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Anabela Mota Ribeiro

Emília, Miguel e Sérgio

01.01.14

A Emília, o Miguel e o Sérgio ouvem dizer que a crise é uma castração do seu futuro. É um muro que se interpõe entre eles e a vida. Que lhes tolhe os movimentos, a possibilidade de escolher, a liberdade. São filhos de pessoas que vivem do ordenado, família estruturadas, equilibradas. Vivem no Barreiro, na Baixa da Banheira, em Palmela. Têm 12, 13 anos. Não pensam o futuro sem uma nuvem pesada em cima da cabeça.

 

A entrevista teve lugar no sábado anterior ao Natal. Chegaram acompanhados pelos dois pais ou por um dos progenitores. Ficámos a sós para a entrevista. Não têm relação entre si (o Miguel e o Sérgio conheciam-se vagamente). Começaram nervosos. Foi-lhes explicado que não havia respostas certas. As perguntas tinham o intuito de perscrutar o que imaginam para o futuro. Agora que o futuro parece mais perto, por estarmos num ano novo. Foi pedido que não fossem lacónicos nas respostas. A seguir foi preciso explicar o que significava lacónico. Também foi preciso dizer que podiam perguntar tudo o que não compreendessem. A verdade é que não perguntaram nada. Responderam. De acordo com o seu quadro mental, e, sobretudo, deixando transparecer quem são. O Miguel mais tímido, o Sérgio eminentemente solar, a Emília a confirmar que as meninas amadurecem mais cedo. Todos se derreteram a falar de animais, e por instantes pareceram recuar ao tempo em que foram crianças. Não foi há muito, como é óbvio. E fizeram-se sérios quando pensaram nas dificuldades que os esperam, como quem exercita um músculo que tem de estar em forma.

Tratei-os por tu. Mantive o trato no registo escrito da entrevista. A conversão para a segunda pessoa do plural soaria a afectação. E não, eles não são miúdos queques. São miúdos de cabeça arrumada, com uma razoável noção do meio em que estão inseridos. Não esperam que o futuro seja uma marcha gloriosa. Estão cientes de que a atenção de que dispõem (sobretudo por parte dos pais) é um tesouro.

Combinámos encontrar-nos daqui a 12 anos. Quando tiverem, no essencial, o dobro da idade que agora têm. Para saber como a vida lhes aconteceu. E para olhar para os sonhos que agora têm.  

 

 

 

Emília, quando pensas no futuro, pensas que é uma coisa que vai demorar muito a chegar?

Emília – Não. Acho que vai ser daqui a muito pouco. Sinto-me nervosa quando penso que falta pouco. Estou no nono ano, tenho de escolher. Sinto muitas dúvidas. Começo a imaginar: “Se eu escolher isto, a minha vida vai ser assim.” Era melhor não pensar tanto.

 

Este ano vai obrigar-te a pré-escolher uma vida. Um primeiro caminho. Não quer dizer que depois a vida vá ser exactamente como a escolhes neste momento. Quais são as escolhas principais?

Emília – Estou mais para ir para Línguas do que para Ciências. Gosto de coisas relacionadas com arte e teatro.

 

Miguel, pensas no que vai ser o teu futuro?

Miguel – Mais ou menos. Até ao nono ano ainda falta algum tempo. Acho que vou ter que emigrar. Aqui em Portugal vai ser difícil arranjar emprego. Se ficar cá não vou ter uma grande vida. Se for para fora vou ter uma vida melhor.

 

Mesmo sendo um aluno de cinco, como tu és?

Miguel – Sim.

 

Sérgio, e tu, o que é que imaginas para o teu futuro?

Sérgio – A vida vai decorrendo. Daqui a uns anos, Portugal pode melhorar. Tenho um objectivo: quero ser médico. Cirurgião. Interessei-me muito pelo corpo humano. E na etapa do sexto ano [em que estudámos isso], tive excelente. Acho interessante os médicos salvarem vidas. É uma profissão bonita de se ter. Se não conseguir, tiro outra coisa. Por exemplo, dentista. Há colegas meus que querem ser cirurgiões plásticos.

 

Porquê?

Sérgio – Dizem: “Ganha-se muito dinheiro”. Mas as pessoas estão sem dinheiro, não é? Um nariz; “Vou mudar o meu nariz, quero pô-lo mais fininho.” Não vão investir um monte de dinheiro, cá em Portugal, para mudar o nariz. É mais provável irem ao estrangeiro.

É o que o Miguel estava a dizer: é melhor emigrar se o país continuar assim. Cá, o ordenado mínimo é 800 e tal... não!, é 400 e tal euros. Em França é 1000, 1100. Em Portugal, ter um emprego onde se ganha 1000 e tal é uma grande vantagem.

 

Começaste por dizer que o país pode melhorar.

Sérgio – Pode. O dono do Pingo Doce pode começar a investir  em Portugal. Os clubes de futebol, que têm milhões, podem investir. Construir prédios, escolas.

 

Como é que imaginas o teu futuro?   

Emília – Também acho que vamos ter que sair de Portugal. É difícil ver que o futuro vai ser melhor. Já o Primeiro Ministro disse que é melhor emigrar.

 

Podem fazer um auto-retrato? Quem é que vocês são? Que informação acham que é importante para vos apresentar aos leitores?

Miguel – Como já viram, sou tímido.

 

Sabes porque é que és tímido?

Miguel – A minha mãe também era tímida quando era mais nova. Agora já não é tanto. Acho que sou inteligente. Gosto muito de Matemática. Também gosto de animais. Tenho 12 anos. Já vivi na Baixa da Banheira, agora vivo no Barreiro. Ando na escola da Baixa da Banheira porque a minha avó vive lá e vou para casa dela. Depois a minha mãe vai buscar-me no final do dia, quando chega do trabalho.

 

Como é que é feito este percurso? Imagina que uma pessoa nos lê em Bragança ou em Vila Real de Santo António e não tem ideia quanto tempo demora ou como se faz o trajecto entre um sítio e outro.

Miguel – Dez minutos. Vou de carro com a minha mãe. À noite é a mesma coisa. Demora-se um bocadinho menos.

 

Quando estás com a tua avó, ficas mais em casa ou vais brincar para a rua?

Miguel – Costumo ficar em casa. Vejo televisão, faço os trabalhos de casa e às vezes vou com os meus colegas ao parque, jogar à bola.

Emília – Eu chamo-me Emília, tenho 13 anos, vivo em Palmela. Vivo muito perto da escola e por isso vou sempre a pé para todo o lado. Sou uma pessoa social. Fiz o primeiro e o segundo ano juntos, e por isso sou sempre a mais nova. Na minha turma sou a mais nova. Na minha família, sou das mais velhas. Tenho de me adaptar a diferentes situações.

 

Porque é que gostas de teatro e de artes?

Emília – Gosto de interagir com pessoas. O teatro é uma ligação entre o espectador e quem está no palco. Ando na música. Estou a pensar andar no conservatório até ao oitavo grau. Se fizermos a prova, isso já nos habilita a dar aulas. Ando no quinto grau. Depois, deixo. Não é tanto aquilo para que quero ir. Toco música clássica, violoncelo. Mas gosto mais de ouvir música actual.

 

Tens um relacionamento fácil com os teus colegas e família? Dirias que és o centro do grupo e das atenções?

Emília – Não sou o centro das atenções nem sou apagada pelos outros. Faço o que quero e pronto. Estou ali. Sou boa pessoa.

 

Sérgio, és o centro das atenções?

Sérgio – Não. Lá na turma, ninguém é especial. Lá porque um se vai atirar ao poço, não vamos todos atirar-nos ao poço. Damo-nos bem. Tenho 12 anos, vivo na Baixa da Banheira. Mudei-me há três anos. Antes morava no Pinhal Novo. A turma: é como se fizéssemos parte de uma família. Gosto de estar na escola. Acho que sou simpático. Dou-me bem com as pessoas. Não sou de armar grandes confusões. Na minha escola há sempre confusões. Porrada, coisas assim. Nos primeiros dias do período houve suspensões. A minha turma não é fácil. É uma turma conversadora. Somos uma boa turma de aproveitamento, mas não de comportamento. Não é falar com o parceiro do lado... é falar com o parceiro da outra ponta. Os “stôres” querem falar e nós não deixamos.

 

O que é que suscita essas confusões na escola? Rivalidades entre alunos?  

Emília – Diferentes estatutos sociais. Os mais populares, os menos populares. Por mim, acho que estou ali no meio.

 

As pessoas que são populares são populares porquê?

Emília – São sociáveis de uma certa maneira. Se fôssemos perguntar a um adulto, ele responderia que é porque “aquele” tem mais dinheiro e compra coisas de marca. Não acho que seja tanto assim. Porque há uns populares que não têm coisas [caras]. É a maneira como se dão com os outros. São populares por causa das pessoas com quem se dão. É o irmão daquele. Conhece aquele.  

 

É-se popular pelo facto de se ser um bom aluno?

Emília – Não. Eu sou muito boa aluna, mas não sou crominha. Nos intervalos dou-me com todos. Não sou fechada nem nada. Há os inteligentes que andam sempre nos livros.

Miguel – Não é por ser mais inteligente ou assim que fico popular. Os populares são aqueles que armam confusões. Porque aquele namora com aquela e o outro está a ir com a outra e depois aquele faz não sei o quê àquele.

Sérgio – Às vezes o mais popular é aquele que está na escola há muito tempo, e chumba, e faz muita asneira.

 

Um rebelde?

Todos – É isso.

Sérgio – Fazer tanta asneira sobressai. O nome dele ouve-se tanto que uma pessoa decora. Não é por estatuto social [que se é popular]. Pode-se vestir tudo de marca e não ser conhecido. E outro, que não é tão rico, mas é mais rebelde, é mais popular.

 

Quais são os menos populares?

Miguel – Os que não armam confusão, e que são simpáticos. Como não armam confusão não são o centro das atenções. Os que são mais calmos e inteligentes – como eu – não são populares. 

Sérgio – Os menos populares são os nerds. Os que estão sempre metidos no PC. Que não saem com os colegas. Quando um “stôr” falta, vou jogar à bola. Mas muitos vão para a biblioteca jogar. É a vontade de ir para o PC – e que se lixem os colegas.

Emília – Na minha escola é ao contrário. Alguns dos mais populares vão para o computador.

 

Estão no Facebook?

Todos – Sim.

Emília – Tenho Facebook há pouco tempo. Não havia grande necessidade de ter. Depois achei que era um bom método para falar com amigos. Antes usava o skype e o Messenger.

Sérgio – Eu tenho 400 e tal amigos. Mas só há quatro ou cinco com quem falo. Falo mais com a minha turma, que vejo dia a dia.

Miguel – Só tenho como amigos aquelas pessoas que conheço mesmo e com quem falo. Não aceito [como amigo] pessoas [que não conheço]. Vejo, e vou logo convidar para ser meu amigo? Não.

 

Vamos voltar à ideia de futuro. Vamos imaginar que têm 24 anos.

Miguel – Hum. [faz cara de enorme surpresa]

 

Nunca pensaste nisso?

Miguel – Não.

 

24 anos é o dobro da idade que tens agora. À partida, terás o curso completo, estarás a entrar no mercado de trabalho. Consegues pensar como é que vai ser?

Miguel – É um bocado difícil. Primeiro vou procurar trabalho cá. Depois, se não conseguir arranjar, opto por emigrar. Mas não sei o que é que hei-de ser.

 

O que é que fazem os teus pais? Isso influencia a tua escolha?

Miguel – O meu pai é consultor imobiliário. A minha mãe coordena uma clínica.

 

Imaginas-te a coordenar uma clínica ou a ser consultor imobiliário?

Miguel – Não. Coordenar uma clínica, não. Dá muito trabalho e não compensa tanto. Consultor imobiliário: o meu pai só ganha quando vende; e como está difícil vender por causa da crise, não é certo.

 

Posso deduzir que gostavas de ter uma profissão mais segura em termos profissionais e financeiros?

Miguel – Sim. 

 

Olhando para a sociedade, que profissão imaginas que pode garantir isso?

Miguel – Advogado. Não sei... Os que trabalham nos hotéis, os recepcionistas.

 

Quando fizeres uma escolha não vais excluir a compensação financeira e a estabilidade que isso representa. Não te podes dar ao luxo de só escolher uma coisa de que gostes?

Miguel – Sim, é isso. 

 

Emília, como é que te imaginas com 28 anos? Tens quase 14.

Emília – Com 28 anos, se não encontrar nada em Portugal, estou em Londres. Acho que há mais saídas para fazer publicidade. Gosto de fazer campanhas publicitárias. Não é como modelo. É ter ideias para anúncios. Também no teatro, há mais saídas em Londres. Há mais saídas em todas as áreas, comparado com Portugal.

Isto que o Miguel estava a dizer: pensar no que gostamos e no quanto vamos ganhar: não sei se é assim. No teatro O Bando, no outro dia, estávamos a falar nisso. Uma das responsáveis dizia que devemos seguir sempre aquilo de que gostamos. Sem pensar no dinheiro. Isto está tão mau que é difícil arranjar uma profissão que dê muito dinheiro. Se estivermos a fazer aquilo de que gostamos, mesmo que não ganhemos tanto, pelo menos estamos a fazer aquilo de que gostamos. Vivemos melhor.

 

Quem é que achas que ganha hoje dinheiro em Portugal?

Emília – Os políticos. Quem trabalha na televisão. Os apresentadores. Toda a gente os conhece, vê-os todos os dias – devem ganhar dinheiro.

 

Sérgio, quando tiveres 24 anos, que vida será a tua? Pensas nisso?

Sérgio – De vez em quando. Nunca vou saber o meu futuro. Podemos hoje querer seguir um curso, amanhã podemos querer seguir outro. Não vamos ter sempre o mesmo pensamento. Imagino-me a ir a discotecas com os meus amigos. E que eles tirem, também, uma boa profissão. O meu futuro pode ser bom, como pode ser mau. Para entrar em Medicina tenho de tirar entre 18.40, 19, 20.

 

Estás disposto a marrar noite e dia para conseguir essas notas?

Sérgio – Sim. Tenho de melhorar o Inglês. Tiro boas notas às ciências. A Português surpreendi-me este ano: tirei um 4. Os meus professores têm-me ajudado, acho que vou conseguir.

As pessoas que ganham mais dinheiro em Portugal são os jogadores da bola. Se repararmos, os jogadores ganham 20, 30, 40 mil euros por mês. É muita dinheiro. O Cristiano Ronaldo ganha 50 mil euros por dia.

 

O que é que os teus pais fazem?

Sérgio – Não. O meu pai é vendedor [numa empresa] de desbaratização. Trabalha numa empresa que está em cento e tal países. Ele vende, mas já fez esse serviço [desbaratização]. Começa-se por esse e depois sobe-se para vendedor. A minha mãe trabalha numa espécie de CTT aqui perto. Não sei bem qual é o trabalho da minha mãe. O trabalho do meu pai já me influenciou; quando era pequenino; dizia: “Vou ser vendedor como tu, pai”. A minha estudou, foi até ao 12º ano. Ela queria ser bailarina. Os meus pais estão sempre a dizer uma coisa: “Faz o que eu te digo, não faças o que eu faço. Não te desleixes na escola, senão não tens uma boa vida”.

 

Tens irmãos?

Sérgio – Não. Gostava de ter. De vez em quando penso: “Os meus filhos não vão ter um tio nem um primo”. [riso]

 

Já começaste a falar de uma coisa que ia perguntar a todos: imaginam que vão casar, ter filhos? Como é imaginam a vossa vida pessoal?

Sérgio – Tenho um cão. Antes de nascer, os meus pais tiveram um cão. Deram-no. Roía tudo. Depois tive um gato, a Núria. Gostava muito dela, mas fugiu, na Covilhã. Foi uma pena. Depois tive outro. Não me dava bem com ele. Agredia-me. Uma vez entornou-me o aquário dos peixes para cima da cabeça. Depois tive uma cadelinha, a Fiona. Era muito porquinha, fazia chichi em qualquer lado. Tivemos de a dar. Depois mudámo-nos e os meus pais compraram um cão. Morreu. Voltaram a dar-me um, passados uns meses. Ainda o tenho. A Cuca. É tipo um leitãozinho. Tem a cauda encaracolada e o focinho achatado com rugas. Gosto muito dela. É como se pudesse desabafar com ela.

 

Emília, antes de mais: este não é um nome comum numa pessoa da tua idade.

Emília – Não. Gosto de ter este nome, é diferente. A minha bisavó chamava-se Emília. E a minha tetravó era também Emília. É para as homenagear. Alguns amigos chamam-me Milly.

 

Imaginas que vais ter uma casa tua, um marido, filhos?

Emília – Essa coisa do marido... Se encontrar alguém de quem goste mesmo, a pessoa certa, sim. Senão, não. Não sei o que é que vem aí. Em termos de trabalho, podemos escolher áreas. Ali, [no amor], não.

 

Achas que o amor é uma coisa que acontece, que é pouco de escolha?

Emília – Sim.

 

Que características tem de ter a pessoa certa?

Emília – Ser sincera. Oh pá, não sei. Tem de ter alguma coisa especial. Ser giro. [riso] Não pode ser violento nem agressivo. Tem de me tratar bem. Alto, não muito alto. Moreno.

 

Porque é que valorizas tanto a sinceridade (que começaste por apontar)?

Emília – Acho que é das coisas mais importantes. E muitos dos problemas nas relações são por causa disso.

O que os meus pais fazem não me influencia. A minha mãe é professora de Inglês – e não é por isso que sou boa a Inglês. As pessoas dizem que sim, mas não é. Vejo muitos programas em inglês, gosto dos Simpsons e de séries em inglês, e ouço música. O meu pai é artista plástico.

 

Teres um pai artista plástico não influencia o teu gosto pelas artes?

Emília – Gosto de artes mas não é nada por causa do meu pai. Se calhar está nos genes... Não sei.

Imagino que, quando estiver na universidade, vou partilhar uma casa com amigas. Gostava de experimentar partilhar casa com pessoas que não as da minha família. Partilho o quarto com a minha irmã. Não gosto nada. Quer dizer, gosto e não gosto. Provavelmente, se tivesse o quarto só para mim, sentia-me sozinha.

Quando era pequena tinha muito medo a cães, mas agora não, e gostava muito de ter um cão. Vivo num apartamento e é difícil ter animais. O meu pai tinha uma gata que até teve filhinhos, mas a minha mãe engravidou de mim e tiveram de dar a gata. Só tive peixes. O Sérgio, aos 12 anos, já teve estes animais todos! Quem me dera. É uma das coisas que quero ter quando tiver uma casa minha. Até pela companhia. Um animal de estimação parece que é o nosso confidente.

 

Miguel, imaginas que vais ter filhos? Quantos? Tens irmãos?

Miguel – Sou filho único. Os meus pais separaram-se quando eu tinha um ano.

 

(Os vossos pais estão juntos ou separados?

Emília e Sérgio – Juntos.)

Miguel – Gostava de ter pelo menos um filho. Imagino que vou ter uma casa não muito grande nem muito pequena – normal. Gostava muito de ter gatos, mas a minha mãe é alérgica. Tenho no meu pai, mas vou lá poucas vezes. Estou menos tempo com ele. Gosto muito de animais, em especial de gatos.

 

Como é o teu quarto?

Miguel – É daquela porta aqui.

Emília – O meu quarto não é nem muito pequeno nem muito grande. Quero ter uma casa diferente da minha. Que tenha um quintal ou um pedacinho de lá fora. Que seja acolhedora e organizada. Coisa que o meu quarto não é. Sou desarrumada.

 

És desarrumada e queres ter uma casa arrumada?

Emília – Pois. Quero tentar começar de novo, quando tiver uma casa, e ser mais organizada. Ter um sítio para cada coisa. Gostava de ter uma quarto grande porque vou precisar de espaço para as minhas coisas. Roupa e coisas assim. A minha mãe chateia-se muito, diz que eu tenho de arrumar.

 

É interessante teres dito que imaginas que vais começar uma outra vida.

Emília – Ao mesmo tempo, sem deixar a outra vida.  

Sérgio – Gosto muito da natureza (foi uma das razões por que entrei nos escuteiros). Gostava de ter uma casa no campo. Não isolada, mas no campo. Gostava que os meus filhos – dois, um casalinho – se habituassem a esse meio, e que fossem aventureiros. Vou ensinar-lhes a respeitar as pessoas. A partilhar. Sou voluntário do Banco Alimentar, vou ver idosos. Os idosos são os nossos irmãos mais velhos. Devemos tratá-los bem. Tiveram vidas mais difíceis do que as nossas. 

 

Miguel, pensas que vai ser uma outra vida quando casares e começares a trabalhar?

Miguel – Sim. Também sou um bocado desorganizado. Gostava de não ser tanto. Gosto de arrumar, mas passado um bocado já está tudo desarrumado outra vez. Espero que não seja assim [no futuro]. Não passo muito tempo no meu quarto. Passo mais tempo na sala. Sinto-me sozinho no quarto.

 

Estudas mais na sala que no quarto?

Miguel – Estudo mais no quarto.

Emília – Eu estudo na sala, sempre. Realmente passo muito mais tempo na sala. A sala tem a televisão e é um sítio mais acolhedor. No meu quarto tenho a escrivaninha e o sítio onde guardo as minhas coisas. Mas é isso: guardar. Não passo tempo lá.

Miguel – No quarto tenho o computador e a playstation. Mas passo mais tempo na sala a ver televisão.

 

Como é que achas que vais educar o teu filho? Disseste que querias ter pelo menos um.

Miguel – Espero que eduque bem. Quero que ele seja mais organizado do que eu. Espero que seja inteligente como eu. E que goste sempre dos pais que tem – que goste sempre dos pais que vai ter.

 

No fundo, queres que o teu filho goste tanto de ti e da mãe como tu gostas dos teus pais.

Miguel – Sim.

 

Ainda não falaram de viagens. Imaginam que vão conhecer outros lugares?

Emília – Eu quero conhecer o mundo todo. Fui a Paris, a minha grande viagem. De resto, Espanha, aqui ao lado.

Sérgio – Fui a Tenerife com os meus avós. Ficámos num hotel. Anda-se a passear nas ruas e é só hotéis, hotéis, hotéis. A praia é de areia preta: não gosto! Gostei muito da Suíça, achei fascinante.

 

Estavas a contar, antes de a entrevista começar, que foste com os escuteiros, de autocarro. 

Sérgio – Dois dias de autocarro. Dormimos no autocarro. Passámos por Barcelona, França, várias cidades. Fizemos muitas actividades na Suíça. Os meus pais compraram-me umas botas impermeáveis e andava com elas dentro do rio. Andámos numa coisa que tem uma linha... como é que se chama aquilo?

 

Teleférico?

Sérgio – Sim. Vimos as montanhas todas. Andámos de tobogã. Fomos ao Lago Gelado. Fomos ao Parque Astérix em França. Andámos na montanha russa. Fomos a uma discoteca.

 

Grande aventura.

Sérgio – Foi.

 

Como é que é a relação com os mais velhos?

Sérgio – Há uma falta de respeito pelos “stôres”. E pelos pais. Falo por mim, de vez em quando também respondo aos meus pais. É no momento que digo aquilo. Depois arrependo-me. Espero que os meus filhos, um dia, gostem dos pais. E que gostem dos avós – acho os meus pais fabulosos. Nunca me prenderam. Posso ir a acampamentos, posso sair com os meus colegas.

 

Miguel, és muito protegido? Tens a liberdade que gostarias?

Miguel – Os meus pais dão-me liberdade. Não muita. A necessária. Não me deixam ir para muito longe sozinho. Quando vou para mais longe vão sempre comigo. Mas não me prendem em casa para não sair com os meus amigos.

 

E tu querias ir para longe, às vezes?

Miguel – Não.

 

Estás com o teu pai ao fim de semana. É muito diferente a relação que tens com ele e com a tua mãe?

Miguel – É. Estou muito mais tempo com a minha mãe, portanto temos uma ligação mais forte. Não tenho uma ligação tão forte com o meu pai.   

 

Se tiveres um problema, uma coisa para contar: quem é o teu melhor amigo?

Miguel – A minha mãe.

Emília – Eu partilho com amigos. Também nunca tive assim grande coisa para partilhar... Partilho mais com a minha mãe do que com o meu pai. Por ser rapariga. Vivo com os dois e gosto muito dos dois.

 

Não contaste como é que imaginas que vais educar os teus filhos.

Emília – Não sei se vou ter filhos. Depende. Se tiver um marido e um ambiente estável, sim. Gostava mais de ter rapazes do que raparigas. É mais fácil a vida dos rapazes. Oh pá, sei lá porquê. Por exemplo, gravidez na adolescência: os rapazes não estão presos ao corpo. A mulher: é lá que o filho cresce. É também porque vivo com uma irmã: gostava de ter a experiência de ter um rapaz.

 

Que gostarias de lhes incutir?

Emília – Que fossem felizes. Que não tivessem a [obrigação] de ser inteligentes. Quero que sejam inteligentes, mas que não se preocupem tantos com as notas. Eu não quero preocupar-me tanto com as notas – e tenho boas notas. Mas de certo modo sinto essa obrigação. Os meus pais não ma impõem. Sou eu.

 

Essa imposição que tu te pões acontece porque é a única maneira de singrar na vida?

Emília – É porque me garante um futuro melhor.

 

Vamos voltar ao início da conversa e à ideia de futuro. As vossas primeiras respostas foram marcadas pela crise. Sentem-na na vossa vida de todos os dias?

Miguel – Não, a minha vida não mudou. Continuei a ter as coisas que tinha antes. Continuaram a dar-me as coisas que queria. Também não peço muita coisa... Não precisam de gastar muito dinheiro comigo. Quando quero ou preciso, tenho.

Emília – Só mudou o que eu acho do futuro. É aquela coisa de pensar que estamos em crise e que o futuro vai ser mais difícil. Presentemente, não. Não peço muita coisa. As coisas de que preciso mesmo, tenho.

Sérgio – A vida não mudou muito. Há diferenças. Não se pode gastar tanto. Também não peço muito.

 

Que coisas mais pedem? Um presente no Natal, um presente nos anos?

Emília – Agora já não peço nada. Que dêem o que quiserem.

 

Deixaste de pedir por causa da crise?

Emília – Não. Foi há anos que deixei de pedir. Foi porque cresci.

Sérgio – Deixei de ligar às prendas. O Natal é para se juntar a família. Não é pelos presentes que se faz o Natal ou os anos. Uma pessoa dá uma prenda quando quer. Eu queria um computador (o meu estava a avariar-se). Os meus avós ofereceram-me um portátil e não foi no Natal nem no dia dos anos. O ano passado perguntei se me podiam dar algum dinheiro para ir à Suíça.

 

Miguel, pedes ou esperas um presente quando tiras notas excelentes?

Miguel – Não. Não peço coisas nas ocasiões especiais nem nas outras. Se estiverem comigo já é um grande presente. A minha mãe e o meu pai.

Emília – Não receber nada... ficava um bocadinho triste. Nem que seja a coisa mais pequenina do mundo é um símbolo do que gostamos da outra pessoa. Mas dava algumas prendas para passar o Natal em casa dos meus avós maternos (têm uma casa muito grande). Gostava de passar mais tempo lá, e com aquela parte da família de quem gosto muito.

 

Onde é que ouvem a conversa sobre a crise? É em casa que se fala de cortes, da poupança que é preciso fazer?

Sérgio – Os meus pais não têm problema em falar nisso à minha frente. Acham-me suficientemente adulto para saber o que é que se passa. Dizem que não é preciso esconderem-me nada. Se for preciso dizem-me: “Não podes receber aquilo”. Não faz mal. Eu compreendo. Não é por aquilo que vou morrer. O presente é um objecto, não é uma coisa de valor. Dou mais valor à atenção que os meus pais me dão do que a um presente. Uma pessoa pode ter tudo no mundo e não ser feliz. 

 

Conheces alguém assim?

Sérgio – Não. Mas sei que há. (Vou responder à pergunta: com quem é que desabafamos mais? É com o meu primo. Temos um ano de diferença, é como se fosse um irmão. Tenho primos em terceiro grau que nem conhecia! Um primo que tem o mesmo nome que eu: Sérgio Tiago.)

Ouço conversas sobre a crise no telejornal. Também se vê na rua, nos cafés, as pessoas a falar sobre isso. Os professores. Um “stôr” dizia: “Vocês estão aqui a brincar enquanto os vossos pais estão a trabalhar, a esforçar-se para vos dar o que querem”. Era um excelente professor. Chamava-nos muito à atenção e puxava muito por nós.

 

Emília, como é que tu sabes da crise?

Emília – Principalmente pela televisão. Em família comentamos o telejornal. Mas não temos grandes conversas, especificamente, sobre a crise.

Miguel – Eu ouço mais no telejornal do que se fala em casa. Há pessoas que não estão afectadas pela crise; às vezes há promoções e compram porque está mais barato, mesmo que não precisem.

 

Se não sentem muito a crise no presente, o vosso medo é sobretudo em relação ao futuro?

Emília – É isso.

Sérgio – Os ministros dizem: “Em 2014 isto melhora.” Mas isto não tem vindo a melhorar... Tentam mentir ao país para o país estar mais motivado e não estar descaído. As pessoas estão tristes. Por exemplo, vêem o filho a querer uma coisa e sabem que não têm possibilidade de lha dar. Muita gente tem vindo a emigrar por causa disso. Isso é pior para Portugal. É bom para os outros países. Têm mais pessoas, as pessoas ficam lá, compram mais coisas lá.

 

Todos falaram de emigração. Do que é que teriam mais saudades se tivessem que emigrar?

Emília – Da minha irmã. Mesmo quando for para a universidade não estou a ver como é que vou passar os dias sem ela.

Miguel – Da família.

Sérgio – Da família e dos amigos. Os amigos são sempre aquele apoio.

Emília – E de Palmela.

Sérgio – Do sítio onde vivemos. Daquela escola onde passámos coisas bué da fixe. Dos meus pais. São uns grandes pais. Tentam dar-me o que podem. Não fazem os deveres comigo porque sabem que consigo fazê-los sozinho.

Miguel – Os meus pais também me apoiam muito na escola e no dia a dia. Ajudam-me a fazer as coisas, os trabalhos de casa. Ajudam-me a perceber. Para que consiga, sempre, tirar boas notas.

Emília – Os meus pais são óptimos porque me dão confiança. Não preciso muito de apoio na escola. A minha irmã precisa mais do que eu – é mais nova, tem nove anos. O principal é a confiança. Sabem que não me vou meter em coisas más.

Sérgio – É uma parte essencial: os pais terem confiança nos filhos.

 

Uma palavra para 2013. Qual escolhem?

Miguel – Esperança.

Emília – Era o que eu ia dizer. Esperança.

Sérgio – Motivação para o país?

 

 

Publicado originalmente no Público em Janeiro de 2013