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Anabela Mota Ribeiro

Diogo Pires Aurélio (sobre Maquiavel)

18.02.14

A imoralidade em política ganhou o nome de maquiavelismo. Usa-se, com o intuito de denegrir alguém, a expressão “fulano é maquiavélico”. Mesmo que seja reduzida a franja de público que conhece o texto de Maquiavel, escrito há 500 anos, de onde a palavra deriva. Uma franja reduzida se pensarmos na vulgaridade com que o adjectivo é usado.

Previsivelmente, o seu significado original foi deturpado. Fenómeno semelhante sucedeu com Kafka e a forma adjectivada “kafkiano”.

Diogo Pires Aurélio fez uma tradução de O Príncipe com a qual recebeu uma menção honrosa do Prémio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e da União Latina. Recebeu também o grande prémio para a tradução que fez do Tratado Político de Espinosa.

Na nossa conversa, concentrámo-nos em Maquiavel.

Pires Aurélio é professor de Filosofia Política na Universidade Nova de Lisboa. Foi administrador da Imprensa Nacional Casa da Moeda, presidente da Comissão da Unesco, director da Biblioteca Nacional, é consultor de Cavaco Silva para os assuntos culturais.  

 

 

O que é que hoje outorga poder a um indivíduo? Um indivíduo que actua na esfera política, na esfera das empresas, na esfera mediática.

O que confere poder é qualquer tipo de ascendência sobre o grupo. Penso que não será um princípio antropológico, mas é uma dedução que se pode retirar da História e da experiência comum: num grupo estabelecem-se distinções, assimetrias. Essas assimetrias tendem a cristalizar-se em formas de mando e de obediência.

 

O que é que é determinante?, é a inteligência, é o poder que emana da função, é o saber mais, é o dinheiro, são as relações familiares?

Tudo isso são elementos que podem contar. Não se pode definir previamente um modelo de poder ou um tipo de carisma. Primeiro, porque ele se revela de formas muito distintas. Segundo, porque depende do grupo em que se manifesta. Num grupo de universitários o tipo de requisitos para exercer eficazmente o poder será um, num Governo será outro, num grupo de amigos será outro.

 

Por que é que Cavaco Silva e Sócrates foram líderes e têm inegavelmente carisma? Por que é que adquiriram ascendente sobre os outros?

Visto a posteriori, é um facto que o adquiriram. O conjunto de qualidades e de recursos que tinham produziu as marcas simbólicas que o agregado – neste caso, o país – naquele momento, pretendia ver em quem exerce o mando. A variação das condições depende da natureza do grupo, das relações e das circunstâncias, incluindo as temporais.

 

Significa que esses dois líderes, num tempo diferente, poderiam resultar de outra maneira na sua comunidade?

Maquiavel diz isso muito claramente. Diz que as mesmas pessoas, as mesmas qualidades, em circunstâncias diferentes, produziram efeitos diferentes. E qualidades completamente opostas, em circunstâncias diferentes, produziram os mesmos efeitos.

 

Então, é indispensável saber interpretar o espírito do tempo.

Exacto. Desconfio muito de um discurso que se generalizou em relação à situação europeia, que vê a salvação através de um imaginário sebastianista, que consiste em dizer que faltam à Europa os líderes que tivemos há 20 anos ou há 30 anos. Não sei como é que seria a Europa do Sr. Delors, do Sr. Miterrand ou do Sr. Khol; como é que qualquer desses líderes actuaria, qual seria o seu grau de sucesso na Europa que temos hoje. Que é profundamente diferente da Europa que tínhamos.

 

Os desafios e as questões são radicalmente novos, na Europa e no mundo – é um facto.

Não estou a pensar apenas de Economia nos países emergentes, em todos esses fenómenos que conhecemos, mas noutro fenómeno: o do exercício do poder numa sociedade comunicacional como aquela em que vivemos, onde o escrutínio é feito com uma acutilância e uma velocidade com que não era feito há 20 anos. Dizer – “eles venceram, portanto agora venceriam também” – como norma, é errado, porque não se verifica historicamente. Maquiavel ensina-nos isso quando diz que o Papa Júlio II triunfou sempre, pela sua natureza impetuosa, carismática, que se impunha pela intuição, até militar; mas acrescenta: “Por sorte morreu antes de chegarem tempos em que seria preciso mobilizar características diferentes para triunfar”. Claro que os recursos que se trazem à partida, algumas vezes à nascença, contam.

 

Se tivermos um terreno fértil, é mais fácil fortificar; mas a semente tem de ser boa. Se Sarkozy e Merkel, Passos Coelho e Cavaco não tiverem determinadas características, não vingam.

Não vingam. É preciso, continuando no registo maquiavélico, que a ocasião não chegue em vão. Se não se tiver a capacidade de aproveitar a ocasião, impor a sua liderança, a ocasião será perdida. É necessário dispor de características que dominem as circunstâncias e o seu tempo. O que não posso dizer é quais são essas características para cada tempo.

 

a posteriori se pode perceber isso?

Sim. Se comparar três ou quatro líderes que em Portugal, nos tempos da democracia, tiveram poder e ascendência – a prova está em que venceram eleições –, pensemos em Sá Carneiro, Mário Soares, Cavaco Silva, José Sócrates, não vejo que se possa isolar um conceito de carisma a partir destas quatro personalidades tão diferentes entre sim.

 

O que é que será esse grão de carisma que faz que essas pessoas sejam aquelas que nos marcaram e que evocamos quando pensamos nos últimos 35 anos da história política portuguesa?

Quando diz que elas nos marcaram, convém, no plano político, pensar sempre que elas marcaram a maioria das pessoas. Esse é outro aspecto importante a ter em conta. Fazer política é fazer inimigos.

 

Porquê?

Tomar uma decisão é ir ao encontro de algumas, de muitas pessoas, de muitos grupos, de muitos interesses, de muitas expectativas, mas é também ir contra muitos interesses individuais ou de grupo. Uma decisão política é essencialmente isso – produz-se hostilidade.

 

Hostilidade e apoios?

Sim. Qualquer desses líderes tomou decisões muito nítidas que marcaram o tempo. Marcaram o tempo porque geraram muitos apoios, muitas amizades, e, em simultâneo, muitas hostilidades. Abanaram o seu tempo. É o carácter inovador da decisão que, pelas reacções extremas que provoca, afirma um líder. Não tomar decisões dessa natureza, manter as coisas tal como estão – não fazer política – é agradar a muita gente por algum tempo, mas a prazo é estar condenado.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar em Guterres, cuja via foi a do diálogo e consenso. Indo ao encontro do que estava a dizer, é como se tivesse produzido menos hostilidade, feito menos inimigos, mercê dessa tentativa de conciliação. Foi menos marcante por isso?

É curioso que essa via confirme aquilo que acabei de dizer. Talvez não por acaso, [Guterres] nunca teve uma maioria absoluta. Não estou a dizer que a via do diálogo, em certas circunstâncias, não seja a via recomendável. Estou só a dizer que líder é aquela pessoa que gera sentimentos fortes. Um líder tanto pode corresponder às características típicas que a população está habituada a ver nos líderes, como vir com características novas, e surpreender por esse lado.

 

Quais são algumas dessas características?

Não pode tipificá-las. A diferença que Maquiavel introduz é exactamente dizer que não se explica o fenómeno político através da tipificação de modelos, seja de indivíduos seja de situações (que é o que se faz com frequência na literatura dedicada a esta matéria). Quais são as qualidades que deve ter um rei? Quais são as qualidades que deve ter um líder político? Ele diz que isso é um exercício que acabará sempre por definir tipos, e que na primeira situação se podem desmentir.

 

Portugal, a Europa não podem definir, a priori, o tipo de líderes de que precisam?

Não. A posteriori os historiadores podem dizer isso. E nessa altura têm, não só o tipo de líder, como a prova dos factos.

 

Como é que lemos um livro como O Príncipe, escrito por Maquiavel há cerca de 500 anos, e conseguimos encontrar nele o nosso tempo (fazendo uma transmutação obrigatória)?

Há muito a tendência perante estes livros de os admirar como se admiram peças de museu. Notáveis, mas notáveis no seu tempo, e fechados numa redoma. Levo muito a sério a designação de clássicos que lhes atribuímos. E se são clássicos é porque continuam a ter uma capacidade de dialogar connosco.

 “Como é que isto foi dito já há 500 anos?”, é a pergunta que as pessoas fazem. Não creio que na análise do fenómeno político ou social as grandes questões que se punham a Maquiavel sejam muito diferentes daquelas que se põem hoje em dia.

 

Mesmo que as circunstâncias sejam completamente diferentes?

Mudaram-se as circunstâncias, mas os actores não mudaram tanto como gostaríamos.

 

Ou seja, não mudou a natureza humana, o modo de reagir perante uma situação?

A natureza humana não será uma essência metafísica imutável, mas muda muito mais lentamente do que podemos imaginar. Há aquilo a que eu chamaria o preconceito iluminista. É a crença em que a divulgação do ensino e da discussão pública iria injectar uma racionalidade nos processos de decisão e de actuação política a uma velocidade muito maior do que aquela que essa racionalidade produz.

 

Não deixa de ser paradoxal que sendo O Príncipe uma carta com determinados ensinamentos e princípios seja um texto tão enigmático. Os ensinamentos não são tão claros e inequívocos quanto parecem. Se calhar por isso, continuamos a surpreender-nos com a obra.

Há uma parte do enigma que deriva da nossa distância no tempo. Diria que o que existe, e existiu desde sempre, é a estranheza que o livro provoca. O que Maquiavel traz ao de cima são aspectos dos comportamentos humanos – não direi da natureza humana. Nunca temos em Maquiavel aquelas afirmações: “Os homens são maus”. Ele diz de forma muito mais pragmática que há indivíduos que não obedecem àquilo que esperaríamos; e basta que haja um ou dois para que isso induza atitudes de cautela, de desconfiança ou de agressividade no resto do grupo, que têm que ser tidas em conta. Aquilo de que Maquiavel fala são aspectos como a violência. O mando sobre os outros é uma atitude que representa sempre uma perda.

 

Perda daquele sobre quem é exercido o poder? Perda de território, influência, privilégios?

O poder tem sempre um lado de perda para o outro – no mínimo de liberdade. [Retomo a ideia de Maquiavel que diz que] a política produz sempre inimigos; além dos inimigos que faz quando conquista o poder, e afasta aqueles que lá estavam, é preciso contar com as inimizades que cria naqueles que tinham grandes expectativas sobre ele.

 

Não é possível nunca preencher essa expectativa? Por melhor que seja o líder, por mais que se esforce, o defraudamento é inevitável?

É. É da natureza do ser vivo nunca se satisfazer com aquilo que tem. E não estou a falar de recursos materiais, podem ser recursos espirituais. A vida é por natureza essa projecção no momento seguinte. A acção política traduz-se em tentar conquistar amizades – para usar a linguagem de Maquiavel – que compensem as inimizades que se produzem actuando politicamente.

 

A propósito da criação ou da manutenção de amizades, há um excerto que diz assim: “Extinguiu a milícia velha e ordenou nova; deixou as antigas amizades e granjeou novas; e, assim que teve amizades e soldados que fossem seus, pôde sobre tal fundamento edificar todo o edifício, tanto que lhe deu bastante fadiga a adquirir e pouca a manter.”

Maquiavel é uma carta fora do baralho do pensamento político. Aquilo a que chama “virtude política” não é algo que se possa definir previamente. Diz a célebre frase, tantas vezes comentada, mas mal interpretada e mal traduzida: “É melhor ir atrás da verdade efectiva da coisa”. O que está a dizer é que em política não há verdades que se possam fixar, cristalizar previamente. A política, por natureza, é uma verdade que só se apura nos efeitos. E os efeitos da política são os afectos que o exercício do poder gera. Afectos de hostilidade ou de simpatia.

 

Por isso é tão fundamental ter as nossas hostes, as nossas simpatias? É isso que nos vai ajudar, de uma forma mais sólida, a lidar com a adversidade?

O poder e essa ascendência podem-se exercer induzindo dois sentimentos: o de medo ou de amizade. O medo é algo que tem custos muito grandes em política. Pode ser eficaz, mas exige gastos militares, gastos em segurança, que são, por exemplo, a manutenção das ditaduras. Mas mesmo as ditaduras mais agressivas funcionaram sempre a partir de uma aproximação entre as lideranças e o público – aquilo que designamos por manipulação de sentimentos e de expectativas.

 

“A melhor fortaleza que existe é não ser odiado pelo povo”, lê-se n’O Príncipe.

Maquiavel, quando está a discutir uma questão militar concreta – “É possível ter fortalezas ou não ter fortalezas à volta de uma cidade?”, uma pergunta geoestratégica – diz: “Nuns casos será necessário, noutros casos será menos necessário. O que é absolutamente necessário é ter o apoio dos que lá estão dentro. Se não se tiver o apoio dos que lá estão dentro, da população, com ou sem fortalezas, o poder vai-se em três tempos”.

É normal e expectável que alguém que chegue a uma empresa, que forme um gabinete, leve os seus? Porque precisa de ter aqueles que são da sua confiança, aqueles que têm por ele simpatia e não hostilidade. Mas então, que fazer com os inimigos? Há quem considere que o melhor é mantê-los por perto.

Não é assim tão líquido. Temos exemplos no livro que alertam para os efeitos da actuação desses amigos – da linha intermédia que se escolhe. Há casos de governadores que são nomeados e que o príncipe, o líder, pouco tempo depois, tem que matar, destituir.

 

Quando olhamos para os líderes de que há pouco falávamos, somos capazes de apontar pessoas da entourage, da linha intermédia, que por uma razão ou outra caíram em desgraça aos olhos da opinião pública. Isso macula o líder? Dias Loureiro macula Cavaco? Armando Vara macula Sócrates?

O exercício da política traduz-se sempre num conjunto de actuações, de gestos, de palavras, naquilo a que posso chamar uma produção de sinais, que são percebidos de uma ou de outra forma no imaginário colectivo. Se o político escolhe colaboradores cuja actuação não está de acordo com os sinais que pretende dar, essa actuação de segunda linha produz efeitos nele próprio. Porque a escolha de colaboradores é um sinal que se dá. Esses sinais, considerados de um ponto de vista objectivo e racional, podem ser irrelevantes se tivermos em conta toda a obra que um líder já desenvolveu em relação à comunidade. Mas se olharmos à História verificamos que sinais desses podem ter efeitos muito mais fortes, seja positiva, seja negativamente, do que uma obra consolidada.

 

A História está cheia de grandes derrotas e quedas improváveis que resultam de episódios que consideraríamos insignificantes, gratuitos, inconsequentes. Mas caem, apesar de tudo.

Maquiavel nunca disse esta frase, mas disse coisas muito parecidas: “Em política, o que parece, é”. Isto não é o elogio da hipocrisia, se bem que se tomarmos o significado etimológico de hipocrisia, a política é de facto hipócrita. Hipócrita, em grego, é o actor. Não é que os fins justifiquem os meios, como habitualmente se interpreta, mas é correcto dizer-se que os princípios não justificam os fins. Os melhores princípios, sejam morais, sejam técnicos, podem produzir efeitos devastadores.

 

Em todo o caso, queremos acreditar que o político está animado das melhores intenções e que procura o bem comum. Queremos acreditar que esses são os seus bons princípios.

A vontade comum é a sua vontade, é a minha, é a dos desempregados, é a dos empresários. Quem diz a vontade comum diz a vontade popular. A política é uma aproximação disso. Mas é também uma forma de camuflar algo que é próprio da política: a conflitualidade intrínseca ao grupo. Vivemos permanentemente no pressuposto de que essa conflitualidade é ultrapassada, seja através de mais educação, seja através de maior moralização.

 

De negociação. A política vive disso, as empresas vivem disso. (Sei que estou a falar com um professor de Filosofia Política e que os leitores são, mais que tudo, pessoas das empresas e da política. Estou sempre a tentar puxá-lo para esta realidade, também.

Também vivo nela [riso].)

 

Hoje as empresas têm capitais de várias proveniências, têm várias sensibilidades políticas. A negociação, a cedência mútua, parecem ser a única maneira de se levar o barco a bom porto.

Diria que sim. Mas há movimentos que vivem do pressuposto de que é possível ir mais além do que a negociação. A utopia de uma sociedade sem poder – chamo-lhe utopia, há quem não chame –, do povo a encontrar-se consigo próprio e a prescindir da mediação, continua latente. Infelizmente não podemos dizer que o compromisso é a via, nem que os resultados sejam satisfatórios. Temos que argumentar dizendo que os resultados das alternativas que têm surgido têm sido piores. Continuamos a funcionar no registo “do mal, o menos”.

 

Cada vez mais, com o descrédito progressivo na classe política, as pessoas dizem que votam “do mal, o menos”.

É uma atitude racional, e mais do que isso, é uma atitude democrática.

 

A democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros, como dizia Churchill.

A política é escolher o mal menor. Admito que haja votos que sejam indefectíveis, e de uma sintonia absoluta com os eleitos – aí serão duplamente eleitos, na urna e no coração dos eleitores. Mas não acredito que isso seja o mais comum. E não vejo sequer que haja necessidade disso. Tenho muito receio de uma política que induza magmas sentimentais, em que não há distância entre quem governa e é governado.

 

Fica-se a um passo do totalitarismo?

Exactamente.

 

Na negociação, o que faz que uma voz prevaleça sobre outra, nos tempos que correm? Quem tem dinheiro é quem manda mais?

Não sei se quem tem o dinheiro é quem manda mais.

 

Olhemos para a Europa: quem manda é a Alemanha?, que é quem tem mais dinheiro?

A forma política em que vivemos, com mais ou menos deficiências, é aquela a que tecnicamente se chama Estado, que prevaleceu nos últimos 300, 400 anos, e que produziu os efeitos e a eficácia que conhecemos. E está muito sólida. Vide a China, vide os Estados Unidos. Sou céptico relativamente a toda a literatura que desde há dez ou 15 anos vem dizendo que este modelo está morto. Direi apenas que ele conhece as maiores dificuldades precisamente no continente onde foi inventado, na Europa.

A ideia desta Europa surgiu logo a seguir à [Segunda] Guerra. Os primeiros encontros são para fazer os Estados Unidos da Europa. O desenvolvimento económico e a passagem à unidade monetária deu-se na convicção de muitos de que seria uma forma de chegar à unificação política. Hoje em dia temos uma circulação de capitais, não só na Europa, mas também a nível intercontinental, e assistimos a sucessivos fracassos da organização política, da gestão desses mesmos conflitos económicos. Na Europa muita gente deita mão a um recurso que me parece demasiado fácil: “Vamos para a união política e isto resolve-se”.

 

Porque é que diz que é demasiado fácil?

A união política por decreto é algo em que não acredito. E não sei se terá tantos efeitos positivos como os negativos que pode suscitar. As pessoas evocam a ideia dos Estados Unidos da Europa, inspirada na América, mas esquecem-se com muita frequência que a união americana nos termos em que existe, desde há cento e tal anos, foi conseguida através de uma guerra de cinco anos. Não creio que se esteja a sugerir isso para conseguir união política. Costumo ironizar dizendo que a minha opinião nessa matéria é leninista [riso].

 

Como assim?

Lenine dizia, muito sagazmente, contra a Rosa Luxemburgo e muitos dos líderes do partido bolchevique que eram internacionalistas, e que estranhavam o apoio que ele dava aos movimentos nacionalistas russos, sobretudo durante os anos da Primeira Guerra, que ao apoiar os nacionalismos russos obtinha dois resultados. Primeiro, evitava ter questiúnculas nacionalistas no interior do partido bolchevique. Segundo, fazia com que os nacionalistas caucasianos, georgianos, ao trabalharem juntos em causas nacionalistas, fossem cada vez menos nacionalistas. Quando subiu ao poder, Lenine usou de soluções menos especulativas, foi menos magnânimo. Mas em relação à Europa, não vejo que haja muitas vias de acelerar a construção política. Vejo com alguma preocupação a situação em que estamos.

 

Independentemente dos líderes? Independentemente de ser Angela Merkel, Nicholas Sarkozy?

Não seria tão crítico relativamente a Merkel, para não falar de Sarkozy. Não sou um especialista em Economia, mas não sei se a sua actuação terá sido tão negativa para a Europa como certos europeístas pretendem fazer crer. Não sei se a modificação dos impostos alemães que tanta gente requer, e a que a Sra. Merkel se tem oposto, não levaria imediatamente ao poder os opositores da Sra. Merkel, que são tanto ou mais desconfiados do apoio aos países periféricos do que ela. A forma como Merkel tem sido denegrida resulta em grande parte da vontade de soluções que se imaginam mais fáceis do que seriam realmente.

 

A famosa frase: “É melhor ser amado que temido, ou o contrário? A resposta é que se quereria ser uma coisa e outra, mas, uma vez que é difícil acumulá-las, é muito mais seguro ser temido do que ser amado”. Parece uma questão retórica, pífia; contudo, andamos às voltas com ela há séculos.

Não é tão retórica, mesmo ao nível dos sentimentos. A gestão do amor é muito mais complicada do que a gestão do medo. Ao nível político, onde a segurança é um elemento fundamental para que se produzam os efeitos pretendidos, o ser temido é uma condição muito importante.

 

O impor respeito (traduzido em linguagem corriqueira), é isso o ser temido?

Ser temido é levar as pessoas, colaboradores e outros dependentes, a recearem as consequências de não actuarem de acordo com aquilo que está estabelecido. Estamos a falar de um temor interiorizado. Um grupo que não teme é um grupo onde a obediência tem de ser obtida pela força. Tanto o medo como o amor, como a amizade, a admiração, o consentimento, permitem que a sociedade funcione com um mínimo de exercício da força. E permitem que a força seja, para a maioria dos cidadãos, única e simplesmente uma ameaça potencial.

Isso aplica-se aos métodos pouco ortodoxos com que Maquiavel lida, como se aplica à mais elementar legislação sobre condução nas estradas. Se sabe que a probabilidade de encontrar um polícia é reduzidíssima, a transgressão é mais fácil. A partir do momento em que se interioriza a possibilidade de encontrar um polícia, a obediência verifica-se mesmo sem encontrar o polícia.

 

Nas notas que Napoleão fez ao texto de Maquiavel, e que não contempla na sua edição, lê-se: “Ingenuidade de Maquiavel. Poderia ele conhecer tão bem como eu o domínio pela força?”.

Napoleão vai mais forte que Maquiavel, apelidando-o de ingénuo! O domínio pela força é um recurso último?

É um recurso último não só porque é aquele que encontra as maiores resistências, mas também porque é o que tem custos mais elevados. A organização social, mais de esquerda ou mais de direita, assume a necessidade de existir um determinado número de forças que mantenham a segurança. Não porque se tenha qualquer devoção pela força, mas porque se sabe que a força é um elemento necessário para esse outro bem que é a liberdade de actuação. Para além dessa força que as sociedades comummente consentem, existe a força que em certas circunstâncias estala, seja numa guerra civil, seja numa guerra internacional. Existem todas as estratégias de como deslocar as tropas e obter determinados objectivos. Mas é difícil pensá-la [a força] em confronto com uma outra aspiração maior, que é a de Justiça. Há uma pressão enorme de imaginar, por exemplo, a ONU como uma espécie de justiça com pernas, uma espécie de justiça concreta. O que verificamos é que as actuações militares da ONU são no mínimo controversas. Não compreendo o que se está a passar neste momento na Líbia.

 

Em nome de quê se faz a intervenção?

Neste caso, não foram sequer anunciados os objectivos da intervenção. A comunidade internacional possui princípios, possui uma proto-constituição, uma série de órgãos em que se revê a maioria dos Estados, mas falta-lhe algo para ser um sujeito político em pleno sentido da palavra.

 

Conseguiria definir numa linha o conceito de democracia?

A democracia é o regime da contestação permanente.

 

O regime onde há espaço para a contestação permanente?

É o regime onde existe um poder, desejavelmente por representação, que define o que é o interesse comum. Mas é por esse interesse comum ser algo com uma componente de abstracção enorme…

 

E diverso, e heteróclito.

… que tem que estar sistematicamente em discussão. A democracia, desde a Antiguidade, foi sempre vista com muita suspeita por todas as camadas que se sentem com direito ao poder. Seja a aristocracia (o poder por herança, o poder por condição social), seja o poder do conhecimento. A democracia vai ao arrepio dessa convicção que temos de que quem sabe mais deve estar a mandar.

 

Lula foi alvo dos dois preconceitos. A sua condição social era pobre e o conhecimento reduzido (tem a quarta classe).

Lula conheceu todas as desconfianças. Não me refiro só às críticas objectivas aos governos dele, mas às críticas que vêm desse preconceito. As críticas de Platão à democracia derivam deste raciocínio: como é que vamos entregar aquilo que é mais precioso para uma sociedade – a sua condução – a analfabetos?

 

Depois, no séc. XX, temos episódios monstruosos que nos fazem desconfiar desse pressuposto: uma nação letrada e educada como a alemã foi capaz de perpetrar os maiores horrores.

Ter consciência das fragilidades e das limitações da democracia é um pensamento muito útil, porque evita essa convicção beatífica de que a democracia é o melhor dos mundos e que a democracia se pode implantar em toda a parte e em qualquer altura (o que o séc. XX demonstra que está longe de ser verdade).

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

Rita Ferro

18.02.14

O que significou esta vinda para o campo?

Evasão. Estava a endoidecer na cidade, já não separava o detalhe do todo. Estava tão cansada e angustiada que quando tocava o telefone, dizia «‘Tá lá» sem atender. Foi o primeiro sinal de que estava perturbada. Sou matutina, acordo às quatro, cinco, seis da manhã, e trabalhava muito – uma coisa que herdei do meu pai.

 

Também em Lisboa se levantava a essa hora?

Sim, toda a vida trabalhei muito; aqui mais, para reconstruir esta casa onde estou. Faço o que é preciso com a disciplina de um soldado. Mas foi realmente fuga. Estava tão fragilizada que sentia todas as humilhações. Quando se está em Lisboa, as pessoas aguentam o que têm de aguentar, não se apercebem. Quando vêm para cá, passa a ser absolutamente irreversível voltar para a cidade.

 

O que significa humilhação?

A pessoa esquecer-se de meter primeira num sinal verde e ter logo dez buzinas em cima, a negligência dos encontros humanos, todas essas coisas já estafadas. Coincidiu com o meu casamento; encontrei uma pessoa que tem um ofício que tanto faz ser aqui como na China, e pensei «É desta ou nunca mais». O Bernardo gosta muito de restaurar, e tinha uma encomenda de uma casa para estas bandas. Viemos para aqui há três anos. Ficámos numa espécie de refúgio, a 20 km, que o meu pai comprou para escrever. A seguir encontrámos esta casa. Entretanto a minha mãe enviuvou e ficou muito afectivamente ligada a essa casinha.

 

Era uma forma de estar com o seu pai.

Foi uma história de amor de 50 anos. Quando viemos para o campo, pensámos que podíamos ficar perto dela.

 

Era também uma forma de estar com o seu pai?

Era bonito que assim fosse, mas não pensei nisso. Compraram a casa há 13 anos e ele morreu há quatro, cinco anos – é um acto falhado, nunca sei bem quando é que morreu.

 

O que era a sua vida em Lisboa antes de vir para cá?

Vivia em casa a escrever. Só de há dois anos a esta parte me pude dar ao luxo de me livrar da redacção de publicidade, que foi sempre a minha ocupação principal, o pãozinho da boca. Comecei a minha vida no Reader’s Digest; a minha área específica era o direct mail.

 

Que tipo de cartas escrevia? Chamava-se Lúcia de Abreu.

Lúcia de Abreu para discos, Marta Neves para livros, ao seu dispor! Escrevia desde as cartas de produto aos folhetos de produto, a oferecer bicicletas e viagens e automóveis.

 

Tornava a vida apetecível.

Exactamente. Vai querer fazer o paralelo com a técnica da escrita?

 

Não. Não penso que a sua preocupação nos livros seja tornar a vida apetecível, mas sim reconhecê-la apetecível, apesar das frustrações e desencontros.

Saí das Selecções para me casar segunda vez e ter o meu filho; tinha uma filha do primeiro casamento, o meu ex-marido tinha um filho, queríamos ter um terceiro. O meu ex-marido era um quadro superior que viajava e eu, numa multinacional, também viajava. Era preciso uma mãe em casa. Deixei, olimpicamente, uma carreira no apogeu absoluto. Depois, em casa, trabalhei como freelancer para várias empresas, (o direct mail expandiu-se). Isto para dizer que só há muito pouco tempo me pude dar ao luxo de prescindir desse dinheiro; tive sorte e comecei a vender bem. Desde aí, divido-me entre os livros e os artigos, que implicam uma incrível dispersão, mas que vão captando novos leitores. E há ainda o papel patético da promoção, nas revistas, nos jornais, nas escolas.

 

É assim que entende esta entrevista?

Não. A imagem que passo, seja fisicamente seja verbalmente, decepciona-me muito. Abrir a alma a alguém que não se conhece, é difícil. Tenho a esperança de conseguir explicar através de uma entrevista um bocadinho do que sou para além do que pareço. Até porque o meu avô fez isso. Era um grande jornalista, catastroficamente para este país, na opinião de muita gente. Foi ele que abriu aquela ostra chamada Salazar, o apresentou aos portugueses tão bem ou tão mal que toda a gente se apaixonou por ele. Tenho a esperança de encontrar alguém que faça isso comigo.

 

O primeiro passo para aceder à essência de si será desmistificar ideias feitas, anular preconceitos.

Nem é bem isso. Gostava de me explicar, de falar com os meus leitores como falo com uma amiga. É uma certa aspiração romântica de querer ser amada. As pessoas classificaram-me muito rapidamente, e constato, melancolicamente, que não me conhecem. Escondo-me, umas vezes através da exuberância, outras através do laconismo.

 

No pacote de entrevistas que li, dizia que os livros têm uma componente autobiográfica forte, mas cifrada.

Há duas coisas em que estou centrada: ser uma pessoa equilibrada e ser uma pessoa natural. Esta exposição a que me sujeito, este sucesso que as pessoas invejam e que pode ser muito esquizofrenizante, tem-me retirado muita dessa naturalidade. Roubou-me a espontaneidade. Quando se tem medo oferece-se uma coisa diferente do que se é.

 

De que é que tem medo?

Que me confundam. Tenho fama de snob, e sou snob nalgumas coisas, mas se calhar não sou o que pensam. Tenho fama de ser uma senhora do jet set; nunca fui, nem nunca serei. Apanham-me nas revistas no foyer do Dona Maria, em lançamentos de livros; não me apanham em festas. E faz-me confusão que me achem uma beta!

 

É a tonteria ligada às betas que a incomoda?

Ligo os betos aos maçadores, obcecados em vender uma imagem de valores certinhos. A minha vida é a negação disso, é uma transgressão em relação ao meu meio. Vou sempre embora dos sítios onde estou, tenho uma necessidade absoluta de mudar os cenários, as pessoas. É o risco de viver comigo... Faz-me impressão que não percebam o que sou naquilo que lhes pareço.

 

E que não consigam desligá-la da sua família.

Por exemplo. Tenho uma inveja enorme do Miguel Sousa Tavares. É filho de duas pessoas com uma notoriedade enorme, mas nunca vão ter com ele falando-lhe primeiro da família. Comigo é esta saga: o seu pai, a sua avó, a terceira geração de escritores. Cansa-me imenso. Antes de entrar, já entrou toda essa conotação; é quase persecutório.

 

O aspecto que me suscita curiosidade na sua família, por ser extemporâneo, é o do interesse pelo ocultismo. Aos dez anos, já ouvia histórias do sobrenatural.

A minha avó era altamente mediúnica. Assinava uma revista séria que pesquisava casos de espíritos e essas coisas, que a mim me aterrorizam. Porque até me provarem o contrário, tudo é possível. A minha avó acredita em fantasmas, viu alguns, segundo ela. O meu pai fez espiritismo, muitas vezes em nossa casa, com amigos. Tem um livro chamado «Anjo branco, anjo negro» porque convocou o Fernando Pessoa, pediu-lhe um título e, segundo ele, foi o Fernando Pessoa que lhe deu a dica.

 

Que reacção teve isto em si?

Tinha muito medo, e continuo a ter.

 

E a sua mãe, participava desse universo?

Não, a minha mãe representava um mundo absolutamente à parte.

 

A sua mãe é uma ausência no seu discurso. É interessante que, sendo a mulher o seu tema recorrente, a sua mãe seja obnubilada neste processo.

Pensei que a minha mãe estava dentro dos meus livros. É o meu exemplo de força, mais até que a minha avó, que era inquebrantável. Estou fisicamente tão próximo dela que talvez nos confundamos. Não há a descrição da minha mãe nos livros, porque talvez ela esteja na narradora. É tão parecida comigo em alguns aspectos, e noutros é o oposto.

 

Onde é que se afastam?

Ela não é da geração da especulação psicológica. Nunca vi a minha mãe falar de estados de alma. Eu vivo centrada nas minhas fases e nas minhas crises. As melancolias da minha mãe decorrem de coisas concretas, «Estou assim porque», e localiza cirurgicamente. Eu vivo perdida a saber porquê. Quando me comparam à minha avó e ao meu avô, (o dinamismo da minha avó Fernanda, o exibicionismo do meu avô), comparo-me à minha avó materna, Maria, que era maníaco-depressiva – o que só soube este ano – exactamente como eu.

 

Quando soube, sentiu-se reencontrada?

Um bocado. Até agora falava-se de mapas astrais, agora fala-se de mapas genéticos. Há famílias inteiras que se acreditam malditas, e no mapa genético têm escrito «Tendência para doenças mentais». Na minha família materna há essa carga, que salta na minha mãe, que é uma pessoa solar, pragmática.

 

Que outras coisas tinha a sua avó Maria?

Agora estou apaixonada por essa figura. Temos muitas coisas em comum. Como esta dualidade, muito cansativa, de ser bonita e medonha, ser espampanante e geba, ser inteligente e burra, ser solar e sombria, e nunca saber a personalidade que vai sair de serviço. Não sabia como ia recebê-la, se eufórica, se pesada.

 

Como se fosse uma massa moldável que reage desta ou daquela maneira em função do que encontra?

Acredito muito nas empatias. Sou o que as pessoas convocam em mim. Uma das coisas que descobri no meu vasto currículo amoroso, foi que era preciso dar mais atenção à escolha do outro. No outro dia um padre dizia na televisão que as mulheres levam dias a escolher uns sapatos, meses a escolher um vestido, e o homem, aquele que vai ser o companheiro e o pai dos filhos, escolhem-no em três meses!

 

O outro é uma circunstância do nosso amor por ele. O amor que temos pelo outro centra-se muito mais em nós do que no outro.

Sei do que está a falar. O amor é anterior ao objecto, é quase um órgão em exercício permanente. Depois há o objecto que aparece e debela essa energia benfazeja. É nesse sentido que digo que não sou uma romântica, que não tenho o homem da minha vida.

 

Vai transpondo o seu amor para os vários objectos?

Tenho esta capacidade de amar que não é facultativa. Por isso é que digo «Mata ou capim, arde tudo o que estiver ao lado». Se não for um homem é uma casa, se não for uma casa é um vestido, se não for um vestido é um trabalho.

 

O que quer dizer com vasto currículo amoroso?

Não são 50 homens. Podem ser três histórias complicadas.

 

Porque me parece que se culpabiliza imenso pelo falhanço amoroso.

Quando se investe numa pessoa deve-se ir até ao fim, e muitas vezes vou-me embora a meio. É evidente que é quando não aguento mais. Mas fico sempre na dúvida, tenho sempre a sensação que mato uma parte das pessoas; e a mim não me matam, acrescentam sempre.

 

Isso já é uma elaboração para aliviar a culpa.

Sim, sou doentiamente escrupulosa.

 

Como é que se construiu assim?

Não faço ideia. Penso que na religião. Passo a vida a pedir desculpa. Tenho sempre medo de estar a magoar. Porque sou colérica, porque tenho muito boa pontaria e acerto entre os olhos. Tenho pavor de ter feito mal, ter feito mal aos meus filhos...

 

Amar excessivamente e dessa forma asfixiar?

Não, não é por amar. É exactamente por ainda não saber amar. Ainda não sei amar bem. Amo destemperadamente. Amo. Cobro. Mato. O amor, quando é verdadeiro, não fere, não mata, não agride, não é?

 

É?

É. Se me falar de paixão, é outra coisa. Amor é muito mais sério. Este livro que estou a escrever e que não sei o que é, que é visceral e está a passar sem censura do útero para o papel, fala muito nisso: na obsessão de não saber amar. Quer dizer, estimo as pessoas, sei o que valem para mim, sei que não viveria sem elas, e no entanto brutalizo esse amor, firo as pessoas que mais amo.

 

Apesar de toda a racionalização.

Percebi o seguinte: há a razão, a religião, há toda a informação que nos chega; e depois há uma coisa que lixa tudo, que é o sistema nervoso. Só assim se percebe que os escritores, que são capazes de escrever a beleza como ninguém, não a integram. Não tenho um grande fascínio pelos escritores; são muitas vezes mesquinhos, invejosos, egóticos, cruéis, amorais. Mas a escrita é o que se sabe, contraem-se doenças de ego gravíssimas.

 

O que é que se passa, a esse nível, consigo?

É uma coisa na qual desinvisto desde que comecei. Porque sabia, nasci nesse meio, vi coisas feias. Não estou aqui para ganhar prémios, nem para ser apreciada, nem para sonhar..., nem com um prémio da APE quanto mais com um Nobel! Mas sei que depois há o sistema nervoso a interferir nesta educação e que trama!

 

Entre ser melhor pessoa e melhor escritora, parece inequívoco que o seu projecto é ser melhor pessoa.

Parece-me inequívoco que é isso que quero. Mas se me perguntar se sou melhor pessoa agora, digo-lhe que não. Sei mais, mas isso não fez de mim uma melhor pessoa.

 

O que significa, então, crescer e ser uma melhor pessoa?

Isso que acabámos de dizer: chegar a um ponto em que se resolvem as coisas sem ferir, chegar a um ponto em que não temos que nos esconder. Vivo a perguntar aos meus amigos notáveis como é que resolvem o problema do sucesso, das solicitações, das mentiras que se dizem a nosso respeito. Desde dizerem que sou lésbica... Eu só disse, «Ai meus ricos filhos!». Vivo a contrariar os meus preconceitos, mas tenho-os. Os preconceitos não são simples atavismos; são contraídos na infância, muitas vezes a partir das palavras das mães, «Não vás por essa rua cheia de pretos», «Aquele é maricas».

 

Mas o que disse foi «Ai os meus filhos», e não «Ai a minha mãe». Bom, é uma especulação absurda...

E divertida. A minha mãe teria um desgosto, porque é muito preconceituosa. Os meus filhos não compreenderiam, achar-me-iam fraudulenta; seria uma mãe que não aquela que lhes apresentei.

 

Teve a sua primeira filha aos vinte e dois anos. Os seus filhos assistiram a várias mulheres, à sua evolução e diversidade.

Ah sim. Quando olho para a minha vida, digo que tive uma infância velha. Não me queixo: carradas de afecto, uma família grande, muitos primos, muitas férias grandes. Mas comecei a sofrer muito cedo. Com o sexo dos anjos!, tudo me fazia espécie. Tem a ver com a casa dos meus avós. Tem a ver com a disparidade entre o mundo da minha mãe, aristocrático e snob, e outro menos estético, de senhores com caspa, feios, a dizerem coisas deslumbrantes, do meu pai.

 

Não é espantoso que a sua mãe se tenha apaixonado pelo seu pai e pelo seu universo?

É, é, e foi muito mal acolhido. Os meus avós maternos meteram travões! Uma família da artistas inferia amoralidade, imoralidade, destemperos.

 

E luxúria.

Luxúria. Mas o meu pai era um príncipe das letras, e foi até morrer. Aliás, a minha mãe casa com o filho da patroa, que é uma coisa que não se sabe. Quando o meu avô morre, a minha avó fica com cinco filhos e começa a fazer pequenos trabalhos, que vende; a minha mãe, então com 15 anos, estava nas Escravas, onde a minha irmã e eu viemos a estudar, e passa a frequentar o Colégio de graça – era a melhor aluna – o que, de certa maneira, foi humilhante. Começou a trabalhar cedo, vai parar aos parques infantis, obra da minha avó paterna, e conhece o meu pai. Depois entrou naquela casa, na Calçada dos Caetanos, onde tudo acontecia e onde havia um verdadeiro pluralismo, a Esquerda e a Direira. Uma casa mítica. Nós assistíamos a grandes excessos, com a minha avó, uma mãe índia, junto de quem ninguém dizia um palavrão...

 

Diz palavrões?

No meu discurso? Nunca. Só sei dizer três, que digo em discussões passionais. A minha mãe diz que digo palavrões nos livros, mas é mentira. Não me vai obrigar a dizer quais são!... São os que vêm nas paredes!

 

As palavras têm pesos diferentes.

As duas palavras que têm mais peso para os dois sexos são «Filho da Puta» para um homem, que é inultrapassável, e «Puta» para uma mulher, que, mais do que um insulto, é uma sentença e uma condenação. É uma palavra que ouvimos muito cedo, quando ainda não merecemos, e que nunca mais de lá sai. Fica lá a obsessão e a dúvida se somos ou não.

 

Foi educada para ser uma senhora com um casamento para a vida, afastada do pecado da luxúria, do prazer de uma existência sensual. Sentiu-se culpada por amar e desejar mais do que uma pessoa?

Vamos lá ver uma coisa: não fui educada nesses valores porque, pura e simplesmente, nunca falei de sexo com os meus pais. Nunca. Andava atrás da minha mãe, quando me iniciei com os namorados, para saber até onde podia ir!, se um beijo na boca já era pecado ou não era.

 

A sério?

Literalmente assim. Tinha 12 anos. A minha mãe recusou-se a dizer o que fosse. Disfarçava. Fui educada com o exemplo dos pais. Um exemplo estético que não era formulado ou esmiuçado. Tudo aquilo que pensava que os meus pais não faziam e eu fazia, causava-me mau estar. Tinha muito a noção de pecado de que fala o Alçada Baptista. Por outro lado, lia coisas, inclusivamente em contos do meu pai, muito ousadas. Os livros proibidos lá em casa, (o Padre Amaro foi o primeiro que li!), estavam escondidos com a lombada ao contrário. Quando aprendemos o esquema, passámos a ler justamente os que tinham a lombada ao contrário.

 

Tinha uma cumplicidade com os seus irmãos?

Essa palavra, que faz imenso sentido agora, não sabíamos o que era. Éramos três irmãos típicos, à batatada, competitivos entre nós, «Quem é o mais esperto, o mais inteligente, quem é que bate mais» – sou a mais nova, fui a que apanhei mais. Discutimos muito; é muito cansativo para os genros e noras sucessivos que se juntam à família (os Ferros casam muito...).Todas as festas e eventos familiares acabam na mais napolitana discussão! Sempre. Em miúdos era com pancada. Agora é com palavras. O meu pai também discutia muito com a minha mãe – Vou levar um raspanete da minha mãe por dizer isto, mas paciência, assumo a minha incontinência.

 

Mas sabem do amor que sentem apesar da discussão contínua?

Sim, sim. Esse amor é adquirido, nem sequer se fala.

 

Isto vinha a propósito das dúvidas que não podia resolver com a sua mãe.

Também não podia resolver com a minha irmã. Outro traço muito típico nesta relação de irmãos é o pudor. Os meus livros desmentem, são despudorados... Cresci com a minha irmã e nunca me despi à frente dela. Coabitação na mesma casa de banho, jamais. Nunca vi a minha mãe em combinação. Havia o culto do pudor. Que, quando não é extremado ou coarcta, é uma coisa bonita.

 

Como foi com os seus filhos?

Tenho com eles uma relação completamente diferente da que tive com os meus pais. Aderi e abusei da geração do diálogo. Quando quero dizer não, já me pedem satisfações, o que me põe doida. E agora travá-los? Não soube dosear e estou a pagar esse preço. Metem-se na minha vida porque lhes dei esse direito. Mas sempre preferi miúdos insolentes a reprimidos.

 

Foram assim os seus namorados, insolentes?

Há uma grande diferença entre namorados e homens, mas isso dava para um livro! Os namorados, os noivos, eram genros que agradariam à minha mãe. Depois, a mesma menina do colégio, deixa-se fascinar pelo cinema francês, das fitas da inteligência e da amoralidade, do sexo e da bandalheira. Como muitas raparigas da minha geração tive fascínio por esses homens, estive lá perto... Mas cortei-me sempre, tenho um grande instinto de sobrevivência.

 

Não sucumbiu ao abismo.

Descontrolo-me imenso no sentimento, sou uma apaixonada pelas pessoas, mas nunca ceguei de paixão. A minha definição de paixão é: «Expectativa inflacionada de alto valor energético»! Parece literatura inclusa num remédio, não é? Mas não cego em relação aos defeitos e menoridades que as pessoas têm. Depois sucede que sou católica, sem vergonha de o assumir. (Não sou praticante, entrei em auto-gestão há muitos anos quando me disseram «Não podes comungar»). A minha fé deu-me uma enorme dificuldade em distinguir o amor cristão do amor homem-mulher. Aproximo-me ou deixo-me atrair, não quero desmontar, por alguém junto de quem vou ser útil, junto de quem essa energia benfazeja possa dar flor.

 

No virar dos vinte anos casou e teve a sua primeira filha. Porquê?

Nesse tempo, era tudo predestinado: casar e ter um filho imediatamente. Evidentemente amei, evidentemente escolhi a pessoa.

 

Separa-se ao cabo de três anos.

Fui sempre eu que larguei as casas. Em termos logísticos, foi mais complicado. Tive muitas fases de bater com a cabeça nas paredes, com dificuldades para conciliar a mãe e a trabalhadora.

 

Foi também isso que a fez tenaz?

Sim, sim. Nunca hesitei se queria ou não viver. A vida é um campo de obstáculos. É divertido, perante o maior obstáculo, saber resolver. Tive sempre essa atitude: a vida não me derrota, o destino não é senão uma proposta facultativa. Eu faço o meu destino, eu escrevo o meu livro, eu escrevo a minha vida.

 

Na sucessão de obstáculos, foi sendo mulheres diferentes.

A primeira mulher é a que quer vencer profissionalmente, que se torna uma winner no seu meio, o que desconforta o marido que tem em casa. Há uma segunda, a quem a avó escreve nas memórias, «A minha neta Rita se quisesse podia ser escritora».

 

O que significou essa frase da sua avó?

Uma ordem! Seria indelicado não fazer um esforço para corresponder àquela aspiração. O meu pai nunca me tinha lançado esse repto.

 

O que é que a sua avó tinha lido seu?

Sempre escrevi. Desde o poeminha publicado no Diário Popular aos 10 anos, tive as palminhas e os estímulos de toda a gente: era a menina que escrevia versos nos anos das tias velhas, as minhas redacções passeavam pelas casas dos meus colegas. A minha avó era muito parca em elogios; se escreve aquilo é porque tem uma intuição, que eu procuro honrar.

 

Ela gostou?

Já via mal, fui obrigada a ler-lhe o livro. Foi uma experiência que não posso esquecer. Ela, inexpressiva e imperturbável, a ouvir. Não havia nem um levantar de sobrancelha, se estava a gostar ou não. Eu suava, emagreci nesses dias. No fim disse-me «Continua, acho que vais lá». O meu pai disse-me «Deita metade fora, reescreve o livro». Não reescrevi e assim saiu, desamparado, o meu primeiro livrinho. Isto era para colar com quê?

 

Com as várias mulheres.

Há um homem que não gosta que eu tenha uma profissão que me obriga a viajar. Era absolutamente português. No princípio achava que era uma vítima, agora constato que são todos assim. Ninguém gosta de ser o marido de, nenhum homem gosta de ganhar menos que a mulher. O primeiro homem diz-me «Não casei com uma executiva», o segundo «Não casei com uma escritora».

 

Não procurou excepções à generalidade portuguesa?

Já, e encontrei.

 

Chegámos à mulher do «Uma mulher não chora», que foi apenas há três anos. Depois mudou tudo outra vez.

A mulher do «Uma mulher não chora» acredita, a páginas tantas, que pode ser feliz sem um homem. A mulher de hoje não acredita. Todo o meu percurso foi isso: não preciso de homens, se eles me querem muito bem, se não vou à minha vida! Estou a subir uma montanha, não me querem acompanhar, paciência! Esta singela metáfora da montanha é da única astróloga que consultei em toda a minha vida.

 

Singela? Parece de uma terrível carreirista.

É uma imagem. A minha astróloga... Fui uma vez por curiosidade, como fui uma vez a um psiquiatra. Como sou boa em síntese, contei a minha vida desde pequenina. Quando acabei tinha a catarse feita, não tive necessidade de voltar mais. Tive vergonha, tinha-lhe contado a minha vida toda... Mas eu não acabo nada! Hoje em dia acho que uma mulher pode ser o que quiser, mas...

 

«A liberdade sem a ternura de um homem não vale um caracol», a frase é sua.

[sorriso] É verdade. No meu quarto de adolescente tive um poster de uma mulher deitada na cama de barriga para cima, o homem está com o antebraço atravessado na garganta dela. Aninhada, protegida, feliz, em paz. Associei sempre o amor a essa imagem, a esse abraço. A mulher do «Uma mulher não chora» ainda tinha pretensões de uma felicidade na independência. Esta melhor não tem a menor ilusão. Não estou a referir-me às mulheres, não estou a entrincheirar num discurso feminista. Eu, sozinha? Muito obrigada, não.

 

Há-de desculpar a bizarria da pergunta, mas é assim tão difícil viver com um homem?

Não. Mas há-de constatar que os homens, normalmente, coarctam o percurso da mulher. Só agora, nesta relação, não sinto coarctação de espécie alguma.

 

O seu marido não se sente ameaçado por si?

Não se sente minimamente ameaçado. Começa por não ter a mínima pachorra para me ler, nem para as minhas temáticas.

 

Não precisa desse eco dele?

Não. Tenho 300 interlocutores intelectuais com que posso conferir e aferir ideias. Em casa preciso é de um interlocutor afectivo. Que me perceba, que me perdoe.

 

A sua temática, para a qual ele não tem pachorra, é o amor, são as relações.

É desconfortável para um homem ver a sua mulher a expor-se de uma determinada maneira. Nem que seja a descrever uma cena de cama. Isto toca teclas arquetípicas muito antigas. Ele defende-se assim, e estamos bem. As pessoas dizem «Mas não tens pena?»; talvez tenha alguma, mas o preço é tão caro quando começam a querer encontrar-se nas entrelinhas, a tirar ilações do que se está a ficcionar... O Bernardo não se aproxima da escritora, aproxima-se da mulher que conheceu na casa de um amigo.

O que mais me desespera e me alimenta o tinteiro, é essa clivagem profunda. Há um caminho interior que se faz da dissolução dos nossos defeitos e pecados. Há outro, que é o chamado vencer na vida, que nos obriga a corrupções diárias. São estes dois caminhos, feitos concomitantemente, que me estão a fazer mal, que me estão a roubar a saúde e a espontaneidade. Escrever é muito catártico, e é, no fundo, chorar essa clivagem central na minha vida. Precisar de uma sessão de autógrafos e, ao mesmo tempo, considerar patético o papel da aspirante a estrela que vai dar autógrafos. É uma coisa com que pactuei, é disto que vivo, estou a pagar o meu preço. Talvez um dia, e estou a caminhar para isso, possa viver sem estes folclores, viver pacatamente.

 

Há uma parte de si que gosta. Gosta da manifestação de interesse/amor que o público revela por si.

Sim. É suportável também por aí. É a carta anónima, é a mulher que chega ao nosso lado a dizer «Você escreveu a minha vida», é saber que já influí directamente em quatro divórcios, é saber que os meus livros são oferecidos como avisos à navegação de homem para mulher e de mulher para homem.

 

No seu livro de crónicas, endereça ao seu pai algumas questões. A primeira das quais é «Eu não sou bonita». Sente-se feia? Como é que lida com a sua feminilidade e com a sua imagem?

Não tenho uma beleza canónica, sou completamente irregular: a minha cara é balofa, desequilibrada. Mas se observasse uma mulher como eu achava-me interessantíssima. Já vivi o suficiente para saber que uma mulher menos bonita tem de se esforçar mais. Agradeço bastante não ser bonita, não me ter sido facilitado o trabalho. Dou avanço a 50 mulheres bonitas; elas podem interessar fulminantemente um homem, mas talvez sejam mais descartáveis que eu. E há aquela canção do Vinícius, da imperfeição que acende o desejo; sou muito assim.

 

A sua mãe era bonita?

A minha mãe era deslumbrante, eu saio ao meu pai.

 

Foi um modelo de feminilidade para si?

Não era propriamente uma fada do lar; não fala de skips nem de receitas de bolos. A minha mãe tem 78 anos e há dias uma criança de seis anos, aqui no campo, perguntou-lhe: «A senhora tem namorados? Então com essa boquinha tão bem pintada não lhe apetece dar beijos na boca?» É uma história deliciosa.

 

As outras coisas de que fala na carta ao pai são a procura do amor e do equilíbrio.

A procura do equilíbrio e da naturalidade. Naturalidade representa ser igual a si próprio estando com um cavador de enxada ou com o Papa. A minha irmã tem essa qualidade, essa graça. Sou daquelas pessoas inseguras, orgulhosamente inseguras, sobre as quais os outros têm uma poderosa influência. Se juntar três pessoas numa sala, e perguntar o que acham da Rita Ferro, há três opiniões radicalmente diferentes. Uns vão dizer «É uma neurótica», outros vão dizer «É a mulher com mais graça que conheci».

 

Quanto ao amor.

O amor? Eu, que achava que era um dos meus temas, que dava lições, descobri que não sei amar, que fui uma péssima aluna do amor, uma cábula convencida. Tenho levado algumas lições, que me comovem às lágrimas. A humildade é também uma coisa que tenho de começar a trabalhar, já vou muito atrasada. Tenho perfeita consciência das minhas limitações, mas não sou uma pessoa humilde.

 

Dá-se com alguém aqui na aldeia?

Dou-me imenso. Mas estaria a mentir se dissesse que me sento com o mesmo à vontade consigo ou com um operário cá de casa. Tenho algumas resistências estéticas. Talvez seja um bocadinho classista. Não me orgulho nada, mas é verdade. Depois há gente simples. E o que é que a gente deseja senão a simplicidade, o despojo, as almas límpidas? Mas para as amarmos, teríamos também de amar o que muitas vezes vem a seguir: o palitar dos dentes, o arroto, o cheiro a suor.

 

Tem afinidades estéticas com todos os seus amigos?

A minha grande rejeição estética é a ordinarice, em qualquer meio. Entram na minha vida todo o tipo de pessoas. Menos as ordinárias. Apesar de eu ser muitas vezes ordinária, sublinho. Tudo isto é relativo. A minha mãe acha que escrevo livros ordinários. Quando escrevi «Os filhos da mãe», disse-me: «É desta que não vou ao teu lançamento, tenho vergonha das minhas amigas».

 

Quem são as pessoas que recebem as suas confissões?

São três. Quer nomes?

 

Sim.

Acha que isso interessa aos leitores?

 

Gostava de saber que tipo de pessoas são.

São pessoas junto das quais aprendo sempre. Uma é jornalista, outra é administradora de uma empresa, outra é poeta. São pessoas inteligentes. Um dia perguntei à Agustina: «Os seus amigos são todos inteligentes?», ela respondeu: «Agora sim». Subscrevo, agora sim.

 

Gosta de escrever pela manhã, directamente dos seus sonhos. Gostava de terminar perguntando-lhe o que sonhou hoje?

Tenho muito pouca consciência dos sonhos. Os sonhos que tenho estão muito ligados a crianças. Nunca tive sonhos sexuais, por exemplo. No último que me impressionou imenso, tinha tido um aborto espontâneo – nunca fiz nenhum aborto, nem o tive espontâneo. Por insanidade, perturbação e desgosto, guardei o feto num estojo acolchoado e, quando um dia abri o estojo, reparei que a criança tinha sobrevivido. Lembro-me de ter tido tanto horror do erro monstruoso, (ter amortalhado uma criança viva), que quase deixei cair o estojo. Depois fechei-o para que ninguém soubesse. São sonhos muito estranhos, ligados à maternidade, com que a minha filha também sonha. É engraçado...

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999