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Anabela Mota Ribeiro

Carlos Monjardino (2006)

17.02.14

A sala é contígua ao seu gabinete e atira para o jardim. Eu recupero, de uma conversa antiga, a tentação totalitária que o faz assinar, um por um, os cheques das suas empresas. Ele confirma, especificando que interroga, mais tarde, as razões por que se pagou tanto ao senhor ou entidade em questão.

É muito extraordinário que não queira posar nem ofereça resistência a este retrato cru, que o revela na miudeza do dia a dia. Nem quando lhe aponto o desejo de grandeza e a volúpia com que olha para a posteridade. Mais do que franqueza, trata-se de segurança.

Carlos Monjardino sabe que não tem de se justificar. Sabe, e desde cedo, que uns nascem para mandar e outros para serem mandados. Pertence, evidentemente, aos primeiros. Assume que tem um estilo autocrático, que admira e confia com dificuldade, que gosta de acrescentar a sua notazinha nos relatórios que exasperam os colaboradores. Narcísico, digo eu. E ele, que sim. Mas, paternalizando, diz que é até, pedagogicamente, de grande utilidade.

Tem uma inteligência fria que o faz dissecar as pessoas, os tesouros, os mapas. Mas é, mais que tudo, um intuitivo. A sua história é por demais conhecida. Mas nas próximas páginas revêem-se, à luz da distância, os capítulos essenciais. Fez uma carreira brilhante na banca, entre Portugal e Paris. Instalou-se em Macau em meados dos anos 80 e aí viveu uns magros 14 meses que mudaram a sua vida. É irresistível citar Stanley Ho a seu propósito: pensa como um português, fala como um inglês e trabalha como um chinês. O homem da Fundação Oriente é um negociador, esculpido nas páginas dos melhores romances.

 

 

Acontece-lhe pensar que podia ser uma personagem de um livro do Graham Greene?

Talvez... As coisas vão-me acontecendo numa sequência por vezes surpreendente e vão acontecendo nas alturas certas. A minha vida profissional foi um conjunto de acasos. Eu não era para ser o que sou. Era para ser arquitecto. E depois, porque me atrasei a fazer a inscrição na universidade em Inglaterra, e tinha que me ocupar, inscrevi-me no primeiro curso a que tive acesso, e que foi o de Comércio Internacional.

 

Já é uma ideia muito literária: a de falhar o destino e traçar imediatamente um outro.

Ao mesmo tempo, dei-me muito bem com o curso, que era para me ocupar, apenas, até à próxima inscrição. Fiquei e matriculei-me, então, em Business Studies. Tenho jeito para o business, para a transacção. Às vezes digo que, mais do que gestor, tenho jeito para imaginar e fazer negócios.

 

É um negociador.

Sou um negociador. Gosto muito de negociar, é uma das coisas que me dão gozo.

 

O que é que lhe dá gozo nesse exercício da negociação?

É a trajectória. É um bocado como o jogador de xadrez: a gente tem uma finalidade e programa as jogadas de modo a surpreender a outra pessoa, para poder chegar exactamente onde se quer. Isto pode demorar mais tempo ou menos, conforme o negociador é melhor ou pior.

 

A antecipação, a surpresa e a sageza são os elementos fundamentais?

São. As pessoas agora não negoceiam assim. Cingem-se aos valores visíveis da transacção. Baseiam-se em números, batem-se sobre conceitos que podem ser quantificados imediatamente. Enquanto que numa negociação à antiga, chamemos-lhe assim, as pessoas andavam, iam buscar coisas que não tinham nada a ver com a negociação, voltavam à negociação, saíam, entravam. Intelectualmente dava muito mais gozo.


Concretize. A cena começa com a chegada a um almoço onde se inicia a negociação...

Tudo passa pela empatia que se tem com a pessoa com quem se está a negociar. Passa pelo humor, também. É muito importante de vez em quando largar umas piadas. Às vezes mistura-se a história da própria pessoa; quando encontram interesses comuns, ficam muito mais abertos a um acordo do que se não tiverem rigorosamente nada a ver um com o outro.

 

É um jogo de sedução, de aproximação e reconhecimento do outro... E trata-se de perceber como surpreender o outro, como exercer influência e poder.

É uma táctica de sedução. É isso que é preciso até ao final. No fim de uma negociação que corra bem tenho sempre respeito pelo outro. Uma das piores coisas que há é menosprezar o adversário. Mesmo quando se julga que se ganhou, muitas vezes não se ganhou. Ganhámos nós a negociação, mas eles também ganharam do lado deles. Acabamos num empate técnico, porque cada um levou a água ao seu moinho: tínhamos um objectivo que foi atingido.

 

O que é que respeita num negociador?

Para já, a firmeza. E a argumentação que utiliza, que deve ser estruturada. A imaginação. A surpresa -  quando aparece em cima da mesa algo em que nunca tinha pensado e que me pode desequilibrar.

 

Perguntei pelo respeito e não pela estima porque me impressionou muito, quando o entrevistei a primeira vez, ter-me dito que não respeitava as pessoas que perdiam a cabeça a jogar.

À medida que os anos vão passando, as pessoas vão escondendo menos as suas emoções e, neste caso, a maneira particular de ver os outros... Vamos sendo complacentes sobretudo com as pessoas da família. Há sempre uma volta à família, quando se está a ficar mais velho e se tenta emendar coisas que foram acontecendo durante a vida...

 

À família de origem, não àquela que constituímos, certo?

Sim, à de origem. A alguns laços que se foram quebrando ao longo dos anos. Em relação às outras pessoas que não têm nada a ver connosco, a tendência é para não fazer qualquer segredo dessa falta de respeito, diria, dessa indiferença.

 

Não finge?

Não. O fingimento é algo que as pessoas ao longo de uma vida vão aceitando; mas a partir de certa altura, perdem essa parte teatral. Já cortei com isso há muito tempo. Nunca fui muito assim. Às vezes com grandes problemas para mim. Não consigo. Prefiro ser sincero e dizer o que penso do que estar a fazer de conta.

 

Num livro do Greene há tudo isso. Há surpresa, e há personagens que, de um momento para o outro, puxam a cortina e desfazem a encenação. Este esquema parece dar-lhe muito gozo.

Dá, dá.

 

A relação com a família, o facto de assumir ser um intuitivo, a relação com o Oriente e com o jogo são elementos que o transformam numa personagem contraditória e fascinante. A sua singularidade neste meio passa por tudo isto.

Sou bastante intuitivo, sempre fui. As bases na minha profissão têm a ver com aquilo que aprendi, mas, ao longo dos anos, a experiência adquirida e a minha maneira de ser deram-me muitíssimo mais, incomparavelmente mais, do que tudo o que aprendi nas escolas por onde andei.

 

Aprende-se na vida a ser esse outro?

Aprende-se.

 

É uma coisa que pode ser ensinada aos filhos?

É difícil, mas julgo que pode.

 

Aprende-se, mas não pode ser ensinado. É isso?

É. Tenho dificuldade em ensinar. Eles vão aprendendo pelo contacto e vivência que têm comigo. Há valores que nunca lhes incuti, assim em comprimidos, mas que nunca lhes passaria pela cabeça ir contra eles. Vêm ter comigo e dizem: “O pai nunca compactuaria com uma situação destas”. Têm valores um bocado diferentes da maioria dos miúdos. A mãe obviamente contribuiu muito para isto, como agora a mãe da minha filha Carlota, a Maria Amália, vem incutindo nela.

 

Esse exemplo levanta uma questão interessante: a da imagem criada. A expectativa que têm em relação a nós mantém-nos cativos da coerência. E, muitas vezes, a contradição é um exercício de maior liberdade e inteligência do que a obediência cega ao que esperam de nós. Percebe o que estou a dizer?

Percebo. Há alturas em que isso que acabou de dizer acontece. Afinal, sou também outro. É uma coisa que incomoda, que faz pensar, mas que “in fine” é positiva. Com a estrutura mental que tenho, e com a falta de escapatórias para algumas coisas que vão acontecendo na vida, é uma maneira de ser que não me poupa...

 

Está a falar da culpa?

Estou. Coisa com que convivo permanentemente, todos os dias.

 

Culpa em relação a quem e a quê?

A tudo.

 

A culpa é uma palavra essencial em si?

É. Há pessoas que têm uma grande facilidade em deitar isso para trás das costas, eu não tenho. É pesado, mas não é mau. Em termos de formação, é manter a pessoa com os pés no chão e a tentar fazer melhor.

 

O que é que não pode ser irrelevado? O que é que fica a remoer?

Tudo aquilo que, por minha culpa, afectou negativamente terceiros. Até posso não ter necessariamente a culpa, mas pensar que se tivesse tido outra reacção, terceiros podiam ter sido beneficiados, e não prejudicados, é algo que me incomoda e que guardo comigo.

 

No fundo, está também a falar de poder, do que é ter poder. E da consciência de que, com ele, se interfere na vida dos outros.

Sempre tive muito poder concentrado em mim. Quando era mais novo tive a noção disso e exerci-o com alguma cautela. Fui colocado pelas circunstâncias numa posição em que tive mesmo que exercê-lo. Mas tive consciência de que estava só.

 

E não sabia se estava preparado para aquilo?

E não sabia se estava preparado para aquilo. Há pessoas que dizem: “Ah, pá, tu tens muito poder”...; mas o poder é uma coisa muito complicada de exercer.

 

Está a referir-se a um período da sua vida em que foi para Paris. Andava pelos 30 anos?

Logo aos 29. A partir daí fui tendo sempre muito poder, e depois habituei-me a concentrar o poder para me proteger. Se quiser, daquilo que outros pudessem fazer. Parti do princípio que era capaz e disse: “Se posso exercer o poder, vou exercê-lo o mais completamente possível”.

 

Foi isso que aconteceu?

Foi, sobretudo em Macau. Aí tive mesmo que exercer o poder, não sempre sozinho mas muitas vezes sozinho. Tudo isto tem que ser acompanhado, não digo de uma grande inteligência, mas de uma grande capacidade de trabalho. Que tenho. Portanto, fui respondendo ao poder que tinha.

 

Fazendo?

Tinha o poder e realizava.

 

São quase sinónimos, poder e realização? Concretização, fazer...

Fazer ou mandar fazer. Ou se faz ou se manda fazer. O gestor, normalmente, tem o poder: olha e manda fazer. Eu não consigo. Já o faço nalgumas empresas, noutras não abdico do poder, diria, quase que absoluto.

 

Estava a ocorrer-me a história de assinar, um por um, todos os cheques da Fundação Oriente.

Continuo a fazê-lo.

 

Não se acredita! Mas isto levanta uma questão: tem medo de ser traído, tem medo de ser apunhalado?

Vamos ser verdadeiros: quando se cria uma coisa de raiz é preciso perceber o que é que ela vai ser. O que eu queria que fosse a Fundação. O que era preciso que a Fundação fosse. Fixei-me nos primeiros objectivos, tracei uma linha de rumo. E é essa linha que não quero que seja alterada, e que por vezes é. Uma das coisas que passam por essa linha de rumo, são os custos. O que se gasta nesta casa, e noutras casas que dirijo, ligadas a esta, não devo abdicar de controlar.

 

Não há um cêntimo desbaratado?

Ai, isso, há com certeza. Não há é tanto como haveria se não controlasse como controlo.

 

Deixe-me insistir neste tema da traição.

Não é traição, é uma mudança do que foi delineado numa certa altura e que eu não quero, ou tenho medo, que possa ser feita.

 

É co-natural ao facto de ter poder ser alvo de inveja e de traição. Já aconteceu ser traído e isso ser uma enorme surpresa? Ou conseguiu sempre antecipar situações desse tipo?

Houve manifestações, numa determinada altura da minha vida, num determinado caso... Estavam a preparar-se condições para eu ser traído. E consegui que nunca se chegasse a esse ponto. Antecipei-me a uma possível, ou provável, traição.

 

Há uma cena do filme «Cleópatra» em que César ensina ao filho como lidar com traidores. Explica que deve perdoar alguém enfraquecido, sem poder, que o traiu – parecerá generoso, condescendente. Mas se a traição for de alguém que estimava especialmente, poderoso, e que vem pedir clemência, essa não poderá ser poupada: é preciso que a sua cabeça caia.

É um bocado assim. Há traições que não têm necessariamente a ver connosco. Pode ser uma traição em termos institucionais - por exemplo, no projecto da Fundação ou no âmbito das empresas em que sou o primeiro gestor.

 

Uma traição à Fundação seria o mesmo que uma traição a si.

Ter um projecto, avançar com o projecto, ter uma ideia do que se vai fazer em prol do país, conseguir tudo isso, e depois ter pessoas com ideias totalmente diferentes, com objectivos totalmente diferentes, que querem interromper o percurso que foi inicialmente delineado... Sou intransigente e não perdoo. Digo que esqueço, mas não perdoo...

 

O que quer dizer que não perdoa.

Uma pessoa que não perdoa, não esquece, claro. Quando as coisas são importantes vou tentando esquecer, mas não perdoo.

 

Porque é que as pessoas traem? Tenho a impressão que, muitas das vezes, os motivos são mais comezinhos do que aqueles que se apregoam. Pode ser uma coisa miudinha, como a inveja da mulher que o outro tem ou o fato que o outro usa.

E da vida que o outro teve e que ele não teve, ou das origens que o outro teve e que ele não teve... Muitas vezes é sobretudo isso.

 

Concorda, então, comigo: o que desencadeia a traição pode ser um detalhe muito rasteirinho.

Pode. As diferenças de classes estão muitas vezes na origem das traições. Mas também há a traição, aquela mais normal, que é para ganhar mais uns “dinheiros”, ou para ter mais influência, ou para aparecer mais vezes nos jornais ou na televisão de vez em quando. Nessas coisas que normalmente as pessoas procuram sou muito desprendido: ando frequentemente vestido às três pancadas...

 

Mais ou menos. A caxemira do fato é da China, custou três tostões, mas é da boa.

Mas ainda me surpreendo muito com as reacções que as pessoas têm em relação a mim. Aconteceu-me duas vezes no mesmo dia, em sítios públicos, no consultório médico e na rua; pessoas que vêm ter comigo e dizem: “É fulano?”. Uma disse-me só que gostava muito de conversar comigo, queria vir à Fundação. Outra que me admirava muito e que não podia deixar de dizer que me admirava muito. Fico completamente encalacrado!, não sei onde é que me hei-de meter. É uma coisa que acontece só de vez em quando, mas de cada vez que acontece digo: “Esta pessoa está a exagerar”.

 

Percebo que o surpreenda. Se for alguém do seu meio, pode sempre pensar que lhe está a pedir emprego ou que precisa de algum favor. Se for um anónimo, não consegue entender o que é que ele quer. Qual é a intenção.

O meu problema é esse. Eu distingo, como calcula, as pessoas que me dizem isso porque o sentem e as que querem alguma coisa. Será porque acham, por ventura, que tenho preocupações sociais? Se calhar até tenho, mais do que a maior parte das pessoas. E habituaram-se a valorizar, essa minha faceta.

 

É fácil olhar para si como um homem rico, poderoso, benemérito, por causa das preocupações sociais que tem. Podem abordá-lo também por essa via.

Sim, mas contrariamente ao que algumas pessoas pensam, embora não ganhe mal na Fundação, ganho menos do que alguns colaboradores que temos. Chego a ganhar quase metade de um gestor que temos noutra empresa.

 

Mas, também, quais é que são os seus gastos por mês?

Os meus gastos por mês?, com doze filhos? São bastantes. Tenho bens, mas não tenho necessariamente um grande rendimento. Como sou muito desorganizado com as minhas coisas, os meus bens, como você diz, são muito pouco produtivos. Tenho assim umas loucuras. A dos carros já não é uma loucura, já há muito tempo que deixei de gastar dinheiro em carros. Agora só compro um carro quando vendo outro. O barco, é um hobby caro, mas é o único, e é única coisa que me dá muito prazer... além de ir comprando um quadro ou outro.

 

Confesse: é assim que quer ser recordado, como um filantropo? Fica encabulado quando as pessoas o abordam nesse sentido, mas gosta dessa gratificação.

Gratificante é, não estou a dizer que não é. Mas na altura fico um bocado encabulado....Não aceito que me belisquem na minha dignidade. Os políticos têm ultimamente esta moda: não respondem a insultos.

 

“Não insulta quem quer”, não é o que se diz?

O problema é que não me deixo insultar sem responder. As pessoas insultam-me, podem fazê-lo, são livres, mas depois sofrem as consequências. Ainda há tempos, tive um célebre processo com uma pessoa.

 

Com Marcelo Rebelo de Sousa.

E agora tenho outro, com o senhor Dr. João Cordeiro, da Associação Nacional de Farmácias. Chamou-me de tudo. Belisquei os interesses dele por causa das farmácias sociais. Como calcula, as farmácias sociais não me podem beneficiar pessoalmente em nada, estava a defender interesses da sociedade. Já me propuseram chegar a um acordo e disse que nunca aceitaria. Depois do que foi dito não há transacção possível, independentemente da indemnização que me vai ser atribuída, se eu ganhar o processo, como acho que vou ganhar.

 

Se não admite que o belisquem, como é que lidou com o facto de ter sido associado ao Stanley Ho, em territórios que não são...

Territórios, a que é que chama territórios?

 

Áreas de interesse do Stanley Ho.

Conheço algumas das áreas de interesse de Stanley Ho, mas as pessoas acham que o meu conhecimento da sua vida empresarial é muito maior do que na realidade é. A minha relação com ele vem de Macau onde sempre cumpriu, de uma forma exemplar, os compromissos que ia assumindo com o território, indo mesmo para além deles. 

 

Por outro lado, Stanley Ho é a imagem do jogo em Macau.

A actividade do jogo é que fazia viver Macau, não eram certamente os fundos provenientes da República, que não eram nenhuns O jogo é legal. É legal aqui, é legal lá, é legal em muitos países. O problema do jogo em Macau?, é que é muito associado a outras actividades...

 

A negócios escuros.

E aqui em Portugal, e noutros lugares, não se associa e não percebo porquê. É sobretudo a dimensão do jogo em Macau. A dimensão do jogo em Macau em relação ao território é muito maior do que a dimensão do jogo em Portugal. Hoje em dia, 85 por cento da despesa pública em Macau é suportada pelo jogo.

 

Era ofensivo para si quando diziam que era o testa de ferro do Stanley Ho?

Era, porque nunca foi verdade. O que é que quer que faça? Que ele às vezes pede a minha opinião em relação a investimentos que quer fazer em Portugal, é verdade. E eu dou-lha. Mas é como amigo. Ele tem outras pessoas que trabalham para ele, e que não é o meu caso, que se ocupam dos seus negócios no nosso País.

 

Há pouco ia dizer-me que o poder é fascinante. Havia até uma entoação diferente no modo de dizer “poder”...

Para mim, que gosto de fazer coisas, de fazê-las logo, é fascinante porque é a base da decisão. Não gosto de estar à espera para fazer o que quer que seja. Uma má decisão é melhor do que uma não-decisão Gosto das coisas todas feitas na hora. Preciso de ter um poder que possibilite tomar decisões, sem estar a perguntar se devia ou não fazê-lo.

 

O seu modo é um pouco autocrático? O facto de não delegar...

É. Mas já delego mais do que da última vez que falámos.

 

Não consigo imaginar o que é que o fez mudar no espaço de três anos e começar a delegar.

Muitas coisas.

 

O que é que muda um homem?

Pensar naquilo que nunca se fez e que gostava de ter feito. Gostaria que algumas instituições a que estou ligado continuassem para além de mim e, se possível, com rumo semelhante. Também me fez mudar a consciência de que concentrei demasiado poder em mim durante muito tempo. Tenho-me esforçado por descentralizar. Só assim poderá haver continuidade.

 

É uma maneira de preparar o futuro? Pensar que isto não pode ser um gigante com pés de barro? Não pode ser uma casa que de repente vem abaixo se morre ou fica incapacitado.

É isso. O que eu sou, em relação àquilo que é a Fundação, é pouco importante. A minha presença neste mundo, neste momento, está muito associada à Fundação. Mas não faz sentido nenhum ter dado corpo a este projecto para a seguir tudo se desmoronar ou surgirem problemas sérios.

 

No nosso encontro anterior, disse que começava a pensar na morte e na arrumação que precisava de fazer. Mas tem 63 anos...

Tenho. Penso muitas vezes no depois da vida por causa dos meus filhos que são muitos, alguns bastante novos. Organizar em comum com eles o futuro faz muito mais sentido. Fazer as coisas em vida é muito melhor do que deixá-las para trás.

 

O que é que se deixa? O que é lhes deixa?

Para já, deixo-lhes uma maneira de estar.


E uma vida diferente daquela que teriam se não o tivessem tido – muitos dos seus filhos são adoptados.

Isso é verdade. Normalmente, quem se ocupa de muita coisa sou eu. Deixo-os, nalgumas áreas, nomeadamente na gestão, pouco preparados. Nenhum deles tem essa aptidão, pelo menos até agora não o mostraram.

 

Quando fala em gestão, fala no sentido estrito, aplicado a empresas? Ou estende-se a um tomar conta das suas vidas? Essa parece ser a sua grande preocupação. A casa-Fundação está arrumada. Mas no resto, é como se não conseguisse ensiná-los a ter um sentido, e a perseguir um sentido.

É verdade. Isto varia de filho para filho. A mais nova, que tem quatro anos, é talvez a mais parecida comigo e a que, porventura, vai ser gestora no sentido estrito...

 

É sua filha biológica?

É. Nas coisas mais pequeninas é muito parecida comigo. Os outros têm interesses muito diferentes dos meus. Mas não são disparatados a gastar dinheiro. Eu também nunca os deixaria... Têm algum sentido de poupança, que é algo que, em minha opinião, as pessoas deveriam ter e que têm cada vez menos. Eu tenho activos cujo rendimento serve para compensar outros activos que não são produtivos, mas que são sentimentalmente importantes para eles. Por exemplo, casas a que estão ligados e que querem manter. Estabeleci em relação a isso um sistema de vasos comunicantes: um activorentável cujo rendimento vai compensar a falta de rendimento dos activos sentimentais, e que, por serem sentimentais acabam por ser um peso. Tento compartimentar estas coisas de modo a precaver o futuro.

 

Este é o retrato de um sentimental...

Sim, tenho mais activos sentimentais do que aqueles que seria razoável ter.

 

Está a dizer que é menos rico do que se imagina que é?

Muito menos. É óbvio que sou rico comparado com a maior parte das pessoas deste país, mas sou muito menos do que as pessoas julgam, porque grande parte dos meus activos não são produtivos. São activos que têm valor mas que não produzem qualquer rendimento.

 

E não lhe passa pela cabeça...

Aliená-los? Não. Sou incapaz, se não precisar, de me separar de uma coisa de que gosto. Os activos, a maior parte deles, estão ligados à minha vida ou à vida da minha família. Uma é a casa que o meu pai fez; outra é uma casa que conheço desde que me conheço, na Marinha, e que só dá despesas, a mim e ao meu irmão; outra é uma quinta perto de Lisboa onde está a bicharada; outra é casa de Paris, que ninguém usa, e que racionalmente já deveria ter sido vendida.

 

Se vai a Paris, fica na casa? Gosta de voltar lá?

Gosto muito. Agora gosto mais de Paris do que quando lá vivia.

 

Gostava de voltar a pensar em si como um personagem do Graham Greene. Identifica-se com algum, em particular? Ou é o universo, a imediata associação à espionagem, ao mistério, a trama apertada de acontecimentos, a teia de relações, as personagens ambivalentes.

Eu leio-o sempre a pensar que podia fazer parte da história. Não sei muito bem como..., mas basicamente é isto.

 

Os seus universos são coincidentes com os dos livros?

São. Eu sou um bocado aventureiro, vivi muitos anos fora. Em Inglaterra, em França, em Macau. Foram 20 anos. Olho para as coisas de uma maneira diferente. Tenho-me dado com tanta gente, tanta gente, e viajo sistematicamente para os pontos mais extraordinários do mundo, desde Timor, à Índia, à China.... Gosto do imprevisto como gosto do risco, mas gosto de ser eu a controlar o risco; o imprevisto, por definição, não se controla.

 

Sempre se controlou no jogo?

Sempre. Quando vivia em Inglaterra fazia questão de jogar uma vez por semana, e ganhar. E conseguia. Todas as sextas-feiras à noite, sacrificava ali umas horas do meu tempo a jogar. Também porque me dava jeito.

 

Mas então não era pelo prazer de jogar ou pelo prazer de ganhar, embora isso fosse um bónus...

Era o prazer de jogar, mas também me davam jeito umas librazitas a mais.

 

Isso é um permanente exercício de supremacia em relação aos outros. É um “deixa cá ver se não estou a perder terreno”.

É. Faço isso muitas vezes. Quando analiso um parecer que me mandam, fico contente quando vejo que está bem-feito e que cobriu praticamente a área toda que tinha pedido. Mas também fico satisfeito quando não cobre e eu ponho lá qualquer coisa meu, “falta isto, isto não foi contemplado”.

 

Adora uma boa regatice.

É. E faço-o muitas vezes, para grande irritação de alguns dos meus colaboradores.

 

Tem medo de ser ameaçado.

Não.

 

Então esse exercício é para quê?

Acho que é pedagógico para eles – sobretudo para os mais novos. Gosto de descobrir falhas nas coisas. E tenho a mania que consigo, (tenho conseguido, melhor ou pior), apanhar as coisas rapidamente e globalmente. Se não tivesse este dom, e considero um bocado que é um dom, não conseguia despachar dez pastas como despacho num dia, onde estão também cheques. E lembrar-me do valor do cheque e perguntar mais tarde por que é que se pagou aquele cheque, com aquele montante, àquela pessoa ou entidade.

 

É um exercício um bocado, para não dizer muito, narcísico, isto de acrescentar sempre a sua notazinha... 

É um bocado, é. Até ao pormenor de pôr os tracinhos a seguir ao valor dos cheques, quando quem devia pôr se esquece...

 

Porquê essa paranóia?

Porque pode prejudicar a Fundação, se o cheque cair nas mãos erradas! Faço isso automaticamente: olho para um cheque e vejo se os tracinhos estão lá; se não estão, acrescento-os. Mas isto é automático e não considero importante.....

 

Tem importância porque revela a dificuldade que tem em confiar nos outros.

Tenho alguma.

 

E também revela a dificuldade que tem em admirar outros.

Talvez. Não admiro facilmente, mas depende das pessoas. Com a pessoa que dirige o dia-a-dia da companhia de seguros, por exemplo, tenho uma relação muito diferente daquilo que é costume. Dou-lhe muitíssimo mais liberdade para ela poder trabalhar, o que não impede de dizer o que penso, de alterar ou sugerir alterações. Tenho a noção daquilo que sei fazer e daquilo que não sei. Em matéria de seguros, sei pouco, e ela trabalhou em seguros toda a vida; nunca faria nada contra uma opinião dela em termos técnicos; já em termos de gestão global da companhia, é diferente.

 

Uma das suas mais recentes aventuras é a recuperação do Hotel Aviz. Literariamente, e mais uma vez ao gosto das personagens de Greene, um hotel é um espaço de cruzamento, de intrigas, palco de decisões. Que importância tem este projecto para si?

Muita. Isto vem do tempo do meu avô, vem do tempo do senhor Gulbenkian e porventura dos misteriosos encontros que se conta que lá tiveram lugar durante a guerra.

 

Gulbenkian era uma figura bigger than life.

Conheci-o. Perguntei-lhe quanto dinheiro é que ele tinha... O meu avô foi vê-lo ao hotel e levou-me com ele. Eu estava no carro, depois saí, andava ali a brincar e tal, vi o meu avô e o senhor Gulbenkian, e fui ter com ele. Então pedi ao meu avô para lhe perguntar – eu não falava inglês –, quanto dinheiro é que ele tinha. Riu-se muito e disse que não sabia. Fiquei tristíssimo e decepcionadíssimo. Já o restaurante, ainda na Baixa, habituei-me a ir lá, com banqueiros estrangeiros nos anos sessenta. Foi aí que comecei a gostar do Aviz. Quando entraram em dificuldades, a seguir ao 25 de Abril, ou mesmo antes, disse que gostaria de ajudar comprando umas acções. Olhe, realizei um desejo.

 

Mas por que é que lhe dá tanto gosto ter o hotel?

Não é tanto pelo hotel, é mais pelo restaurante, foi pelo restaurante que eu cheguei ao Hotel. Não queria que desaparecesse, e durante uns tempos fui suportando a sobrevivência do Aviz. E depois construímos um hotel a que dei o mesmo nome e onde voltei a abrir o restaurante. E em vez de ser um hotel com restaurante, é para mim um restaurante com hotel.

 

Gosta de comer lá?

Gosto muito.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006