Ana Lopes
«Trabalhadores do sexo, uni-vos» abre com uma citação de Marx: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é transformá-lo». A antropóloga Ana Lopes cita o filósofo no seu livro e apresenta o activismo e a participação cívica como essenciais à sua vida.
É uma “menina de boas famílias” que trabalhou na indústria do sexo durante quatro anos (como operadora de linhas eróticas, modelo e dançarina de striptease). Simultaneamente desenvolveu a sua tese de doutoramento na Universidade de East London sobre os direitos e a organização laboral nesta indústria. É uma tese polémica, condensada num livro recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote.
Ana Lopes tem 27 anos, e regressou agora a Portugal onde trabalha na criação de uma nova associação: «Tem como objectivo fomentar e desenvolver a sustentabilidade daquilo que chamamos a sociedade civil. Para que os cidadãos possam cada vez mais influenciar o local onde vivem, a sociedade onde vivem, o mundo onde vivem».
A palavra é uma arma, e a intervenção a sua divisa.
“Se pensa que vai aqui encontrar descrições picantes do mundo do sexo e da prostituição está enganado”, escreve na contracapa do seu livro. Mais do que o resumo da sua tese de doutoramento, pode ser lido como um manifesto político?
Pode. Escolhi fazer um doutoramento muito político. Comecei por querer fazer uma investigação ortodoxo da indústria do sexo. Achei que era um tema fascinante, do qual se fala muito, mas do qual se sabe muito pouco.
Há em relação ao grupo um sentimento de pertença – é one of them. Se não tivesse pertencido à indústria do sexo, teria esta visão que lhe permitiu fazer uma tese de doutoramento tão original?
Penso que não. Não sentiria autoridade para falar destas coisas da forma como falo, teria sempre que dizer “acho que”, “penso que”. Como já fiz parte e sou uma activista internacional, sinto-me à vontade para falar em “nós”.
Quando nos referimos à indústria do sexo, temos quase sempre uma atitude moralista - mesmo que tentemos descartá-la. A posição comum é a de que não pode ser a mesma coisa vender o corpo e vender uma caixa de sapatos…
Não sou diferente das outras pessoas. Até há alguns anos, nunca tinha pensado nestas questões. Descartar-me desses resquícios foi à força de passar muito tempo com trabalhadores do sexo, de me aperceber que são trabalhadores como quaisquer outros, que não há nada de transcendente nesta coisa de vender serviços e fantasias sexuais.
Disse “vender serviços sexuais “ e não “vender o corpo”.
É das tais coisas que nos habituamos a ouvir e que não questionamos. Não é o corpo que se vende, vende-se um serviço, que é feito com o corpo, se for - pode ser um serviço de voz, como é feito nos telefones. A maioria das pessoas com quem convivi não sente esse problema da venda de um serviço que é feito com o corpo. São muitas vezes pessoas que se sentem à vontade no seu corpo e na sua sexualidade. Se viesse à Conferência Europeia de Profissionais do Sexo que aconteceu em Outubro de 2005, tinha estado com um grupo de 200 pessoas de quase todos os países europeus que têm essa postura: “Eu não sou uma aberração”.
Não é essa a imagem que passa na comunicação social. Esta incide sobre o voyeurismo, a exploração e a indignidade.
Existe esse discurso dominante, as pessoas não têm a coragem de afirmar um discurso alternativo. É uma visão muito a preto e branco. Ter conhecido este grupo de pessoas, e ver que não estava sozinha, encorajou-me a afirmar o meu discurso.
Este livro, além de subversivo, é interpelador. Uma ideia base é a de que os trabalhadores do sexo não querem ser salvos, querem é ter direitos iguais aos dos outros trabalhadores. A outra é a de que a percentagem desses que não querem ser salvos é significativa.
As pessoas que estão em condições aberrantes não querem ser salvas da prostituição, querem ser salvas de todo o tipo de abusos: das teias de máfias criminosas, de relações violentas, de um problema de toxicodependência. Existe um mundo de problemas associados à indústria do sexo: são esses que devem ser resolvidos. Para muitas pessoas, o facto de trabalharem na indústria do sexo não é o problema em si. É uma mínima parte da indústria do sexo que está em condições de semi-escravatura.
A ideia corrente é a contrária: que aqueles que podem escolher são uma parte irrisória.
Conheci pessoas que trabalham nesta indústria que têm cursos universitários, mestrados, que já tiveram outro tipo de carreiras e optaram pela indústria do sexo. Também não acho que isso seja a maioria. A grande maioria dos que trabalham na indústria do sexo podemos compará-los àqueles que fazem trabalho não-qualificado.
Aos que trabalham numa fábrica?
Uma fábrica ou qualquer coisa. É evidente que não é trabalho ideal, mas é uma das poucas escolhas possíveis. Depois, há uma minoria que é realmente forçada. Acho que a pobreza não pode explicar a indústria do sexo, há muitas pessoas muito pobres que não vendem sexo. Os números sobre tráfico, normalmente, vêm de amostras muito pequenas e tendem a confundir a prostituição de rua com indústria do sexo.
A definição mais genérica, que consta do livro, abre para filmes, linhas telefónicas, fotografias e até publicidade.
Isso é a indústria do sexo. A prostituição de rua é uma pequena parte se compararmos com a prostituição que se faz em locais escondidos. Mas, por ser visível, é aquela que leva as pessoas ao pânico, porque são todas traficadas e emigrantes!
Pensa-se que esta é uma realidade sobretudo feminina. É assim?
Não temos bem a consciência de como o número de homens e transgéneros na indústria do sexo é significativo... Se os juntarmos são quase metade.
Por que é que a mulher tem sempre a aura de pecadora ou de perseguida e indefesa? Os homens, mesmo nas rugas, não são condenados pelo seu desejo e procura…
São valores morais muito antigos, e uma pressão sobre a mulher de séculos. A indústria do sexo era maioritariamente feminina e importava castigar a sexualidade feminina. Para o homem era natural ter desejos sexuais, vários parceiros. Muitas das pessoas que são abolicionistas, que dizem que a prostituição não devia existir, não percebem o potencial de trabalhar na indústria do sexo.
O que é que quer dizer?
É quase revolucionário para a mulher passar por cima dessa opressão moral, assumir que tem muitos parceiros sexuais e que leva dinheiro por isso. É mesmo empurrar as barreiras dos papéis do género, porque não é isso que a mulher deve fazer: deve ser monogâmica e ter muito controlada a sua sexualidade. Até aos anos 60, às conquistas do movimento feminista, as profissionais do sexo tinham mais direitos do que qualquer outra mulher, tinham acesso a uma educação sexual que outras mulheres não tinham.
Essas mulheres eram olhadas como “coitadas”, coisa que hoje, muitas vezes, ainda acontece?
Havia uma diferença entre as mulheres respeitáveis e as pessoas que trabalhavam na indústria do sexo. As mulheres dos descaminhos não eram só aquelas que vendiam serviços sexuais, o leque era mais abrangente.
Vemos nos filmes que trabalhar num saloon era o que acontecia a uma mulher que perdia a honra.
Ser artista de cabaré, ser corista - todas essas coisas que agora vemos com o maior respeito...
Todavia, continuam a ser olhadas por sectores conservadores como “mulheres perdidas”.
Muito conservadores. Se recuarmos duas ou três gerações, se eu quisesse ser artista de teatro, toda a minha família, não só se oporia como não quereria falar para mim. Hoje, isso não aconteceria.
Por que é que decidiu dedicar a sua vida a esta causa? Por que é que sente uma atracção por aqueles que são estigmatizados?
Porque quero fazer deste mundo um mundo melhor e mais justo. Sinto a necessidade de tentar estabelecer os direitos daqueles que não os têm, que estão oprimidos, marginalizados. Os que já têm esses direitos garantidos, não é preciso fazer nada por eles. A minha vida não é toda isto. Mas dediquei-me de corpo e alma a este movimento durante os últimos seis anos.
Porquê?
Fui para Inglaterra com 20 anos trabalhar com um antropólogo, Chris Knight, que tem uma teoria sobre a origem da cultura que é controversa, embora cada vez mais aceite: faz uma ligação entre o sexo e a economia, onde nos tornámos humanos modernos. Por outro lado, [pesou] o facto de ter começado a trabalhar nas linhas eróticas.
Em que circunstâncias começou a trabalhar nas linhas?
Vi o anúncio numa revista e achei que podia ser fascinante. Em Inglaterra todos os estudantes têm um part-time, e trabalhei em bibliotecas, em cantinas. E depois apareceu-me aquele anúncio. Podia ter passado à frente, mas era curiosa e quis experimentar, saber como é que funciona, ir para além daquilo que vem nas reportagens.
Interessava-lhe conhecer verdadeiramente o outro, quando ele não está a posar? Trata-se de conhecer o humano as suas múltiplas dimensões. Para um antropólogo é isso que se faz todos os dias, a toda a hora, em qualquer sítio.
Como é que criou o International Union of Sex Workers – iniciativa que integrou no seu doutoramento?
Estava a trabalhar nas linhas eróticas quando defini a linha do meu doutoramento. Nas entrevistas-piloto que realizei tive a sensação que as pessoas me estavam a dizer que faltava uma coisa. Não era mais um estudo, era uma associação na qual pudessem reivindicar os seus direitos. Reuni outra vez as pessoas que tinha entrevistado e perguntei-lhes se queriam mesmo formar essa plataforma. A resposta foi positiva. Fiquei como uma espécie de resource person, a ser usada para levar a acção em frente, mas sempre guiada pela vontade deste grupo.
A leitura que na sua família e socialmente fazem de si é marcada pelas suas posições nesta matéria?
O meu trabalho é político. Acho que tenho argumentos muito bons, acho que foi por isso que tudo isto funcionou, que consegui a filiação no sindicato geral [inglês], que consegui o apoio do movimento laboral de Inglaterra. Quando tenho tempo de explicar às pessoas por que é que faço isto e por que é que penso como penso…, para já não houve ninguém que deixasse de me falar, ou de ser meu amigo.
Porque é que decidiu contar que tinha trabalhado na indústria do sexo?
Tenho muitos amigos e amigas na indústria do sexo que optam por não dizer às famílias aquilo que fazem. Eu optei por ser sempre aberta. Nunca estive numa posição de pedir desculpa. Faço aquilo em que acredito, tenho muito orgulho em tudo aquilo que faço. Acho que sou coerente nas minhas acções e nos meus argumentos, portanto estou aqui, sem vergonha. Ou me aceitam ou não me aceitam. Mas sinto-me muito valorizada por aqueles que conheço.
Publicado originalmente na revista Máxima em 2006