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Anabela Mota Ribeiro

António Ramalho

07.02.14

“Vou dizer-lhe uma coisa de que me orgulho: quando entrei no BPSM em 1990, tinha um milhão de contos no Fundo de Pensões. Quando saí, tinha 108 milhões”.

Isto foi dito na fase em que António Ramalho me falava das suas conquistas profissionais. Um pouco de crista levantada. Mas uma pessoa dá uma entrevista e deve mostrar o seu melhor lado. Sobretudo, deve manter a discrição que é devida a um banqueiro. Algures na conversa, no almoço que antecedeu a entrevista, comentava que não se deve conhecer a mulher de um banqueiro. Que é uma forma de dizer que este mundo – entenda-se: a banca – não está para gente que aparece nos jornais em mangas de camisa.

Mesmo assim, decidiu dar uma entrevista em que expõe vulnerabilidades, fala da família e diz coisas que um gestor armado em durão não diz. Obrigada pela confiança. Durante a conversa ele esteve em mangas de camisa. Pode ser bastante informal, e é agradável conversar com ele.

Porque é que me deu a entrevista, a primeira entrevista em que fala de si e da sua vida? Porque ele já é o António Ramalho. Ou seja, um presidente de uma empresa que não é uma qualquer; e faz parte do pacote dar entrevistas onde o líder revela o seu lado mais humano. O que tem um pai e uma mãe, as crises, as indecisões, os erros, as fracturas.

A tendência foi inclinar a conversa para o técnico; era a parte em que eu ficava a ver navios. O fundo de verdade, seco, o osso, sem escusas, está nas páginas seguintes. Ficamos a saber razoavelmente quem ele é, o que o fez ser como é,

António Ramalho é formado em Direito. Não tem nem 50 anos. Já foi muito. Ainda pode ser tudo. Ele acredita que sim, e não é o único. É um gestor que rói as unhas. Um compulsivo que debita uma quantidade inimaginável de palavras por minuto. Tem uma voz tonitruante. Continua a ter um ar vagamente traquina, vestígios de um enfant terrible, e pode rir muito. É um presidente que usa um telemóvel baratucho porque queriam uma roubalheira por um melhor.

Em que é que ele é mesmo bom? Porque é que ele está onde está, tão cedo? Porque é que tudo lhe aconteceu tão cedo? Ele tem consciência de tudo isso, e di-lo na entrevista.

 

 

Como conheceu Champalimaud? Vamos começar por essa fase da sua vida.

Conheci António Champalimaud em 1992 quando ele voltou para Portugal. Estava a concorrer à Mundial Confiança. Eu era director financeiro do Banco Pinto e Sotto Mayor (BPSM). O primeiro encontro foi rigorosamente profissional. Foi em casa. O senhor António Champalimaud trabalhava sempre em casa. Era uma pessoa muitíssimo simpática. Criou-se o mito da dureza, mas era muito atencioso. Quando se tratava de negócios, exigia não só resultados como capacidade de decisão. Admito que tenha transmitido essas características ao filho, que foi a pessoa com quem trabalhei mais.

 

Tinha uma grande expectativa em relação a esse “personagem”? Já havia um lado mítico associado a Champalimaud.

Champalimaud era um industrial particularmente relevante. Conheci-o depois do 25 de Abril; o que representa conhecer uma geração de empresários que estavam a tentar reconstruir-se de novo em Portugal, depois de um processo de nacionalizações. O grupo Espírito Santo, o grupo Mello e outros passaram pelo mesmo percurso.

 

Esteve com esta família num momento particular da sua história. O que é que aprendeu?

Isso já foi em 1994. Em 1993 fui convidado para a administração do BPSM. Tinha 30 e poucos anos. Estava-se num processo de privatização. O banco acabou por não ser vendido. A única proposta foi do BCP e o Estado decidiu não vender por ser uma proposta abaixo do preço de referência que existia. O banco foi comprado num segundo processo de privatização. O meu contacto com a família Champalimaud foi após a privatização. Fui o único administrador a passar para o grupo Champalimaud. Fiquei eu e o presidente.

 

Porque é que acha que passou? Que comportamento foi o seu para ditar essa transição?

Tem a ver com o quadro que se vivia. Estávamos a sofrer um conjunto de revoluções simultâneas na banca. Uma revolução tecnológica, uma liberalização, uma revolução de mercados. A banca tinha resquícios da banca pública, tinha suportado o processo do pós-Revolução. Exigia uma reestruturação profunda. Fui para o BPSM em 1990. O banco teria um milhão de resultados por ano, 8% de rácio de crédito vencido, 800 milhões de contos de carteira de crédito, 8500 trabalhadores, 120 balcões, um coast income de 70%; era um banco que tinha um milhão de contos no Fundo de Pensões, e uma conflitualidade sindical brutal. Entre 1990/94 foi feito um plano de recapitalização do banco, com operações apoiadas pelo Estado, foi feita uma redução da carteira de crédito e de custos de pessoal.

Houve um conjunto de pessoas que tinham condições adequadas para responder a este desafio. Falavam inglês – e não francês –, tinham um domínio tecnológico e informático, tinham capacidade de se adaptar ao momento presente. Essa era a prioridade estratégica dos bancos. Eu estava no sítio certo no momento certo.

 

O que é que aprendeu nessa fase? Profissionalmente fez-se aí, adquiriu aí muito do que hoje sabe?

Sem humildades, eu já devia ter alguns skills. Uma vez que tinha sido director financeiro, director de mercado de capitais, administrador do BPSM. Eu tinha já um percurso sufragável. O que é que aprendi? Que a ambição se pode reconstruir.

 

O que quer dizer: não desistir nunca.

Sim. Aprendi que nada se faz sem assumir riscos. Que o risco é a essência dos negócios e das decisões. E aprendi que a riqueza é uma coisa que se gera e que não se apropria. Esta família não tinha qualquer ansiedade de apropriação de riqueza; media-se pela geração de riqueza que conseguia produzir. Em postos de trabalho, em empresas que detinha, em resultados que conseguia gerar.

 

Vamos dissecar isso que aprendeu.

A derrota é meramente pontual. É o início do novo desafio, é só um caminho para uma nova vitória. Não há nada tão forte que aniquile a capacidade de ambicionar e de encontrar soluções para ambicionar. E isto mesmo faz-se assumindo riscos, conhecendo os riscos, e sabendo que não há solução senão os riscos. O que caracterizava a família Champalimaud era a capacidade de se assumir riscos individuais, e quase intuitivamente.

 

Não referiu uma coisa que pensei que tivesse aprendido com a família Champalimaud. A segurança de que o dinheiro aparece sempre. Há riscos que se podem tomar porque aparece sempre alguém para pagar o cheque. Não passa pela cabeça que o cheque seja devolvido.

Não sei se concordo inteiramente com isso. O dinheiro apenas serve para criar riqueza. E deve ser cautelosamente tratado. Há aquela graça: “Rico não é o que ganha muito, é o que consegue não gastar”. [riso]

 

Poupa no papel e escreve nas costas das fotocópias.

Sim, e substituo as velhas canetas entregando as antigas já consumidas. Isto é: gerir o património que não é nosso – é dos accionistas – com toda a cautela e frugalidade. É uma filosofia que mantenho integralmente. Nós tínhamos uma assinatura: António Champalimaud. Era uma assinatura fantástica, com um valor incalculável. Não era só um empresário: era um mito. É um orgulho enorme ter trabalhado nesse grupo. E tínhamos um líder: Luís Champalimaud. É um filho que não sei quantos empresários têm. Com aquela assinatura e aquele líder construiu-se um grupo. E isso mede-se. Mediu-se.

 

O que sentiu quando saiu do grupo?

Não saí do grupo, o grupo foi vendido. Com muita tristeza. Nós tínhamos estado sempre a comprar. O Totta, o Crédito Predial, o Chemical. Havia um instinto ganhador. E há um momento em que é feita a aquisição do banco. Tinha várias oportunidades e optei pelo Santander. Mas estou a fugir à sua pergunta: foi o fim de um ciclo. Foi uma década de ouro da actividade bancária. É um período de reconstrução e reconsolidação da banca. Há uma revolução feita entre 1992 e 2000. As pessoas que participaram neste processo (Artur Santos Silva e Fernando Ulrich, Jardim Gonçalves, Christopher de Beck, Filipe Pinhal, a equipa do Espírito Santo com Ricardo Salgado, a equipa da Caixa Geral de Depósitos com Rui Vilar e João Salgueiro) criaram um dos melhores sistemas financeiros da Europa. Provavelmente o segundo melhor. O melhor estava aqui ao lado, em Espanha. 

 

Viveu tudo isso muito jovem. As pessoas que nomeou pertencem a outra geração.

Aprendi com elas.

 

Horta Osório foi o nome mais proeminente da sua geração.

Sim. Mas há nomes que às vezes passam mais despercebidos.

 

O que quero é provocá-lo e perguntar se quando Horta Osório foi para presidente do Santander pensou que aquele lugar, potencialmente, também podia ser seu.

Não. Nós não somos tão calculistas. [riso]

 

Não acredito.

Há coisas que têm a ver com o momento. Se não fosse a saída do Dr. Farinha Morais do BPSM – que criou uma vaga; o estarmos em processo de privatização e a dificuldade em fazer contratações, provavelmente Fernando Almeida não teria escolhido o seu mais jovem director financeiro, de nome António Ramalho. Foram as circunstâncias. Pode dizer-me que são os meus méritos. Mas isso é a condição mínima e necessária.

 

Não é condição suficiente?

Pode não ser suficiente. Tenho a certeza que uma das coisas que me permitiram crescer no BPSM foi ter um número dois muito bom. Podia sempre ocupar os meus lugares. É importante ter um substituto, alguém que queira o nosso lugar. Cria uma dimensão de competitividade e facilita-nos a aceitação de novos desafios.

 

Está a dizer que nunca temeu ter um número dois que lhe mordesse as canelas?

A competição é uma inevitabilidade e temos de estar sempre preparados para perceber quando é que perdemos na competição.

 

Mas estávamos a falar do trabalho com uma geração que não era a sua.

Todo o processo foi feito por uma junção de gerações. Sou entusiasta disso porque sou filho de um director de banco. O meu pai já faleceu, já tinha falecido nessa altura. Trabalhei com os amigos do meu pai. Fomos capazes de aprender num processo mútuo, e de sentir um respeito mútuo.

 

Vamos lá atrás para saber como se fez, quem é. Que homem é este com quem estou a falar?

Sou uma pessoa de todo em todo normal.

 

Para já, é um beto que usa expressões como “de todo em todo”.

Não sou nada! [risos] Sou filho de uma ruralidade lisboeta, dos bairros rurais que ficam para lá das quintas de Benfica. O metro era em Sete Rios e era preciso apanhar correspondência, nada havia até S. Domingos de Benfica. Convivíamos naquele espaço fechado. O cinema de Benfica era no centro paroquial; havia 300 lugares onde ao domingo nos sentávamos a ver um filme. A pessoa predominante era o Padre Álvaro Proença. Benfica tinha o maior agrupamento de escuteiros do país porque todos os filhos dos habitantes de Benfica eram escuteiros. Sabíamos quem eram os da Situação e os da Oposição, qual era o café da Situação e o da Oposição. Andei no Externato na Luz até à quarta classe e na Preparatória passei para a [Escola] Pedro Santarém, que era em frente a minha casa. Tocava a sineta, eu ouvia, e ia a correr para chegar ligeiramente atrasado. Portanto, não era tão betinho.

 

É filho único?

Não. Tenho um irmão quatro anos mais velho. O meu pai trabalhou toda a vida num banco de fomento. Acabou por ser director, mas licenciou-se tarde. É uma pessoa cheia de méritos. Tirou três anos de Matemática, onde conheceu a minha mãe, que é licenciada em Matemática. Depois teve de trabalhar para ajudar a família, alentejana. Acabou por licenciar-se em Económicas; aliás, em Finanças. Ele dizia sempre que tinha seguido o ramo das Finanças, no ISEG. Já tinha 40 anos.

 

É um exemplo, o do seu pai.

O verdadeiro exemplo foi o que recebi dos meus pais. Que tudo era feito com trabalho, que a estrutura familiar é o único suporte que temos. Que temos de fazer um esforço traduzido em resultados, em sucesso. Nos seminários que dou, digo é que preciso 90% de transpiração, 10% de inspiração e 100% de convicção! Isto só vai lá com 200%!

 

Como era a vossa relação?

Muitíssimo próxima. Sempre vi o meu pai a trabalhar muito. Aprendi com ele a trabalhar em excesso. Gosto de trabalhar! O meu pai trabalhou até aos 63, e faleceu logo a seguir. Gozou muito pouco a reforma.

 

Isso funcionou como um cutelo sobre si, impele-o a viver intensamente?

A vida tem-me acontecido sempre cedo. Mas tem-me acontecido. Comecei a trabalhar na faculdade porque queria ganhar dinheiro. Tinha 19 anos. Consegui fazer a universidade sem nenhum atraso.

 

Quem pagou a Universidade Católica? O seu pai ou o resultado do seu trabalho?

Foi o meu pai. O meu pai discordava da minha opção de trabalhar e cortou-me a mesada. Dizia que quem trabalha tem de assumir com profissionalismo o seu trabalho. Devia depender do meu salário e não diletantemente da mesada. Senti que era uma injustiça. Mas hoje percebo-o.

 

Então?

Se eu queria trabalhar e estudar, tinha de ser profissional nas duas coisas. O meu pai não queria que eu trabalhasse, porque trabalhou para tirar o curso, teve dificuldades, e queria, como todos os pais, que a vida dos filhos fosse melhor.

 

Foi trabalhar porque queria estar por sua conta?

Sim. Sem romantismos: queria ter algum dinheiro. E quando acabasse o curso queria casar. Já tinha encontrado a mulher da minha vida. E assim aconteceu. Era preciso criar as condições.

 

Outra coisa que aconteceu cedo.

É verdade. Casámos com 23 anos. Tivemos uma filha dois anos depois.

 

No grupo Champalimaud aprendeu que é sempre possível re-ambicionar. Quais foram os grandes reveses da sua vida a partir dos quais pôde re-ambicionar?

Entusiasmei-me muito com um projecto no grupo Santander – o projecto Crédito Predial. Não resultou. E foi um erro de avaliação. Foi um revés que me levou a reavaliar o meu quadro mental. Levou-me, até, em 2003 a sair da banca. Estava a fazer dez anos de administração, tinha 43 anos, estava cansado da banca. Mas temos reveses todos os dias.

 

Tem um perfil de um indivíduo católico.

Tive uma educação profundamente católica.

 

Nunca perseverou no catolicismo o suficiente para ser cobiçado pela Opus Dei?

[pequena hesitação] Não lhe respondo a essa pergunta.

 

É também uma maneira de perguntar até onde é ambicioso.

O meu modelo é o de uma profunda independência de espírito. Mas não lhe respondo, essa pergunta não faz sentido. Não sou da Opus Dei. Não gosto de falar da minha religiosidade; é mais fraca do que eu gostaria. Vivo esse conflito comigo próprio.

 

Acredita menos do que gostaria?

Tenho mais dúvidas do que gostaria. A vida é mais fácil quando temos menos dúvidas. Sobretudo quando o nosso quadro educativo e os princípios morais são esses. Mas a religião é também uma máquina montada, um conceito, uma estratégia.

 

É uma casa de poder.

Pois. Essa parte entusiasma-me menos. A religiosidade é uma coisa íntima.

 

Por que quis assentar cedo?

Já lhe disse que a vida não é tão calculada assim. Tinha encontrado a mulher da minha vida. Aliás, encontrei-a no jardim infantil. A minha sogra foi visitar-me quando eu nasci! Reencontrei-a [a mulher] na faculdade.

 

Estou também a perguntar-lhe se não foi velho antes do tempo.

Tenho tentado ser jovem. Sim, a questão do envelhecimento coloca-se – estou a aproximar-se dos 50. Tive uma depressão de dez minutos quando fiz 29 porque no ano seguinte teria 30. Ridículo. 

 

Ainda que não tenha sido uma estratégia, o seu percurso é colado ao do seu pai. Como se o vingasse e conquistasse o que ele não pôde conquistar.

Do ponto de vista emocional, isso não está lá. Do ponto de vista real, está. O meu pai não precisava de ser vingado. Teve uma vida difícil, esforçada, mas sentia-se recompensado pela vida. Foi ficando cada vez mais bem-disposto com o tempo. Eu sou do estilo da minha mãe: bem-disposto de origem. O meu pai derretia-se com as netas. Ao contrário da minha mãe, que gostou imenso de ter filhos rapazes, e depois teve cinco netas! Uma parte gaga. A minha mãe ainda é viva. Nunca se recompôs da morte do meu pai, e foi decaindo.

 

Como foi a relação com o seu irmão? Ele achou graça ao fedelho que chegou quatro anos mais tarde?

Sempre foi boa. Quando fui para a escola primária chamavam-me Jaiminho. 

 

Tendemos a esquecer que as fratrias são das relações mais duradouras das nossas vidas. E competitivas. Foi com o seu irmão que aprendeu que podia ter um número dois que queria o seu lugar?

Isso tem mais que ver com a competitividade que encontrei na escola, na vida, e com características inatas. Sou competitivo. Quando jogo, mesmo que seja a brincar, quero ganhar. Quando estive em Oxford, houve um jogo de snooker e eu não era, de longe, o melhor jogador; esforcei-me de tal maneira que cheguei à final, e ganhei. Tenho lá a taça.

 

Porque é que é tão horrível para si perder?

Não é horrível. Divirto-me quando perco. Não instantaneamente. Mas dez segundos depois já estou a rir-me de mim próprio. Saint Exupéry tem uma frase fantástica na “Cidadela”; diz que o melhor adversário do jogador de xadrez é o campeão do mundo. Sabemos que vamos perder, mas temos a ligeira oportunidade de poder ganhar. Este desafio é constante. 

 

Essa frase persegue-o?

Procuro sempre essa ligeira oportunidade de ganhar e não acho que nenhum resultado esteja estabelecido.

 

Com quem aprendeu a jogar xadrez?

Com o meu pai. Perdia sempre. Até lhe ganhar.

 

Descreva-me o momento em que lhe ganhou. (Descreve pouco, elenca acontecimentos, factos).

Não me lembro do jogo que ganhei. Lembro-me de quando comecei a inverter a tendência para perder. A minha filha mais nova joga.

 

Deixa-a ganhar?

Nunca. Posso explicar-lhe, voltar atrás com as peças, mas tem de ganhar por mérito próprio. Quando ganhei ao meu pai tinha 18 anos. O meu pai era menos competitivo do que eu sou. A minha mulher é também competitiva. É uma académica, acabou de se agregar; tem a minha idade. Gostamos do sucesso um do outro.

 

A família é verdadeiramente o seu núcleo?

Sim. A minha sogra foi uma segunda mãe. É uma pessoa importantíssima na minha vida. Assim como o meu sogro, que tem o nome do meu pai. Havia muitos Jaimes…

 

O seu pai, o seu sogro, o seu irmão. Freud explains!

[riso] Não me venha dizer que é o Freud!

 

Indo outra vez lá atrás: porque estudou Direito?

Apanhei o 25 de Abril com 13 anos. A minha mãe é matemática, o meu pai financeiro, o meu irmão estava a tirar engenharia electrotécnica. Um excesso de ciência. Sempre fui bom aluno a matemática. Só tive, aliás, duas notas: 18 ou 20.

 

Ficava furioso quando tinha 18?

Não. Sempre convivi com pessoas melhores do que eu.

 

Isso é politicamente correcto, mas não bate certo com o seu lado competitivo.

Terei sido um dos bons alunos da faculdade, mas tive alunos claramente melhores do que eu. De quem sou amigo. Por quem tenho admiração. Nuns a genialidade, noutros a capacidade de trabalho. E o conceito do que é o melhor é relativo. Conheço gestores que são melhores do que eu em momentos de serenidade, mas são piores em momentos de emergência.

 

Onde é que é muito bom e se distingue?

Sou bom numa visão de antecipação estratégica e no exemplo e motivação que dou.

 

O seu mundo podia ruir se não ganhasse?

Isso é a nossa capacidade de adaptação. Outra vez o meu pai: quando fui convidado para a administração do banco – no tempo do meu pai um convite desses surgiria aos 55 anos – ele disse-me: “Parabéns. Deves aceitar. Mas tens de pensar o que farás quando deixares de ser administrador. O que acontece habitualmente é a reforma. Mas se te acontece 20 anos mais cedo, não é o que te vai acontecer a ti”.

 

Porque é que nunca esqueceu esta frase?

Porque tem que ver com um princípio de humildade. É a diferença entre estatuto e situação. O único verdadeiro abrigo é a família – são as partes estatutárias da nossa vida. Os outros, não são abrigos. Se o mundo vai ruir se me disserem “Você não serve para nada”? Tenho um suporte: a família. Não quero que o suporte seja o emprego, ou a Segurança Social. Temos feito o outsourcing da nossa segurança. Já passei por fases menos boas.

 

Por exemplo.

Quando saí do Santander não tinha nada. Sempre fui muito bem tratado pelo Santander, mas estava muito cansado de banca. Se estava à espera que viessem, em bandeiras, dizer: “Este homem é o melhor do mundo”? Não! A frase do meu pai era uma frase válida. Nunca somos os melhores do mundo. Somos aquilo em que a situação nos põe, a cada momento.

 

O que é isso de estar cansado de banca?

São dez anos de uma intensidade… Enquanto estive no grupo Champalimaud, estive sete anos sem ir jantar a casa. A minha mulher acompanhou mais o crescimento das miúdas. Tenho ideia que não falhei nenhum momento importante, mas falhei muitos momentos menos importantes. Sempre levei as minhas filhas à escola. Uma vez uma delas disse-me: “Pai, durante a semana, temos 50 minutos contigo”. Eram os dez minutos que tinha com elas, no caminho para a escola. Não é a coisa mais agradável de ouvir.  Mas também lhes dei o exemplo das dificuldades e do esforço; o dinheiro não cai do céu.

 

O dinheiro é fundamental?

Pode servir como álibi do muito entusiasmo que pomos nas coisas profissionais.

 

O que gosta é de poder dizer que, nessa década em que tudo mudou na banca em Portugal, estava lá. “I was there”.

É, é. Tive a minha participação.

 

Entretanto passou pela CP. Por um período curto de tempo, se pensarmos nos ciclos anteriores.

É verdade. Tenho circuitos profissionais longos. A minha saída da CP foi muito dolorosa, foi a decisão mais individual que tomei.

 

Não temeu defraudar as pessoas que depositaram confiança em si, para fazer a reformulação da empresa?

Tinha três objectivos: inverter a queda de passageiros, inverter a flutuação de resultados negativos e reorganizar todo o serviço de clientes numa operação sustentável a prazo. Teve as suas partes de emergência… Quinze dias depois de ser presidente da CP fechou o túnel do Rossio e vi-me com a população de Lisboa às costas às 11 da noite, a gerir uma equipa que ainda mal conhecia, para tentar encontrar uma solução; foi um grande momento de interligação às equipas. Fiz uma conferência às 5.35 da manhã!, às sete estava a andar nos comboios com toda a administração. Foi um período muito intenso, em que tentei criar uma estrutura rejuvenescida. Saíram 700 pessoas da CP sem uma única greve relevante, os comboios nunca pararam. Se defraudei as pessoas? – para não fugir à sua palavra. Cabe aos outros dizer, mas há pessoas que devem sentir isso.

 

A razão principal por que sai é o convite que recebeu para voltar ao sector financeiro.

Um convite de cinco bancos que me pedem para voltar. Era um segundo convite – já tinha sido feito em 2004. Convite feito pelo Dr. Bastos Gomes, representante do BCP – a instituição que seis anos antes tinha comprado o BPSM. Sinal de que tinha comprado uma coisa boa! Era um desafio muito interessante, e não tive coragem de não dizer sim, egoisticamente. É uma decisão que me dói. Porque não terminei o mandato. É uma decisão com que, ainda hoje, acordo. Para essa decisão contribuiu uma terceira questão: os custos, não só financeiros, mas pessoais, de devassa das nossas contas, da aferição da nossa vida.

 

Está a dizer que as suas contas eram devassadas?

As minhas contas foram expostas ao Tribunal Constitucional e os jornalistas, no dia seguinte, conheceram-nas. Faz parte da imagem de transparência que é exigível quando estamos numa empresa pública. Há um quarto aspecto que conta: os gestores têm um preço. Se você se auto-limita e aceita as condições – todos os gestores públicos só podem ganhar “isto” –, está a habituar as pessoas a que aquele valor é aceitável para si. Eu não considerava que aquele valor fosse aceitável para mim.

 

Três anos depois, o apelo do dinheiro chamou-o. Mas também é uma questão de vaidade. Ou seja, chamam-no. É uma forma de dizerem que é bom.

Se dissesse que isso não me diz nada, não seria verdade. Isto do reconhecimento passa por os outros reconhecerem-nos. Sair da CP era uma decisão difícil, não aceitar a UNICRE era uma decisão impossível.

 

Porque é que acha que dar esta entrevista é um risco?

É um risco expormo-nos. A vida é feita de pessoas discretas. E estando no sector financeiro, a discrição é natural.

 

Isso quer dizer que as nossas vulnerabilidades, expostas, podem ser usadas contra nós?

O jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã. O que fica são meia dúzia de ideias, a quem interessar. Para todos os efeitos, damos sempre um pouco de nós próprios.  

 

Roer as unhas, é que nunca foi capaz de deixar.

[gargalhada] Pois, é preciso ter algum escape. Tenho alguns. Mas o bicho de carpinteiro é mais relevante.

 

Levantou-se no meio da entrevista não sei quantas vezes. Não consegue estar quieto.

Normalmente levantar-me-ia mais, mas achei que depois não se ouvia no gravador. Fumar: quando o BPSM foi vendido voltei a fumar! Não fumava há quatro anos. Só me libertei disso há dois anos. Seria um pouco ridículo de duas em duas horas descer o elevador e ir fumar à rua. Não daria um bom exemplo de produtividade aos meus colaboradores. Deixei.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

Atravessar o Canal da Mancha de Comboio

07.02.14

Gare du Nord. Eu nunca tinha chegado à Gare du Nord. Mas conhecia-a de me sentar com Kees Popinga a ver passar os comboios. Kees Popinga, genial invenção de Simenon. O exemplar pai de família, (do tipo que garante um bom fogão de sala à mulher e aos filhos), e que é também assassino. Não estou certa de que o personagem desembarcasse na Gare du Nord, mesmo que o veja a deambular nas imediações de Saint-Denis. Mas isso não afecta a minha devoção pela Gare du Nord como espaço mítico.

Kees Popinga (digo-o ainda de cor, a anos luz da leitura do livro) partia da Holanda em fuga. E em busca de um fragmento de felicidade. Eu vinha de Londres. Podia seguir para a Holanda. Mas fiquei em Paris. Por mais felizes que sejam os dias na Holanda, Paris é Paris; ou, como dizia o Bogart à Ingrid ou a Ingrid ao Bogart, we’ll always have Paris.

Quando Simenon escreveu o romance, estava-se em 1938. Não podia então imaginar que um dia se atravessaria a Mancha de comboio e que a viagem demoraria duas horas e quinze minutos. Repito: duas horas e quinze minutos. Do centro de Londres ao centro de Paris. O tempo de tomar dois cafés com um pingo de leite, ler o Daily Telegraph e assistir ao dia nascer.

Ainda não eram dez quando cheguei a Paris – hora local, mais uma do que em Londres. Manhã demasiado fria para ser verdade. A viagem era substancialmente mais barata às seis e meia da manhã. E permitia-me chegar a Paris a tempo de comer uma omolette meia crua e tomar um café au lait como deve ser. Vários, aliás. Não me ocorre nada melhor que sair de casa de madrugada para estar em Paris daí a pouco a tomar o pequeno almoço… Mas se posso dedicar-me a estes delírios românticos, desorbitar-me da esfera da realidade e pensar nas páginas do Inspector Maigret, os que viajavam comigo pareciam compenetrados nas suas tarefas. Tinham a expressão de quem exige da vida prontidão, eficiência, velocidade. “Porque é que usou o comboio”, perguntei a uma mulher bonita? “Porque estava com pressa”, respondeu ela.

A rapidez talvez seja a razão principal que leva milhares de viajantes a preferir o Eurostar. A empresa apresentou recentemente um novo pacote de destinos, encurtou a duração das viagens e transferiu-se para a estação de St. Pancras. Goodbye Waterloo, Hello St. Pancras – lia-se por toda a cidade, em cartazes afixados nos metros, em páginas inteiras de jornal. Em Paris, um anúncio deitava Napoleão no divã e incentivava-o a esquecer a batalha fatale

A viagem tem zero de glamour. Se estiver inspirada, posso fazer de conta que estou com o Cary Grant e a Eva Marie Saint no North by Nothrwest, do Hitchcock. Mas a verdade é que um bilhete standard dá direito a uns lugares pindéricos. As carruagens de segunda classe da CP são melhores… Mas não tem o mesmo sainete ir de Lisboa ao Porto. Além de que demora mais tempo.

É certo que a viagem já se faz há algum tempo. Mas não em duas horas e um quarto. Para Bruxelas, é uma hora e 51 minutos. Antuérpia, Bruges, Marselha ou Estrasburgo estão também disponíveis – faz-se escala em Paris ou em Bruxelas. Por causa das paranóias de segurança, e da distância a que ficam os aeroportos, viajar de avião passou a consumir demasiado tempo. E o velho e querido comboio, anacronismo do século XIX, voltou a afirmar-se como meio de transporte preferencial.

Um exemplo: sempre que apanho um avião para Lisboa, saio de casa três horas antes de o voo levantar. Apesar de morar numa zona central, preciso de 30 minutos de metro para chegar à estação de Victoria. Aí, apanho o Gatwick Express que me leva em meia hora para o aeroporto. Parte de 15 em 15 minutos. Custa 25 euros.

Houve um tempo em que chegar com uma hora de antecedência era mais do que suficiente para qualquer companhia. Hoje, passar no controle de passaporte, provar que não somos perigosos terroristas, descalçar as botas ou as Birkenstock (aconteceu-me no Verão…), radiografar malas, separar computador, chaves, moedas, despir casaco, olhar para as meias puídas do vizinho…, além de demorar um tempo infinito, exaspera a paciência de um santo. Uma hora e meia passa a correr.

Se o aeroporto for Heathrow, o processo é encurtado – o chegar lá, entendamo-nos. O Heathrow Express demora metade do tempo, e se o trânsito não estiver caótico e a carteira não conhecer restrições, o táxi é uma opção. Pode poupar-se meia hora!, nada mau. (Nem sequer me refiro a Luton ou Stansted, aeroportos que servem sobretudo as companhias low cost: ficam no fim do mundo e só o comboio que dá acesso a cada um deles demora, na prática, uma hora. Mais os 40 minutos de metro para chegar a Liverpool Street, mais a hora e meia no aeroporto…).

Ou seja, posso demorar mais tempo de minha casa até ao avião do que de minha casa a Paris. Do escritório, do hotel, mais a sul ou mais a norte, a variação não é expressiva.

Falta falar dos custos: o bilhete mais barato custa 59 libras. À volta de 90 euros. Ida e volta. As classes “intermédia” e executiva custam o mesmo que um vulgar bilhete de avião. Mas, como nos aviões, comprar em cima da hora representa um acréscimo significativo na factura. Em todo o caso, se somarmos as várias parcelas, o comboio parece sempre uma opção mais razoável. Como me dizia Aldina, uma cabeleireira portuguesa, da segunda geração, com o namorado em Londres, “fica mais fácil de comboio: cada 15 dias vou eu vê-lo a Londres ou vem ele ver-me a Paris”.

Aldina já usava o Eurostar antes da mudança de Waterloo para St. Pancras. Quando chega a Londres, a estação parece-lhe prodigiosa. Imensa, elegante. O maior champagne bar do mundo. O tijolo que confere singularidade. A ideia de que 20 000 pessoas passam por ali diariamente. O apito que anuncia a partida.

São seis da manhã quando chego a St Pancras para fazer o check in. A equipa que acolhe é maioritariamente francesa e é bom ouvi-los em inglês e antecipar os ohh-lala dos próximos dias. Bonjour, aqui está o meu bilhete de identidade, merci e pode passar. Está mais frio do que devia estar, não é verdade? A sala cheira a novo, como se as obras tivessem acabado na véspera. Mas a Rainha já ali fizera um discurso uma semana antes. St. Pancras precisa apenas de ser vivida. E que escritores e cineastas e pessoas a encham com as suas tramas. Penso nos encontros e desencontros que se desenham a partir daquele cais de embarque… Um dia, eu hei-de sentar-me em St. Pancras a ver passar os comboios.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

 

 

 

André Carrilho

07.02.14

Começamos por onde? Por Peter O’Toole, esguio, fleumático, de beleza imaculada? Por Diana, a princesa de olhos marejados de azul que o povo amou na vida e na morte? Por Picasso, de mãos sobre a nuca, poderosas, e os olhos, como faróis, magnéticos? Ou pela Rainha Vitória, de perfil adunco e vestido de seda ondulante? É claro que também podemos começar por Sócrates, atlético, de maxilar proeminente e corte de cabelo irrepreensível. Começamos pelo actor inglês, com que se estreou nas páginas do Independent on Sunday, ou pelo primeiro ministro português, recentemente publicado no Diário de Notícias?

Comecemos pelo seu retrato, traçado em palavras simples. «Sou ilustrador. Em pequeno vivia na angústia de saber o que podia ser... Porque quando dizia que queria desenhar, respondiam-me que isso não era profissão». Se a preferência eram as artes visuais, ele podia sair à família e enveredar pela arquitectura, ou ser pintor, ou ser artista. Mas ser caricaturista, prometia uma vida incerta. De qualquer modo, era já isso que ele fazia nos dias longínquos da infância, e na adolescência, num ano determinante, em Macau.

Tinha dezassete anos e era «o gajo que desenha». Estudava à noite e passava os dias a olhar, a experimentar, a captar influências. A definir a sua identidade.

«Começa-se sempre por copiar os mestres. O António desenhava com lápis, o Vasco com tinta, o Cid com aguarela. E agora, como é que eu faço? Os cabelos, de textura mais fluída, comecei a fazê-los a lápis, a cara, a tinta. O computador ajudou-me a desenvolver um estilo próprio. Não sou imediatista. Tenho de estar sozinho em casa e saber que posso falhar. O computador acelera esse processo e permite combinar coisas improváveis».

Falhar, falhar sempre, falhar cada vez melhor – escrevia Samuel Becket. André Carrilho interpreta literalmente a sentença do escritor irlandês e confessa, humilde, que o erro é fundamental. Falamos a meio da manhã, sob a luz da Primavera. Ele é jovem e está seguro de não poder prescindir do erro; e isto parece augurar o melhor dos futuros. Sobretudo porque esta humildade não surge como exercício retórico. «Falo de espalhanços à séria... Quando estou muito nervoso, cometo os maiores erros!». Peço exemplos, mais ou menos incrédula.

«O “Independente” pediu-me um portfolio de alguns políticos, entre eles o Guterres. Apliquei-me, fi-los com afinco. Era o meu primeiro trabalho profissional para um jornal de referência. E o Jorge Silva (designer) disse que estava tudo uma porcaria! Foi um balde de água fria. Mas só assim é que se aprende. Nao se pode estar num ambiente muito seguro».

Foi pela mão do mesmo Jorge Silva, ainda que inviesadamente, que transitou do Independente para o Independent, um dos maiores jornais ingleses. Recapitulando, André Carrilho já trabalhava para o Público quando Jorge Silva mandou o seu portfolio para a Society for News Design – era um conjunto de ilustrações de figuras do jazz, entre elas uma inesquecível Billie Holiday, de expressão dolorosa e gardénia no cabelo. O prémio neste prestigiado concurso abriu-lhe portas extraordinárias. Mesmo assim, quando se tratou de ir à América receber o galardão, não pôde ir _ «Era preciso pagar 400 dólares para participar nas conferências, mesmo sendo um dos premiados...». O amigo-tutor-designer-Silva depositou, então, uma amostra do seu trabalho numa fila imensa que conduzia ao New York Times. Três meses depois, este jornal americano, que é, também, uma das maiores referênciais no mundo da ilustração, mandou-lhe um email a requisitar os seus serviços. Foi ainda com base nesta amostra que o Independent o contratou para fazer as capas da sua edição de domingo. A estreia deu-se com Peter O’Toole. Fê-lo durante dois anos, todas as semanas. André Carrilho tinha 27 anos.  

Uma caricatura começa por onde? «Se alguém pergunta, “quem é este gajo?”, significa que não está bem feita. É claro que me baseio na semelhança física. Mas depois extrapolo para expressões faciais, maneiras de estar, gestos, informo-me sobre vida e obra. Uma fotografia de passe não me diz nada sobre a pessoa.».

Tudo entra, então. E ainda que o seu estilo, aquilo a que podemos chamar identidade criativa, seja vincada e imediatamente reconhecível, ele fala em elasticidade. Teve de aprender a fazer as perguntas certas, interpretar ou mesmo descodificar as pretensões do cliente, perceber se se quer um tom de homenagem ou uma abordagem corrosiva, se os traços devem ser exagerados ou mais próximos do retrato. O estímulo é a encomenda, e esta obedece a critérios rigorosos: é para uma publicação específica, para um público alvo específico, a pedido de um editor específico, para um texto e uma página de design específicos. Os aspectos técnicos, como ser a cores ou as dimensões, não podem ser descurados e desfasados do processo criativo.

Tem uma vida plácida, em Lisboa. Em Portugal, trabalha em exclusivo para o Diário de Notícias. Experimentou viver alguns meses em Londres e em Nova Iorque. «O mito de Nova Iorque... Num país tão grande, é normal trabalhar por email sem chegar a conhecer a pessoa... Então, prefiro viver no meu país. A qualidade de vida é muito melhor».

É verdade que não foi preciso viver na América dos sonhos para ser publicado na Vanity Fair... Foi a ele que pediram uma caricatura do Proust a propósito, justamente, do Proust Questionnaire. Mas André Carrilho tem apenas 31 anos!, o que pode desejar? Novamente a resposta simples, rente às coisas de todos os dias: «Farto-me de fazer a mesma coisa, de fazer desenhos da mesma maneira! A caricatura é meu ganha-pão. Mas agora que tenho algum crédito, espero voltar à BD, trabalhar numa curta metragem de animação e fazer um livro para crianças para a Random House». Nada mau.

 

Publicado originalmente na revista das Selecções do Reader's Digest em 2006