Diogo Morgado
E aos 32 anos, Diogo Morgado foi Jesus. Um hot Jesus, visto por 100 milhões de pessoas (ninguém esperava, nem ele, nem os produtores). Foi entrevistado por Oprah Winfrey, comeu um cachorro quente com ela (como toda a gente sabe). O que é que se percebe quando se está lá? Que é tudo uma questão de dinheiro. E que não se pode esquecer o lugar de onde se vem.
Passavam poucos minutos das onze da manhã quando recebo uma mensagem de Diogo Morgado. Estava ligeiramente atrasado e pedia desculpa por isso. “Não tem problema”, respondi. “Tem, tem”, replicou ele.
Nos Estados Unidos não se chega atrasado. A entrevista tinha sido marcada através de uma agente e eu não sabia se ele ia chegar à americana, com agente, assistente, staff. Mas chegou à portuguesa, absolutamente sozinho, descontraído, sem maquilhagem. O oposto do que foi a maratona de promoção da série A Bíblia, cujo sucesso suscitou esta entrevista.
Diogo Morgado não poderia dizer a Oprah que já anda há uns anos a virar frangos (portuguesíssima expressão para dizer que anda há uns anos nisto). Foram precisos uns anos para chegar onde chegou. Que é onde? A que é que corresponde? É preciso fazer o que para chegar aqui? E a máquina, vista de perto, é como? Estes foram alguns dos pontos de partida. Quando nos despedimos, ele quis pagar o capuccino. Eu insisti: “Isto é trabalho”. Ele foi bem educado (e pagou a conta).
(Tenho uma pergunta provocadora, para começar.
Uma entrada a pés juntos!
“Entrada a pés juntos”?
É a expressão futebolística para cartão vermelho. Quando os tipos vão atrás da bola e entram a pés juntos, pode ser vermelho directo.
Espero que não dê sequer amarelo. A pergunta provocadora:) protagonizar uma série que é vista por 100 milhões de pessoas dá para ficar rico?
Não, não dá. O mercado americano distingue-se em várias classes e subclasses. A classe mais privilegiada é a do sindicato, o SAG [Screen Actors Guild]. Essa, sim, para a maior parte dos actores, sejam eles ligeiramente conhecidos ou desconhecidos – os conhecidos são outra liga –, obriga a uma escala de valores. E não foge muito dali. Depois há os non-union projects, e é uma rebaldaria.
Este projecto específico: o produtor era inglês, vive nos Estados Unidos, é lá que tem a empresa; mas a empresa que abriram para fazer esta série é sediada em Londres e a série foi gravada em Marrocos. Uma das particularidades do projecto é que os actores não podiam pertencer a um sindicato americano – era o meu caso. Por essa razão, não entrando em muitos pormenores, [a resposta é]: longe de ficar rico.
Nem depois do sucesso?
Este não foi um projecto de dinheiro para 80% das pessoas envolvidas, inclusive para os produtores. Começou por ser um docudrama para o Canal História. A expectativa de retorno financeiro não era por aí além. De repente tornou-se um fenómeno, e aí, para o produtor, isso traduziu-se noutros valores. Para mim, não.
Quando olhamos para séries como Anatomia de Grey, Madmen, Os Sopranos, Os Homens do Presidente, para o espectador que nada sabe dos sindicatos e das diferentes ligas, olhamos para séries glamorosas, para uma vida hollywoodiana. Também imaginava que era assim antes de ir para os Estados Unidos e perceber na prática como é que as coisas são?
Não esperava isso, mesmo. Obrigo-me a ser realista, para não dizer pessimista. Nunca enfatizo muito o que me está a acontecer. Antes de começar a série não pensei na repercussão; e depois de acabar a série havia tanta coisa para digerir dentro de mim, de que não estava à espera, que não pensei na repercussão mediática. Chego aos Estados Unidos [para fazer promoção], a série ainda nem tinha estreado, e de repente há um grande boom à volta da série, à minha volta. A brincadeira do hot Jesus começou porque a minha imagem saiu ainda antes da figura de Jesus. Os comentários que surgiram não eram sobre o meu trabalho...
... mas sobre o facto de ser hot.
Sim. Foi uma surpresa, também.
Foi uma surpresa?
Então não foi? Dei tanto de mim, aquilo foi uma aventura tão dolorosa e difícil, tão de vida ou morte, quase, que a última coisa que esperava era que o primeiro comentário fosse sobre a minha figura. Nunca vivi em função da imagem.
Vamos falar de imagem, mesmo que não lhe atribua importância central. Se tivesse 1,60m e fosse um camafeu não teria ganho o papel.
Porque não? O Dustin Hoffman trabalha e é feio como um boi, o Danny DeVito trabalha. Eles têm imenso trabalho porque são bons. Grande parte das coisas improváveis que fiz teve que ver com um combate a uma figura [pré-determinada].
Coisas improváveis?, está a pensar em filmes independentes?
Não. Teatro de revista; estive dois anos no Teatro Maria Vitória, quase ninguém sabe, mas fiz duas revistas lá. Não preciso de adjectivar. Estive dois anos a fazer Malucos do Riso – não é propriamente aquilo que dá sex appeal. Fiz um ano e meio de musical infantil em que era um golfinho que gaguejava.
Quando é que teve consciência de que era hot e que esse atributo era importante?
Comecei com 15 anos. Eu era alto, tinha alguma pinta, não tinha formação como actor. Mas fiz um casting com 30 ou 40 que tinham melhor figura que eu.
Um casting para o papel de Jesus?
Não, para o meu primeiro trabalho, [a novela] Terra Mãe. Estive quase cinco ou seis anos, também por causa disso, a testar-me. A perceber se, de facto, tinha alguma coisa que pudesse acrescentar a este mercado da representação. Só aos 21 é que decidi estudar teatro.
No mundo em que se movimenta a figura é uma exigência. É mais severo para as mulheres, mas é suposto que um actor tenha cuidado com a alimentação, seja ginasticado, corresponda a determinado estereótipo.
Não concordo. Numa série como Downton Abbey nenhum desses atributos é válido. Há um outro mercado, muito mais comercial, que movimenta muito mais dinheiro, em que esses atributos também são precisos. Mas é “também”. Grandes blockbusters como o Thor, o Capitão América: o público da Marvel é um público que ama a personagem, que não permite que qualquer fedelho se ponha na sua pele. Se o actor não tivesse alguma coisa...
O Robert Downey Jr, que passou por um processo complicado, drogas, álcool, renasce agora sem qualquer desses atributos. É um tipo bem parecido, mas não é estonteante. É um tipo altamente carismático e bom para caraças.
Então é preciso ter qualquer coisa, que distingue aquela pessoa entre as demais.
Sim. Não tem que ser mais nem menos, mas é uma coisa genuína e distintiva.
Quando foi para os Estados Unidos, já sabia qual era o seu elemento de distinção?
Nunca “fui” para os Estados Unidos. Sou português e trabalho em Portugal. Sempre que fui aos Estados Unidos foi para trabalhar. Os castings são feitos por vídeo, cá, e depois, havendo interesse (“estamos indecisos entre três”), é necessário uma reunião pessoal. Não “fui” como muitos foram. Não tenho nada contra. Eu é que não sou capaz de fazer isso, de ir à maluquice.
Por que é que nunca o fez?
Tenho 32 anos. Tudo o que sou como pessoa e como actor foi aqui. Há muita coisa no nosso mercado por fazer. Gosto de pensar que a minha presença cá será mais proveitosa do que lá. Lá serei apenas uma pessoa que está a tentar a sua sorte em determinados castings. Pouco mais posso fazer. Não posso produzir uma peça, dificilmente poderei fazer um filme.
Nem o sucesso, a deflagração que foi A Bíblia, o faz apostar nessa possibilidade?
Não, não. Não consigo explicar, talvez seja teimosia, burrice. É como [escolher] não viver em Lisboa. Quando vivi em Lisboa, durante quatro meses, a minha dinâmica mudou; deixei de ser a pessoa que era, deixei de ter os meus tempos, a minha orgânica própria. E isso tirou-me força. Não vou mexer numa máquina que para mim funciona. Vou ser sempre o miúdo que jogava à bola na margem sul, tenha o dinheiro que tiver e faça o que fizer. Vou ser sempre o miúdo que cresceu no Fogueteiro que tem muito respeito por aquilo que faz e pelas pessoas que têm muito respeito por aquilo que fazem.
É tão fácil darem-nos palmadinhas nas costas... Não é fácil é olharem para nós quando não somos nada e dizerem: “Acho que há qualquer coisa aí”. Houve três ou quatro pessoas na minha vida que o fizeram, e foram essas que me fizeram estar a falar consigo hoje. Quando [a série] saiu cá – e houve muitos comentários positivos à minha participação – fiz um agradecimento no Facebook, nomeei-as todas. Uma delas já não está entre nós, mas vou agradecer-lhe enquanto for vivo.
Quem é?
O Armando Cortez. Quando eu tinha 15 anos, agarrou-me no braço, puxou-me para trás do décor, como só um senhor sabe fazer, para não estar à vista de ninguém, e disse-me: “Diz lá o teu texto. Pára, respira. Isto é uma coisa, aquilo é outra coisa. Outra vez. Por que é que estás a fazer tudo seguido?” E no final disse-me assim: “Não fiques chateado comigo. Se estou a fazer isto é porque acho que vales a pena”.
Alguém disse: “Vales a pena”. Foi isso que o comoveu?
Não foi alguém: foi ele. Deu-me uma meta. Fez-me olhar para ele e dizer: “Quando for grande quero ser assim”. Quero ter esta generosidade, quero ter olho e distinguir as pessoas, e não as julgar pela aparência, por aquilo que fazem ou fizeram. Isto é tão difícil. Assim que nascemos já estamos em condenação, em privação. Somos filhos de Adão e Eva. Se formos pelo lado cristão, e se não formos por aí, é igual. Mesmo esquecendo o lado moral e indo apenas pelo lado fisiológico, é uma luta de sobrevivência.
Usei a expressão “quando foi para os Estados Unidos”, explicou que não foi para os Estados Unidos. Fechamos esse parêntesis. Retomemos aquilo que tem e que marca a diferença num mercado tão competitivo como o dos EUA. Qual é o seu distinguo?
Não sei. Dificilmente quem tem esse distinguo tem noção de que o tem. Cada vez que tento seguir aquilo que esperam, acaba por ser o normalzinho. Das poucas vezes – e isso tem acontecido nos últimos quatro, cinco anos – em que penso: “Vou ter mesmo que lutar por isto, acredito mesmo que é por aqui”, mais tarde vem a recompensa, e sinto que essa foi a distinção.
No casting de Jesus, nunca na minha vida, em segundo algum, pensei que ia ficar. Pensei que era uma coisa tão inatingível. E mesmo que ficasse, ia ter um trabalho muito difícil, porque já foi feito imensas vezes. Fui para o casting, lendo a Bíblia e [perguntando-me]: “Qual é a mensagem?” A minha aposta foi essa. Não direi que foi uma aposta..., foi a minha vontadinha. Grande parte das opções que foram tomadas em relação à minha personagem, foram coisas que eu trouxe e que não existiam no papel, não foram sugestão do produtor.
Vamos lá contar a história desde o princípio. Telefonou o seu agente a dizer que tinha um casting para Jesus Cristo?
Foi isso. Tenho um manager nos Estados Unidos.
Como é que arranjou esse manager?
Através de um filme que fiz no Porto chamado Star Crossed [2009]. Era a história de Romeu e Julieta mas com futebol; em vez de ter duas famílias rivais, tinha dois clubes de futebol rivais. O produtor levou o filme para festivais. Num desses festivais, um agente perguntou quem eu era. Entrámos em contacto, ele disse que gostava de trabalhar comigo. “Mas eu não vou para os Estados Unidos”, “Tudo bem, arranjamos uma fórmula”. A fórmula foi começar a fazer aquilo a que chamam pré-castings, em vídeo (mesmo nos Estados Unidos é assim).
Quando lhe ligou o agente americano lembrou-se daquele provérbio português: “Quando a esmola é grande o pobre desconfia”?
Achei que me iam ficar com um rim. O projecto chamava-se Mary, Mother of Christ. Fiz o vídeo-casting. Passado quatro dias liga-me: “Querem conhecer-te. Este filme tem o Al Pacino, o Peter O’Toole e querem-te para protagonista”. Lembro-me de ter comentado com a minha família: “Isto é uma jogada, de certeza. Eles vão a países em que a malta é mais ou menos e atraem a malta para depois lhes ficarem com os órgãos”. [risos]
Andou a ver filmes de ficção científica. Ou CSI.
Na altura falava-se um bocadinho do tráfico de órgãos.“Tens de vir aos Estados Unidos”, “E quem é que paga a viagem?”, “Tens de ser tu porque estás a ser contratado como um actor americano”, “Então não vou, lamento imenso”. O agente ficou lixado comigo. Passados 15 ou 20 dias voltou a ligar-me. “Então e a Marrocos, podes ir? O realizador vai fazer uma repérage – conhecer os locais para filmar – e voltou a lembrar-se de ti. Como está mais perto de Portugal pergunta se podes ir lá. Eles reservam-te o hotel”. Vou à net, vejo o preço dos bilhetes. “Vou arriscar”.
Está a exagerar. Achava mesmo que podia ser uma cilada?
Não estava convencido de que fosse verdade. Só quando conheci o realizador, o James Foley, é que descansei. Ai, isto é mesmo a sério! E fiquei com o papel.
O casting:é uma história gira. O lobby do hotel era enorme. Tinha uma mesa em vidro. Comecei a fazer uma cena toda improvisada. Há uma parte em que aparece um anjo, eu faço assim [exemplifica, como quem dá um golpe] e a mesa partiu-se em mil pedaços. E eu continuei! O casting eram quatro páginas, eu ia na segunda, alguma vez ia parar? O James Foley conta isso numa biografia. Ainda tem a cassete guardada. Acho que foi um factor determinante para ficar: aquilo partiu-se tudo e eu continuei.
E o filme?
O projecto está há quatro anos em águas de bacalhau. Pode ser que se faça algures este ano.
Mary Mother of Christ... Depois de Jesus.
Essa é outra razão pela qual se calhar não vou fazer o filme, se o filme se fizer. Há coisas que não posso fazer. Já me ofereceram o papel de diabo, entretanto.
Recusou?
Sim.
Imagino que seja difícil recusar projectos grandes.
Para mim é difícil recusar quando parecem bons. Quando parecem absolutamente ridículos não me custa nada. Nesta altura de crise há o factor dinheiro. Custa um bocadinho... Mas nunca entrei nisto por dinheiro.
Já sei que não ficou rico com A Bíblia, mas continua a fazer contas?
Faço contas todos os dias, claro que sim, porque continuo a ser o miúdo que joga à bola no Fogueteiro.
Agora percebo a alusão aos “pés juntos”, ao cartão vermelho. Segue o futebol?
Não tenho nenhum clube, não acompanho. Mas há ali qualquer coisa – o companheirismo, a coisa da rua, e eu jogava na rua – que me toca. O sol punha-se e a minha mãe gritava da janela: “Ó Diogo!” Enquanto ela não dissesse o meu nome todo sabia que estava tranquilo.
O que é que é importante na sua biografia?
A minha mãe era cabeleireira. O meu pai trabalhou durante anos no mercado de peixe. Daí vêm várias coisas. Lembro-me de o meu pai ter dois empregos. A minha mãe tem problemas nas costas, esteve muitas horas em pé. Sempre foram dois grandes exemplos de trabalho e de respeito pelos clientes para quem trabalhavam, às vezes para lá das suas forças.
Não me passou despercebido que tenha dito bom dia a uma senhora fardada (parecia empregada de cozinha ou camareira) que passou por nós. [A entrevista fez-se no bar de um hotel.]
Sempre. Até já fui repreendido por não dar bom dia às chefias para dar bom dia às pessoas que não eram chefia.
Repreendido por quem?
Não interessa.
É um tributo aos seus pais.
É um tributo a quem merece. Não tem nada a ver com políticas, mas lido mal com o poder, com pessoas com muito poder. E sinto-me muito bem, muito confortável… Nos Estados Unidos, onde me sentia bem era no bairro mexicano, um dos bairros mais pobres de Los Angeles.
Refere-se à temporada que passou lá a promover A Bíblia?
Sim. E sempre que estive lá a filmar.
O sítio onde se sente bem é um lugar de gente pobre, de gente simples?
De gente simples. O trabalho dignifica as pessoas e dá nobreza. Tenho tendência a complicar, penso demais nas coisas. Sempre que estou rodeado por essas pessoas simplifico e desfruto muito mais.
Estávamos na sua história. Foi educado para ser o quê?
Para tirar um curso, qualquer que fosse. Aos 15 anos, quando comecei a “incursar” por este lado, foi uma surpresa para os meus pais. Acredito que tenha sido até decepcionante. Aquela resistência, que qualquer pai teria, que eu hoje, sabendo o que sei, [teria], se o meu filho dissesse que queria ser actor... Se disser, vou ter medo.
Medo de quê?
É muito complicado viver o dia-a-dia sob teste. A nossa vida depende de como nos saímos num teste. Mesmo quando deixamos de fazer casting, o próximo trabalho é um teste. Somos tão bons como a última coisa que fizemos. Se esse teste não correr bem, descemos pontos. E ter que gerir as contas para pagar, as responsabilidades, e um lado que é artístico e que não liga nenhuma aos números, esse balanço, diariamente, é de uma violência brutal.
Há uma coisa fundamental nesse viver sob teste, que é aprender a lidar com a rejeição e com a frustração. É uma coisa banal nos Estados Unidos, onde os actores fazem 100 castings e com sorte conseguem dois papéis. Em Portugal, as coisas têm outra escala e a rejeição é vivida…
A rejeição é mais forte. Só comecei a ficar com trabalhos quando deixei de me importar se era rejeitado ou não. Isso permitiu-me desfrutar do momento. Ao fazer o casting de Jesus, o facto de pensar que nunca ia ficar [com o papel], se calhar foi determinante para ficar [com ele]. Há um desprendimento... “Não quero saber o que é que vocês acham, esta é a minha proposta”.
Como é que uma pessoa aprende a ser rejeitada, a ouvir “não” e “não”, sem sentir que não vale nada?
Está a começar a perceber a delicadeza que é ser actor... Por isso é que não queria isso para um filho – porque não é fácil.
Continua a não ser fácil?
Para mim já é mais fácil.
Tem 17 anos de representação. Começou muito cedo. Foi estudar teatro aos 21 anos. Para onde?
Comecei por Estudos Artísticos na Universidade de Lisboa. Como era um curso muito teórico, e não quis ir para o Conservatório [de Lisboa], fui para a TAI [Escuela Universitaria de Artes y Espectáculos], em Madrid.
Quem é que são os seus mentores, os que vê para aprender?
Gosto muito do registo do Tom Hanks. É o actor que eu gostava de ser. Teve das interpretações mais brilhantes da história do cinema. Filadélfia,O Resgate do Soldado Ryan, o Forrest Gump, que está no top dos filmes e no top das interpretações.
Ainda não disse que coisa foi essa, aos 15 anos, que o fez querer ser actor.
Nada. Só quis ser actor aos 21.
Então o que é que sucedeu aos 15?
Aos 15 fui apanhado. Fiz um casting para ganhar uns trocos. Estava numa agência, a trabalhar como modelo.
Já tinha a altura que tem hoje? Já tinha esta figura?
A figura não sei, era muito magrinho, mas era alto, 1,90m. Fiz um casting para a NBP. O Virgílio [Castelo] deu-me um [texto] e disse-me: “Estás numa esplanada. Calor, as miúdas a passar. Este é o ambiente. Estás a falar com o teu melhor amigo e a dar-lhe apoio. Acção”. A dada altura... [assobia]. “Que é isso, meu?”, “Desculpem, foi uma miúda gira que passou”. Fiquei.
Que papel era esse?
Um papel que rapidamente podia ser descartado, na primeira novela do Rui Vilhena em Portugal, Terra Mãe. Era sobrinho da Lídia Franco, neto do Armando Cortez e namorado da Patrícia Tavares. Era órfão, os meus pais tinham morrido. Se corresse mal era despachado em três tempos. Fiz até ao fim.
A primeira novela foi violenta. Não estava habituado a nada, muitas vezes saía de lá a chorar. Deixavam-me no Cais do Sodré, atravessava no barco, depois apanhava um autocarro, às vezes a horas adiantadas. Na manhã seguinte ia para a escola.
Depois fez teatro, outra novela, e o telefilme da SIC Amo-te, Teresa, com apenas 18 anos.
Com o Amo-te Teresa mudou tudo. Já sabiam o meu nome. Foi um boom, mas não houve um segundo Amo-te, Teresa. Fiz três telefilmes da SIC, fui erro de casting de muita coisa.
Como é que aprendeu a falar o inglês que lhe permite trabalhar no mercado anglo-saxónico?
A língua não é só saber as palavras, é dominar a musicalidade, a forma de expressão. Decidi investir no inglês, muito antes de qualquer possibilidade de trabalhar no estrangeiro. Era uma coisa minha, como plantar uma árvore ou escrever um livro. Quero expressar exactamente o que quero dizer noutra língua e sentir-me confortável com isso.
Teve alguma namorada americana ou inglesa a ensiná-lo...?
Não, nunca tive. Aprendi na escola e com os filmes. Ver filmes sem legendas é um grande exercício. Tive uns cinco anos de inglês na vida, na escola pública. O resto é tudo de la calle (sou fluente em espanhol, vou fazer um terceiro filme em Espanha, em que sou espanhol).
Para A Bíblia, teve aulas?
Tive um accent coach, para neutralizar o meu sotaque americano. Trabalhámos antes de começar a rodar, por skype.
Quem é que paga essas coisas?
Essa foi a produção. O meu sotaque é mais americano e o elenco era todo british. “Não quero falar british nem quero falar americano. Quero arranjar um sotaque que seja neutro porque Jesus não é inglês nem americano. Quero arranjar um sotaque que não seja distractivo e que não identifiquem.” Fiquei muito feliz, porque houve imensos críticos a escrever na imprensa americana sobre isso.
Fale-me da temporada de promoção da série nos Estados Unidos.
Foram três, quatro meses. O país é enorme e fomos a muitos estados. É uma máquina, aí é que se sente a máquina, organizada ao pormenor. Acabámos a rodagem em Setembro de 2012 e a série estreou na Páscoa. Fui para lá mês e meio antes [da estreia] e fiquei mais mês e meio depois de a série acabar. Há um staff que anda connosco para todo o lado. Seis pessoas, no mínimo. Duas publicists, uma pessoa da produção, o grooming...
O que é que faz o grooming?
Grande parte dos dias, há mais do que uma entrevista por dia. O grooming é uma pessoa que anda com roupa atrás para não estarmos no mesmo dia com a mesma roupa em diferentes entrevistas.
Essa roupa era sua?
Era roupa que arranjavam para mim. Vemos com a publicist qual é o género de roupa que gosto de vestir, o género de roupa com que me quero apresentar, e dentro disso escolhem. Num programa ia mais formal, noutro menos formal.
Os publicistas são as pessoas que fazem a gestão da imagem.
Sim. [As outras pessoas]: o agente ou manager. A assistente, alguém que ajuda, que faz a ponte. A publicist também tenta perceber para onde é que querem levar a entrevista; se querem ir para um lado mais religioso, se querem ir para um lado mais pessoal, de carreira.
Podem ser quantas entrevistas por dia?
Só em Miami fiz 12 entrevistas em espanhol, no mesmo dia, num espaço de seis horas. Andávamos a correr de estúdio para estúdio, Telemundo, Univision, CNN Latina, webtv. A produtora do projecto diz: “Sobre isto ele não vai falar porque não queremos tocar neste assunto”. Tento perceber se há palavras inadequadas. Por exemplo, gosto muito da palavra energia, que é conotada com um lado mais científico do que espiritual; em determinados programas, se utilizar a palavra energia pode ser desagradável. Digo “uma sensação”, “um sentimento”.
É fatigante, imagino.
Muito, muito, muito. As viagens, as diferenças de horário.
É trabalhar sete dias por semana?
Sim. Quando não se está a filmar, está-se a viajar para algum lado.
Em aviões normais?
Normalíssimos.
Em primeira?
Em primeira. Está-se a trabalho. E permite descansar. Chego a ter que dormir no voo. De Los Angeles para Nova Iorque são seis horas de diferença.
Tinha alguém da sua família consigo?
Tinha o meu filho e a minha companheira. Só não estão em rodagens porque não posso estar preocupado de forma nenhuma. Fazer promoção é diferente, e nem sempre viajavam comigo. Estavam em Los Angeles.
Ter a família por perto é uma coisa permitida a um actor que está num determinado nível?
Tem a ver com bom senso, boa vontade e bom gosto. É um período alargado de tempo, tenho um filho de três anos. Os produtores sabem disso. Seria um bocado insensível da parte deles não ajudar. As viagens [da minha família] são pagas.
Ou seja, o actor tem que estar emocionalmente estável e para isso precisa de ter a família por perto. É isso que é considerado?
É considerado que estarei muito mais disposto, muito mais aberto, se não sentir saudades de ninguém.
O expoente máximo da máquina a funcionar é a máquina que envolve a Oprah?
É.
O que é que aí é diferente das outras máquinas?
Um grupo de 30 pessoas, que chega três dias antes para montar tudo, para ver cada milímetro, a tonalidade de luz para determinado tipo de pele. A equipa dela vai ao sítio, fala um bocadinho comigo, recolhe outro tipo de informação que não publica, faz uma espécie de pré-entrevista. A Oprah chega, faz e sai.
Perguntaram-lhe alguma coisa que o tivesse surpreendido?
Não. Muitas das perguntas – e a entrevista que vai para o ar não é a entrevista toda, é editada – foram sobre o projecto em si, sobre o que senti e o impacto que poderá ter em mim. Foi simpático, foi muito soft.
A máquina: tem a ver só com dinheiro. Em vez de ter uma pessoa a tratar de três coisas, tem três pessoas a tratar de uma. E se há três pessoas para tratar de uma luz, é bom que essa luz esteja boa – senão há cabeças a rolar. Nós achamos que somos menos qualificados (é muito portuguesismo da nossa parte achar isso). Nós somos mais qualificados porque fazemos mais com menos. Eles lá fazem menos com mais.
A única coisa que não percebi bem em toda a entrevista: porque é que depois deste sucesso, verdadeiramente, não quer fazer uma carreira internacional.
Porque isso não traz nada que eu não tenha.
Pode trazer uma projecção internacional.
Isso serve para quê?
Permite o acesso a determinados trabalhos, filmes, coisas a que não tem acesso da mesma maneira se estiver aqui.
Será? Mais dinheiro, é isso? Se a pergunta é: “Ambiciona?”, “Não”. Se a pergunta é: “Gostava?”, a resposta é: “Sim”. Se surgir, irei com toda a força.
Por que é que o seu filho se chama Santiago, um nome bíblico?
Porque a mãe gosta e eu gostei também. E porque a mãe e eu estreitámos a relação enquanto eu estava a rodar uma novela em que me chamava Santiago.
A sua companheira é uma figura pública, alguém que as pessoas conheçam?
Não, graças a Deus, não. Eles não têm culpa de eu fazer o que faço e não têm que ser expostos.
Resguarda isso?
Completamente. Não há uma única fotografia do meu filho em lado nenhum. O lado pessoal, as relações afectivas: eu gosto de um tipo de mulher, que não é a mais espalhafatosa nem a mais histriónica. A partir do momento em que sou actor, não é qualquer mulher que consegue lidar com isso. As mais interessantes têm tendência a afastar-se. Não querem ser como as outras: “Já viste aquele rodeado de mulheres?”.
Eu, sem fazer nada, sou atraído por público que está deslumbrado, não por mim, mas pela figura. Pela figura que aparece na televisão, nas revistas, pelo tipo que é conhecido. É um bocado secundário quem se é de facto. Logo aí fico privado de uma coisa que sou eu. Torna-se o dobro ou o triplo mais difícil conhecer alguém que me possa interessar e que se possa interessar por mim. Percebe o que quero dizer?
Publicado originalmente no Público em 2013