Dürer quis tomar parte dessa espantosa mudança.

Foi o terceiro filho de um total de 18 que o casal Barbara e Albrecht tiveram. Procediam, ambos, bem como o padrinho de Dürer, de famílias de ourives. Quinze das crianças morreram. Escrevem estudiosos da sua obra que o contacto com a obscuridade da morte e a resplandecência do ouro foram seminais na sua infância. Mas é verdade que os sentidos metafóricos oferecem sempre leituras poéticas da realidade. Frequentou a escola e estudou aritmética e latim, iniciou a sua aprendizagem no atelier do pai e compôs um primeiro auto-retrato com apenas 13 anos. Um desenho singelo que ficará como um dos primeiros auto-retratos da história da arte europeia. Suspeita-se que tenha tido, nesta empresa, o auxílio do pai...; todavia, é notável a precocidade do talento que aqui revela.

Para converter-se num artista completo, como pretendia, era forçoso dominar a forma, experimentar as matérias, traduzir as suas ideias em desenhos. A formação foi prosseguida, na adolescência, em oficinas de artesãos que admirava. Aprendeu a integrar a pintura e a ouriversaria, a fazer pigmentos, gravar na madeira ou dourar. Mas num momento de ruptura como aquele que se vivia, a viagem até ao coração do mundo, o diálogo com o seu tempo, o contacto com a obra de artistas como Mantegna, foram igualmente determinantes na sua formação.

Dürer destacou-se por ser um artista poliédrico, que acompanha a modernidade e frequenta os círculos humanistas. Dotado de uma curiosidade meticulosa, foi um observador infatigável da realidade, que retratou recorrendo a vários suportes. Muitos dos desenhos, (anotações de viagem feitas no correr dos dias), foram posteriormente integradas nas suas pinturas e gravuras. A minúcia e o virtuosismo técnico do seu trabalho permitem-nos, hoje, contactar com um período fervilhante da história da Europa, e destacam-no como o mais importante artista renascentista a norte dos Alpes.

Quando pintou A Lebre, a sua obra mais famosa, gozava já de uma reputação sólida. A publicação do livro Apocalipsis consagrou o seu trabalho como gravador e legitimou este suporte. A par das encomendas, especialmente centradas em motivos canónicos, o artista alemão aderiu a um território de pura experimentação. A realidade que se desenrolava ante os seus olhos exercia um claro fascínio sobre si. Os cadernos de desenho de Dürer compreendem interesses que vão da zoologia à botânica, da anatomia à mitologia. São páginas que condensam influências várias _ tradição e modernidade, religião e natureza, gótico e Renascimento. Tudo tende para uma harmonia artística, para uma reprodução exacta da natureza _ aí se encontra a justa medida.   

A Lebre: a plumagem é de uma macieza que apetece tocar. Mas o que mais impressiona é o momento em que Dürer enclausura o animal. Um instante decisivo entre «a quietude sossegada e a predisposição para saltar e fugir, sinalizada pelos olhos alerta e pelas orelhas erguidas», (como se escreve no catálogo da exposição do Museu do Prado). Muito se discute acerca das condições em que o quadro terá sido pintado. Os especialistas inclinam-se para a possibilidade de o estudo ter sido feito a partir de um exemplar de caça morta. Ou seja, de o pêlo, as orelhas, as patas e outros detalhes serem copiados de um coelho doméstico e depois devidamente adaptados à lebre que Dürer pretendia incluir na sua “Arca de Noé” desenhada. Considera-se que «dada a natureza medrosa de uma lebre, domesticável com dificuldade, é improvável que o animal se deixe pintar numa posição tão tranquila». A Lebre, datada de 1502, inaugura um novo tipo de quadro: o retrato animalista. Do mesmo período, constam amostras de micro-cosmos vegetais, detalhes da asa de uma ave_ pintados como se se tratassem de naturezas mortas_, aguarelas de carácter narrativo com a Virgem e uma multitude de animais.

A produção de Dürer é abundantíssima e diversificada. Mas será na gravura que ela encontra o seu ponto de maior maturação. Prova disso são, por exemplo, S.Jerónimo em casa e Melancolia. O primeiro recupera uma fixação do artista na figura do visionário e ardente autor da Vulgata (tradução das Sagradas Escrituras do hebraico para latim). É uma circunstância singular esta que aqui é retratada. O doutor da Igreja aparece em casa, e não no deserto, como era habitual, e irradia uma serenidade que contrasta com o temperamento irascível que lhe era atribuído. No gravura ganham destaque os veios da madeira, a luz que escorre da janela, o enchimento das almofadas, o halo do santo _ além de todos os objectos simbólicos que rodeiam a figura de S. Jerónimo: a ampulheta, a caveira, os livros, e, claro, o fiel leão.

Mas é Melancolia a gravura mais analisada e interpretada por especialistas de diversas disciplinas (médicos, matemáticos, astrónomos, historiadores de arte). É uma obra enigmática, que tem, ao centro, uma mulher circunspecta e, ao canto, um quadrado mágico _ as várias leituras resultam sempre no número 34. Quem é esta mulher de rosto escurecido, de compasso na mão e livro fechado no regaço? Que significado têm as plantas enredadas numa coroa que lhe sustem o cabelo? Muitos julgam ver aqui um auto-retrato de Dürer perturbado pela morte recente da mãe. Ou um Dürer pesaroso e triste, acometido de um ataque de bilis _ daí a cara enegrecida_, como são um pouco todos os artistas. (Ao contrário da tendência medieval, que atribuía a este temperamento características negativas, os filósofos neo-platónicos do Renascimento, consideram que da melancolia resulta genialidade e máxima criatividade.)  

Este humanista, por muitos apelidado de «O Leonardo do Norte» (tal o paralelismo que é possível estabelecer com o mestre renascentista), legou um retrato escrupuloso da sociedade da sua época. Pintou assuntos religiosos e profanos, santos, amigos, animais, a natureza, o corpo humano. Cantou a glória imperial de Maximiliano I, que o nomeou pintor da corte e lhe concedeu uma tença vitalícia; contudo, esta foi interrompida com a morte inesperada do imperador. Na sequência do episódio, amargo e desiludido, Dürer empreendeu uma longa viagem com a intenção de pedir ao sucessor do trono a restituição da renda_ o que lhe foi concedido. Morreu em 1528, depois de anos antes ter contraído a malária. Não deixou descendência. Agnes, a sua mulher e testamentária, não merecia a simpatia dos contemporâneos, mas cuidou da sua obra e fortuna. Não é certo que amigos seus tenham exumado o cadáver e feito moldes de gesso do rosto e das mãos, mas a história, rocambolesca, corre.

A exposição que o Museu do Prado, em Madrid, lhe dedica, e que decorre até fim de Maio, recorre quase exclusivamente ao espólio da Albertina de Viena, o museu onde se encontra grossa parte da produção do artista. «Dürer, obras mestras da Albertina» desdobra-se por uma área relativamente pequena do imenso Prado e amontoa toda a sorte de trabalhos. Os fins de semana são desaconselháveis e há filas de entrada garantidas_ comprar os bilhetes pela internet pode ser uma boa alternativa. A iluminação e a montagem são deficientes e o resultado final é, no mínimo, fatigante! Decorridas as cerca de duas horas e meia que a exposição consome, persiste uma baralhação que só cessa quando o olhar repousa, novamente, e desta vez sem atropelos, nas imagens do artista alemão.  

 

 

Publicado originalmente na revista Grande Reportagem do Diário de Notícias 

 

 

 

Maria de Fátima Bonifácio

29.01.14

“A História para mim funciona como um ersatz para a política. É uma palavra alemã que mal traduzida significa “substituição”.” Maria de Fátima Bonifácio formou-se em História em 1977, doutorou-se em 1990. Politizou-se com grupos de extrema-esquerda em Genève. É conservadora. Está a trabalhar na biografia do estadista do século XIX Rodrigo da Fonseca Magalhães.

Fátima Bonifácio recebe-me em casa num uniforme maoísta. A expressão é dela e pretende ser uma provocação. É uma polemista. Foi há uma eternidade que acreditou em amanhãs que cantam. Mas o uniforme é maoísta e confortável. Maria de Fátima Bonifácio, para ser mais exacta – ela assina sempre M. Fátima – é uma mulher de direita. Tem 63 anos, uma filha, um neto. Vive num apartamento meticulosamente arrumado. Reformou-se da universidade. O seu objecto de estudo é o século XIX português.  

 

 

Por onde é que se começa para se contar a sua história? Fez a biografia de D. Maria II, as memórias do Duque de Palmela. Quando pega numa figura histórica, por onde é que começa a trabalhar?

Não vinha muito preparada para falar de mim, para ser franca. Escolho as personagens pela importância histórica que tiveram, não por ter afinidades ou deixar de ter. Até nem gosto especialmente do Palmela, mas é uma figura importante. O Rodrigo [da Fonseca Magalhães], cuja biografia estou a terminar, um dos grandes estadistas do século XIX português, também. A D. Maria II foi a primeira rainha constitucional, teve um reinado atribuladíssimo, uma aprendizagem duríssima. Tinha 15 anos quando foi declarada maior e rainha, do mundo só conhecia os palácios.

 

A mim interessa-me que ela tivesse sido forçada a casar com o tio, e que depois o casamento tenha sido anulado. Esse tipo de episódios, pitorescos, não a diverte?

Diverte-me imenso. Ainda lhe conto um mais picante. Casou com o D. Augusto de Leuchetenberg, mas quando ele morreu, ela continuava virgem. Segundo diz o D. Fernando, o segundo marido, nas memórias dele que descobri na Torre do Tombo, e que infelizmente são curtas, têm 30 páginas, o primeiro casamento aparentemente não se consumou. Lá se foi por nabice do D. Augusto ou por atrapalhamento dela, já não sei [riso].

 

Quando começamos a contar a história de uma pessoa normalmente damos as coordenadas: onde nasceu, o pai, a mãe. A maior parte das vezes, isso é determinante.

Naquela época importava muito porque o percurso de vida das pessoas era muito mais determinado pela origem social e familiar. Não havia a mobilidade social que existe hoje.

 

O seu pai, a sua mãe, a sua geografia?

Os meus pais eram de uma classe social semelhante, só que a minha mãe era de Lisboa e o meu pai era de Ovar. O meu pai podia ter escolhido uma senhora qualquer de Ovar, o que teria sido para mim uma grandessíssima maçada, porque não teria tido a mãe que tive. Foi uma mãe extremamente dura, seca, mas com uma capacidade de sacrifício e de generosidade como raramente encontrei. Tudo de uma discrição quase dolorosa. Foi graças a ela que fui parar ao Colégio Alemão e depois a Genève, fazer um curso de intérpretes.

 

Por que é que o seu pai casou com uma senhora de Lisboa?

O meu pai era um homem que, embora tivesse uma origem provinciana, era verdadeiramente um senhor. Gostou de uma mulher independente, que pensava pela cabeça dela. A minha mãe era muito, muito bonita, é preciso acrescentar isso. Tinha cabelos pretos e olhos verdes maravilhosos. Era muito culta. Nasceu em 1907 ou 1908, vai fazer 103 anos, e tinha o 7º ano de Ciências e de Letras; hoje em dia eram três doutoramentos.

 

Mesmo nessa condição social não era comum esse grau de educação e essa modernidade. De onde é que isso vem?

Do feitio. Eram três irmãs. Uma dizia de si própria que era muito burra, fez só a 4ª classe. Estudaram sempre em casa até ao 5º ano do liceu. A minha mãe e a irmã mais nova eram muito espertas, curiosas, gostavam de ler e de aprender. Tanto gostavam de Botânica como de Francês, como de Latim.

O meu caminho deve muito ao facto de ter tido uns pais muito modernos. Desde os 16 anos que me mandavam passar as férias grandes em Londres. A partir do momento em que me afastei dos meus pais, a minha vida foi determinada pelas pessoas que por acaso encontrei.

 

Encontrou ou procurou?

Encontrei. Atrás de umas vêm outras. Não posso dizer que tenha deliberadamente procurado.

 

Porque é que foi estudar para o Colégio Alemão? Viviam em Ovar e foi para o colégio no Porto.

Quando tinha cinco, seis anos, por razões que se prendiam com os negócios do meu pai, viemos viver para Lisboa. Em Ovar, tínhamos uma pequena quinta, montes de canzoada; tinha um fato-macaco especial que ficava à entrada da copa, para me sujar à vontade no quintal. E de repente, embora o andar para onde fomos fosse muito grande, ou pelo menos a mim me parecesse enorme, era um andar, e aborrecia-me um bocado. A minha mãe descobriu que o Colégio Alemão tinha Kindergarten e que era na Rua do Passadiço, perto da Duque de Loulé. Fiz a 1ª classe ainda em Lisboa. O meu pai resolveu tudo o que tinha a resolver em Lisboa, pôde dedicar-se à fábrica que tinha em Ovar e fomos para o Porto, porque os meus irmãos, bastante mais velhos que eu, ainda estudavam. Depois, os meus irmãos, desistiram de estudar, quiseram trabalhar com o meu pai. Os meus pais deixaram-me no Porto entregue a uma família que conheciam, mas que eu conhecia mal.

 

Que idade tinha?

Tinha oito anos e fiquei entregue a mim própria, com um despertador na mão e pouco mais.

 

Poder-se-ia começar a sua história por aí: o momento em que fica entregue a si própria.

Sim. Foi uma experiência duríssima, tinha imensas saudades de casa, não me sentia parte da família onde estava. Ao princípio, nem aos fins-de-semana ia a Ovar. Os meus pais iam às quartas-feiras ao Porto, porque em Ovar não havia nem fiambre, era preciso ir ao Porto comprar tudo. Não é que me tenham tratado mal, mas como estava contrariada, acabei por detestar as pessoas com quem vivia. Descobri que tinha um poder de negociação muito forte.

 

O que é que tinha a seu favor?

Quando cheguei ao fim do 2º ano senti-me suficientemente segura para dizer à minha mãe, de quem antes tinha um medo considerável, que das duas uma: ou ela me tirava daquela casa e me alugava um quarto de que gostasse, ou nunca mais estudava, passava a chumbar. Era uma das melhores alunas do Colégio Alemão, senão a melhor; ela percebeu que estava a sério. And I meant it! A partir daí tinha um quarto, que também me parecia muito grande.

 

Um quarto que era seu.

A room of my own [título de Virginia Woolf]. Era uma grande moradia de rés-do-chão e 1º andar, o quarto tinha uma porta para o jardim. Entrava e saía quando me apetecia. Tinha 12 anos e dei comigo completamente independente.

 

E medos? Nessa idade temos medos.

Tive medo quando a criada – na altura chamavam-se criadas, e era o que eram – me levou o jornal à cama de manhã e li sobre a crise dos mísseis de Cuba. Ainda hoje estou a ver o mapa que vinha na primeira página do Jornal de Notícias, com Cuba pintada a amarelinho. Lembro-me de pensar: “Isto ainda pode dar uma guerra mundial”. Também me assustei quando foi da campanha do Humberto Delgado. A casa onde estava, vejo agora, retrospectivamente, era salazarista. Como de resto era em minha casa. Éramos uma família salazarista pura.

 

Pelo que disse, fica evidente que era uma família tradicional e de posses, e essas, normalmente, eram ligadas ao regime. Outra coisa é serem declaradamente salazaristas.

O meu pai era, mas sobretudo num aspecto fundamental do salazarismo: achava que era impróprio falar de política. A política era uma coisa sórdida e suja. Era bom que houvesse meia dúzia de pessoas que se ocupasse desses negócios para as pessoas sãs poderem manter a sua sanidade e dignidade. Em minha casa não se discutia política nem religião.

 

E dinheiro? É outro tema, ligado a esses dois, de que normalmente não se fala.

Em dinheiro também nunca se falou. O dinheiro aparecia, não era um problema. Para o meu pai era um tema tabu. Só muito mais tarde vim a saber se tinha muito ou pouco, ou assim-assim. Quando era miúda a única coisa que notava é que não faltava nada, carro, barco, casas.

Lembro-me de ter tido medo do Humberto Delgado porque lá em casa espalhou-se um grande alarido com a demonstração que houve à chegada à Estação de São Bento.

 

Falou-me desses temores, não me falou de temores infantis.

Não tinha propriamente temores. Sentia-me muito só, abandonada pelos meus pais.A minha mãe era austera, rígida, tinha uma imposição absoluta: ninguém podia mexer na carteira dela. Um dia foi visitar-me, eu atrevi-me a escrever-lhe um papelinho: “Ó mãe, queria sair daqui, não sou feliz nesta casa”. Meti o papelinho dentro da carteira. Desde logo, a transgressão de abrir a carteira da minha mãe, e depois pôr-lhe aquele queixume dentro da carteira. Fiquei uma semana à espera do efeito, a ver o que a minha mãe diria. Só falámos disso há dez anos.

 

O que é que desencadeou a conversa passados todos estes anos?

Não sei, calhou. Nunca fiz queixas à minha mãe da minha mãe. Quando estava em altura de as fazer achei que já era tarde demais. Deve ter vindo a propósito de qualquer coisa frívola, não me lembro. Ela disse: “Pois é, mas se eu não procedesse assim, o teu destino tinha sido ir parar a Ovar, fazer o liceu de Ovar. A tua vida seria menos interessante do que é hoje”.

 

Tinha razão?

Tinha. Não era precisa tanta brutalidade, havia outras opções, mas estou-lhe grata. O que me esperava era um casamento qualquer em Ovar, em Espinho ou no Porto. Estava para ali cheia de filhos, seguramente já divorciada, cheia de netos. Assim tenho só uma filha que me chega perfeitamente e que adoro, que vive em Londres, e um neto que também adoro. Vivo em Lisboa e faço mais ou menos o que quero na vida.

 

A Segunda Guerra tinha terminado há poucos anos, no Porto havia uma colónia de britânicos. Tem memória de conversas, de um determinado ambiente onde isso era uma memória viva, ameaçadora?

Não. No Colégio alemão, quando chegávamos ao 6º ano do liceu, a 10ª classe, havia uma disciplina muito embaraçosa, História, onde se estudava a Segunda Guerra Mundial. Era sempre uma coisa muito dolorosa para o professor que tinha que a dar. E devo dizer que era dada com bastante objectividade, sem dourar a pílula para o lado dos alemães. Embora também não se dourasse a pílula sobre as malfeitorias que o exército soviético provocou quando atravessou a Europa de Leste e entrou na Alemanha.

 

Quando é que a História lhe começou a interessar?

Quando vim para Lisboa, depois da minha passagem por Genève. Ainda passei o Maio de 68 em Genève. Tinha 17 anos. Foi um pagode, os tempos mais divertidos da minha vida. Ainda pensei ir para Berlim. Meteu-se-me na cabeça que o verdadeiro herói era o Rudi Dutschke, o Cohn-Bendit alemão. Cheguei à Suíça completamente despolitizada e politizei-me no meio de um grupo de estudantes de extrema-esquerda. Tornei-me logo de extrema-esquerda.

Ainda pensei estudar Ciência Política. Mas nas férias de Natal comecei a pensar: “Vou para Berlim fazer o quê? É tudo uma maluqueira, vou dizer ao pai que vou antes para Lisboa”. Estávamos em 1969. O meu pai ouviu, saiu e voltou com três notas de um conto de reis, três mil escudos. “Isto é o dinheiro que te dou até ao resto da tua vida”. Salvou-me. Se não fosse isso ainda hoje andava a procura de um emprego de que gostasse. Assim cheguei a Lisboa, o primeiro emprego que me apareceu, gostei logo.

 

Teve de gostar.

Claro, tive de gostar.

 

Havia uma especial condescendência porque era a mais nova, a menina?

Não, é porque era a única que era boa aluna. Dos meus irmãos, o mais velho nem o 4º ano do liceu fez. E o outro fez o 5º ano de Ciências e de Letras porque a minha mãe o obrigou, sem interesse nenhum.

 

Quando é que percebeu que essa era a sua forma, não só de poder negocial, mas de se afirmar?

Tinha curiosidade intelectual, tinha genuíno gosto em ler, em aprender, em conhecer. Porquê História? Vou dar-lhe uma resposta que pode ser mal interpretada. A História para mim funciona como um ersatz para a política. É uma palavra alemã que mal traduzida significa “substituição”. Se não fizesse História iria para a política. Mas não queria ir para a política, já sabia o que implicava estar na política.

 

E era o quê?

A política implica uma capacidade de fazer concessões, de negociar, de aldrabar. Obriga necessariamente à demagogia, à disciplina, a renunciar muitas vezes ao que pensa pela sua cabeça. Não estou a dizer que haja nada de intrinsecamente mau nisto, estou a dizer que não é uma coisa para o meu feitio. Sou pouco gregária, a política é uma actividade que implica muito gregarismo. E também obriga a sair de casa, a ter reuniões. As reuniões são sempre à noite, porque os homens só sabem decidir coisas importantes depois das oito da noite. Interesso-me imenso por política mas detestaria fazer política.

 

Porque é que a História é um substituto?

Porque estar na política é uma maneira de agir no mundo, e a História, na medida em que é uma expressão do que eu penso sobre o mundo, é também uma maneira de agir no mundo. Digamos que é uma forma mediata de fazer política. Não há História inocente ou politicamente inocente.

 

Já vamos ao seu trabalho como historiadora, à marca política nele. Provém de uma família salazarista. Que sedução foi a do grupo de extrema-esquerda ao qual aderiu imediatamente?

A receptividade a essa influência provém da enorme juventude, ingenuidade e inexperiência. Somos seduzidos quase naturalmente pelo desejo de endireitar o mundo, de criar um mundo perfeito, um mundo sem ricos nem pobres. Sempre pendi muito para o lado anarquista.

 

A sua casa, o seu discurso, não é senão ordem.

Ainda bem, senão não poderia escrever. Quando vim para a faculdade de Letras, e apanhei a revolução, houve um ano em que chumbei deliberadamente, não fiz exames. Queria tirar o curso como deve ser, queria fazer uma carreira académica. Fazia parte de um grupo meio-anarca e conseguíamos perturbar o funcionamento do PC dentro da faculdade. Eu era a demagoga-mor. Fazíamos cartazes extraordinários, indisciplinávamos aquilo tudo. A UEC [União dos Estudantes Comunistas] via-se grega connosco. Tínhamos um discurso mais atractivo para uma RGA de 400 pessoas do que aquele discurso estalinista disfarçado, soft, que punha toda a gente a dormir. Nós ao menos éramos engraçados, fazíamos daquilo uma grande festa.

 

Por que é que nunca foi comunista?

Já sabia o que era o estalinismo. Comecei a ler literatura política em Genève e percebi que os partidos comunistas de obediência soviética tinham uma matriz estalinista inadmissível. Mas achava que talvez fosse possível criar um partido igualitarista e libertário, tudo junto. Acreditava numa série de utopias que hoje vejo como completamente tolas mas que me pareciam atraentes e viáveis.

 

Nesse tempo, ser da oposição confundia-se com ser comunista.

Porque, de facto, os comunistas controlavam a oposição.

 

É curioso que, mesmo durante a revolução, e sendo de extrema-esquerda, não quisesse intervir no mundo a partir dessa barricada.

Havia uma pró-associação e fui logo – vinha com os hábitos de militância de Genève – oferecer os meus serviços. Já estava casada; casei cá com o João Martins Pereira, um ano antes de recomeçar a estudar. Um dia houve uma reunião, em casa do Paulo Varela Gomes, com o Jorge Lemos e outros que depois emergiram como figuras importantes no Partido Comunista. Eles disfarçavam muito bem; angariavam independentes para fingir que aquilo era uma frente. O frentismo do PCP resultava, entre outras coisas, nisto, embora fossem eles que puxavam todos os cordelinhos e determinavam tudo. Em casa, o João diz-me assim: “Onde é que estão os comunistas no meio disso tudo?”. “Não havia comunistas nenhuns”. “Não estás boa da cabeça, estás a ser manipulada, são os comunistas que organizam isso tudo”. Depois comecei a topá-los a milhas de distância, só pelo andar já os conhecia.

 

Posso fazer uma pergunta íntima? Vamos recuar ao Portugal dos anos 60, fascista, puritano. A abertura que Genève representou, foi também ao nível dos costumes?

Foi, absolutamente. Ia daqui uma jeune fille bien rangée, e vim uma jeune fille trés mal rangée [riso]. Mudei tudo, a maneira de vestir… Quando fui para Genève, a minha mãe fez-me um enxoval que foi despachado em três malas na alfândega do Porto.

 

Um enxoval? Isso era para as noivas.

Casacos, camisolas interiores de estambre. Nada daquilo era adequado às condições climatéricas de lá. Quinze dias depois já andava de mini-saia. Em Ovar ainda não se usavam mini-saias.

 

As mulheres que se vestiam de uma determinada maneira, além dos perigos para a reputação, não eram levadas a sério intelectualmente. Era assim ou não?

Em Portugal não sei, era muito miúda. O que noto é que as mulheres, e mesmo as raparigas, em Portugal, se vestiam de forma convencional, respeitadora das regras, pouco alegre. Se andasse nas ruas do Porto só via pretos e castanhos, azuis-escuros. A massa das pessoas que andavam na rua era escura, feia, triste.

 

Por falar em movimentações políticas de extrema-esquerda e na luta por uma sociedade sem classes: tinha culpabilidade pela sua origem de classe?

Não sou muito dada a culpabilidades. Achava que não era só eu que fazia a injustiça do mundo. O mundo estava organizado de uma forma injusta e eu por acaso estava do lado dos injustos. Mas se se revolucionasse o mundo e se eu contribuísse para essa revolução, o mundo ficava mais direitinho, mais equilibrado.

 

O que é que se dizia das pessoas da sua classe? Eram burgueses? Usavam-se adjectivos ferozes.

Éramos fascistas. Bastava ter dinheiro para comprar um par de sapatos novo e já era fascista. Achava ridículo esse tipo de insulto, despropositado, caricato. Essa confusão fazia-se deliberadamente: é burguês, é fascista. “E a democracia representativa é uma democracia burguesa que é uma fachada para o fascismo!” O primarismo do raciocínio político ia a este ponto. Também por isto mesmo eram pessoas com quem nem sequer se podia falar. Só conseguimos discutir com quem estamos em acordo. Se estamos em desacordo nos pressupostos básicos, é uma conversa de surdos. Isto passava-se também na UDP e em milhões de grupelhos que proliferaram na altura, e cujos nomes felizmente já não me lembro.

 

A que é que pertenceu? E desses ainda se lembra, presumo.

Nunca pertenci a nenhum grupo. O meu grupo da faculdade era completamente informal, reunia quando calhava, quando apetecia.

 

Eram uns burgueses que não levavam a revolução a sério.

Era assim que éramos vistos. E no fundo, no fundo é verdade.

Mas tínhamos muito respeito pela classe operária, e achávamos que a classe operária era, não direi o motor da transformação, mas uma peça decisiva na transformação da sociedade. Quase não havia operários, tirando a cintura de Lisboa e o operariado do Alentejo.

 

Mas nunca se acabaram os três contos. Nunca passou pela situação aflitiva do operariado…

Não, porque arranjei um emprego no Dinners Club. Ao fim de seis meses passei para a Varig onde já ganhava quatro contos e quinhentos, um dinheirão. Acabei por ganhar sempre bem. Não tinha alguns caprichos que já tinha tido e que voltei a ter depois, e que agora se calhar vou deixar de ter outra vez. Nunca passei necessidades, nunca me faltou dinheiro, nem para dormir nem para comer, nem para ir ao restaurante, ou para comprar um par de sapatos.

 

O que fez uma enorme diferença até no seu entendimento da política e do mundo? Depois há aqueles que vão para as fábricas.

Não sei o tamanho dessa diferença, mas tenho a noção de que fez diferença. E convivi sempre num nível social bastante bom. Tudo isso conjugado mudou a minha maneira de olhar para o mundo.

 

Alguma vez se deu constantemente, intimamente, com pessoas diferentes das que compunham este seu grupo? Ou esse mundo era o mundo dos livros, das notícias?

Tenho um grupo de amigos diversificado mas muito estável. As pessoas com quem me dava há 40 anos, muitas delas, são as pessoas com quem me dou hoje. Nem todas se misturam umas com as outras. Tornei-me muito, muito, muito, muito conservadora, há muitos anos. Aos 30 e tal anos já era bastante conservadora. Muito liberal, muito individualista. A liberdade pessoal é sagrada, não vejo em que é que a podia sacrificar. Se tivesse de escolher, prefiro uma sociedade desigual livre do que uma sociedade igual não-livre. Estou neste momento a confrontar-me com essa pergunta pela primeira vez… Se pensar bem, não convivi muito com a alteridade. Tendi sempre a procurar pessoas que, sendo diferentes de mim, de alguma maneira se encaixavam no meu mundo, em vez de eu migrar para o mundo de terceiros.

 

O que é que aconteceu entre os 20 e os 30 anos para que passasse a ser conservadora cedo, e numa altura em que em Portugal isso não era o tom dominante?

Não sei dizer com que idade é que passei a ser conservadora. Tornei-me mais sábia, aprendi mais coisas, percebi que o mundo era muito mais complexo do que supunha.

 

É a resposta mais vaga de todas as que deu até agora.

Sobretudo tornei-me muito realista, deixei de acreditar em utopias. Não estou a ser vaga, posso estar a ser um bocado abstracta. Li, encontrei pessoas que me interpelaram e que puseram em causa as minhas certezas, que eram certezas ideológicas, dogmáticas, que não assentavam em nenhuma reflexão objectiva sobre a realidade. Tornei-me numa pessoa mais objectiva, mais atenta ao concreto, e isso moderou-me. Por outro lado, qualquer coisa que está no meu ADN – o meu individualismo, que nasceu comigo, e que viveu recalcado durante muitos anos – de repente veio ao de cima. Qualquer pessoa, individualista e egoísta como sou, deixa de sentir uma especial atracção pela transformação do mundo. Com a idade, como diria o povo, fui ganhando juízo [riso].

 

É de direita desde essa altura?

Devo ter tido um período de transição. Comecei a aperceber-me de que havia uma contradição insanável entre viver preocupada com o proletariado e a igualdade social e levar um estilo de vida que, se essa igualdade se realizasse, seria impossível.

 

O oposto dos tempos de Genève...

… em que achava compatível ser de extrema-esquerda, e contribuir para a criação de um mundo sem pobres nem ricos, com estar em Genève, a viver num estúdio, no melhor sítio da cidade, sem me preocupar com as contas. Amadureci tarde, fui uma pessoa bastante infantil e aérea, de entusiasmos.

Mas não era possível criar riqueza que desse para toda a gente viver como eu vivia, embora não vivesse com luxo. Não há nada que deteste mais do que a esquerda champanhe. As pessoas que conheço que são ricas e que se dizem de esquerda, são pessoas que numa ordem social socialista à séria teriam naturalmente um lugar de proeminência. Ou burocrática, ou intelectual, ou académica. São pessoas que não fariam parte da multidão.

 

Mercê do seu dinheiro?

Imagine que há uma transição. Imagine que o Bloco de Esquerda conseguia fazer o contrário do que lhe está a acontecer; em vez de diminuir, conseguia expandir-se, agregar militantes a um ponto tal que podia ser o governo. Quando chegasse ao governo, admitindo que não havia um golpe militar, que a Europa consentia, que o mundo comportava, tinha que pôr em prática medidas de justiça social que vem proclamando, e das quais faz bandeira desde que existe. As pessoas que tivessem contribuído para consumar essa transformação política seriam chamadas a preencher a nomenclatura da nova situação. Não fariam parte, como eu faria, se isso acontecesse, dos lumpen intelectuais a ganhar 25 tostões para dar dez horas de aulas por dia. Essas pessoas estariam protegidas num mundo que mudasse sob a batuta delas.

 

Percebeu que é uma utopia a inexistência de classes e que há sempre aqueles que têm a batuta na mão?

Há sempre os que têm a batuta na mão, seja em que circunstância for. E há sempre uma inextinguível e inextirpável desigualdade entre as pessoas. Umas são mais inteligentes, outras são mais burras. Umas são mais espertalhonas, outras mais atadas. Umas são mais diligentes, outras são mais preguiçosas.

 

Qual é o mínimo que considera que todos têm que ter?

Não gostaria de sair à rua, como já me aconteceu em Londres, nos princípios da senhora Thatcher, e ver hordas de pessoas a dormir em cartões no meio da rua. Não pode haver fome, as pessoas têm que ter o mínimo de condições materiais de vida, um tecto.

 

Estou a perguntar também pelos resquícios desse tempo em que era de esquerda e lutava por uma sociedade mais justa.

Tenho um lado social democrata. Sou muito liberal individualista, mas não acho que os mais fracos devem ser atirados contra a parede, como diriam os ingleses, e aí ficam e que se amanhem.

 

Então o que fazer com eles?

Em primeiro lugar, criar condições para que a economia se robusteça ao ponto de fornecer o máximo de emprego possível. É a prioridade das prioridades. E depois, muito subsidiariamente, essas pessoas têm que ser ajudadas. Sou contra o Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito. É normal que a minha empregada vá ao hospital e não pague nada, e é normal que eu vá ao hospital e pague aquilo que tiver que pagar. As pessoas que têm certos rendimentos devem ter seguros, devem pagar taxas moderadoras elevadas. E a desculpa de que já descontam no IRS é uma desculpa de mau pagador. Não faz sentido, além de que é injusto, que você vá a um hospital, faça um raio-X e pague 90 cêntimos. Isso era quando as economias cresciam a cinco por cento e a demografia crescia pouco. Hoje, que as economias crescem um por cento, quando crescem, e as pessoas aos 90 anos ainda cá andam, como é que quer fazer? Endivida-se? E depois, chamamos o FMI e a União Europeia para nos resolver o problema?

 

Os que sentem os seus direitos ameaçados, perguntar-lhe-iam o que é que sentiu ameaçado na sua vida, e com uma repercussão concreta no seu dia a dia.

Tiraram-me 40 por cento do meu rendimento. Isto há-de ter alguma repercussão na minha vida, mas não vivo especialmente irritada com isso.

 

E por que é que não vive muito irritada com isso?

Porque ao contrário do engenheiro Sócrates e daquele idiota que é vice-presidente da bancada do PS, cujo nome não me lembro, acho que as dívidas são para se pagar e não são para se gerir. Se andamos desde 1995 a viver como se fôssemos ricos, é normal que às tantas nos caia o Carmo e a Trindade em cima. Já várias pessoas disseram isto. O Medina Carreira, diziam que era maluco. A Ferreira Leite, diziam que era obsessiva. O regabofe começou em Portugal com o Eng. Guterres em 1995. Para trás há uma herança pesada deixada pelo Prof. Cavaco Silva, que foi ter desindustrializado o país e dado cabo da agricultura e das pescas; mas os indicadores macroeconómicos que deixou eram aceitáveis. Economicamente falando, a gestão dele foi desastrosa. Em cima disso tivemos 15 anos de governação socialista que governou como se o país tivesse um saco sem fundo.

De resto, voltando à sua pergunta, nunca fui subitamente privada de nada, nem do ponto de vista da minha carreira profissional. A única coisa de que fui privada foi da companhia da minha filha que emigrou para Londres há 14 anos, e é uma grande mágoa ter que viver sem a presença dela.

 

Emigrou por razões económicas?

Formou-se em Comunicação Social na Nova e sempre teve a mania de Inglaterra. Comecei a mandá-la para Cambridge, no Verão, sozinha, para aprender inglês. Quando acabou o curso, teve uns empregozitos e uma pseudo-paixão por um inglês, que durou 15 dias, e que foi um pretexto para se pôr a andar daqui para fora. Trabalha como freelancer já há dez anos, ganha muito mais que eu, está casada e tem um filho. Quando vem, diz que nunca viu uma sociedade tão aborrecida e tão fechada como a portuguesa. Não percebe como é que as pessoas aguentam viver aqui, cada uma na sua toca, sem comunicar, a não ser com as pessoas que já conhecem há 30 anos. Não sei se isto é uma piada para mim [riso].

 

Foi uma boa mãe, como a sua mãe foi para si?

Fui um bocadinho melhor que a minha mãe. Pelo menos fui mais meiguinha. A minha filha é igual à minha mãe, é sequíssima, discretíssima e é muito dura com o filho. Mas depois compensa-o. A minha mãe não compensava, era sempre um bocadinho militar.

 

E o seu estilo é qual?

Sou um misto, dizem as minhas amigas. A Maria João Seixas diz que tenho um coração de costureirinha e uma carapaça que inventei. Tornei-me muito dura. Tem a ver com a minha infância, com aqueles três anos. Foi a minha maneira de sobreviver. Apoiei sempre a minha filha. Acabou o curso e ofereci-lhe um apartamento, dei-lhe um Fiat 500. Depois foi para Londres e durante algum tempo ainda financiei, até ela arranjar emprego.

 

Nada de três contos?

Não, é as vezes que puder. Mas o meu pai fez maravilhosamente, percebeu que eu não sabia o que queria.

 

Teve alguma vez uma relação íntima com o seu pai ou com a sua mãe?

Com a minha mãe, nunca. E com o meu pai, íntima também não tive, mas tive uma relação muito boa a partir dos meus 20 e tal anos, quando verdadeiramente descobri o meu pai e o conheci.

 

Como é que isso aconteceu?

Depois de me separar comecei a ir a Ovar. O meu pai foi toda a vida um homem de negócios, era um industrial, mas deixou de trabalhar cedo por causa dos meus irmãos. Adorava jardinar e tinha orgulho no roseiral, sabia podar as roseiras. Lia Aquilino Ribeiro com rifoneiros portugueses à volta, com a Enciclopédia Lello. Leu 12 ou 14 vezes A Cidade e as Serras, do Eça, chorava a rir de todas as vezes. E começámos a conversar, e ríamos. Ele contava-me histórias do arco-da-velha, de quando era novo. A minha mãe achava aquilo tudo um bocado disparatado.

 

Ciúmes.

Achava que não tínhamos maneiras. Nunca vi a minha mãe dar uma gargalhada na vida, nunca. Passei noites e noites até às quatro da manhã a conversar com ele. Falou-me sobre os meus irmãos, nunca me falou sobre mim. Estava implícito que achava que eu era a única que tinha correspondido às expectativas. Ficou muito contente quando me doutorei. Contou-me da vida com o pai dele, o meu avô, que esteve para fugir para África porque a disciplina era de tal maneira severa que já não aguentava.

 

E foi buscar uma mulher que era generala.

Não sou especialista em leituras analíticas, mas a minha mãe era um bocadinho generala. Foi a primeira mulher a andar de calças em Ovar, ficava toda a gente escandalizada. O meu pai achava maravilhoso. E falava-me da irmã dele, a minha tia que era chalada. Às vezes animo serões a contar histórias da minha tia.

 

Nunca se descompôs a ponto de fazer umas coisas chaladas?

Fui muito irresponsável, muito tempo. Quando olho para os dois anos e meio em que estive em Genève, não tinha noção do que estava a desperdiçar.

 

Ser irresponsável é, de certa maneira, ser chalada?

Sim. Nessa fase fui muito chalada, solta. Mas nunca me charrei. Às vezes estava em grupos em que estava toda a gente charrada e não gostava especialmente das figuras que via fazer.

 

Essa alienação que muitos conseguiam através do charro, ou a alienação colectiva que se viveu em Portugal no pós 25 de Abril, nunca a viveu de outra forma?

Também participei na euforia colectiva que se viveu a seguir ao 25 de Abril. Fui a montes de manifestações, às tantas já andava meio rouca. Mas fartei-me depressa. Depois o professor Joel Serrão convidou-me para assistente dele na Nova, e foi assim que comecei.

 

Foi no pós-revolução, e quando passou a ser de direita, que ficou mais claro que não queria fazer política e que o modo de intervir no mundo era a História?

Exactamente. Não é por acaso que só faço história política. Comecei por fazer história económica, mas a minha tese já é um misto, com muita política à mistura.

 

O que é que lhe interessa aí, são as relações de poder?

Foi uma intenção polémica. Pelo-me por uma polémica.

 

Porquê? Gosta de as vencer, acha que as vai vencer?

Claro. Posso vencer ou não, mas gosto. Tudo o que escrevo é bastante polémico. Na altura havia uma grande polémica na academia portuguesa: se o subdesenvolvimento de Portugal resultava do imperialismo económico inglês ou não. A tese canónica que vigorava, de uma grande historiadora portuguesa cujo nome não quero citar, era de que o livre-câmbio, a ausência de proteccionismo, tinha provocado o nosso empobrecimento. Resolvi fazer uma tese a demonstrar que isso era falso, que era ao contrário.

 

Quis fazê-lo por puro exercício ou porque acreditava nisso?

Acreditava que aquela tese estava errada.

 

Se não fosse de direita a orientação da sua tese não seria essa. Há um fundo ideológico na maneira como lê a História?

Isso é inevitável, não há ninguém que não tenha. Os pressupostos filosóficos com que se olha para o mundo inscrevem-se na maneira de ver, fazer e contar a História. Há uma diferença entre ser abertamente tendencioso, ou estar de má fé, e fazer uma História séria, sem escapar ao bias das suas inclinações filosóficas, quase instintivas.  

 

Como é que lhe chamavam em casa?

Em minha casa eram proibidos os nicknames e os diminutivos. Chamavam-me Maria de Fátima. E nunca pude chamar à minha mãe, mamã, nem ao meu pai, papá. Assino sempre M. Fátima. Se a minha mãe me chamasse Fátima ficaria espantadíssima.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

Rubens

29.01.14

Rubens, o imodesto: “Por causa da minha natureza, estou talhado para realizar grandes obras, mais do que pequenas curiosidades. Cada um de acordo com o seu dom. O meu talento nunca se intimidou diante de nenhuma empresa, seja qual for o tamanho e o tema”.

Imodesto? Ou Rubens, o artista lúcido, consciente do seu poder social e valor artístico?

Uma grande obra: A Adoração dos Reis Magos. Pintada a pensar em pessoas que a veriam a partir de trinta metros de distância, e que mesmo assim perceberiam o espanto, a admiração, a beleza beatífica da Virgem; e pessoas que a veriam de perto, muito perto, que sentiriam a unha cravada na carne, a dilatação da pele, como se fosse a sua.

Rubens não pintou um quadro intitulado Noli me Tangere, da autoria daquele a quem chamava mestre – Tiziano. Mas tudo nos seus quadros parece tangível, ao alcance dos sentidos.

A técnica ajuda. Um misto de técnica dos Países Baixos e de Veneza. Ou seja, a aplicação de camadas finas em cores transparentes, de modo a que as camadas inferiores fiquem sempre perceptivas; e a técnica veneziana do impasto, de pinceladas densas que cobriam as camadas inferiores.

A Adoração começou por ser pintada em Antuérpia em 1609 e foi ampliada em 1629 quando a tela se encontrava em Madrid e Rubens visitava a corte espanhola. A composição dos dois quadros é diferente. Novos personagens, nova coreografia, intensificação do tom operático da cena. A Virgem deixou de ter as formas de deusas da Antiguidade e passou a assumir a imagem de uma mulher frágil, humana, íntima. Já não era uma madonna poderosa.

Mais do que tudo: ele, Rubens, é um elemento desse cortejo.

Muito há a dizer acerca desta abordagem de Rubens ao episódio da adoração. No caso do artista flamengo, o mais espanhol dos flamengos (e já se vai perceber porquê), pródigo na arte de copiar quadros dos maiores, desconstruir uma composição e a partir dela construir uma nova, incorporar elementos trazidos de viagens, pessoas e livros, dizer a mesma coisa recorrendo a um discurso e a uma encenação diferente era uma prática corrente.

Rubens representava-se como gentiluomo. Um nobre com capa de veludo, corrente de ouro, pose e distintivos de um homem nobilitado. Uma benesse concedida pelos seus esforços na obtenção da paz entre Espanha e Inglaterra, e uma intervenção directa da sua protectora Isabel Clara Eugénia (a arquiduquesa filha de Filipe II que, com Alberto da Áustria, governava os Países Baixos – os retratos dos dois estão presentes na exposição do Prado).

Rubens foi o pintor da corte. Na sua pintura está um mundo que ameaçava desmoronar-se com os avanços da Reforma. A sua pintura serve de veículo ao ideário da Contra Reforma, à mensagem das Sagradas Escrituras.

Foi, então, diplomata, homem de negócios sagaz, católico, humanista, gongórico no discurso artístico, amante do belo, o pintor de Evas, deusas e mulheres palpitantes. Foi um homem que se correspondeu com o espírito científico do seu tempo. Coleccionador de estátuas, livros, obras de arte. Tudo incorporado no que fazia. Séneca, por exemplo, cujo busto está na sua casa de Antuérpia, é reproduzido tal qual no quadro que está no Prado e que mostra o suicídio do filósofo estóico. Como estão os mitos que o poeta latino Ovídio trata num livro que se tornou para Rubens um manancial inesgotável: As Metamorfoses. O seu conhecimento e fascínio pelos mitos e textos da Antiguidade era imenso. A ponto de Delacroix, profundamente marcado por ele, lhe chamar “o Homero da pintura”.

Julgava ter nascido em Colónia. Uma petite histoire, de alcova, começou por marcar a sua trajectória. E antes dessa, uma história de perseguição religiosa. Os pais, calvinistas, refugiaram-se na localidade alemã para escapar da investida espanhola na luta contra a Reforma. Em Colónia, o pai torna-se amante e conselheiro da princesa Ana de Saxónia, mulher do príncipe Guilherme I. (Não foi uma boa ideia.) É condenado à morte por esta afronta e salvo pela intervenção suplicante da mulher, que se converte ao catolicismo. Tem dez anos, em 1588, quando regressa com a família a Antuérpia, a casa, depois da morte do pai.

A vida foi sempre próxima dos círculos da corte. Peter Paul torna-se pajem, mas não gosta do ofício. Ingressa em sucessivos ateliers de mestres flamengos. Incitado por um deles, viaja até Itália para ver de perto as obras da Renascença, as estátuas antigas, um outro modo de pintar, de olhar. Começava a ser, verdadeiramente, o pictor doctus, o artista erudito que diziam que era.

É então que se dá o encontro com as obras de Tiziano, Tintoretto, com a majestade dos antigos. É então que se dá o encontro com o duque de Mântua, que o leva para a corte. É através deste que se estabelece o primeiro contacto de Rubens com a corte espanhola.

Uma relação que não se quebrou. Mesmo depois da morte do artista. A razão por que o museu do Prado pode fazer esta exposição, com o seu “fundo de catálogo” de Rubens, e são 90 peças, é a aquisição em vida de uma prodigiosa colecção (sucessivas encomendas, para diferentes palácios) e a quase integral colecção que comprou à viúva do pintor, a jovem Elena Fourment.

Um salto no tempo: o casamento com Elena, que Rubens dizia ser a mais bela mulher de Antuérpia. Dezasseis anos, pele nacarada, coxas em forma de ânfora, olhar cândido. Estava-se em 1630. Ele tinha passado os cinquenta e ficado viúvo não há muitos anos de Isabelle Brant. A produção artística que resultou desde casamento foi intensa, apaixonada. Elena era a musa particular de Rubens e passou a incarnar as heroínas das suas telas. Como se através da suavidade do pincel, das cores, ele a acariciasse, a amasse em público. O Jardim do Amor é um dos quadros que ilustram esta relação. Na peça, Peter Paul e Elena surgem enlaçados, à entrada da casa cuja arquitectura coincide com a casa do pintor. No lado direito, uma série de damas da corte documentam o ambiente em que os Rubens se movimentavam. Faz-se através da cena uma crónica de costumes, sente-se o brilho da seda, os vestidos têm volumes de peças de arquitectura. Há uma joie de vivre que inspiraria Renoir não muitos anos depois. (Curiosamente, exposições dedicadas aos dois mestres estão patentes em simultâneo no Prado. Renoir assumir-se-ia como influenciado pela pintura de Rubens. Sobretudo os nus, as mulheres de formas redondas, voluptuosas, comprovam a partilha do mesmo ideal estético).  

Passam largas temporadas no campo. O tom mudava com Elena. Menos mitologia, menos sátiros e assaltos lascivos a ninfas no bosque. Mais pessoas que se entrelaçam, que se desejam, que se procuram, mas que são aldeãos. O tom envolvente é bucólico. Há paisagens ao fundo que evocam o que os renascentistas haviam feito em Itália cem anos antes.

Novamente em Espanha, em anos de formação. Na casa real espanhola, Rubens contacta com a maior colecção existente de Tiziano. Velásquez, que era 22 anos mais jovem do que Rubens, e se disse marcado pela mestria e produtividade do pintor flamengo, coexistia no mesmo espaço. Fizeram juntos visitas a colecções, partilharam atelier e conversas.

Mas não foi Velásquez o aluno predilecto de Rubens. Os seus assistentes, incontáveis, trabalhavam no atelier de Antuérpia e ocupavam-se de tarefas como misturar cores, preparar telas, realizar cópias de trabalhos que Rubens finalizara. Serviam para fazer face à enorme quantidade de encomendas de diferentes igrejas e casas reais europeias. Uma verdadeira empresa.

O mínimo que se pode dizer é que Rubens foi um artista prolixo. O número de quadros (fora desenhos) que assinou oscila entre os mil e quinhentos e mil e seiscentos. “Se a obra estivesse apenas nas minhas mãos, custaria o dobro do preço”. As notas existentes permitem perceber que detalhava o trabalho e fixava o preço de acordo com sua participação. Os colaboradores: uns faziam mais flores, outros animais, outros paisagens. Quase sempre Rubens pintava a figura humana.  

O mais famoso foi van Dyck. Há quadros na exposição do Prado que são co-assinados por este, aliás. Outros, denotam a colaboração com Brueghel, o Velho (por exemplo, a belíssima tela que faz parte da série dos cinco sentidos, A Vista).

Voltemos a imergir no essencial de Rubens. Grinaldas de frutas, flores e anjos. Cornucópias repletas. O brilho na uva que indica que está madura. Os músculos retesados, os vasos capilares. Corpos destemidos, vigorosos, lascivos. Em tensão, em movimento. Natureza frondosa, água imparável. Corpos que parecem fecundos. Composições em espiral ou diagonal. Cenas pré-diluvianas. Cataclismo iminente. Cortejos e composições heteróclitas. Biografias insípidas tratadas de modo épico. Carne, carne, carne.

Há quem o considere erótico, sensual. Há quem pense que tudo nele é encenação e movimento. Erotismo, zero.

Mas a carne é o que ressalta de uma visita à exposição, com os noventa quadros praticamente colados uns anos outros, como se fossem frescos que num movimento imparável traçam uma narrativa.

O rei do barroco, como lhe chamam historiadores de arte, era um homem do seu tempo. Mas era também, e antes do tempo, um homem cosmopolita. Uma das frases pintadas nas paredes da exposição diz assim: “Considero que o mundo inteiro é a minha pátria”. Num DVD que faz as vezes de catálogo da exposição, Alejandro Vergara, conservador do Prado, considera que “a retórica utilizada por Rubens não é a moderna. Mas o seu universo mostra-nos o que a vida tem de dramático, poético, heróico. Recorda que viver é uma aventura apaixonante.”   

 

 

Publicado originalmente no Público 

 

 

 

A rapariga que rouba pedras por não poder roubar árvores

27.01.14

Quando eu era pequena, desenhava árvores da seguinte maneira: primeiro um tronco grosso e depois uma copa frondosa. Não me lembro de desenhar flores ou frutos. Nem raízes. Pode ser que tenha desenhado alguns ramos, tímidos. E houve uma fase em desenhava hera a trepar pelas paredes. Mas uma árvore era uma árvore. Monolítica, verde e castanha. 

Sou uma nódoa para o desenho.

E para a botânica.

Mas gosto tanto de árvores que dou por mim a passear regularmente no Jardim Botânico, de Lisboa e de sítios onde vou. Também acontece pensar que as árvores são as coisas mais antigas do lugar onde estou e que tudo parece de ontem. 

Ontem reparei numa coisa na qual não deixo de pensar: é que as árvores não são rectas, regulares, como as que desenhamos na infância. Quase sempre elas são curvadas, sinuosas, cheias de caminhos (troncos) principais e secundários. Têm bifurcações sucessivas. São obtusas, perturbadas. 

Tenho no meu frigorífico um íman da Mafalda (do Quino) que olha para uma árvore retorcida e lhe pergunta: "Nunca te ocorreu ir ao psicanalista?"

Fiquei a pensar que nós somos como as árvores que ontem vi e que são como a árvore da Mafalda. Mas temos a ideia de que somos a árvore que desenhamos na infância. Lineares, irrepreensíveis. A tortuosidade é dos outros. Não é. O inferno somos (também) nós.  

As árvores que ontem vi, muitas delas, tinham as raízes à mostra. Algumas pareciam petrificadas, com a textura de uma pedra. Vi uma que era uma perfeita escultura do Alberto Carneiro, do José Pedro Croft. 

Como não podia roubá-la, roubei uma pedra.  

 

Normandia

26.01.14

Os Guarda-Chuvas de Cherbourgé um clássico da história do cinema. O filme é integralmente cantado, mas chamar-lhe musical é aprisioná-lo num rótulo. É um objecto inclassificável, uma das histórias de amor mais bonitas e mais tristes de todos os tempos. Os Parapluies (como é conhecido) revelou em 1964 Catherine Deneuve, em início de carreira, novíssima, com uma beleza de porcelana. Cherbourg, a localidade, em plena Normandia, não permanece tão encantadora quanto no filme, mas é irresistível fazer a “romaria” em homenagem aos Parapluies. Se não o conhece, compre o DVD. Para abrir o apetite, veja excertos no youtube. A cena da despedida, na estação, é comoventíssima, daquelas de fazer chorar as pedras da calçada.

 

Tudo começou no dia 6 de Junho de 1944, o dia D, como ficou conhecido. As tropas americanas desembarcaram nas costas da Normandia e deram um impulso decisivo na guerra contra a Alemanha nazi. Há quem vá à Normandia exclusivamente para ver de perto essas praias e fazer esse circuito. São americanos, sobretudo americanos, que vêm visitar as pedras tumulares dos seus antepassados e reconstituir os movimentos do desembarque na praia. Arromanches é uma das praias mais visitadas para esse efeito, mas há várias. Nas imediações há dezenas de cemitérios e memoriais que evocam aqueles que perderam a vida durante o conflito. Ver um cemitério na Normandia é ver uma extensão considerável de relva, onde se alinham milhares e milhares de cruzes brancas. Muito impressionante. Ali fica bem vivo o tamanho da carnificina. Há cemitérios americanos, franceses, ingleses, alemães – aqueles que, em quantidade, morreram na Normandia.  

 

Quando perguntaram a Flaubert quem era Emma Bovary, a heroína do seu romance, que afogava o tédio em sucessivos amantes, o escritor respondeu: “Bovary c’est moi”. Emma era Flaubert, Emma é cada um de nós: entediados, carentes, apaixonados. Madame Bovary é muito mais do que um livro sobre as desventuras de uma mulher de província: é um retrato sociológico da província. O epicentro da história é Rouen, uma cidade normanda. Visitá-la é uma possibilidade. Ler ou reler o livro é um programa ideal para acompanhar uns dias na Normandia. Tudo à volta parece mais compreensível por causa da obra de Flaubert.

 

Giverny é conhecido no mundo inteiro por causa do museu Claude Monet. O pintor Impressionista instalou-se nesta aldeia da Normandia em 1883 e aí viveu até à sua morte, em 1926. A casa habitada por Monet, transformada em museu, mantém a atmosfera de um paraíso privado. Os jardins são encantadores. O mobiliário é o original (o quarto do artista, por exemplo, está intacto). Há escolhas inesperadas, mesmo num artista para quem o uso da cor e da luz são fundamentais: a casa de jantar está pintada de amarelo vivo e de estampas japonesas. Na aldeia, o Museu de Arte Americana exibe obras de outros artistas (não só americanos) que, por causa do mestre Impressionista, passaram por Giverny e aí viveram e pintaram. www.giverny.org

 

Estância balnear de luxo, cidade charmosa, Deauville faz parte do mapa da França upper class. Coco Chanel passava férias em Deauville e abriu na cidade a sua segunda loja. Charles Trenet cantava no casino. O casino que estava para o norte de França como os casinos da Côte d’Azur estavam para o sul (atrai mesmo os que não jogam na roleta). Rente às praias, Deauville apanha a boémia francesa que vai a banhos, famílias inteiras e respectivas nannies que frequentam praias de barracas às riscas.

 

O segredo da manteiga de Isigny sur Mer não é conhecido; mas a sua reputação não tem limites. Especialmente cremosa e saborosa, um pouco salé, envolvida num papel vegetal ou depositada num recipiente que não se parece com os das manteigas comuns. Toda a manteiga da Normandia é deliciosa, mas a de Isigny é superlativa. Se quiser esquecer as dietas, coma manteiga com pão!…

 

Lee Miller foi uma figura inesquecível no universo artístico da primeira metade do século XX. Foi modelo da Vogue americana, musa e amante de Man Ray, amiga de Picasso e dos Surrealistas, fotógrafa de excepção. Depois de ter fotografado todas as pessoas interessantes do seu tempo, trabalhou como foto-jornalista quando rebentou a Segunda Guerra Mundial. Uma vez que era americana, integrou o corpo do exército do seu país quando este se mobilizou para ajudar a Europa e desembarcar na Normandia. Foi nesse contexto que fotografou as praias do desembarque e cobriu amplamente as situações de guerra para diversas revistas, em especial para a Vogue inglesa. As fotografias são pequenas narrativas do horror que se viveu. Procure nos álbuns dedicados à fotógrafa.

 

Calvados é o nome de uma região da Normandia e é também o nome de uma espécie de aguardente com travo a maçã. É um parente da cidra. (Não esquecer que a maçã é o fruto-rei da Normandia.) Os diferentes chateaux têm produção própria de Calvados e frequentemente fazem provas para turistas; as garrafas que estão à venda são de diferentes preços, alguns bastante acessíveis. Experimente todas para perceber se gosta de mais ou menos ácida, mais ou menos alcoólica, com o sabor da maçã mais ou menos presente.

Na ficção, os amantes de novelas policiais lembrar-se-ão que o inspector Maigret, criado por Simenon, era fã da bebida. Em diversos livros é comum ouvi-lo pedir à mulher, após o jantar, um cálice de Calvados.

 

Como chegar?

O mais fácil é voar até Paris e depois apanhar o comboio até uma grande cidade da Normandia. Caen, por exemplo. A partir daqui, é indispensável alugar um carro para poder passear.

 

Onde ficar?

Procure ficar nos incontáveis chateaux transformados em hotéis de charme ou no equivalente às nossas casas de turismo de habitação rural. Pesquise no google, a oferta é grande.

 

O que comer?

As costas da Normandia são ricas em mexilhões, ostras, coquilles Saint Jacques. Superlativos. E, na Normandia, sê normando: coma camembert, o famoso queijo francês, originário da região. 

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima

 

 

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