Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

30 anos de O que Diz Molero

13.02.14

E então Molero notou que é no “oásis pantanoso da infância” que se deve procurar. Ou no “sotão da infância”, que vem a ser o mesmo lugar. “Se não encontrar um gato sarnento, encontra-se outra coisa qualquer”. Uma insignificância qualquer, polida pelo tempo, reinventada pela memória. Uma insignificância que atribua sentido a isto que aqui andamos a fazer. “Do que as pessoas são capazes para iludir a ausência de um sentido para a vida, para escaparem à miséria...”. Será triste descobrir que “todas as pessoas são mais ou menos infelizes, mas os artistas são infelizes de outra maneira, talvez de uma maneira dramaticamente infeliz”.

Dinis Machado foi feliz? Fala o próprio, pelo próprio, e não através de Molero: “Integrei na minha vida o absurdo que a vida a certa altura me pareceu que era. Pensei, quando estiver a envelhecer, tiver doenças, quando a vida se tornar insuportável, quando me chatearem muito, antecipo-me ao meu inimigo. Implica, de facto, uma hipótese de suicídio, nunca a recusei. Mas entretanto criei umas amarras, criei amarras de afecto muito fortes, (para mim são mais importantes as pessoas que amo que eu próprio), e encontro um certo sentido da vida”.

Molero procurava a sua “inocência perdida”, estava mesmo disposto a “dar um ano de ordenado por um momento da sua inocência”, inventa em epígrafe. E Dinis Machado tamborila os dedos na madeira, puxa uma fumaça, confunde-se com os seus personagens, regressa com eles a um lugar onde foi feliz.

O que é “O que diz Molero”, livro mítico, inclassificável, onde se escreve que o “coração é bússola doida”? Bastaria a já celebérrima cena de pancadaria, com os “camones” de impoluta farda branca, girls, we want girls, os Vai ou Racha, bando feérico do qual fazem parte Pé de Cabra (passatempo favorito: dar carolos nos mais miúdos para enrijar a moleirinha), ou Peito Rente (que dizia por tudo e por nada “é rachmaninófico”),  Ângelo, “de calça creme bem vincada, que tocava na harmónica tatatataritata, acabava e dizia finish”; bastaria este “maior fogo de artifício de que há memória em matéria de pancadaria” para “O que diz Molero” entrar para a história das letras portuguesas do século XX.

O que diz Dinis: “Quando fiz o Molero, a Marília [sua primeira mulher, entretanto falecida] foi a primeira que ouviu. Depois chamei os meus amigos lá a casa, os sete, e fiz a leitura do Molero. Ó pá, esses somos nós, mas como é que tu conseguiste fazer uma coisa tão nossa? Identificaram-se completamente”. Molero c’est moi, “tudo o que criamos é apenas o que somos”, escreve a páginas 20.

Era uma geração de quem, retrospectivamente, se pode dizer que viveu uma felicidade dourada. Inventava a alegria, a comicidade, como fuga e arma essencial para as situações trágicas que a vida nos traz. Uma malta que alugava livros na Barateira, como hoje se alugam dvd’s nos clubes de bairro. Que recitavam poemas uns aos outros no café. Gente de um tempo que deixou de existir. O livro é o testemunho, angustiado-existencialista, dessa geografia e de certa arquitectura que deixou de se praticar.

Quem é este Rapaz? Dinis Machado usou, como recurso narrativo, Mister DeLuxe e Austin, “inspectores” que escrutinam a vida de um rapaz. Molero é aquele que lhes dá acesso às “idiossincrasias desse sujeito”, autor do “relatório” que permite reconstituir a sua vida, as suas deambulações. O livro começa pela infância, porque deve começar-se pelo princípio: “Teve uma infância estranha, disse Austin. Em última análise, todas as infâncias o são, disse Mister DeLuxe”.

Da infância do Rapaz, nota Molero, escreve Machado, faz parte uma galeria de personagens inadjectivável, mas caleidoscópica de certeza! O Pai, que jogava bowling com garrafas vazias, depois de as beber. La petite Mireille, que se dava silenciosamente no chão. O Tio Napolitano, que tentava acertar no escarrador cuspindo a alguns metros de distância, e errava quase sempre (“É como o destino do género humano: quase nunca acertar”). Leduc, que suou 15 anos para conseguir um Cristo perfeito e acabou numa cadeira de rodas. Zuca, o “adolescente azougado” que fazia “exóticas masturbações, com arames na uretra e não sei que mais”. A Tia, que chalou e lhe deu um aparelho para os dentes que só usavam os copinhos de leite. Ou a Mãe, que um diz pôs a mão no rosto do homem que tinha o Rato Mickey tatuado no peito.

Passam todos com “uma rapidez que já está”, página após página, e gostamos tanto deles que apetece que passem de novo, “ao ralenti”. Conhecêmo-los ao mesmo tempo que acompanhamos o Rapaz na busca da “última fronteira”, da “palavra-resumo”, da “palavra-origem”. Da essência filosofal. Embarcamos com ele na viagem mais fundante das nossas vidas. Vamos à Pensylvânia por causa do som da palavra, recuperamos Dostoievski e Teixeira de Pascoaes, atravessamos o deserto do Sarah em cima de não sei quantos camelos. Chegados à última página, percorrido todo o espólio do Rapaz, “que sabemos nós? Nada de nada”. Talvez o Rapaz seja alguém como nós. Mas não fomos nós que inventámos a palavra “iglantónico”, nem tivemos uma vida com essa medida!  

 

“O que diz Molero” apareceu em 77 e causou espanto na “literatura encasacada” de então. Há 30 anos, Dinis Machado deu a conhecer quem era. Nuno Artur Silva, que reeditou o Molero nos anos 90, ao fazer a adaptação do texto para teatro, perguntou-lhe quanto tempo demorou a escrever este livro. Ele respondeu: talvez a vida toda. Mas já tinha escrito outros, na verdade. A história é a seguinte: meses antes de nascer a sua única filha, Rita, Dinis Machado precisava de dinheiro. O seu editor da altura propôs-lhe comprar três policiais, assinados com nome americano, e entregues, os três, no espaço de um ano. Foi assim que em 68 nasceu Dennis McShade.

“Os romances policiais eram um bocado subvertores; a linguagem procurava ser americana, mas muito cortada por paródias europeias. Imagine um tipo, no mercado do crime americano, implacável, que tem cultura! A incongruência dos romances policiais, é que o tipo fala aos outros do mundo do crime como se estivesse num plano superior, «Pois o Rimbaud também pensava assim»; o outro gajo sabe lá quem é o Rimbaud, o que é que isso interessa para a conversa!. Este lado gozão dos romances policiais era também um apetrechamento para uma possível escrita minha. Estava a fazer um curso de aprendizagem da minha própria escrita para escrever um dia um livro”. O “Molero”.  

Dinis Machado nasceu e viveu a vida toda em Lisboa. Nunca foi à América, mesmo que trate Raymond Chandler por tu, e ame Rita Hayword, tão bela e tão perversa. Foi jornalista desportivo, dirigiu uma revista chamada Tintim que fez de meninos de uma geração amantes de banda desenhada. Na escola, gostava de Português.

“Sempre fui muito inventivo nas redacções. Não sei se escrevia bem ou mal, mas os professores achavam que devia ir para Letras, e eu nunca fui. Também Geografia, liguei sempre a Geografia a um certo sentido de diáspora. Sempre gostei muito dos lugares imaginários do cinema e dos livros, gostei mais deles... Nunca senti necessidade que fossem reais. 

Andei na Escola Industrial, onde perdi por faltas por causa do cinema. Na Escola Comercial perdi também por faltas por causa do futebol à porta da escola. Enquanto houvesse luz!, e quando não houvesse luz havia a luz dos candeeiros! Fiz até ao terceiro ano. Jogava na rua com uns sapatos velhos que a minha mãe me dava. Os polícias corriam atrás de mim, eu corria muito bem, fugia muito. Estafava-me a jogar à bola, chegava a casa e a minha mãe batia-me, dava-me palmadas porque eu não almoçava, passava a vida no futebol ou no cinema. A minha vida foi muito isso. Já nos jornais, tinha uma grupo noctívago, íamos para a Brasileira». Nessa altura dava-se com o Roussado Pinto, Ross Pyn para os amigos e para os livros, e durante um mês, escreveram sozinhos um jornal! Literalmente. Da primeira à última página. Mas este é só um dos episódios dessa época irreal.

“Fui para as Caixas de Previdência, emprego arranjado pela minha tia Edite que tinha uma certa relação com os poderes instituídos. Conheci lá o Eugénio de Andrade e o Jaime Cortesão Casimiro, que perceberam que eu tinha algum jeito para as palavras e andaram três anos a leccionar-me literatura. Não foram só as conversas, e verem os meus poemas e emendarem-nos; cada um procurava dar-me linhas de orientação que lhes eram adstritas. O Eugénio depois de ler um poema meu disse assim: «Ó Machado, você sem o Pessoa não vai lá, ninguém vai lá». Com 18 anos, fui ler o Pessoa todo para a Biblioteca Municipal. Trouxe-o para a mesa do café, foi uma festa com o Pessoa, descobrimos imensa coisa com o Pessoa.  

Já na idade adulta comecei a entender-me com mensagens literárias e cinematográficas onde ia recolhendo informação, percebendo melhor as coisas, mas onde ia morrendo a inocência. Quando dei por mim, já estava com uma carga de referências tão grande, de coisas tão complexas... A partir dessa altura, só há um caminho a seguir: ir continuando. Quando uma pessoa já sabe, não pode fingir que não sabe, ou então engana-se. Mas ao saber que sabe, e cada vez sabe menos, (o problema é sempre o mesmo), a tal nostalgia da inocência aparece”.

Dinis Machado disse todas estas coisas há sete anos, numa tarde de calor, a fumar cigarrilhas. Como num filme americano, daqueles de que gosta muito, com a persiana corrida e uma luz a entrar por entre os espaços em branco. Continua a fumar cigarrilhas. Às vezes vai-se um bocado abaixo das canetas. Mas anda agora muito bem disposto!

“Ainda preservo alguma inocência organizada através do intelecto. Uma inocência que já perdi e que quero recuperar, não sei como. Recuperando a pouco e pouco, nestas tentativas de ser sincero, de ser outra vez o melhor que fui. Um florescimento permanente, uma primavera que foge todos os dias. É estranho como envelhecendo, perdemos tudo”.

Corre nele, desde sempre, uma “melancolia um pouco espessa”. Na próxima quarta feira, dia que anuncia um florescimento permanente, faz 77 anos.

 

Pelos trinta anos da edição original de «O que diz Molero», são lançadas no mercado duas novas edições da obra de Dinis Machado. Uma, ilustrada por António Jorge Gonçalves, que já tinha assinado os figurinos e cenário da peça homónima de 94 (Bertrand Editora); e outra pelo Círculo de Leitores. O Círculo, a pretexto deste número redondo, faz sair ao longo do ano a obra integral de Machado, inclusive os policiais, há muito esgotados, assinados com o pseudónimo Dennis McShade.

A sessão de lançamento ocorre quarta feira, 21 de Março, dia de aniversário do autor. António Mega Ferreira, António Feio, José Pedro Gomes, Ricardo Araújo Pereira e Rui Cardoso Martins lêem excertos do Molero e fazem comentários à obra. Nuno Artur Silva faz a moderação. Às 18h 30, Teatro Tivoli, em Lisboa.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007