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Anabela Mota Ribeiro

Rui Vilar

16.02.14

Este homem podia ter sido juiz, queria ter sido arquitecto, gosta de jardins. Fez carreira na banca, foi vice-governador do Banco de Portugal, ministro da Economia dos II e III Governos Provisórios. Fez a Europália, a Culturgest, foi fundador da SEDES. É o presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É um homem a quem fica bem o verbo fazer. Tem um currículo extenso, que permite perceber, linha a linha, a relação antiga com o poder. É um líder determinado e discreto. É um homem tímido e amável. Nasceu no Porto em 1939. É casado, tem filhos e netos.

 

 

Quem é que o trata por Emílio Rui?

Tratam-me por Emílio Rui as pessoas que me conhecem do Porto e de Coimbra. Passei a ser conhecido por Rui Vilar uns anos depois de estar em Lisboa (mudei-me no princípio de 66, depois de fazer o serviço militar em África). Não fui eu que mudei de nome, foram as pessoas que resolveram simplificar.

 

Rui Vilar diz respeito a um novo período na sua vida. Mas a fase anterior, nortenha, é uma vida por si só.

Nasci no Porto, onde vivi até ao fim do liceu. Depois fui para Coimbra porque não havia Direito no Porto. Quando acabei o curso, dei um grande desgosto aos meus pais, que foram ao rasgar da batina; disse: «Se calhar, o que gostava, era de ser arquitecto». Ainda hoje me arrependo disso. Não queria de maneira nenhuma entristecê-los.

 

Mas já o sabia?

Foi uma coisa que me ocorreu. O pós-exame é sempre um período de perda de euforia. Pensei: «E agora?». A guerra em África começou nesse ano. Ainda me candidatei ao Ministério Público, mas não fui colocado porque tive má informação da PIDE. Comecei a fazer o estágio de advocacia, que acabei já na tropa, nos meses em que aguardava a mobilização. Formei-me em Outubro de 61, fui para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém em Julho de 62 e só saí da tropa em Novembro de 65. Em cima dos cinco anos da universidade, foram mais três anos e meio! É outra licenciatura!

 

É uma vida interrompida. E com o medo a pairar...

Reflecti muito ponderadamente o que queria fazer. Pus a hipótese de sair. Tinha lido o “Damnés de la Terre”, do Frantz Fanon, o «L’Express», cantava-se o «Deserteur», sobre a guerra da Argélia...

 

Não usou a palavra «desertar», usou sair.

Tomei a decisão muito conscientemente porque não quis ficar com a dúvida: se não ia para África por exercício de convicção ou porque queria escapar às dificuldades que isso significava. Embora fosse duro, embora fosse muito tempo, foi uma experiência humana que só se pode ter naquelas circunstâncias.

 

Queria ficar ciente de que não era cobarde, que não fugia a situações que o expusessem ao limite?
Não quis ter a possibilidade de ter essa dúvida.

 

Como viveu a agonia dos meses de espera, entre Outubro e Julho?

Não foi bem agonia. Eu já sabia que tinha que ir, toda a gente sabia.

 

Ainda que fosse o corrente, não irrelevo a dureza, o medo, a expectativa.

Quando se tem 22, 23 anos, a atitude é muito diferente. E sobretudo, tinha uma consciência muito clara do que significava a guerra no Ultramar. Como disse, vivi em Coimbra a questão da guerra da Argélia numa altura em que a influência cultural francesa era predominante.

 

Cita Camus: «Acredito na justiça, mas defendo a minha mãe antes da justiça».

O Albert Camus foi um dos autores que fizeram parte da minha formação. Esse era o drama que Camus viveu como francês nascido na Argélia, perante aquele conflito e o problema da violência como instrumento de libertação.

 

Há nesta frase uma dilaceração entre um domínio privado e um domínio comunitário. A qual atender primeiro? Curiosamente, o mesmo Camus começa «O Estrangeiro» com «Aujourd hui, maman est morte»...
Provavelmente pela sua origem e pela conflitualidade que esta origem lhe trazia - quase uma marca genética -, Camus exprimiu muito bem estas contradições. Vale a pena relê- lo hoje, porque vivemos uma nova era de profundas perplexidades. Celebramos décadas sobre a Declaração dos Direitos do Homem confrontados com o fenómeno de irrupção do terrorismo. Não é um terrorismo de libertação nacional ou de afirmação do direito à diferença. Pode sempre questionar-se se o terrorismo, em termos de afirmação nacional ou de direito à diferença, é um processo legítimo. Acho que não é. O terrorismo actual é um terrorismo nihilista, de destruição pela destruição, é uma fonte de enorme perplexidade para uma humanidade que ultrapassou o Holocausto, ultrapassou os gulags e está hoje perante um fenómeno de uma enorme dimensão, que surge como um absurdo total.

 

Pôde imaginar, nesses anos de formação, que rapidamente chegaríamos a este ponto? Foi um processo voraz, veloz.
Era muito difícil imaginar. Na minha geração tínhamos a convicção de que podíamos ajudar a melhorar o mundo. A seguir às eleições de 69, fui um dos fundadores da SEDES; naquela associação entendíamos que podíamos contribuir para ajudar a mudar o nosso país e a vencer a situação de bloqueio em que o país estava – com uma guerra em África para a qual a solução não era militar. Daí que tivéssemos tido uma intervenção cívica ligada à ideia do desenvolvimento, à ideia do planeamento, à intervenção comunitária.

 

Implicavam as pessoas na vida do país, no curso das suas vidas.

Uma sociedade que fosse capaz de reflectir sobre o futuro era capaz de entender melhor onde é que estavam os bloqueios e agir sobre eles. Havia uma enorme esperança. Recordo com alguma nostalgia esse sentimento de confiança na acção solidária, na capacidade de convencimento pelo debate, na capacidade de reflectir sobre o futuro e de, assim, ajudar a construí-lo. Hoje as ideias do planeamento estão quase fora de moda e admite-se que as soluções se podem encontrar pelo permanente equilíbrio dos contraditórios.

 

Portugal não é pródigo no planeamento...

Eu continuo a acreditar que ter objectivos permite aplicar muito melhor as capacidades disponíveis. Mesmo que sejam objectivos do tipo estrela polar: um norte que nunca se atinge, mas que ajuda a definir um caminho que vale a pena.

 

O mais espantoso é que falamos disto como se fosse um tempo longínquo! A verdade é que, volvidos apenas 30 anos, a apatia tomou conta da sociedade.
Nos cem anos do século XX vivemos mais do que nos mil anos anteriores. Toda a história da humanidade é feita de situações conflituais e de manhãs carregadas de esperança. O filósofo judeu, Moisés Maimonides, disse que uma das condenações do homem era viver em estado de perplexidade. Escreveu um livro que se chama «Guia para os perplexos».

 

Mas não é um castigo, a perplexidade! Não podemos prescindir do espanto.

A surpresa é sempre boa, a perplexidade nem sempre será. Sermos capazes de ser surpreendidos, é um sinal de estarmos vivos.

 

O seu começo de vida foi algo titubeante. Depois de se ter formado em Direito disse que, afinal, gostaria era de ter sido arquitecto...
Não foi titubeante. Eu sempre fui determinado. E sempre tive outras actividades além das actividades profissionais.

 

Aliás, o seu verbo é o fazer. Quando se olha para o seu currículo, impressiona que esteja sempre envolvido em mil coisas.
Tive muita sorte, surgiram-me oportunidades fantásticas. Isso permitiu-me viver muitas situações, fazer muitas coisas.

 

Concorda com Ortega y Gasset quando este diz que «O homem é aquilo que é e as circunstâncias»?
As circunstâncias são importantíssimas. A uma pessoa isolada, por mais apta que seja, escapam as oportunidades. Falta-lhe a circunstância, o desafio.

 

No seu percurso, o encontro com o Vasco Vieira de Almeida foi fundamental?

Foi um acaso. O Vasco Vieira de Almeida andava à procura de uma pessoa para a área internacional do Banco Português do Atlântico, e soube que eu falava francês e inglês. Isso fez-me passar da função pública para um grande banco, onde aprendi a profissão que considero ser a minha...

 

Ser gestor?

Ser gestor. E que me abriu também ao mundo das empresas, que é uma realidade muito diferente da administração pública. Tenho a experiência dos grandes sistemas organizativos_ o militar, para começar. Na gestão das empresas importa-se muita coisa do sistema de organização militar.

 

Qual é a matriz organizativa?

Os grandes princípios da organização militar são, primeiro, a hierarquia. Há um sistema de comando: sabe-se o que se deve fazer e perante quem se responde. Em segundo lugar, duas valências muito importantes: a capacidade de mandar, de tomar decisões, e dispor da informação. Na organização militar há uma diferença entre o Estado Maior que tem toda a informação, selecciona e prepara as decisões, e quem toma as decisões e assume a responsabilidade pela sua execução. Isto corresponde muito às noções de staff e line que foram depois usadas na gestão empresarial. Tive a experiência da organização militar, da organização da empresa privada, da administração pública e a experiência política. Foi extremamente enriquecedor, pude reflectir sobre todas elas.

 

A mais isenta é a militar e a mais promíscua é a política?

Eu não usaria esses adjectivos. Os objectivos são diferentes, as metodologias e as matrizes são diferentes. A única organização de que não tive experiência, e que é fundamental, é a da igreja.

 

A cabeça de um católico é substancialmente diferente da sua, que não é católico? No tempo da SEDES fazia a ponte entre a ala dos católicos progressistas e a dos não-católicos, (aqui relativamente minoritária).
Há uma diferença: um católico tem fé e eu não. É uma diferença perante a vida.

 

Explique-me essa diferença.

Posso explicar a minha atitude. Nunca tive a experiência da fé, não tive educação religiosa. A minha mãe era católica, o meu pai não. A minha irmã e eu fomos baptizados, mas não fomos à catequese. Quando andava em Coimbra resolvi ler e discutir a questão da religião. Para me informar e poder decidir se era o meu caminho. Não foi. Mas respeito a experiência da fé e considero que as pessoas que a têm, têm alguma coisa que não tenho. Acredito na capacidade que a humanidade tem de permanentemente se recriar. Somos aquilo que foram as gerações que nos antecederam e as gerações que virão a seguir hão-de receber de nós um testemunho. Pertencemos a uma enorme cadeia e o nosso papel no mundo, na vida, na relação com os outros não pode cingir-se ao período precário que é uma vida; temos de poder legar alguma coisa.

 

Então, esperança no futuro e qualidade da herança são vectores essenciais em si?

Acho que dão sentido à vida.

 

Os católicos alimentam-se na convicção de que não estão sozinhos, e fundam nisto um sentido. Essa é a grande interrogação: qual é o sentido.
Para mim, o sentido? Sou devedor àqueles que me antecederam e sou devedor perante aqueles que me sucederão. Devo contribuir com aquilo que faço, não só para um bem imediato, mas para um bem que é um valor permanente e que, de certa maneira, pré- existiu e continuará a existir.

 

Daí a sua preocupação com as questões ambientais? Entronca nisso?
Talvez. Mas também na minha preocupação com a criatividade, com a inovação. Seja no domínio da descoberta científica, seja no domínio da criatividade artística.

 

O passo à frente faz-se com isso?

É assim que se avança.

 

Falei das preocupações ambientais porque é muito curioso que a água exerça quase um feitiço sobre si.
A água tem um valor simbólico fortíssimo. Sendo um bem permanente, é um dos elementos que mais atropelos está a sofrer. A brutalidade que é não preservar, ou não ajudar a preservar, esse elemento onde nasceu a vida e que é essencial à vida...

 

Fala da água como espelho da contradição e da tensão em que vivemos. A água pode servir, também, para nos reflectirmos nela. Se cruzarmos esta ideia com a famosa frase de Heraclito que diz que o homem não pode entrar duas vezes no mesmo rio, concluímos que não podemos ver-nos da mesma maneira, porque, acompanhando o fluir da corrente, somos outros. Gostava de devolver-lhe o espelho da sua vida, e propor-lhe pensar neste que é hoje e nos outros que já foi e nos outros que poderia ter sido. Quando vem para Lisboa é à procura de...

Muito simplesmente à procura de um emprego. Quando regressei da tropa, era difícil começar uma advocacia visto que não tinha escritório. Precisava de ganhar dinheiro e vim a Lisboa falar com alguns colegas. Nos anos 60 havia mais oportunidades do que há hoje para quem tivesse um curso e com uma nota razoável.

 

Era líquido na sua família que teria uma formação superior?

A minha mãe tinha o curso do conservatório. O meu pai não fez curso superior porque o meu avô morreu cedo e teve de começar a trabalhar. Mas foi muito natural que nós tivéssemos um curso superior.

 

Como era a vossa vida?

Era uma vida da pequena burguesia do Porto, muito normal. O meu pai tinha uma empresa de importação-exportação.

 

De que é que falavam à mesa?

A minha mãe era a pessoa das artes, o meu pai era a pessoa da prática, da determinação. Por causa da empresa, sempre foi muito claro que era essencial falar bem francês e inglês. Quando eu tinha quinze anos, mandou-me sozinho para Inglaterra, para casa de uns amigos, aprender inglês. E além do francês do liceu, fiz o instituto.

 

Foi a primeira vez que saiu de Portugal?

Tinha ido a Espanha. Mas foi a primeira viagem grande. Passei uma semana em Londres a ver todos os museus e três semanas no campo. Fui de avião, mas regressei de comboio e estive uns dias em Paris. Depois vivi em Paris em 73 e nos primeiros meses de 74.

 

Mas eu perguntava de que é que falavam à mesa. O que é forma as pessoas, o que é que as faz serem habitadas por estas expectativas?
Na minha casa conversava-se muito pouco. Havia uma grande economia naquilo que se dizia. Toda a gente lia livros, aquilo que se lia era objecto de informação. Não estarmos a ler um livro seria uma coisa excepcional. Todos liam de tudo. Os Livros do Brasil, onde foi editado o Camus, os autores brasileiros, Lins do Rego,[Jorge] Amado, Erico Veríssimo. Colecção Dois Mundos, com os Hemingway’s. Dos livros do meu avô, o Júlio Verne completo.

 

Foi determinante?

Foi importante. Também havia a obrigação de ser bom aluno, era óbvio que esperavam isso de mim. Tive que ficar distinto na quarta classe, no quadro de honra no liceu, dispensar das orais no segundo, no quinto e no sétimo anos. No sétimo ano fui o único aluno que, em letras, dispensou todas as orais.

 

Era recompensado e reforçado por isso?

Não.

 

A sua vida não teve sobressaltos?

Claro.

 

Tudo isso parece tão regular, harmónico...

Teve os sobressaltos das descobertas. O meu curso do liceu, que ainda hoje se reúne, era um curso de que faziam parte pessoas como o Belmiro de Azevedo (foi meu colega desde o princípio do liceu, depois ele foi para ciências e eu fui para letras).

 

Podia-se lá adivinhar que viria a ser o homem mais rico de Portugal...

Somos amigos. Era inequívoco que o Belmiro tinha já todas as qualidades que veio a revelar: capacidade de trabalho, determinação, inteligência, vontade. Depois tínhamos um colega brilhante que faleceu há meses, o Vasco Airão. Foi sempre o mais culto de todos nós. Havia uma pequena tertúlia em que cada um fazia uma conferência seguida de debate; fiz uma palestra sobre arte contemporânea. Tivemos professores excepcionais. Um deles, o professor de Português, tinha sido companheiro do Fernando Pessoa e do Mário de Sá Carneiro. Havia ainda os adeptos do Camilo e os adeptos do Eça. Foi um período riquíssimo.

 

Saiu de si?

Pois. Foi a adolescência... O primeiro grande sobressalto é a ida para Coimbra, é viver num quarto alugado numa casa de estudantes. Apanhei as eleições de 58, do [Humberto] Delgado. Foi um grande choque, um momento político muito importante no país.

 

O seu envolvimento político foi então diminuto, ainda que, por ele, tenha recebido uma má informação da PIDE. Aquilo em que foi mais activo, foi nas coisas da cultura.

Na altura o envolvimento nas actividades culturais exprimia envolvimento político. No terceiro ano fui director do Círculo de Artes Plásticas, que ainda existe, e trabalhei com o CITAC (que pretendia ser o teatro moderno e inovador; o TEUP representava o teatro clássico). Como pensava que sabia desenhar e pintar, ajudei a fazer cenários e caracterização. No meu quinto ano fui eleito presidente. Fizemos um exercício, que não foi apresentado, a «Descoberta do Novo Mundo», uma peça do Lope de Vega reescrita pelo Morvan Levesque. O primeiro acto é a tomada de Granada pelos reis católicos e a chegada do Cristóvão Colombo à corte a pedir os navios para ir à América. A peça trata do debate entre os que queriam consolidar a conquista e a unificação do reino e os que apoiavam Cristóvão Colombo, (que eram minoritários). Quem decide é a rainha que faz a defesa das descobertas e tem aquela frase magnífica, que ainda sei de cor: «Senhor, afastai do vosso palácio essa conselheira dos maus reis, a prudência. Conquistaste um reino, conquistai outro»; e depois termina: «Para aqueles que só fizerem o possível, haverá no Juízo Final choro e ranger de dentes». A rainha ajoelha-se, diante do rei, e ele diz: «Levantai-vos senhora, vós que falais como um rei».

 

Que bonito.

É.

 

Nunca quis nada com a prudência? Bom, é claro que quis... Toda a sua vida foi um compromisso entre o desejo de aventura de Cristóvão Colombo e a prudência e a aridez da banca...
Eu procuro ser rigoroso. Mas se tivesse sido prudente não tinha feito aquilo que fiz porque aceitei muitos desafios. Por exemplo, aceitei ir para o primeiro governo provisório. E a seguir ao 11 de Março fiquei no desemprego.

 

Isso não é um risco. O que é que é um risco? É aquilo que muda a nossa vida, que nos faz ser diferentes?
Aceitei várias vezes mudar radicalmente de vida, fui para Bruxelas fazer a experiência da Comunidade Europeia.

 

Isso é um desafio, mas, insisto, não é um risco. O que é que se ganha e o que se perde? Só nesta equação podemos medir o risco.
Nunca tive grande dúvida em mudar. As oportunidades surgiram e nunca hesitei muito em fazer mudanças. Se eram riscos ou não, só depois é que soube. Se gostava...

 

Esse é o seu critério, gostar? É imaginar que se vai divertir, que é importante?

Que me vou divertir, não. Que vai ser bom fazer uma coisa diferente.

 

Então qual é o gozo?

O gozo é fazer.

 

É provar a si próprio que consegue fazer?

Ajudei a transformar muito a Caixa Geral de Depósitos, deixei feita a Culturgest, conduzi a Europália em circunstâncias muito difíceis. Não é para provar a mim próprio. É porque gosto muito de fazer. Um pintor que pinta um quadro tem o prazer de pintar. Eu não pinto quadros, mas faço outras coisas.

 

Cria condições para que outros pintem quadros?

Por exemplo.

 

Explique-me em que é que se baseia a sua liderança. Nos projectos em que se envolve, é sempre o líder, ainda que não seja um líder convencional, exuberante, afirmativo.
Acho que sou suficientemente determinado.

 

É o trunfo?

É a determinação, o rigor, o exemplo. Normalmente não mando fazer coisas que não sei fazer. Foi uma coisa que aprendi muito bem nos bancos. Quando entrei para o Banco Português do Atlântico já era chefe de um serviço na função pública e fui parar à agência de Almada, onde passei um mês no balcão a atender os clientes. Depois passei por todos os serviços do banco e quando um dia fui nomeado sub-director, que foi o primeiro degrau, estava em condições de dar uma ordem porque sabia aquilo que mandava fazer. Isto permite avaliar e motivar as pessoas. É muito importante, também, saber aproveitar o que as pessoas que colaboram connosco nos trazem.

 

Numa organização empresarial, a hierarquia é fundada no conhecimento?

É muito fundada na circulação da informação e do conhecimento.

 

No conhecimento que se possui e no reconhecimento disso, para cima e para baixo?

Nas organizações, sobretudo na área dos serviços, em que a relação é feita por pessoas, com pessoas, ser capaz de compreender e de ter uma atitude de aprendizagem permanente é muito importante. É importante que os canais de informação funcionem bem e que as pessoas tenham uma atitude de abertura em relação ao conhecimento. Os americanos chamam-lhe learning organisation. Eu sempre contrariei a ideia de que a informação é Poder.

 

Ah, sim?

Acho que Poder é decidir. A informação deve ser partilhada. Se se decide sem informação corre-se o risco de decidir mal; mas onde está verdadeiramente o poder é na capacidade de decidir, e não no guardar a informação. A informação é a única coisa que se pode dar sem se perder. Uma organização informada é sempre mais eficaz do que uma organização onde uma pessoa detém a informação para salvar o seu poder, (ou o seu pseudo-poder), e os outros não a têm. A política do segredo normalmente não funciona bem.

 

A lógica da política assenta nos mesmos princípios?

Na política é talvez mais importante ainda ser capaz de comunicar e de explicar a mensagem.

 

Por que é que se decide tão pouco e porque é que se decide tão mal em política?

Não há política sem decisão e sem desígnio.

 

Nem que seja a não-decisão, a hesitação...

A não-decisão é sempre a má política.

 

O que tem marcado muitos dos nossos governos tem que ver, precisamente, com uma não-decisão.
Mas essa dificuldade extrema em tomar decisões resulta da dificuldade de apreender o complexo e de, por outro lado, ter consciência de que política é um exercício com valores. A política faz-se para avançar, para ajudar à inovação e à mudança. E não para manter o poder_ essa é a política dos ditadores, dos autocráticos. Uma política democrática antecipa o futuro.

 

O horizonte eleitoral, a impopularidade das medidas que introduzem alterações estruturais na vida das pessoas são os grandes obstáculos à tomada de decisões?

Não se pode evocar a existência de um ciclo eleitoral para não tomar decisões. E o julgamento é negativo para quem não toma decisões. É a Rainha Isabel, a Católica: «Para quem não fizer o impossível, no Juízo Final haverá choro e ranger de dentes»... Os eleitores esperam da política a resolução de problemas.

 

Numa conferência recente referiu-se ao projecto de instalar um casino no Pavilhão do Futuro, no Parque das Nações. Deixou expresso o desejo de que não fosse metaforicamente significativo...
Eu tinha dito antes que os portugueses não têm boa relação com o futuro. Não dedicam muito tempo a pensar no futuro ou a avaliar as consequências das decisões que tomam. E dei dois exemplos. Um fenómeno que nos caiu em cima foi o regresso dos retornados de África. Num ano, a população portuguesa aumentou 7%; mas este problema resolveu-se razoavelmente. Passado pouco tempo, sabendo que íamos entrar na Comunidade Europeia, cuja Política Agrícola Comum implicaria uma redução brutal da população portuguesa na agricultura_ passámos de 23% da população activa na agricultura para 5%_, não tomámos qualquer medida! Andámos sempre a tentar resolver as consequências em vez de ordenar minimamente as causas. Não planeámos a formação profissional, a ocupação do espaço, a integração social e profissional dessas pessoas. Os que deixaram de ter empregos nos campos vieram à procura de trabalho onde pensavam que existia_ nas grandes cidades_, e criaram este fenómeno brutal de barracas, de construções clandestinas, de hortas a torto e direito na nostalgia do campo.

 

Concorda que um dos principais problemas do país é um ordenamento do território desastroso?
É muito chocante ver o espaço e a paisagem desordenados, agredidos. Tem custos enormes. O que temos feito em áreas extensíssimas, é destruir o equilíbrio entre a paisagem natural e a paisagem humanizada, que devia favorecer a qualidade de vida, o bom ambiente, as acessibilidades, tudo isso. Se somar os PDM’s existentes, as áreas urbanas e urbanizáves estão projectadas para um país de trinta milhões de habitantes_ três vezes mais do que temos. É uma irracionalidade!

 

Isto era a propósito da má relação dos portugueses com o futuro.

Fazendo ironia, disse que esperava que não fosse um mau augúrio utilizar o Pavilhão do Futuro para um casino. O casino é o contrário do plano, é o aceitar da sorte e do azar. E não vejo bem que numa área que podia ser o exemplo de vida urbana renovada, se vá introduzir um elemento que só se justifica quando se procura atrair fluxos turísticos.

 

Joga?

Nunca joguei. Gosto de jogar pingue-pongue, e joguei ténis.

 

São jogos de precisão.

E de competição. Jogo de azar nunca!, e não vejo graça nenhuma.

 

Não são as suas ferramentas?

Não.

 

O amor e os afectos são o que mais se aproxima de um jogo de azar. São irracionais e incontroláveis.
A paixão não se controla. O amor é uma arte de todos os dias.

 

[Continuámos a entrevista cerca de quatro semanas depois do primeiro encontro]

 

Lembra-se do que falámos no nosso primeiro encontro?

Lembro-me de uma coisa que disse e com que não concordei. Disse que eu tinha tido um começo titubeante. Não tenho nada essa ideia. Decidi assim que me formei candidatar-me à magistratura; não entrei porque não tive informação favorável da PIDE. Depois fui para a tropa, que não foi decisão minha. Ou melhor, foi decisão minha não fugir. Quando regressei de quase três anos e meio de tropa, tive que começar a trabalhar e vim para Lisboa. Comecei na primeira oportunidade que surgiu, no Gabinete de estudos e planeamento dos transportes.

 

Talvez eu tenha dito titubeante por não me parecer uma coisa deliberada.

As profissões e as carreiras deliberadas... Tenho algumas dúvidas. Aquilo que tinha escolhido era ser magistrado e não pôde ser.

 

A magistratura era a atracção pelo poder? Um poder discreto, mas ainda assim um poder efectivo.
Pela independência. A magistratura era a mais solitária, mas também a mais independente das maneiras de exercer uma função como jurista. O magistrado não depende dos clientes, não depende de ninguém a não ser de si próprio. Isso para mim tinha um valor. Podia ser advogado, juiz, notário, conservador; não pus a hipótese de me candidatar à carreira diplomática visto que teria o mesmo problema que tive quando não fui admitido na magistratura. Não planeei a minha carreira, mas não recusei as oportunidades e desafios, e por isso mudei várias vezes. No fim de 69, o Vasco Vieira de Almeida desafiou-me para ir para o Banco Português Atlântico. Achei interessante experimentar uma empresa. Depois quando o Senhor Bulhosa me desafiou para ir para Paris ajudar a recompor um banco que estava em dificuldades, também achei interessante trabalhar num banco em França. Depois aceitei entrar no primeiro governo provisório...

 

Como é que decide? Pede um dia para pensar?

Decido depressa. Posso não exprimir a decisão no segundo imediato, mas não me lembro de ter pedido tempo para pensar.

 

O que é que pondera?

Pondero fundamentalmente se me atrai ou não a oportunidade.

 

Mas, se é no segundo, é uma coisa quase instintiva...

O instinto, nestas coisas, é fundamental. Depois, exijo aquilo que considero que são as condições para aceitar. Mas o sim e o não é muito claro.

 

As dúvidas são mais no plano pessoal? É mais assertivo, categórico em relação ao que quer e não quer no plano profissional?
Em relação ao que quero e ao que não quero, não tenho muitas dúvidas. Ou então as minhas dúvidas são a escolher uma gravata! Acho que só tenho dúvidas nas coisas triviais.

 

Porque nessas não está empenhado...

Aliás, nunca compro gravatas, oferecem-mas. Não tenho que resolver esse problema.

 

É extraodinário não cristalizar na hesitação. Porque a dúvida é muitas vezes paralisante.
Nunca mais me esqueci quando a minha unidade chegou a Henrique de Carvalho, no Leste de Angola. O brigadeiro Correia Barrento reuniu os oficiais, estávamos no Verão de 63, e disse: «A partir de agora, quem decidir tem dez, quem não decidir chumba, quem decidir bem pode ter uma boa nota». Decidir se queria ou não queria ir para a Comissão Europeia, decidir se queria ou não queria vir para a Fundação Gulbenkian foram coisas em que não hesitei.

 

A primeira escolha, a escolha, está situada no território do instinto.

Não é uma coisa quimicamente pura. Sobretudo quando se é adulto, o instinto representa sedimentos anteriores de conhecimento.

 

Escolhe mal, às vezes?

Nas grandes escolhas, acho que nunca escolhi mal. Prefiro dizer pela positiva: acho que escolhi sempre bem.

 

Nunca tem medo de não estar à altura, de não ser bom naquilo que lhe propõem? Muitas vezes isso também está contido na dúvida.

Nunca tive essa dúvida. Se a tivesse tido, nunca teria aceite [os desafios propostos]. Experimentar é uma coisa que não se me põe.

 

Não estou a questionar as suas capacidades. Estou só a tentar perceber o mecanismo da escolha.
Eu sabia que ia enfrentar problemas na Caixa [Geral de Depósitos], por exemplo, mas aceitei. O meu grande objectivo foi preparar a Caixa para ser uma empresa plenamente concorrencial; mudou-se o estatuto, acabou a garantia do Estado para os depósitos, criou-se o fundo de pensões que, infelizmente, agora, parece que está em causa. Abri 100 balcões sem aumentar o número de empregados, lancei a compra dos bancos em Espanha.

 

Mas tudo isso lhe agrada? Não lhe agrada muito mais, (um gozo íntimo...), ter proposto e avançado com a Culturgest?
Gostei muito. Gostei muito de fazer a Europália_ se calhar, foi a tarefa mais entusiasmante, conseguir pôr de pé aquele festival... Embora o Eduardo Prado Coelho tenha escrito que eu era extremamente severo, era precisa alguma disciplina para que coisas se fizessem em tempo e com a qualidade que queríamos. A Culturgest, foi uma aposta na inovação.

 

Na fotobiografia de António Lobo Antunes assinada por Tereza Coelho, o escritor faz uma elencagem dos acontecimentos significativos da sua vida. E são muito poucos. Isto fez-me pensar naquilo que verdadeiramente tem peso na vida de uma pessoa, na identificação dos nós mais apertados. A sua doença é um desses momentos? Confesso que tive pudor em abordar o assunto no nosso primeiro encontro.

Não tenho nenhum pudor em falar disso, já falei publicamente.

 

Teve medo de morrer? Esse foi um nó que condicionou a sua vida?

Soube que tinha um cancro no dia seguinte a ser eleito presidente da Fundação [Gulbenkian]. Fui eleito no dia 2 de Maio de 2002 e no dia 3 tinha um exame, marcado há muito tempo, que permitiu detectar a doença. Fui operado duas vezes, fui operado em Maio e em Novembro. E fiz quimioterapia entre a primeira e a segunda operação e depois da segunda operação até Abril de 2003. Nunca me senti ir abaixo naquele período. Tive médicos excelentes (um médico assistente excelente, o Dr. Daniel Matos, um grande cirurgião, o Dr. Eduardo Barroso, e um grande oncologista, o Dr. Carlos Carvalho) que me explicaram tudo com grande detalhe e me puseram todas as hipóteses com um enorme rigor.

 

Portanto, pôde encarar de uma maneira muito informada e racional tudo aquilo por que ia passar.
É óbvio que era um risco e que ia ser um grande sofrimento, porque a quimioterapia é uma coisa muito dura. Mas decidi: «Quero ser operado quanto antes». E por isso, tomei a decisão de renunciar à presidência da Fundação, que os meus colegas generosamente não aceitaram. Mas durante a doença tive sempre uma atitude de combate. O período mais difícil foi quando terminou a quimioterapia e os médicos me disseram: «Está bem». Senti uma enorme quebra de energia.

 

Depois do combate?

Depois de ter passado tudo aquilo. Tive que chamar as minhas forças mais distantes e mais ténues para continuar a fazer o meu dia-a-dia, para chegar aqui todos os dias de manhã.

 

Estava exaurido?

E no fundo, tinha recebido uma notícia óptima...

 

Era como se não acreditasse completamente?

É um fenómeno difícil de explicar. Certamente que me empenhei em vencer a doença, e muitas vezes tive que fazer das fraquezas forças. Tive uma ajuda muito grande da minha família, da minha mulher, dos meus filhos, dos meus amigos.

 

E o medo? Como é que não se deixa contagiar pelo medo? «E se corre mal, e se morro...».
Não tenho esse medo.

 

Nem nessa altura?

Nem nessa altura.

 

Também retenho da nossa primeira conversa a sua experiência da tropa: o não se permitir ter medo.
Medo tem-se... Mas também nesta altura, não me permiti. Nunca tinha estado doente. Aliás, fiz os exames porque era normal numa certa idade fazerem-se exames. É outra coisa estranhíssima: não tinha sintomas. Não me sentia mal, sentia-me lindamente.

 

E o instante em que soube?

Foi um grande choque. Estava a concentrar toda a minha energia na presidência da Fundação... Tudo se passou em menos de 24 horas. Fui eleito numa quinta-feira, soube numa sexta de manhã e durante esse fim-de-semana as coisas tornaram-se claras para mim. Decidi comunicar que renunciava e a partir desse momento pensei só na operação.

 

A quem é que se mostra vulnerável e fragilizado? Com quem é que tem conversas em que expõe a sua dúvida?
À minha mulher. É à minha mulher que, de vez em quando, exprimo dúvidas ou um desgosto. É o tipo de conversa que não tenho com amigos, normalmente sou eu que os animo. Mas também, tirando a doença, que foi um grande solavanco, não posso dizer que tinha tido grandes problemas. Perdi os meus pais, mas tenho uns filhos óptimos, tenho uns netos fantásticos.

 

Sobre o que é que conversa com eles?

Conversamos sobre muitas coisas. Não sei se é um bocado de tradição inglesa, mas não somos de exprimir uns aos outros estados de alma, não somos muito especulativos sobre nós próprios. Mas quando é preciso, têm-se todas as conversas, e há muitas coisas de que todos gostamos. Todos gostamos de política, de arte, de jardins, de arquitectura.

 

Tem pesadelos?

Tenho, como toda a gente. E também tenho sonhos. Tenho dificuldade em lembrar-me do que sonhei.

 

Estava a perguntar só para tentar perceber onde é que se alojam as dores, os desgostos, as frustrações, aquilo que não emerge na sua vida...
Normalmente, os meus sonhos são coisas repetidas. Há paisagens que se repetem, há situações que se repetem. São coisas imaginárias, penso que não existem... Nunca me preocupei com a interpretação de sonhos.

 

Então não é um homem angustiado?

Se calhar tenho essa sorte.

 

Mas é um bocadinho ansioso? Ou é só timidez?

Sou perfeccionista e obsessivo. O que de vez em quando não ajuda. Gosto das coisas feitas a horas e bem feitas, e não é fácil fazer tudo a horas e bem feito. Vivo em organizações, trabalho com o trabalho dos outros; portanto, tenho de viver com algum stress. Mas estou habituado a viver com algum stress. O stress é criativo.....

 

É um homem feliz?

A felicidade não é um estado permanente. A melhor resposta é aquela que a Marguerite Yourcenar pôs na boca do Adriano, n’ «As Memórias de Adriano»: «Na vida há momentos de felicidade». Tenho tido momentos de felicidade. A felicidade, como estado permanente, se calhar só os néscios é que podem dizer que vivem permanentemente felizes.

 

Um excesso de consciência agrava sempre a percepção da felicidade. Para terminar, voltando à elencagem do Lobo Antunes (daquilo que verdadeiramente importa na nossa vida), dê-me cinco acontecimentos que, num sentido positivo ou negativo, tenham determinado a sua vida.
Prefiro uma fórmula diferente. Prefiro fazer a síntese com duas palavras: a minha vida foi acaso e teimosia. Duas palavras chegam. 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias

 

 

Maria João Bastos

16.02.14

Determinada, confiante, magra. Simpática, profissional, voz grave, olhos muitos azuis. Maria João Bastos é tudo isto. E é uma mulher, nas suas palavras, com sede de viver, sede de aprender.

A história é conhecida: cresceu em Benavente, mudou-se para Lisboa para estudar Comunicação Social (em que se licenciou), trabalhou com modelo. Sonhou ser actriz, é actriz. 

Encontrámo-nos num fim de tarde, quase Inverno. Cabelo apanhado num rabo de cavalo, botas rasas, um poncho preto. Anel protuberante no anelar, maquilhagem suave. Chegou pontualmente.

O ponto de partida para a conversa era a adaptação que Raoul Ruiz faz de “Os Mistérios de Lisboa”, livro homónimo de Camilo Castelo Branco. A rodagem começou antes do Natal, e prossegue neste início de ano. No filme, Maria João Bastos interpreta Ângela de Lima. Uma personagem constante entre uma miríade de personagens. A actriz foi escolhida pelo realizador chileno entre centenas de actores.

O projecto pode representar uma viragem na sua carreira; mas para já, ela prefere concentrar-se no que a aventura lhe provoca. Na aprendizagem, no privilégio de trabalhar com um prestigiado realizador.

Está visivelmente satisfeita.

 

 

Escreve diário? Tem uma agenda-diário?

Tenho uma agenda onde anoto tudo o que faço. Até os bilhetes de cinema colo na agenda. Não escrevo: “Hoje fui ao cinema e gostei muito do filme”. No máximo, escrevo com quem fui. Serve para apontar, é uma coisa factual. Sem descrição, sem fantasia. Tudo o que é importante e que quero recordar, um dia, está lá apontado.

 

Quando olha para quem foi – e é fácil fazer essa recuperação a partir dessa agenda – reconhece-se? Ou percebe como é outra?

Naturalmente vejo as coisas de modo diferente – a maturidade é isso. Mas sempre que olho para trás, ou vejo entrevistas do início de carreira, percebo que a minha essência é a mesma. Os meus valores, as minhas bases, a minha maneira de ser, mantêm-se.

 

Qual é o núcleo que se mantém?

Ser muito sentimental.

 

Não parece sentimental. Se é uma parte tão importante, por que é que não a partilha?

Sei que não pareço sentimental. Mas sou. É um lado tão íntimo, tão meu e das pessoas que são importantes na minha vida, que prefiro preservá-lo. Tenho uma relação muito próxima e sentimental com a minha família. Que outras coisas se mantêm? Lutar pelo que quero. Sempre me coloquei objectivos e sonhos, e sempre fui atrás deles. Numa entrevista antiga, que reli recentemente, falava das minhas viagens, sozinha. Cresci, tenho mais experiência de vida, mas sou a mesma menina que partiu para Londres ou Nova Iorque. Tenho essa sede de viver, de aprender. Não tenho medo de correr riscos, de lutar pelo que quero.

 

Porque é que não vacila? Seria normal que a menina que chega de Benavente se amedrontasse. Onde radica essa força e determinação?

A base de tudo é a educação que recebi dos meus pais. O apoio que recebi deles, o incentivo para ir atrás dos meus sonhos. Nomeadamente ser actriz.

 

Eles não tinham dúvida de que ia conseguir? O seu pai era a pessoa que mais a incentivava nesse projecto.

Penso que não. E essa convicção repercutia-se em mim. Transmitiam-me uma certeza e uma segurança de que eu seria capaz. Ter perdido a pessoa que mais me incentivou, fez-me perceber que a vida é curta, mas continua a ser bela. E que não há nada que nos possa deter em relação ao que queremos. Não por acaso, foi nessa fase da minha vida, [quando morreu o meu pai], que fui para Inglaterra, com uma enorme sede de viver.

 

Era uma menina de 18 anos. Tinha-se mudado para Lisboa para estudar Comunicação Social. Podia ter baixado os braços. Ao invés, optou por estudar e ser modelo.

Ou ficava quieta, ou partia à conquista do mundo. Um mundo que os meus pais me fizeram acreditar que estava ao meu alcance. Ao meu alcance e ao de qualquer pessoa. Não me fizeram sentir que seria mais capaz do que qualquer pessoa. Mas fizeram-me sentir que, se as outras pessoas são capazes, eu também sou.

 

Em relação a que coisas é insegura?

Sou uma pessoa confiante. O que não quer dizer que não tenha as minhas zonas de insegurança. Não acho que as minhas inseguranças, a nível profissional, me atrapalhem muito. Talvez me atrapalhem mais as de nível emocional. Tenho medo de perder as pessoas que amo.

 

Vamos a um caso concreto, continuando a falar de segurança: quando se fala da adaptação do “Equador” para televisão, pensa que o papel de protagonista tem de ser seu?

Quando li o livro, pensei que aquela era uma personagem que eu gostava de interpretar. Mas isso é o que qualquer leitor sente: que é aquela personagem. Na leitura projectamo-nos naquele personagem, nas suas características, viajamos com ele.   

 

Quando Raoul Ruiz vem filmar para Portugal, e faz casting, intimamente pensa que o papel vai ser seu?

Eu estava a estudar em Madrid quando fizeram o primeiro casting. Regressei de Espanha, mais cedo, de propósito, para fazer o segundo casting. Fiz eu e mais 300 actores! [risos] Foram todos os actores e todos os que querem ser actores em Portugal. Encontrei-me com Raoul Ruiz num hotel, e falámos. Não foi um casting, foi uma conversa. Sobre coisas que tinham que ver com o filme, sobre coisas que não tinham que ver com o filme, sobre a minha carreira; meteram-se outras conversas. O Raoul gosta muito de contar histórias. É mágico ouvi-lo! E pronto. Pediu-me um DVD com imagens; fui a casa, fiz uma cópia de trabalhos meus, e entreguei-lho. Ele foi para o Chile nesse dia e nunca mais pensei no filme.

 

Porquê?

Se calhar para não criar expectativas. É um mecanismo defensivo, não consciente. Quando recebi a notícia, dois, três meses depois, já não ansiava uma resposta. Foi uma surpresa imensa quando a minha agente me ligou e perguntou: “Estás sentada?... Vais ser a protagonista do filme do Ruiz”. Só me lembro de ter dado um pulo no sofá! Nem acreditava. Sabia que era um filme importante, um realizador reconhecido a nível mundial, admirado e premiado no cinema europeu.

 

Perguntou-se porque é que foi a escolhida? Até para saber melhor dos seus trunfos, das suas potencialidades.

Não perguntei a mim própria, mas perguntei ao Raoul. Que disse que tinha que ver com o meu carisma, com a minha pele, com o meu olhar. A minha luz. Mais do que uma vez, disse que a minha luz e a minha pele captavam a câmara, chamavam a câmara. 

  

Já começaram a filmar, na última semana de Novembro. Como é que foi?

Vão ser quatro meses de rodagem. O arranque foi incrível! Quando cheguei a casa, ao fim do primeiro dia, não conseguia dormir de tanta excitação! Há muito que não me lembrava de ter esta sensação. Correu muito bem. Ele é um génio da sétima arte e é muito fácil voarmos nas suas asas. É fácil por sabermos que estamos em boas mãos. É fascinante ver a calma que transmite, a liberdade que dá à equipa, a serenidade com que nos conduz.

 

Na véspera, estava como?

Muito calma. Preparei-me bastante, sozinha. Este era o terceiro trabalho de época que fazia. Os dois anteriores foram a série “Equador” e o filme “O Último Condenado à Morte”. Havia um trabalho de pesquisa que tinha sido feito. Nesse sentido, foi um pouco mais fácil. Mas há depois um trabalho de construção da personagem: dos seus sentimentos, frustrações, o que é que cada cena quer dizer... 

 

O que é que esta experiência pode significar na sua carreira?

É a primeira vez que trabalha com um realizador tão internacional.

Neste momento não penso muito no impacto que o filme pode ter na minha carreira. Penso muito no impacto que terá em mim, actriz. O que é que vai ser trabalhar com um cineasta que trabalha com a Catherine Deneuve, a Isabelle Huppert, o John Malkovich. Que tem a experiência de vida e de cinema que ele tem. Acho que vou crescer muito.

 

Como assinalou na agenda a excitação do primeiro dia de filmagens com Ruiz?

Escrevi apenas: “Comecei o filme do Ruiz”, e fiz uma estrela.

 

Ter sido a escolhida para este filme, ou, antes, para protagonizar “Equador” faz de si uma pessoa invejada?

Só não me sinto invejada porque não penso nisso. O povo português é muito invejoso. É um sentimento que repudio tanto… Já o senti na pele. Quando cheguei do Brasil, depois da minha experiência bem sucedida na Globo, houve pessoas que deixaram de me falar, houve pessoas nos corredores da NBP que fingiam que não me viam, que fingiam que estavam a ler alguma coisa ou a falar ao telefone quando eu passava.

 

Nunca sentiu inveja? Quando não foi a escolhida.

Posso sentir pena de não ser a escolhida. Mas a inveja não faz parte da minha natureza. Acho que sentir inveja está ligado à falta de auto-estima e confiança em nós próprios. É um sentimento muito destrutivo. Mas não sou a única pessoa a ser invejada. Fico feliz quando colegas minhas conseguem bons trabalhos. Fazer uma protagonista não é essencial. Em televisão, o papel da co-protagonista é muitas vezes mais interessante do que o da protagonista. O importante num papel é que ele me traga coisas novas, que me estimule.

 

Continua a gostar de fazer novelas? Ou a sua orientação, cada vez mais, é o cinema?

Gosto! Estou extremamente feliz por ter a oportunidade de fazer cinema. Gostava de fazer mais teatro. Mas quero continuar a fazer novelas. Faço parte de uma estrutura [NBP] que mudou bastante desde que o André Cerqueira a encaminha. Quero fazer parte deste movimento, e investir na ficção nacional. Não vejo a televisão como uma arte menor. Vejo a televisão como uma área onde há muito para melhorar e evoluir.

 

Além da inveja, outra coisa de que não se fala habitualmente: dinheiro. Está rica? Tem uma vida de estrela de televisão? Com acesso a determinados círculos, uma vida glamourosa.

Estou rica por dentro! [risos] Porque tenho uma família e um grupo de amigos maravilhosos. Para a idade que tenho, 34 anos, tenho um certo desafogo financeiro. Não me considero mal remunerada. Aquilo que ganho permite-me ter uma vida confortável. Permite-me ser completamente independente, ter a minha casa, parar uns meses e investir na minha formação – como fiz agora, em Madrid, para me estimular enquanto actriz. Mas há uns anos, quando fui para Nova Iorque, trabalhei muito durante meses, para juntar dinheiro. As coisas não são o que as pessoas fazem crer! Nós não estamos em Hollywood. Não sou rica.

 

Quais são os seus “pecados”, além de comprar sapatos? O que é sente quando está em cima de uns saltos Louboutin?

Gosto imenso de sapatos! Gasto imenso dinheiro em sapatos. E em jóias. Adoro presentear-me! Sempre que vivo um momento importante, marco-o com uma jóia. Gosto de ser eu a oferecer-me a mim própria. Por exemplo: a primeira vez que pisei um palco enquanto profissional, nesse dia, comprei um anel. Giro.

 

Para assinalar o filme do Ruiz, o que é que se ofereceu?

Ainda nada. Mas tenho quatro meses para o fazer. Hei-de encontrar a coisa certa. Para marcar momentos importantes, não se trata do valor monetário da jóia. Não tem de ser caro. Tem de ser especial. As jóias com valor, encaro-as como um investimento. Mas o filme do Ruiz, vai ter que ter uma jóia!

 

 

 

 Publicado originalmente na revista Máxima em 2010