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Anabela Mota Ribeiro

Joe e Renato Berardo

14.01.14

Let’s look at the trailer da entrevista com os Berardos. O pai ensina ao filho regras para os negócios, também aplicáveis à vida de todos os dias. “O que é que eu ganho com isto. Qual é o meu papel aqui”. Renato, o student, aprende depressa. O importante, ambos sabem, é feel adrenalina, ter hope. São disléxicos, com muito gosto. Por causa disso, Berardo-pai diz que o seu “olhar tem something”.

Os pais fizeram um good job com ele, ele tentou fazer um bom trabalho with Renato. Renato refere-se a ele como o Comendador, o dad. Joe explicou-lhe um dia que, lá por ser o dad, não queria dizer que ele, o filho, não tivesse de conferir. Como na história do escorpião (que morde o outro, e se afunda com ele, it’s its nature). Mas depois quase se ofende quando se pergunta se o filho é a pessoa em quem confia mais – se isso é uma pergunta que se faça a um pai e a um filho.

Renato tem o propósito de prosseguir a luta que começou na geração anterior, a do seu pai.

Como é o filho do Joe Berardo? (O Joe Berardo já conhecemos, ainda que não o conheçamos a partir da relação com o filho.) O propósito da entrevista era conhecer a relação, compreender a dinâmica. Os negócios, os billions perdidos, os hard times que todos atravessamos, não eram para ali chamados. O que faziam juntos nas manhãs de sábado, “Renato, vais ficar com os copos”, as discussões no trabalho, sim.

Entrevistar os Berardos implica estar, desde o começo, disponível para ouvir coisas singulares sem fazer julgamentos sumários (perceberão what I mean quando se falar de trabalho infantil), numa língua que só eles falam. Não vale a pena arrumar frases caóticas num português bem engomado. Sobretudo quando Joe explica que ver o que os outros não vêem, mudar as coisas de lugar, tem vantagem.

Não falaram da mãe de Renato, mulher de Joe. Quase não falaram da irmã de Renato, filha de Joe. Isto é uma conversa de homens. A educação do rapaz também foi uma coisa à parte. Prontos? Let’s go.

 

 

Como é que se sobrevive a ter um pai como Joe Berardo?

Renato – É muito fácil. Desde que os dois trabalhem duro, não tem problema.

 

É difícil para filhos que idolatram os pais, que querem ser como os pais.

Joe – O meu filho não quer ser como eu, quer ser melhor do que eu. Não fui à universidade, ele estudou para ser melhor que eu. O Renato já há muito tempo que, para bem ou para pior, tem que tomar as decisões. Como se eu nem estivesse aqui. Disse-lhe: “Faz de conta que morri”.

Renato – Diz isto desde o primeiro dia. Desde os quatro ou cinco anos. “Faz como você quiser”.

Joe – Na África do Sul ia para uma festa, queria dinheiro, dizia: “Dad, I want some money for the party”. “How much do you want?”, e dava-lhe o dobro para ele me trazer o troco.

 

Estava a testá-lo.

Joe – Isto não é um teste. Cedo temos de os habituar. Até Deus tem que prestar contas! Na bíblia diz: “O meu pai”. Todos temos que prestar contas, a um patrão, aos empregados. A minha mensagem é sempre: se ele faz um engano, eu também faço. Lá por ser mais velho, ou ter mais experiência de vida, não significa que esteja isento de erros. Temos é que respeitar os enganos uns dos outros.

 

Olha-se para si como uma criatura auto-gerada, no sentido em que fez o seu percurso, mudou a sua vida. A quem é que presta contas?

Joe – Nem que seja a si próprio: “Onde é que me enganei?”. Tem que analisar. [toca o telemóvel, a música é Nothing compares to you]

 

(Que música tem no seu telemóvel? [Para Renato]

Renato – “If I was a rich man” [riso]. Para ele [Joe], tenho o “Godfather”.)

 

Renato andou na universidade. Conte o seu percurso, as pessoas não o conhecem.

Renato – Quando comecei a trabalhar com o Comendador, com o pai, ele disse assim: “Se quer trabalhar comigo, começa cedo e trabalha até tarde. Trabalho duro. Se quer estar cá entre as dez e as duas, é melhor ir fazer outra coisa na vida”. O que estraga muitos negócios de família é quando as pessoas entram naquele chega-não trabalha-vai-se embora. “Sou filho do meu pai, take it easy”. Isso é um mau exemplo para o resto das pessoas. Só se pode liderar a empresa com exemplo.

 

Por que é que você, que podia ter levado uma vida take it easy, escolheu outra via que não essa?

Renato – É o vício de ganhar. Sentar no cu e não fazer nada na vida é a coisa pior. Não é divertido, não tem adrenalina. Fazer coisas novas, coisas loucas, ver o resultado – fica-se viciado.

 

O seu percurso. Nasceu na África do Sul, em 1971. Que infância foi a sua?

Renato – Estive numa escola de padres, muito disciplinada.

 

Interno?

Renato – Boarding school? Não. Escola normal. A filosofia dos padres era educação e desporto.

Joe – Era rebelde.

Renato – Em 1989 fui para Inglaterra, estudei lá quatro anos, na Huron University, Gestão. Voltei para a África do Sul, mas o crime estava uma loucura. As pessoas começaram a fazer casas com muros de cinco, seis metros. Fica-se com medo de andar na rua. Para viver assim não valia a pena. Fui para o Canadá, onde estive seis meses; mas era muito frio. Depois fui para a tropa na Madeira, para aprender português.

 

A que propósito é que cumpriu serviço militar na Madeira?

Joe – Eu é que sugeri. Na Madeira ia para soldado raso. E envolveu-se de tal maneira que os homens o puseram a teaching english.

Renato – Foi no tempo da [guerra da] Bósnia, ensinei inglês a portugueses que iam em representação da United Nations.

Joe – Foi uma boa experiência. Criou amigos. É bom ter amigos na base…

 

Na lower class?

Joe – Não lhe chamo assim. Sou filho das pessoas mais humildes da Madeira, they did a good job with me. Pensei: “Tens que ver como é que as outras pessoas vivem, in real”. Um dos amigos dele, que tomava drogas, um jovem, roubou a nossa casa.

 

Percebeu que o seu filho era um menino privilegiado, e que era preciso expô-lo à vida.

Joe – Não, não fomos extravagantes. Quando ele estava em Londres, eu ia lá para lhe dar dinheiro, para a casa, a universidade. Disse-lhe: “Tens de verificar se o montante e a data estão certos”. “Ó Daddy!”. Dava-lhe o cheque e ele nem via, punha na algibeira. Depois, o montante estava errado, a data estava errada. “Desenrasca-te, disse-te para verificares”, “Mas és meu pai”, “Isso não significa que não tenhas que verificar”.

Renato – Sério. Uma vez passou o cheque em rands, outra vez não assinou.

Joe – Depois começou a verificar.

Renato – Tive de aprender rápido. A universidade lá foi gira, tinha muitas pessoas da Arábia, Kuwait, South Arabia, de todo o mundo.

Joe – Casou-se com uma estudante. A mulher dele, que é nascida no Iran, foi pequena, depois de o Xá sair, para Londres. E a minha filha casou-se também com um aluno nascido na Arábia Saudita. Tenho uma família…

Renato – United Nations.

Joe – A religião é importante, tem que haver tolerância. Mas o mais importante é a amizade. Se acha que é só pela via sexual, passa depressa. Na vida não é só preciso ter saúde, é preciso ter dinheiro, happiness. É uma mão cheia. E isso, na nossa família, é um objectivo. Às vezes, numa reunião, tanto fazia que fosse no Canadá, como na Austrália, como na África do Sul, fazia assim [tamborila os dedos na mesa]. As pessoas diziam: “Porque é que estás a bater com a mão?”. Eu respondia: “What’s in for me? Where do I come in?”

 

O que é que eu ganho com isto. Qual é o meu papel aqui.

Joe – São as minhas rules of meetings. Simplifico a minha vida numa mão. Sempre fiz coisas com sócios e tenho amigos por todo o mundo; quando vamos para uma reunião, [volta a tamborilar os dedos na mesa].

Renato – Isto vem da África do Sul. Temos uma amizade com a comunidade de judeus, aprendemos muito com eles. Metade da minha escola era de famílias judias.

 

O que é que aprendeu com os judeus?

Renato – A maneira de estar na vida.

Joe – O sistema católico romano, comparado com os judeus e com os anglo-saxónicos, primeiro, se tem uma coisa para dar, tem que dar à família. Os judeus divide with sociedade. Quando chego aqui e faço uma fundação para dar bolsas de estudo, toda a gente pensa fiscalmente – “deve ser um benefício fiscal”. Os museus deviam ser de graça. É uma necessidade, para melhorar o sistema português. No meu museu dos budas [Quinta dos Loridos, Bombarral] temos milhares de pessoas todos os dias. No [museu das Caves] Aliança [em Anadia], que não tem apoios nenhuns, também tem entradas livres.  

 

Renato, sempre teve uma vida boa? Quando nasceu, o seu pai já tinha muito dinheiro ou ainda se lembra dele a lutar com dificuldades?

Renato – Está sempre a lutar. Até quando as coisas estão a correr bem, é uma luta. Nunca pára.

Joe – Felizmente nunca teve necessidades. Mas tive dificuldades na África do Sul. Uma altura, as coisas corriam mal com os supermercados. As margens não eram muitas, e tinha que ir pedir dinheiro para pagar os ordenados semanalmente. Às vezes falava com o pessoal: “Só posso pagar metade”. Sempre respeitei, o trabalhador tem prioridade, antes dos credores, antes das Finanças. Antigamente os trabalhadores tinham direitos, agora são as Finanças. Tem que ser o trabalhador, que tem responsabilidades, renda, uma família, filhos a estudar.

 

A sua infância não se pareceu à do seu pai. Ele falava muito de onde tinha vindo, onde tinha crescido?

Renato – Não. Trabalhava muito, foi sempre a andar. O pai é a pedra na nossa casa, a pessoa mais segura. Via connosco os cartoons ao sábado de manhã.

Joe – Sou disléxico, e eles também são, até andaram numa escola especial, chamada Belavista, de judeus. Não é uma disadvantage. É uma vantagem a pessoa ter uma maneira diferente de ver as coisas. E ver coisas que os outros não vêem. Tenho que me concentrar a ler. Saí da escola com 13 anos e meio. Lia livros quando não havia televisão. Ele gosta mais do visual, como eu. Na África do Sul, a televisão era uma hora à tarde, três horas à noite. Alugávamos filmes naquelas câmaras 35mm, projector.

 

Projectavam em casa?

Joe – Yeah. Todos os fins-de-semana víamos filmes.

Renato – Muito giro. Todo o tipo de filmes, action. A Fist Full of Dolars, Clint Eastwood.

Joe – O JR Ewing, o Dallas. Por exemplo, com um advogado, se me concentro a ler, não sei o que quer dizer, posso falhar muito. Se estou a ver, se alguém está a ler para mim, I pick it up. Concentro-me melhor no ouvido.

 

Falou de a dislexia, em si, representar uma certa originalidade na maneira como capta a realidade e a traduz em palavras. Trocando as coisas de lugar.

Joe – É a maneira de compreender as coisas.

Renato – Essa é a parte mais visível da dyslexia, mas há coisas mais profundas.

Joe – No princípio, escrevia à minha mãe. Na primeira página escrevia, mas depois cansava-me. A minha cabeça era muito mais rápida que a minha mão. E ele é a mesma coisa, começa a escrever e nem ele próprio consegue ler o que escreveu.

 

A sua relação mais forte sempre foi com a sua mãe?

Joe – Com a família. Nunca perguntei ao meu pai – ele morreu há muitos anos – mas nunca compreendi como é que, quando trabalhava no Madeira Wine, fazia contas em numeração romana. Nem sabia ler. Mas a minha mãe sabia, e lia o jornal para o meu pai. Também gosto que alguém leia para mim. Muitas coisas digo: “Lê, depois diz-me o que é que é”. Se achar interessante, vou analisar. Há pessoas que vêem coisas, mas não sabem o que estão a ver. É pior ser uma pessoa normal assim, ou ser uma pessoa que vê o que você não está a ver? Quando andava na África do Sul, as pessoas iam comigo, para aqui, para acolá: “Não viste aquilo ali?”. O [meu] olhar tem something.

 

Conheceu os seus avós, pais do seu pai? Foram referências importantes na sua infância?

Renato – Do lado do meu pai, o avô morreu antes de o conhecer. A avó, conheci. Tinha problemas de vista. Era uma mulher muito calma. Fui à Madeira cinco ou seis vezes, e ficávamos uma semana. Ela só falava português, eu só falava inglês, foi difícil comunicar. A primeira vez que estive na Madeira foi em 1976, tinha quatro ou cinco anos de idade.

Joe – O Renato apanhou a primeira bebedeira na Madeira.

Renato – Quem vem da África do Sul com Coca-Cola, chega à Madeira, numa aldeia pequena, Madeira wine, doce...

Joe – Disse-lhe assim: “Renato, olha que vais ficar bêbedo”, “Daddy, mas isto é tão bom”. Depois tive de o levar às costas.

 

Deixou o seu filho apanhar uma bebedeira aos cinco anos?

Joe – Não foi uma bebedeira, mas a pessoa tem que aprender. Nunca fechei as bebidas alcoólicas na minha casa.

 

Porque é que nunca falou português com o seu filho?

Joe – Não sei. Quando fui para a África do Sul, trabalhei num farm, numa fazenda, tive de aprender native language, com as pessoas que estavam lá. Depois fui trabalhar para a loja, no Orange Free State, e tive que aprender afrikaans, a língua dos brancos. E depois fui para Joanesburgo, e tive que falar inglês.

Renato – E depois "fanagaló", a língua de quem trabalha muito nas minas. Mistura duas línguas africanas, mais o inglês e afrikaans. Nas minas há pessoas de todas as tribos, de Angola, e criaram uma língua específica.  

Joe – Em cinco anos tive de aprender cinco dialectos. Não aprendi a escrever. Leio inglês, mas não sei escrever. Não fui à escola, não tinha tempo. Quando comecei a trabalhar era de sol a sol. Depois fui para as lojas, quatro anos sem tirar um dia de férias. No fim queriam dar-me parte na sociedade, e eu não quis. Queria era ir para Johannesburg. O meu futuro era em Johannesburg.

 

Quando é que começou a sonhar ser rico?

Joe – Desde pequeno. Não era ser rico, era ter uma boa vida. Éramos uma família humilde, mas tínhamos a nossa casa. O meu pai trabalhava no Madeira Wine; quando os turistas compravam vinhos, o meu pai era encarregado de levar esses vinhos aos barcos de recreio. Depois trazia coisas boas para casa.

 

Coisas boas significa produtos que não se encontravam na Madeira, que não estavam ao alcance de uma família como a vossa.

Joe – Normal. Chocolate, às pessoas amigas, de roda da minha casa, dava um pedacinho. Em casa, tínhamos bananas, manga, anonas, cana-de-açúcar. Tínhamos lá uma furna onde havia água doce, vinha filtrada; os pequenos iam para lá, e tinha sempre um cantinho com fruta. É uma coisa que sempre tive – dividia. A coisa que me lixava mais era a colecção de selos. Quando era pequeno, pedia envelopes de todo o mundo, com selos. A Madeira Wine exportava para todo o mundo. Deitavam as cartas fora. Eu pegava os envelopes, punha na água, depois em folhas de papel, e pensava: “Isto um dia ainda vai valer dinheiro”. Eram também os cartões postais dos navios que iam à Madeira, e caixas de fósforos. Ainda tenho isto.

 

Eram as colecções que fazia.

Renato – As primeiras.

 

O que é que significa coleccionar para si?

Joe – Preservar.

 

É expressão de poder aquisitivo, é possuir coisas?

Joe – Não. Parto do princípio de que a cultura não tem fronteiras, não tem posses. A cultura é de toda a Humanidade.

 

Coleccionava o que podia, postais, selos, caixas de fósforo. Outra coisa é coleccionar budas, arte, mobiliário Art Déco.

Joe – Não faço pelo valor, faço pela cultura.

 

Mas não era pela cultura, quando era pequeno.

Renato – No futuro é outro assunto. O lixo tem outro valor daqui a dez, 15, 100 anos.

Joe – Ouvia pessoas que trabalhavam no Madeira Wine, que tinham livros sobre selos. Nessa altura veio um selo que valia cinco contos, eu ganhava 400 escudos por mês. Hello! “Pode ser que um dia”. Mas nunca vendi nada. Tinha dez anos, 13. Não podia tocar com os dedos quando estava molhado, tinha de tirar com uma pinça para secar. A minha mulher, não, a minha mãe dizia: “O tempo que gastas com isso”.

 

Lapso: disse “a minha mulher”, em vez de “a minha mãe”.

Joe – É um pouco o mesmo. A mãe, a mulher, é a companhia nossa, o nosso pilar. Uma mulher é o pilar da família.

Renato – Ele foi o filho adorado. Ela tinha 48 anos.

Joe – 46.

Renato – Whatever. Com uma dor na barriga.

Joe – A minha mãe pensava que tinha um problema, afinal era eu. [riso] Foi um engano.

 

Voltando à infância. Estava a dizer que o que queria era ter uma vida boa, não era enriquecer.

Renato – Em 1978, da África do Sul levámos chocolates para a Madeira. Caixas grandes. Batatas fritas.

Joe – Levava cerejas, maçã. Quando não havia.

 

Levava para a sua mãe?

Joe – Para a minha mãe e para a família.

 

Era o regresso, mas já do vencedor.

Joe – Quando estava na Madeira já achava que estava à frente. Quando me davam o ordenado do Madeira Wine, dava-o ao meu pai. Quando lá trabalhava comecei a colar rótulos, mas fui melhorando. Depois já servia os turistas. Só falava inglês assim: “Dry, medium  dry, sweet, medium sweet”. Era a prova. Era um tabuleiro que tinha umas coisas para os copos não caírem (eu não tinha experiência), e servia-se às centenas de turistas que chegavam. Provavam: “Give me the dry”. Dava-lhe o dry e o homem comprava o vinho, se quisesse. Como se faz aqui [na Bacalhôa] a prova dos vinhos. Depois davam-me uma gorjeta, um dólar, meio dólar, um quarter, que era 25 cêntimos do dólar. Nessa altura era muito dinheiro. Comecei a descontar para a Caixa [Segurança Social], com 13 anos e meio. Dava o dinheiro ao meu pai e ele perguntava: “Como é que vives”, “É das gorjetas”.

 

Mas você achava que tinha qualquer coisa.

Joe – Claro!

Renato – Desde o arranque.

Joe – Quando o William Leacock, que também era sócio do Madeira Wine, vinha à Madeira, trazia o Rolls Royce, o motorista, e eu: “Um dia vou ter um carro daqueles”.

 

E tem.

Joe – Já tive quatro, agora tenho três. Mas não uso. Não tem nada a ver com ter ou não ter. Tive muitos sonhos na vida, ainda tenho, tem de se respeitar essas coisas.

 

Não teve estes sonhos do seu pai, ao ver chegar um Rolls Royce. Quando já se tem alguma coisa, para não dizer muito, não se sonha desta maneira.

Renato – Sonha-se numa escala ainda maior. Em vez de pensar: “Quero um Rolls Royce”, pensa: “Quero a empresa da Rolls Royce” [riso]. Os sonhos existem mesmo.

 

Quais eram os sonhos da sua infância?

Renato – Chiça. Sempre foi do negócio. Sempre foi pegar numa coisa que está em baixo e levar aquilo para cima, a vender, a ganhar.

 

Teve colecções?

Renato – As moedas estrangeiras dele, todas.

Joe – Ele e a irmã, não sei o que aconteceu, esconderam as moedas no jardim. O jardineiro foi para lá cavar e encontrou-as.

 

Quando é que teve o seu primeiro dinheiro, um dinheiro que não tinha que ver com o seu pai?

Renato – Aos dez anos comecei a trabalhar lá nas quintas e nos liquorstores.

Joe – Aqui em Portugal, é uma coisa que não compreendo, as leis laborais proíbem as crianças de trabalhar.

 

É trabalho infantil, exploração.

Joe – Não é, não. Estou a dizer, ir de manhã distribuir os jornais, como fazem na América. Ir a um supermercado pôr caixas. Não é full time.

Renato – Fazem no fim-de-semana.

Joe – O pai e a mãe trabalham. É melhor deixar as crianças envolvidas na pedofilia? O que é que a criança tem para matar o spare time?

 

O que é que tem?

Joe – Só tem coisas más, Internet. E não se cria o desejo de a criança ser útil. Qual foi o primeiro dinheiro que ganhaste?

Renato – A primeira vez foi no quintal do meu avô. Ajuda a apanhar as cenouras. Ele disse: “Pago “x” por hora, você vai apanhar cenouras cinco ou seis horas”. Depois foi nas liquorstores, no fim-de-semana, nas férias. O meu dinheiro próprio.

 

Que sabor é que isso tinha?

Renato – Ah, muito bom sabor.

Joe – Não é só o ganhar, é ter experiência de lidar com pessoas. A pessoa tem que estar habituada. A educação, concordo, a criança tem que ir para a escola. Mas deixem ajudar, part time. É essencial aprender a lidar com dinheiro.

 

Nunca teve um problema deste tipo: “Nunca serei mais do que o filho do Joe Berardo”?

Renato – Eu? Nunca na vida. Sempre tive os meus sonhos próprios. Tem muitos negócios em que o pai é dominante, tenta dar responsabilidade, mas depois corta as asas. Ele é ao contrário. Fez-me queimar os dedos, tantas vezes na vida. Sempre tive a noção da responsabilidade. Eu decido as coisas. Tem algumas empresas mais pequenas, disse: “Boa sorte, vai lá! Começa a gerir aquilo sozinho”.

 

Atirá-lo à água para aprender a nadar.

Joe – Em conjunto podemos lidar melhor com os problemas do que sendo só um. O que lhe digo é que o mais importante na nossa vida, especialmente na vida das pessoas que têm responsabilidades, é ter as pessoas correctas consigo. Sozinho não vale a pena.

 

Como é que as escolhe?

Joe – Há pouco tempo tive de escolher uma pessoa. Mandei recrutar dez pessoas, de quase 400 pessoas para um posto de trabalho. Essas dez foram a um psychologist. Depois esse homem escolhe cinco, sem interferência minha. Ele sabe os meus objectivos. No fim, vou escolher a pessoa e olho nos olhos. Aí é que é importante. Pode ser uma pessoa muito boa, mas se quimicamente não dá…

 

Isso significa que confia no instinto.

Joe – É dar uma oportunidade ao instinto. Dar oportunidade ao instinto dá survival. É como dizer “amor à primeira vista”. Às vezes digo: “Isto não me agrada”.

Renato – Não tem a química.

 

O vosso instinto é muitas vezes coincidente?

Renato – Sim.

Joe – Até agora. Nunca se sabe, vamos envelhecendo, vamos tendo objectivos diferentes, e ai de nós se não mudamos. Mas também estou cada vez mais a dar-lhe a responsabilidade. Não quero que esteja à espera que eu morra para tomar o poder. Isso é errado. A pessoa tem de dar dignidade, não só a si própria, mas também aos outros.

 

Há dois anos foi operado, esteve doente.

Joe – Tinha diabetes, colesterol, tensão alta e gota. Que ele também tem.

Renato – Obrigado por aquilo, o DNA, dislexia…

Joe – Não podem ser só coisas boas. [riso]

Renato – Teve de fazer a operação por uma razão muito simples: se não a fizesse agora, se esperasse dez anos, ficava muito pior. Teve de antecipar o problema. Tomar a medida agora resolve o problema do futuro.

 

Essa é uma das suas máximas, antecipar os problemas?

Renato – Com certeza.

Joe – Vou falar do BCP. Percebi que ia estar numa briga, e dizia a toda a gente que a economia não podia continuar da maneira que estava. Dizia no banco, em todo o lado. E no entanto, pessoalmente, fui apanhado nesta coisa. Sabia que o banco não estava indo bem, mas não podia abandonar o banco, eu era parte da briga. For better, for worse, era o nosso barco.

 

Quando uma pessoa faz uma operação, mesmo que não corra risco de vida, percebe que não é imortal.

Joe – Não é preciso estar doente. Tanto eu como ele. Por uma razão ou por outra, a vida não nos pertence.

Renato – O resto são cantigas. Vamos morrer, ponto final. Não temos sonhos de ser Deus.

Joe – Not yet. [gargalhada]

 

Quando viu o seu pai a fazer a operação, a perder 20 quilos, percebeu que um dia ia suceder-lhe.

Renato – Sei isso desde os cinco anos de idade. O nosso conceito de família é para continuar. A luta não é de uma geração. Queremos que o nosso nome continue no futuro. Capitão do barco hoje, capitão do barco amanhã, cinco, dez anos, quem sabe.

Joe – Tenho-me dedicado mais à cultura. Não sei se já viu o museu que fizemos na Aliança – vale a pena. Fizemos quilómetro e meio de museu underground, em três meses. Fizemos os Buda gardens, seis mil toneladas de pedra, em tempo recorde. Dizia ao Renato quando fomos à China: “Fazemos isto agora, daqui a uns anos vai ser impossível”. Os chineses que nos venderam aquelas coisas, já perguntaram se as queríamos mandar para trás. Os portugueses são dos maiores trabalhadores que existem, desde que tenham objectivos.

 

O que é preciso, então, são objectivos e liderança.

Joe – Como todos nós. Fiz um jardim na Madeira onde tínhamos, e ainda temos, o mesmo homem, já vai para 25 anos.

 

Nunca se zangou com o seu pai?

Renato – Todo o tempo, sempre. Não é zangar, se temos diferença de opinião, lutamos pela diferença.

Joe – Não quero yes men.

 

É que está sempre a concordar com o seu pai.

Renato – Mas tudo o que tem dito até agora está certo.

Joe – Nem eu nem ele vamos ao extremo de nos zangarmos. Por exemplo: não concordo com a opinião dele, para não me irritar, I walk away. Deixem-me acalmar.

 

Dizem coisas um ao outro de que se arrependem?

Joe – Não nos deixamos chegar a isso. Nada na vida tem que ser resolvido naquele momento.

Renato – E não se misturam as coisas. Pai e filho não tem nada a ver com o negócio.

 

Estamos a falar de duas relações, a relação pai e filho, e a de presidente e vice-presidente. É isso?

Renato – Senão é impossível.

Joe – Transmiti ao Renato, e às outras pessoas, que se algum negócio, can’t do without you, não pode sobreviver sem ti, vende. Because, posso ir a qualquer momento, tenho as coisas organizadas para continuar.

 

Isso significa, morrer.

Joe – Claro. Às vezes é difícil admitirmos isso, que um dia se vai. A pessoa pensa que só vai daqui a 100 anos. As coisas têm que estar organizadas so that business can do without you. Na Madeira dizíamos: “O cemitério está cheio de pessoas irreplaceable”.

 

[Joe atende o telefone e diz: “Hello babe”]

 

Diz, como o seu pai, hello babe? Tem o mesmo estilo de lidar com as pessoas.

Renato – Se está sempre com uma pessoa, começa a aprender as características dela. Há 15 anos, todos os dias, [que trabalhamos juntos]. Não ficamos fartos porque a nossa vida não é nós dois, sozinhos. Quando estamos juntos, é sempre para resolver assuntos fora de nós dois.

 

Conversas de pai e filho, têm?

Renato – [riso] Para falar sobre o quê? A nossa vida são os negócios.

Joe – Do que é que vamos falar os dois que não seja relacionado com fazer coisas? We have feelings. Daqui a pedaço vamos falar de namoradas, não?

 

Falaram de namoradas?

Renato – Com certeza. Quando era mais jovem. Agora sou casado.

 

Tinham essa intimidade?

Renato – Sim.

Joe – Disse-lhe uma vez: “Se amanhã tiveres um problema, com quem é que vais falar?”. Isso é muito importante para pai, para filho. “Espero que não vás falar com a tua mãe. Se tens um problema, a primeira pessoa com quem tens de falar é comigo. Além de ser pai, não tens melhor amigo que eu”.

 

O seu filho nunca o desiludiu?

Joe – Não estava sendo honesto consigo. Todos temos coisas. Na África do Sul tirava-me o carro, não tinha carta de condução. Fazia que não via nada. Dizia: Sei que estava a arriscar um pouco, mas temos que dar liberdade às pessoas de experimentar adrenalina. Às vezes pode correr mal, pode ser perigoso. Uma altura disse-me que tinha ido em velocidade grande. Mas eu, quando tinha 24 anos, atravessei Johannesburg, de um lado ao outro, a dizer: “I’m the happiest man on earth”! Era eu, e tinha o carro cheio de miúdas, red lights and everything. Nunca pensei que podia magoar outras pessoas. “If I die, fuck it”.

 

Isso é maturidade, quando percebemos que podemos magoar outros.

Joe – Não sei se é maturidade. Quando fiz isso estava com os copos. Mas naquele momento deu-me adrenalina. A pessoa tem que ter adrenalina em certas coisas. Senão, tem que tomar droga.

 

Todos os pais têm esse pavor em relação aos filhos. Se são drogados.

Joe – Para evitar isso, tem que dar a possibilidade. Todos temos uma via para a adrenalina, either chemical or human. Prefiro que tenham a humana, e não ficam dependentes. A outra é tão boa que ficam viciados. Isto é uma teoria um pedaço complicada.Vejo tantas famílias que querem que os filhos sejam perfeitos. Perfeitos à maneira deles… Never mind o que o filho quer.

 

O seu filho é muito parecido consigo, em tudo. Têm a mesma maneira de rir.

Joe – Não fiz DNA nele, mas acredito que seja meu filho [riso]. Quando estava na África do Sul, uma miúda de 14 ou 15 anos, que acabou de se doutorar há pouco tempo, advogada, disse: “Ó Berardo, o teu filho é uma cópia moderna tua, de quando eras mais novo”.

 

Já lhe ensinou muita coisa.

Joe – Também tenho aprendido muito com ele

Renato – A escola dele é muito boa. Aprendi outras coisas na universidade.

Joe – Por exemplo, sistemas de computers, e coisas assim, sou um zero.

 

Acha mesmo que ele vai ser melhor que o Joe? Conseguiu chegar onde está, vindo do nada.

Joe – O Johann Rupert, um dos homens mais ricos da África do Sul, convivia connosco. Era mais novo que eu uns 15 anos. Um dia estava na minha casa e disse-me: “Joe, you are a bastard, I would like to be like you”. Eu disse: “Johann, you’re the son of the richest man in South Africa”. Têm a Cartier, têm… rich everywhere.“I’m looking for my bread everyday, you were born with bread”.

 

Nessa altura já não tinha de lutar pelo seu pão todos os dias…

Joe – Ele disse:“You have a fantastic family, a fantastic wife, you started with nothing, I would like to have started with nothing and be like you”. Eu disse-lhe: “Johann, never feel guilty of having good things”. Diz que começou a vida sem a influência do pai, e é verdade, mas já tinha o nome do pai, pelo menos. “If I was you I would take the fucking advantage of my situation”.

 

Foi isso que ensinou ao seu filho? A não sentir culpa das coisas boas que tem e a tirar vantagem da situação em que está?

Renato – Com certeza.

Joe – Temos que ver o future. Para que é que serve estar a brigar com o passado? It’s wrong.

 

Aspecto importante: Renato sente que sem essa advantage também era capaz. Isso não se compra.

Joe – Maybe he was better off without me. Temos coisas boas, mas também temos problemas, nem tudo é bom. O dinheiro não é tudo.

 

Ensinou-lhe que nem tudo se compra, ou que tudo tem um preço?

Joe – Tudo tem um preço, com variação. Pode ser um favor para fazer um edifício. Vê-se aí todos os dias, em todo o mundo. Uma vez no CDS, o Manuel Monteiro era casado com a filha do Baltazar da Madeira. Vieram falar comigo a ver se eu ajudava o CDS. O meu pai fazia o vinho do Baltazar, éramos colonos do Baltazar. A casa era nossa, mas o terreno era deles. Era uma pessoa pela qual tínhamos grande consideração. Tive uma reunião no terraço do Tivoli, com o Monteiro, e disse: “Já estou farto destas aldrabices, dos políticos. É católico?”, “Sou católico e praticante”, “Já ouviu falar das promessas que Deus fez? Quando começou a Igreja, prometeu que se não nos portássemos bem íamos para o Inferno, se nos arrependêssemos podíamos ir para o Purgatório. Isto não deu muitos clientes. Está a ver, se um político, um religioso, seja qual for a religião, não dá uma esperança ao ser humano…” We have to give hope. Se tem um negócio e aceita que o seu negócio, para o ano, vai vender menos, what the fuck do they want you for? É indispensável a esperança, o futuro. Se não tivesse essa maneira de pensar, de sonhar, não estava aqui a falar consigo. Quando saí da Madeira, quando um emigrante sai do sistema familiar, é para melhorar a vida.

Saí da Madeira porque tinha muitos sonhos para realizar. É a mesma coisa na política. Todos sabemos que as coisas estão más, mas não se pode viver sem objectivos na vida.

 

Isto é sempre assim?, o seu pai fala, domina, e o Renato fica calado a ouvir?

Renato – Esta parte jornalística deixo com ele.

 

Está a olhar para o relógio.

Renato – Tenho a minha equipa à espera.

 

Gostava de dizer alguma coisa que não tenha dito?

Renato – Tive uma sorte do caraças com o pai. Deixa-me andar, para aprender coisas. Espectacular. Algumas famílias aqui em Portugal, a segunda ou terceira geração, as crianças estão num cocoon – como é que se chama aquela coisa onde estão as borboletas?

 

Casulo.

Renato – Estão fechadas lá dentro. As pessoas não dão possibilidade aos filhos para abrir as asas.

Joe – Quando mandei o Renato para a tropa... Desculpe, não mandei.

 

Fugiu-lhe a boca para a verdade.

Joe – Não, nunca faria isso. Nem decidi que iam estudar para Londres ou que vinham para aqui trabalhar. Nunca. Faço as coisas para ajudar a tomar a decisão. Para que é que a pessoa impõe? A pessoa tem que procurar o que lhe dá adrenalina.

 

Ele é a pessoa em quem mais confia?

Joe – Ele tem assinaturas ilimitadas. Isso não é pergunta que se faça a um pai e a um filho.

 

Não estou a falar de confiança nas coisas de dinheiro. Falo de confiança nas decisões dele, na capacidade de fazer coisas.

Joe – Confiança é confiança. Tenho confiança nas pessoas que estão a dirigir. Tenho sócios em todos os negócios, ele também tem que lidar com isso. Tenho sócios que são minoritários, mas que têm direitos.

 

Não vai ver se ele fez bem, se fez mal, confia completamente nas decisões dele?

Joe – Se ele tomou a decisão, está feito. Às vezes pergunta a minha opinião. Em contas não posso ajudar muito, he knows better than me.

 

Ele é bom nas contas, e o Joe é bom no faro.

Joe – Ele também é. Ele faz marketing.

 

Chamou-lhe sempre dad, daddy? Nunca lhe chamou pai?

Renato – Chamo-lhe Comendador. E dad.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010 

 

Minnie Freudenthal

14.01.14

Explique lá o que é a mitocôndria.

- A mitocôndria é o aparelho produtor de energia que está dentro do músculo, dentro das células. Quanto maior for esse aparelho de produção de energia, melhor o nosso corpo se defende das doenças, regenera a energia. Como é que se cria esse aparelho? Criando músculo. A pessoa que não faz movimento vai perdendo o músculo e, consequentemente, vai perdendo esse aparelho produtor de energia. Há investigação que diz que um dos primeiros problemas que aparece em doentes com cancro, é a alteração deste aparelho. Quando no consultório me dizem: «Doutora, eu não consigo fazer nada. Vou à rua e quando entro em casa, deito-me logo no chão, fico em pânico, porque sei que algo está muito mal. Dedico-me imenso a ajudar as pessoas a estarem com bom nível de energia.

 

Disse-me uma vez que os tubarões não têm cancro exactamente por causa disto...

- Porque estão constantemente em movimento. São muito ricos em mitocôndrias. Quanto menos tivermos disso, mais vulneráveis ficamos. As pessoas, às vezes, dizem-me que vão para o ginásio e que tomam suplementos... A pergunta a fazer é: «O que é que vai ser o seu jantar?». Posso tomar os suplementos todos que houver na farmácia, mas se comer mal, se não me mexer, se não estiver feliz, se não encontrar uma integração social que me satisfaça, não vou arranjar essa energia.

 

O que acabou de dizer aponta para o que reconheço ser o seu essencial, que é a integração de todos os elementos num todo. A tal concepção holística.

- Começamos a olhar para a Economia, para o Mundo, e vemos que as coisas estão todas em comunicação. Há uns anos pensávamos em termos específicos: o coração, o fígado, como se fossem isolados. E não estão isolados, tudo isto é global. O nosso corpo é talvez o sistema mais complexo que conheço. A vida é uma aventura muito pessoal. Estamos por baixo de forças biológicas enormes, e o que é divertido é compreender que essas forças podem ser esculpidas por cada um de nós. Cada um tem a oportunidade de fazer a sua própria escultura. A vida é o interface entre essa biologia e o ambiente.

 

O agente desse interface somos nós.

- Somos. E não é por coincidência que andamos todos a falar de comida. Se pensar, no fim do século passado, qual era o conceito de beleza? De que é que se falava? De comer, de ser mais gordinho. Porquê? Não havia comida, havia era guerras... A maior parte do tempo a gente estava era magro!

 

Com tuberculose.

- Durante milhares de anos o nosso código genético apurou um indivíduo, um corpo, um mecanismo que sobrevive melhor quando está magro, que sobrevive à guerra, que sobrevive à falta de comida. De repente, muda-se isso tudo, há de tudo em quantidade. O que é que resta? Resta a nossa consciência, resta a nossa inteligência de seres humanos, resta olhar para as coisas e dizer: «Há aqui qualquer coisa que está mal». Como temos um software maravilhoso, somos capazes de mudar os nossos comportamentos. Não é por azar que estamos todos a pensar nisto... É uma espécie de luta do nosso subconsciente contra uma epidemia, da qual o primeiro país a sofrer é os Estados Unidos.

 

Parece que o Bush fez uma comunicação no sentido de incentivar os americanos a alterar os seus hábitos alimentares.

- Está a ver? A consciencialização chegou ao presidente de um país.

 

Foi por isso também que de médica internista passou a nutricionista? Foi por perceber o lugar central da comida na saúde do indivíduo?

- Sim, também. Uma das razões foi porque, como mulher, cozinho. (Em miúda, gostava sobretudo de cozinhar doces, era hiper-gulosa!, conseguia comer 12 trouxas de ovos num casamento!). Cozinhar é como um hobbie para mim, tira-me da rotina e permite-me usar a criatividade. A cozinha está cheia de cores, de cheiros, ninguém me diz que não posso misturar isto com aquilo. Foi um bocado a culinária que me levou à nutrição.

 

Quando comia doze trouxas de ovos, como era o seu aspecto? Era gordinha ou sempre foi assim?

- Tinha mais gordurinha..., mas nunca me deixei engordar. Lutei sempre contra isso. Também nasci mexida. A minha mãe conta, de resto, que nasci uma semana antes do previsto, saí sozinha, vinha speedada. Conclusão: é-me muito mais fácil mexer-me. A pessoa que não gosta de se mexer tem de lutar contra a sua biologia.

 

É um esforço.

- É. E a vontade esgota-se. É difícil, muito difícil. É como o tabaco, há recaídas. E a pessoa tem de aceitar que há recaídas e que o hábito não se muda facilmente.

 

A minha impressão é a de que não se consulta uma pessoa como a Minnie para fazer uma dieta, ponto. Tem tudo que fazer parte de uma filosofia de vida.

- Quando a pessoa vem falar comigo e não está preparada para isso, não tenho o impacto que tenho numa pessoa que está preparada. Percebo que falho e que não sirvo todas as populações. Se calhar, sou completamente inapropriada para uma pessoa que não está nada com esta filosofia. Assusta-se e vai-se embora. Todos nós temos de perceber que temos um público-alvo. Até porque tenho mais paciência para aquele público... Com os outros não sei comunicar tão bem. O meu marido é gastroentrologista e usa imenso os meus serviços. Mas selecciona um bocado. As pessoas que ele acha que não vão perceber isto, manda-as a uma nutricionista mais B-A Ba, que não é médica... Porque eu sou médica, acima de tudo. A Nutrição é um capítulo da Medicina, um capítulo dos livros básicos da medicina.

 

Ontem falávamos disso a propósito do filho da Sónia, que tem oito meses, e perguntávamo-nos: se isto é uma filosofia de vida, como é que podemos ensinar as nossas crianças a comer, a viver. Ensinar desde a gravidez.

 

O meu filho chorou durante quatro meses sem parar, sem nada que o justificasse. A minha mãe avançou com a teoria de que ele estaria a passar por uma fase de ressaca. Porque durante a gravidez comi chocolates todos os dias. Acha que ele pode ter sentido essa falta?

- Acho, com certeza. Lembre-se de uma coisa: tudo o que você come, muda a química da sopa. Quando você faz uma sopa junta alho francês, cenoura... O açucar não é o mesmo, o ph não é o mesmo; a concentração de cálcio, potássio, magnésio, serotonina, adrenalina são completamente diferentes com a alteração dos ingredientes da sopa. Ora, a criança está dentro dessa sopa. Você, de repente, muda a sopa toda, a criança fica passada! Não compreende nada!

 

Coitado...

- Pois. Ele berrava porque queria chocolate.

 

Tenha calma por favor, porque ela depois fica cheia de sentimentos de culpa.

- Não! Não fica nada. Devemos compreender as coisas e perceber a responsabilidade. A culpa é uma das grandes fontes de doença na nossa sociedade. Eu sou toda contra a culpa.

 

A culpa existe de uma forma muito marcada nos regimes alimentares, nas dietas.

- Muito, muito. Eu não olho para a pessoa e pergunto: «A senhora, o que é que come? Então agora vá para casa comer isto!». Nada disso. Preciso de perceber quais são os softwares que a pessoa usa no resto da vida toda. Nós somos várias coisas. Simplificando: somos um enorme software sensorial, que é a nossa parte mais antiga, que mete temperaturas, acidezes... Depois, um mais recente, é o software emocional. E, mais recente ainda, o racional. Na alimentação, estamos a usar um software especial. Ou estamos a ser muito emocionais, ou demasiado racionais... Eu acho que qualquer estímulo deve percorrer estes três graus e que esta informação deve ser permeável.

 

Mas então como é que se ensina uma criança a comer?

- Educação, educação, educação. E consciencialização de uma população inteira. Para depois nós, clientes, exigirmos uma mudança no mercado. Eu sou uma rezingona. Só vou aos restaurantes que me servem coisas de que gosto. Não vou ajudar aqueles que não me servem o que acho tolerável... Vou aos cafés e digo: «Como é que o senhor tem uma sandes só com uma fatia de queijo lá dentro?» Tratam-nos como se fôssemos atrasados mentais! Temos de reivindicar, dizer que queremos outras coisas. Esta é a grande vantagem do ocidente.

 

No outro dia fui a um restaurante, comi uma sopa e uma manga. O empregado ia dar-me uma manga cortada há horas, percebi-o claramente. Recusei-me a comê-la, exigindo que me descascassem outra naquele momento. O empregado foi para trás e lá trouxe a manga, não sem dizer que o chefe quase o ia matando.

- Está a ver? Esta é que é a educação da nossa sociedade.

 

Mas é muito difícil ter esta preocupação com o saudável tendo em conta o ritmo de vida que temos hoje, sobretudo nos meios urbanos.

- Depende das culturas. Você vai a Hong-Kong e é capaz de comer todo o dia coisas saudáveis numa cidade ainda mais speedada que esta. Você vai a Nova Iorque e tem escolha. Cá, não.

 

Imagine alguém que trabalha na Baixa, que precisa de almoçar fora, e que não tem muito dinheiro nem tempo para comer.

- Posso dar-lhe o meu próprio exemplo. Quando trabalhava no Hospital, não comia no refeitório, não se pode comer aquela comida! Levava num tupperware os restos do jantar do dia anterior. Não é tão saudável, mas é menos mau do que o refeitório. Depois, há sanduiches vegetarianas deliciosas que se podem fazer em casa. Dão cinco minutos a mais de trabalho... Se analisar em que é que as pessoas perdem tempo... Será que não podiam tirar meia hora à televisão para no dia seguinte terem uma sanduiche maravilhosa? Será que não podiam andar meia hora a pé em vez de estarem sentados no café? Será que não vale a pena dizer ao senhor do café: «veja lá se passa a ter este pão caseiro e uns legumes, que passo a ser sua cliente»?

 

Como seria uma sanduiche vegetariana maravilhosa, que me satisfizesse, ao almoço?

- Olhe, gosta de feijão?

 

Gosto.

- De cenouras e alho francês?

 

Sim.

- Faço uma deliciosa. Sou especialista em sanduiches para a praia, toda a gente quer vir para a praia comigo porque as minhas sanduiches sabem sempre a umas coisas diferentes. Vou contar-lhe as últimas que fiz. De manhã, fui comprar pão fresco de Mafra, pus um fio de azeite...

 

Azeite?

- Azeite. Nunca uso manteiga.

 

Nem manteiga magra?

- A manteiga magra é uma gordura trans-saturada, que é uma gordura solidificada. O fio de azeite é hiper-saudável e hiper-saboroso. Passei a cozinhar tudo com azeite. Nunca meto manteiga nem margarina, não sei o que isso é na minha cozinha. Bom, continuando. Estufei cenoura e alho francês às lasquinhas, um bocadinho de gengibre... (Pode não gostar, e então tira, mas faz lindamente à saúde, é anti-inflamatório e analgésico e dá tchi!, que é energia. De maneira que sou toda pró-gengibre). Depois de estufado, pus tudo na sanduiche, com muitas folhas de alface. Uma delícia! Pode pôr um bocadinho de mostarda, pimentos grelhados, tomate assado no forno, queijo mozzarella... Sabe que pode fazer patés das suas leguminosas, com os feijões já estufados ou guisados?

 

Feijões?

- Mete-os no 1,2,3, faz um puré, junta uns coentros, um bocadinho de salsa, vinagre, azeite e barra o pão com aquilo. Às vezes nem se distingue se aquilo é um paté verdadeiro... «Tenho sanduiche de paté»! Aquilo entra para a cabeça da pessoa e é como se entrasse para a língua... Depois digo que é de feijão, fica tudo a olhar para mim.

 

É, no mínimo, duzentas vezes mais saudável do que comer o rissol e a sopa.

- Muito mais. Não estou a dizer que o rissol e a sopa não tenham lugar de vez em quando.

 

Mas a sopa dos restaurantes é uma sopa de batata, horrível.

- Quase inventei este sítio [Cozinha Equilíbrio] para ter onde comer em Lisboa, porque tinha exactamente o mesmo problema das outras pessoas. Venho cá almoçar todos os dias. O que eu aconselho... Descascou cenouras para o jantar? Ponha-as numa caixinha, já descascadas, para levar no dia seguinte. Aipo, cenoura, fruta, couscous com legumes. Come-se a qualquer hora.

 

Frio? Porque nem todos os empregos têm micro-ondas para aquecer o que se traz de casa.

- Prefiro comer frio a comer mal.

 

O problema é também outro: se eu fizer uma salada, o meu marido vai logo perguntar: «Então e o bifinho? Onde é que está a carne?» Como se a saladinha fosse acompanhamento e não almoço.

- É um problema cultural. Mas diria que são as mulheres que estão a mudar a maneira como se come.

 

Também porque são as mulheres...

- Que cozinham.

 

Sim, e também são elas as grandes vítimas das questões sociais à volta da gordura. Os homens vivem melhor com a sua obesidade e com o peso. Um homem com uma barriginha é suportável, uma mulher não.

- Mas nós mulheres devemos ser exigentes sobre este assunto. Eu, por exemplo, disse logo ao meu marido: «Barrigas, não. Tem santa paciência». Tenho uma amiga que casou, o marido engordou e ela, um dia, agarrou numa fotografia e disse: «Desculpa lá. Eu casei com este!». Ele olhou para aquilo, assustou-se e percebeu.

 

Eu não posso fazer isso, senão ele também me mostra uma fotografia e diz: «Desculpa lá, mas eu também casei com esta».

- A coisa mais importante é mudar devagarinho.

 

Esse devagarinho pode significar anos?

- Anos.

 

Estou longe de ter uma alimentação que encaixe exactamente nisso que diz. Mas há dez anos era muito pior.

- O importantíssimo é o movimento. Mesmo que se seja uma pessoa magra.

 

Pode ser apenas andar?

- Ao andar faz ginástica da cintura para baixo. Não faz nada às articulações superiores nem às costas. Ou então tem de andar a rodar os braços.

 

Se for na rua pode ser embaraçoso...

- Ah! Eu já perdi essas coisas. Sempre fui um bocado exótica. Até nos Estados Unidos, onde vivi durante dez anos, era considerada exótica. Não há muitas mulheres médicas que cheguem ao hospital montadas numa mota enorme, vestidas de amarelo, num dia de chuva torrencial. Devemos jogar com a nossa diferença e não com aquilo que nos torna semelhantes aos outros.

 

Gostava de insistir na ideia de que tudo passa pela educação.

- Tudo! A educação muda a cultura. A nossa cultura manda comer bife, carnes, chouriços... Está errado.

 

Considere a seguinte situação: uma mãe, que por acaso é esquelética, nunca tem doces em casa, nunca dá doces aos filhos; diz que têm em média uma festa de aniversário por mês e que essa vez é mais do que suficiente para comerem doces. A outra situação é a de um menino que mostra com um ar radiante, felicíssimo, a gaveta do armário onde os pais lhe põem gomas, chocolates, rebuçados. Os outros não pensarão que a mãe tão restritiva é má? Este sabe que os pais se preocupam em encher a gaveta de coisas boas.

- Tem de haver um equilíbrio. Como é diário e várias vezes ao dia, é talvez o campo de negociação mais difícil entre as mães e as crianças. A maior parte do padrão alimentar da criança vem da mãe, não do pai. Portanto, aquilo que a mãe come é o que passa para os filhos. Nesses dois casos, acho que nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O que eu sei é que 10% da nossa alimentação pode ser em açúcar. Eu como de tudo, não se engane. Não sou vegetariana. Só que como bem, não abuso. Mas isto é muito complicado. Todo o ritual lúdico, social, familiar, a própria força da biologia, tudo nos manda comer. A sociedade exibe-nos bolycaos, chocolates, gomas... Ora, eu tiro exactamente o mesmo prazer a comer uma coisa saudável e bem cozinhada. A minha parte racional compreendeu e educou a parte sensorial e emocional a ser tão feliz com uma coisa diferente. A maior parte das pessoas só chega aqui depois de estar doente.

 

Quantos anos demorou a educar-se?

 - Eu não sabia nada disto, mas sempre me controlei, desde miúda. Nós, a partir da primeira menstruação, temos de criar reservas para ter filhos. Eu também fiz isso. Criava reservas de uma maneira incrível. E fiz todas as asneiras que toda a gente faz... Pensava que a massa é que engordava e durante anos disse que não gostava de massa. Depois fui estudar e compreendi que não era a massa que engordava, mas sim a gordura. A gordura, o açúcar, o álcool, e a falta de movimento.

 

São basicamente estes quatro?

- Sim.

 

Quando vemos as mulheres na televisão, todas muito magras, o que pensamos é que elas passam fome! Nós, cheias de raiva, dizemos: só podem passar fome!

- Eu não passo fome. Hoje já comi um pequeno-almoço às sete da manhã, um outro antes de vir falar convosco [meio dia], porque estava cheia de fome!, vou almoçar bem, lancho, janto e, normalmente, ainda como antes de ir para a cama.

 

Vamos à parte prática: eu tenho 30 anos, estou mesmo no ponto certo em que posso fazer alguma coisa por mim?

- Pode sempre fazer-se alguma coisa em qualquer etapa da vida. O corpo tem uma elasticidade e uma capacidade de recuperação brutal. Eu tenho quase 50 anos e não tenho corpo de 50 anos. Porque estou sempre a dar mensagens de vida! Estou sempre a dar corda ao relógio! E essa é que é a beleza da vida humana.

 

Mas depois de nascer uma criança, parece que o corpo se transforma e que nunca mais volta ao que era. Volta ou não?

- Há quanto tempo está a tentar voltar ao que era?

 

Há oito meses.

- É pouco tempo, muito pouco tempo. Tem de ter paciência e não desistir, fazer muita ginástica abdominal, comer muito gengibre, pode pôr pachos de gengibre na zona abdominal para ajudar a circulação a reabsorver essas coisas. O que não quer dizer que não se façam desvios do padrão básico nos dias de festa.

 

«Dias de festa», pode ser uma vez por semana?

- Pode. Também lhe digo que a minha culinária diária é como se fosse uma festa diária. No sentido em que é muito bonita, hiper-colorida, estou sempre a inventar coisas. O meu marido adora.

 

Há coisas que não come?

- Eu como de tudo. De vez em quando.

 

Mas o que é o de vez em quando?

- Não é só o de vez em quando. Há aqui um mistério. Que é o da quantidade. Eu sei qual é a quantidade que cabe em mim. Por exemplo, as minhas sobremesas. Não sirvo sobremesas aos meus amigos num grande pote. São todas preparadas individualmente e são uma obra de arte de cor. Uso sempre gelados Haagen Dazs. Mas só uma bolinha! Uma trufa de Genève dá para oito pessoas! Do creme de limão e açúcar, ponho só uma colher de café. Em vez de usar natas uso queijos magros em creme. E como é pouco, as pessoas saboreiam com o dobro do prazer. Elas sabem que aquilo vai acabar!

 

Um artigo da Time republicado pela Visão falava de dez alimentos indispensáveis à saúde: alho, chá verde, tomate, brócolos, aveia, espinafres, mirtilo, frutos secos, vinho tinto e salmão. Achei estranho porque não tinha nem carne nem lacticínios.

 

- Há algum animal que beba leite depois da amamentação? Não. Pois nós também não fomos desenhados para isso, não precisamos tanto dos lacticínios como pensamos. Não quer dizer que não sejam bons. Se comer uma quantidade apropriada, também têm o seu lugarzinho. O peixe tem tudo o que a carne tem. Só que tem coisas boas. Também é divertido comer carne de vez em quando, mas costumo dizer que serve para dar sabor e não para matar a fome.  

 

Nós saímos daqui e vamos almoçar aos Tibetanos, [restaurante vegetariano] como é óbvio!

- Ainda bem! Mas não vejo que a pessoa tenha de ser vegetariana.

 

 

Entrevistado de Anabela Mota Ribeiro e Sónia Morais Santos, publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1999