Leonor Beleza
Maria Leonor Couceiro Pizarro Beleza nasceu no Porto em 1948. Viveu em Coimbra até aos nove anos. Mudou-se para Lisboa onde o pai, professor universitário, assumiu funções como Secretário de Estado do Orçamento. Completou o Liceu no Maria Amália. Matriculou-se em 67 na Faculdade de Direito, onde foi colega de Braga de Macedo e Marcelo Rebelo de Sousa. Foi membro da Sedes. Entrou para o PPD em 74 e afastou-se no ano seguinte; voltou em 81. Em 82 é convidada para Secretária de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. Aos 36 anos é convidada para Ministra da Saúde. Em 88 assiste-se ao princípio do desmoronamento. A sua passagem pelo Ministério da Saúde é indissociável de escândalos que teriam aniquilado qualquer político menor. Mas a Leonor vaticinavam-lhe uma carreira política fulgurante, apontavam-na como mais provável sucessora do líder do PSD. Adversários e apoiantes concedem-lhe o benefício da dúvida sobre a sua responsabilidade pessoal no processo do Ministério da Saúde (que envolveu o seu Secretário de Estado Costa Freire e também o seu irmão Zezé Beleza). Não é possível dizer o mesmo quanto à sua responsabilidade política.
A vice-presidência da Assembleia da República marca o seu regresso à política activa, oito anos depois de ter resignado. Pode ler-se no texto de então: «Ninguém me pode exigir a continuação de um sacrifício desproporcionado». Por essa altura era já acusada de ter tido conhecimento de estar a ser administrado sangue contaminado com o vírus da Sida a doentes hemofílicos.
O que dizer sobre esta mulher quando parece que tudo foi dito sobre ela? O que fazer senão uma inventariação curricular tão sumária e desapaixonada quanto possível?
Leonor Beleza é casada, tem dois filhos e uma neta. Esta é uma muito rara oportunidade de a ouvir falar na primeira pessoa.
Pode falar-me da sua bisavó, uma das primeiras médicas portuguesas?
Foi uma das três primeiras médicas portuguesas. Uma das irmãs era médica também, uma terceira irmã também se formou em medicina e uma quarta irmã formou-se em engenharia e foi a primeira engenheira portuguesa. O meu trisavô, e a minha trisavó seguramente, tinham uma ideia completamente diferente do que era o papel das mulheres e nomeadamente do que deviam fazer as mulheres em relação aos estudos. Isso era extremamente raro e para mim é um elemento precioso na história da família.
Família materna ou paterna?
Era mãe da mãe da minha mãe, tudo pela linha feminina.
O início do seu percurso esteve ligado à Comissão da Condição Feminina.
Em minha casa ouvia dizer muitas coisas sobre a situação das mulheres, e em particular sobre a situação legal das mulheres, porque a minha mãe é jurista. Estudei na faculdade aquele direito anterior ao 25 de Abril e à Constituição de 1976, que era discriminatório. Incomodava-me, enquanto estudante de Direito e jovem licenciada, viver sob regras jurídicas que não me reconheciam os mesmos direitos que me reconheceriam se eu fosse homem. Quando me formei não podia ser diplomata nem juiz, se quisesse.
Na família há primeiro a tradição dos médicos e depois a dos juristas.
A minha mãe, o meu pai, o meu avô, os meus primos, as minhas irmãs... Quando cheguei à altura de ter de decidir, o Direito era a coisa mais óbvia. Decidi conscientemente e nunca me arrependi. Não foi uma escolha difícil, provavelmente por uma influência da família, ainda que não expressamente exercida. Mas o que acho mais interessante é que nunca me arrependi disso, nem durante o curso, nem depois. Sou uma jurista com gosto.
Nem quando, pela vida fora, a ideia gloriosa do Direito se abateu contra si própria?
Sei do que está a falar... Quando nos decidimos a estudar Direito, vemo-lo como a imposição da justiça. Olhamos sobretudo para sectores que têm a ver com a proibição de actos muito nocivos, com a perseguição de criminosos, com o pôr as coisas na ordem, com a construção de valores da vida em sociedade que também incluem a igualdade e, na altura em que me formei, a democracia, (que não existia). Na vida vi-me várias vezes confrontada com o funcionamento de coisas que não eram exactamente como terei imaginado. Mas isso não retira nada ao valor e ao interesse que o Direito tem em si e ao gosto que tenho por ele. Ter estudado Direito e ser uma jurista fez parte do que escolhi e faz parte do que sou.
Era a sua mãe que se ocupava da vossa vida escolar?
Era a minha mãe que acompanhava mais de perto o estudo, sim. Embora, cada um de nós, tratasse muito de si próprio. Habituámo-nos desde cedo à ideia de que tínhamos de trabalhar e estudar. Para mim era óbvio que tinha de tirar um curso superior. Os meus pais esperavam que nós estudássemos e tirássemos boas notas, e consideravam isso normal.
Considera que há uma ligação muito forte entre as mulheres da família. Consegue dissecar o que é esta relação?
Não sei se sei explicar. Eu sei que existe, para cima e para o lado. Temos todas muito uma identidade como mulheres... A identidade sexual é muito forte nas pessoas.
Considera inclusive que não é nada indiferente o sexo que as pessoas têm.
Claro que não.
Condiciona como?
Quando falo ao telefone e não distingo imediatamente qual é o sexo dessa pessoa, fico completamente perdida. O sexo faz parte da identidade básica de uma pessoa. Admito que o facto de me ter interessado pelas questões da igualdade e das diferenças entre os sexos me torne particularmente sensível; mas não ao nível de [querer] saber imediatamente qual é o sexo da outra pessoa e isso ser importante para saber como falo com ela. Instintivamente há coisas que não fazemos da mesma maneira. No comportamento das pessoas estou sempre a ler se estão ou não a funcionar de acordo com o seu sexo.
Ah sim?
Sim. «Portou-se como um homem, portou-se como uma mulher».
Isso é espantoso vindo de si.
Porquê? Tenho uma consciência muito aguda do que são as diferenças tradicionais de comportamento.
É espantoso vindo de si porque o seu comportamento, tradicionalmente...
É de homem?!, não me diga que vai dizer isso... Já ouvi umas vezes essas coisas...
Os chavões que lhe foram imputados ao longo da sua carreira, a dureza, a arrogância política, (para citar os mais frequentes), são consequência de não ter um comportamento que é o esperado nas mulheres.
Os outros olham para nós e põem-nos adjectivos que acham que merecemos ou que nos querem pôr. Não vou discutir isso, se sou dura ou deixo de ser, ou arrogante. Quando entramos num certo mundo, há uma série de regras que esse mundo comporta e que podemos praticar mais ou menos. Muitas vezes a imagem que as pessoas reflectem pode ser excessivamente de adaptação a esse mundo. Não acho nunca que funcione como um homem. É uma coisa que me faz uma certa confusão... Mas isto é de dentro. Não era de dureza nem de arrogância que se tratava. As pessoas não conseguem mudar sozinhas as regras do sítio onde entram. Se olhar para a Assembleia da República percebe do que estou a falar quando falo de regras que foram feitas para um determinado mundo e não necessariamente para um mundo que desejo partilhado.
Quer dar um exemplo?
Os horários de funcionamento da Assembleia. Uma das coisas mais sérias que temos para resolver é a conciliação dos tempos da vida de cada um de nós. As mulheres sempre tiveram o tempo muito mais partilhado entre coisas diferentes do que os homens. Considerava-se normal que as mulheres estivessem em casa a tomar conta dos filhos e das tarefas domésticas. Foi-lhes permitido o acesso a outros mundos sempre no pressuposto de que tinham de conciliar esses outros mundos com aquele de que saíam.
Antes de vir para aqui, lavei a louça do meu almoço. E quando estava a fazê-lo, perguntei-me se a senhora continua a lavar a louça.
Lavo. Não tenho um gosto particular por fazer essas coisas. As minhas duas irmãs, (ambas têm vidas profissionais extremamente exigentes), são excelentes cozinheiras e eu não sou. Mas sinto a mesma pressão para resolver as coisas de casa que a generalidade das mulheres resolvem. Embora em relação à cozinha seja bastante incapaz, o resto das coisas sei fazer razoavelmente e faço muitas vezes. Quando conto com menos ajuda, faço-as mesmo. Entro em casa e não tenho tempo para me sentar a olhar para a televisão como se imaginará que os políticos façam, ou para ler o jornal.
Este excurso interrompeu o exemplo referente aos horários da Assembleia.
Numa reunião aqui na Assembleia discutia-se uma ordem de trabalhos e um colega deputado dizia: «Mas vamos acabar a essa hora, o que é que vamos fazer a essa hora?». Essa hora era seis e meia, sete horas. Eu pensei, «Aí está uma questão que uma mulher nunca se poria». Todas as mulheres deste mundo sabem que às seis e meia, sete horas têm imensas coisas para fazer. Foi mais fácil as mulheres entrarem no mundo do trabalho e admitir-se que tinham de conciliar tudo, do que as coisas começarem a ser partilhadas. Uma grande socióloga francesa dizia que foi mais fácil inventar o biberon e libertar as mulheres da necessidade de amamentar até tarde do que pôr o pai a dar o biberon ao filho.
Seria normal que a sua convicção feminista remetesse para uma situação de desigualdade à partida. Mas a vários títulos pertence a um mundo privilegiado. Estudou mais do que terão estudado muitas das mulheres do seu tempo, teve acesso a cargos a que poucas mulheres tinham e têm, pôde ter ajudas em casa de que muitas mulheres não dispõem.
Se me está a perguntar se eu a senti na pele [desigualdade], senti. Repare, quando me formei em Direito, não podia ser juiz nem diplomata. Andei no liceu feminino e só tive colegas homens aos 17 anos. Não era particularmente agradável para uma rapariga da minha idade entrar na Faculdade de Direito de Lisboa e ser confrontada com um grupo de colegas, (que eram muito mais numerosos que as colegas), que nos recebiam com assobios e aviõezinhos quando chegávamos atrasadas. Muito poucas raparigas se atreviam a entrar quando o conjunto já estava lá dentro. A segregação inicial a que tínhamos sido sujeitos não era muito saudável. Não me senti particularmente bem nos meus primeiros tempos de faculdade.
Terminou o curso com média de 17 valores e foi a primeira mulher sem doutoramento convidada para dar aulas. E na política, foi a segunda, depois de Maria de Lurdes Pintasilgo, a exercer funções de ministra.
No primeiro ano em que dei aulas não me senti confortável, sobretudo com os alunos mais novos. Não estavam habituados a ver uma rapariga jovem... A primeira vez que fiz parte do governo era Secretária de Estado da Presidência do Conselho e foi difícil que me tratassem no feminino. Tive dificuldade em que as pessoas admitissem que as palavras existiam no feminino. Tive escaramuças, pequenas escaramuças, e uma enorme compreensão por parte do Presidente da República da altura, o General Ramalho Eanes. Porque pedi expressamente que a minha designação oficial fosse no feminino! Quer o meu primeiro primeiro-ministro, o Dr. Francisco Balsemão, quer o Professor Cavaco Silva, aceitaram imediatamente que fosse tratada como gostava de ser tratada.
Tratavam-na como «Secretário de Estado Dra. Leonor Beleza»?!
Ouça, isso que hoje acha ridículo, na altura era comum. Mas ia dizer uma coisa um bocadinho pior: às vezes achava que algumas pessoas podiam pensar que eu era mais secretária que Secretária de Estado. Estou a tentar explicar que há coisas que todos nós recebemos e que nos marcam pela vida fora. E essas imagens, muitas vezes, prevalecem para além do que julgamos que são as nossas convicções. Ter pessoas em lugares de decisão que compreendam que isto significa alterar comportamentos, regras, atitudes, é muito importante. É umas das razões porque acho que é preciso muito mais mulheres em postos de decisão. As coisas vão-se alterando, de uma maneira muitas vezes imperceptível, pelo simples facto de haver mulheres presentes.
Falei com algumas pessoas, quando me preparava para a entrevista, e perguntei-lhes o que gostariam de saber a seu respeito.
E queriam saber se eu lavava a louça? [gargalhada]
Todos diziam que nada sabiam sobre si, que não sabiam onde estavam os seus afectos.
Tive uma atitude deliberadamente protectora em relação ao meu lado pessoal e familiar. Sempre achei que a minha opção de estar nesta vida tinha muitos pesos que eu tinha de saber suportar tão sozinha quanto possível. Tenho pago algum preço por andar nisto, e a minha família também. Sou eu que apareço, que me exponho, não tenho de trazer os outros. Não tem nada a ver com ter afectos ou deixar de os ter. Tenho-os iguaizinhos a toda a gente, com a mesma intensidade de toda a gente.
Provavelmente não diriam isto de um homem.
Ah, com certeza que não. É óbvio que os afectos de um homem não são chamados! Tem toda a razão. Aquilo que disse há momentos, que quando se olha para uma pessoa a identidade sexual é muito importante na percepção dessa pessoa, também é o que está por detrás disso. Quando perguntam onde estão os meus afectos, é também a necessidade, não digo de me reconduzir à minha condição de mulher, mas de encontrar em mim manifestações de que também sou mulher.
De acordo. Mas nunca assistimos a uma manifestação mais expressa dos seus afectos.
Vou contar-lhe uma coisa de que nunca falei. Não sei se não me vou arrepender, mas vou falar. Tenho as minhas fragilidades como toda a gente tem, tenho uma emotividade muito elevada, que tento controlar, mas que às vezes controlo menos, ou que sabia controlar menos numa certa fase. A primeira vez que fui membro do governo fiz uma visita em representação do primeiro-ministro à Maternidade Alfredo da Costa. Assisti a uma coisa a que nunca tinha assistido em relação a outras, a um parto. Tinha tido os meus, mas nunca tinha visto ao vivo uma mulher a dar à luz. Emocionei-me de uma maneira que eu teria gostado de guardar para mim, mas que não consegui guardar para mim!
Porquê? Para corresponder à imagem que tinha idealizado para si?
Às vezes a expressão das emoções pode ser excessiva. Se calhar importava-me menos hoje... Tenho mais experiência, mais idade. Vamos aprendendo a ter menos medo de mostrar as nossas coisas. Na altura afligi-me muito por ter mostrado aquela emoção. A razão porque estou a contar isto tem a ver com a tal história dos afectos. Aprendi muito depois, não a esconder as emoções, (porque não acho que as pessoas tenham de esconder), em todo o caso a controlar a forma como mostramos as emoções.
Causou-me espanto ver fotografias antigas e perceber que a sua cara era diferente.
Diferente em quê? Ah, diferente sim!, estou muito mais velha! [gargalhada]
Uma das primeiras fotografias mostrava-a com ganchos no cabelo, um de cada lado.
Devia ser quando era Secretária de Estado, era muito nova.
O contraste entre essa imagem e a da conferência de imprensa que a senhora mesma convocou quando se abateu sobre si um clima de suspeição, (no caso Costa Freire, que envolvia também o seu irmão), é brutal. A sua postura era extraordinariamente aguerrida. Com uma coragem imensa enfrentou um batalhão de jornalistas.
Não acho que se não visse emoção na forma como estava a falar. O que tinha dentro de mim era uma convicção muito forte de que se estavam a lançar coisas que não tinham nenhuma espécie de base. Tratava-se de explicar o que é que tinha feito, porque é que tinha feito, porque é que entendia que as coisas eram necessárias. O que eu queria era que vissem em mim a verdade da minha convicção. Não sei o que é que as pessoas poderão ter achado que faltava...
Não era o que faltava. Era o que ali estava. Não era faltar emoção. Era pegar o touro.
Mas disso nunca tive medo. Quando passo por coisas muito, muito difíceis tenho a sorte de ter alguma coisa que me protege e me ajuda a reagir. Posso parecer pouco modesta ao dizer isto, mas é uma sorte que tenho. Se a violência daquilo que se abate sobre mim é muito forte, também consigo aguentar coisas que talvez não soubesse que aguentava. Foi só ao ser confrontada com certo tipo de acusações que descobri isto. Está a falar-me do ar que tinha no momento da conferência de imprensa; não sei qual seria o ar que teria antes de entrar na conferência de imprensa. Seguramente, antes e depois, devo ter mostrado, a mim própria pelo menos, que o momento que estava a viver era extraordinariamente difícil.
Olhando para essa fotografia dos ganchos, que coisas diria dessa mulher? É como se fosse uma outra mulher.
Essas coisas de que está a falar têm perto de 20 anos. Fui directamente da Comissão da Condição Feminina para o centro do governo. Mudei de mundo de um dia para o outro. Não mudei de mundo pessoal, mas de mundo onde me era dado trabalhar e viver fora de casa. Aprendi mais numa semana do que em muitas outras semanas da vida. Talvez a minha cara dos primeiros tempos também tivesse a ver com essa aprendizagem.
Era uma cara expectante, e tinha uma graciosidade...
Ah, isso é tão engraçado ao fim destes anos todos, depois de tudo o que a política...
Lhe fez?
Me fez, que eu fiz, que aconteceu.
O que lhe aconteceu, vê-se na cara. Devastou-a.
Ah, isso com certeza. Havia uma dose muito grande de idealismo. Eu tinha a seguinte noção: é preciso fazer uma coisa, faz-se. Não tinha a noção do que se pode desencadear contra as coisas que sabemos que têm de ser feitas. Aprendi bastante o que são as resistências. Mas ainda hoje guardo a ideia de que, se certas coisas têm de ser feitas, é preciso encontrar a maneira de as fazer. Que não devemos parar na barreira das dificuldades e das resistências e dos interesses e dos corporativismos e das campanhas e dessas coisas.
Quando hoje se discute, nomeadamente na saúde, aquilo que se discutia há quase 20 anos e nada se resolve, isso deve-se a quê? A inércia da política deve-se à inépcia dos políticos?
Em relação à saúde causa-me uma grande perturbação e alguma falta de paciência ouvir 15 anos depois colocar as questões basicamente da mesma maneira e as soluções também basicamente da mesma maneira.
Porque é que são precisos 15 anos para que os genéricos, que começaram a ser falados no seu tempo, sejam finalmente introduzidos? Porque é que a política está irremediavelmente afectada desta inércia?
Deve-se a um conjunto de coisas. Muitas vezes não há força suficiente para avançar, mesmo sabendo-se que certas coisas têm de ser feitas Há a ideia que aquilo que tem muitas resistências, aquilo que fere muitas coisas, tem de ser feito devagarinho. E o devagarinho, às vezes, quer dizer parado.
Começámos por falar do idealismo que havia nessa fotografia. Hoje pode ler-se na sua cara que a política a devastou.
Não tenho o mesmo ar inocente, é isso?
Falo mesmo de devastação. Numa entrevista à Maria Flor Pedroso para a Egoísta dizia que não se passa por um processo como o seu sem se ser afectado. Em que termos exactamente sente que foi afectada? O que é que perdeu?
Eu não sei se já me sinto à vontade para explicar isso. Quando está a dizer que na minha cara se vê qualquer coisa, está a falar de coisas que não controlo, que ninguém controla. Não gosto muito de explicitar, mas digamos que quando certas coisas nos acontecem e percebemos que podemos ser postos em causa por certas coisas que nem sequer realizamos muito bem como é que foi possível que acontecessem, temos mais a noção que esta enorme exposição a que uma pessoa se sujeita, a que eu me sujeitei ao longo da minha vida, comporta em si riscos que vamos aprendendo a avaliar. E isso afecta-nos, afecta os que estão muito perto.
Altera a percepção da realidade?
Faz-nos olhar para essas coisas todas de uma maneira diferente. Talvez não gostasse de ir muito mais longe. Quando olho para pessoas que gostavam de ser isto e aquilo e aqueloutro, e que olham para isto como se só existissem lados positivos... Quando digo que a política é uma coisa nobre, que precisa de pessoas capazes e disponíveis e com intenção recta, estou a dizê-lo, também, com o conhecimento de que poderão ter de passar por coisas difíceis. E talvez porque tenha lados difíceis e riscos que as pessoas não conhecem, ainda mais faça sentido dizer que é preciso a tal recta intenção, a vontade de fazer com que as coisas melhorem. Também pode haver ambição, tudo isso. Mas a primeira coisa é querer fazer bem, fazer da melhor maneira de que se é capaz, e perceber que isto tem de ter sobretudo nobreza e dedicação; as outras coisas, vêm depois.
Como puro exercício, se pudesse recuar 30 anos, correria o risco?
Não sei responder a isso, com toda a honestidade, não sei responder a isso. A idade também é um factor bastante estruturante do que somos. Não sou capaz de responder, tanto mais que não consigo bem ver como é que com 30 e tal anos era capaz de saber o que sei hoje. É muito diferente correr riscos com 50 e tal anos e corrê-los com 30 e tal. Quando tinha 30 e tal anos achava que sabia muita coisa. E algumas saberia.
E que era invencível?
Nunca tive o sentimento da invencibilidade. Mas julgava que sabia mais do que aquilo que hoje sei que sabia. Eu não estou arrependida de ter aceitado andar a fazer aquilo que fiz. E gostava de saber coisas que sei hoje?, é óbvio que sim. Se soubesse que certas coisas me faziam correr riscos, não quer dizer que não as tivesse feito, ou que não tivesse tentado da mesma maneira, mas evidentemente teria tentado proteger-me um pouco mais. Mas as coisas nunca são assim. As coisas acontecem. Já houve quem me perguntasse se eu não acho que muita coisa me terá acontecido porque tinha 30 e tal anos.
É uma boa pergunta. Acha?
Não sei.
Diz-se que uma sucessão de coisas, para começar as relações difíceis com os médicos e a indústria farmacêutica, tinham que ver com a sua vontade de fazer tudo para ontem. Essa impetuosidade transforma-se numa quase inabilidade para lidar com os diferentes ritmos dos outros.
Admito que o entusiasmo com que fazia as coisas e a tal ideia de que elas eram precisas e tinham de ser feitas... Algumas poderiam ter sido feitas de outra maneira, teria sido mais eficaz. Por exemplo, mostrar aos médicos jovens que era preciso contar com eles para que as coisas pudessem mudar. Sabia isso, mas não soube mostrá-lo, nem tive a percepção de até que ponto tinha de mostrar melhor do que na altura soube fazer
No caso que envolve o seu então Secretário de Estado Costa Freire e também o irmão, o que mais se diz é que foi ingénua, que confiou de mais. E isto remete novamente para a questão de tudo acontecer quando tinha 30 e tal anos.
Nem sei se a história é essa. Tinha querido fazer muito depressa coisas que era preciso fazer, (o Hospital S. Francisco Xavier, o Centro das Taipas, cuja importância hoje ninguém discute). Talvez não tenha percebido que havia riscos na minha necessidade de resolver as coisas. Coincidiu um pouco com uma altura em que se utilizavam procedimentos que as pessoas não questionavam. Não estou a falar de desonestidades, nada disso. Estou a falar da utilização de verbas que no ministério estavam sujeitas a um controlo de tipo diferente e ninguém questionava que alguém pudesse estar a fazer alguma coisa menos certa. Talvez não tenha percebido que me podia vulnerabilizar não fazendo as coisas de uma maneira mais solene.
Voltemos à questão: aconteceu porque tinha 30 e tal anos somado ao facto de ser olhada, para começar dentro do seu partido, como demasiado promissora?
Demasiado promissora... Isso das promissoras, não discuto. Não sei se me aconteceu por ter 30 e tal anos. Há um conjunto de coisas que fez com que elas acontecessem. Talvez tenha sido levada pela minha convicção de que as coisas tinham de se fazer e tinham mesmo de acontecer e que era capaz de resolver essas coisas todas. Muitas das coisas acabaram por ser resolvidas, (ficou lá o hospital, ficou lá o centro das Taipas), mas depois talvez não tenha sabido antever que tantos problemas poderiam ser criados à volta.
Insisto numa coisa somada à outra. Dizia-se à boca cheia que no partido dava jeito a muita gente que tivesse caído em desgraça, porque era uma sucessora do líder.
Oh, não sei, dessas coisas não gosto de falar. Não gosto nada de olhar para mim própria como vítima. De me colocar nessa perspectiva. E também não sei o que é que as pessoas pensaram ou deixaram de pensar. Sou uma pessoa como as outras. Passei por ali como qualquer outra podia ter passado.
Mas percebeu que há um magnetismo à sua volta. Quando entrava num congresso do PSD, a movimentação era extraordinária. Muito poucos conseguiam uma agitação semelhante. Evidentemente este magnetismo tem os seus custos.
São coisas sobre as quais tenho muita dificuldade em falar. A única coisa que sei dizer é que senti sempre, agora que fala dos congressos, que o partido me dava força para fazer e resistir, me acarinhava. Eu via esse lado das coisas, não via tanto aquele outro de que falava. Isso foi sempre, e é, muito importante para mim.
Estava na Faculdade de Direito quando conheceu Marcelo Rebelo de Sousa, que é uma figura fundamental na sua vida. Ao que consta é a conselho deste que o Dr. Balsemão a convida para Secretária de Estado. Antes disso, é também pela mão de Marcelo que se inscreve na Sedes.
Para quem se situava em zonas ideológicas como a minha, a Sedes era a associação onde as pessoas podiam falar, até certo ponto, de certas coisas, e mostrar que se queria uma democracia europeia. Quando vem o 25 de Abril e o Dr. Sá Carneiro aparece na Sedes, (eu estava lá, nesse dia), a dizer «Eu vou fazer um partido político, quem quiser venham comigo», fui atrás, como muitos outros. Disso tenho muita saudade: da vontade que tínhamos em participar. Faz muita falta hoje que os jovens possam sentir a mesma vontade.
Na altura comentava-se o seu talento inato para a política.
Não sei o que é o meu talento inato para a política. Há uma coisa que sempre tive e que continuo a ter, que é convicção. Convicção que as coisas podem mudar e que os políticos podem fazer alguma coisa. Tenho muito mais isso que outra coisa qualquer. Incomoda-me a ideia que muita gente tem de que as pessoas andam na política por outras coisas que não a convicção e a vontade de servir. Não gosto da política olhada como carreira, agora trepas por uma escadinha e depois outra por aí acima. Há uma requalificação dos que fazem a política que tem de existir na cabeça das pessoas, mas também tem de existir na cabeça de quem faz política.
A sua convicção, chamemos-lhe assim, era olhada como talento inato para a política. Mesmo que a intenção fosse tão só intervir na construção da democracia, a verdade é que a sua carreira se foi consolidando. Quando é que se disse que era uma política?
Era um tempo de uma instabilidade muito maior, as pessoas tinham a ideia de que tinham a sua vida profissional e que durante uns tempos iam fazer outra coisa. Só comecei a ter a percepção de que as coisas não eram desta maneira quando no primeiro governo maioritário do Prof. Cavaco Silva (1987) tive a noção que as pessoas entravam no governo por muito mais tempo. E as pessoas também começaram a olhar para mim e a chamar-me política. Que era uma coisa que me fazia muita confusão. «Tu és uma política». Não era assim que me olhava. Eu era a jurista que andava ali a fazer uma coisa por uns tempos mas que voltaria para a sua vida. De facto não voltei àquilo que teria sido o meu percurso normal, o universitário, e é a única pena do ponto de vista profissional que hoje tenho: não me ter doutorado, (que era o que estava na calha).
Já tinha escolhido tema?
Tinha a ver com direito do casamento.
Era destituída de ambição, pode dizer isso?
Tenho imensa dificuldade em lidar com essa palavra [risos]! Sempre que perguntam a uma pessoa metida na política sobre a sua ambição, tenho a sensação que esperam um certo tipo de respostas e que não estão predispostas para acreditar naquilo que os outros dizem. Há a ideia de que não devemos confessar que temos ambições, fica mal se se confessa, e portanto diz-se que não se tem. Nunca se sabe bem, quando as pessoas dizem que não têm ambições, se estão a ser verdadeiras ou não. Tenho pudor em falar nesse sentido, se tinha ambições, se não tinha. Há uma coisa que seguramente tinha: a vontade de fazer o melhor possível e o sentimento de que não tinha o direito de desperdiçar estar num certo sítio e poder resolver certas coisas e não o fazer.
É uma coisa recorrente no seu discurso, a descoincidência entre a visão que tem de si mesma e a visão que acha que os outros têm.
Quando a gente está nesta vida, e as outras pessoas falam muito da gente, escrevem sobre a gente, somos confrontados com o nosso percurso interior e com aquilo que as pessoas olham de fora. Eu olhei muitas vezes para aquilo que as pessoas diziam e achava que não tinha nada a ver comigo, ou que tinha. Às vezes gostamos do que ouvimos e às vezes achamos detestável! E às vezes até sentimos: «Mas para que é que me sujeito a andar nisto para ter de ouvir estas coisas?!».
Outra boa pergunta.
Porque são coisas tão terrificamente distantes... «Para que é que me sujeito a que digam que posso ter feito isto ou aquilo?»
Os seus filhos perguntavam-lhe isso, porque é que se sujeitava?
Sim. Os meus filhos nunca apreciaram particularmente, nem apreciam que eu tenha esta actividade. A minha filha dizia sempre que vai comigo às compras! Fui sempre muito ao colégio dos meus filhos, tudo isso, mas os meus filhos sabem que não terei tido muito tempo e que me terei deixado absorver por outras coisas. Lembro-me de uma vez ter sido literalmente perseguida pela comunicação social, fotografias, televisão, estava com o meu filho mais novo. Magoou-me particularmente. Se sou eu sozinha, faz parte do que escolhi; mas porque é que o meu filho tem de assistir a estas coisas? Quando era ministra da saúde os meus filhos ouviam os colegas da escola dizer imensas coisas, colegas que eram filhos de médicos...
A pergunta inicial, porque é que se sujeita a isto, é seguida de outra: porque é que, apesar de tudo, volta sempre à política.
Porque é que voltei? Passou muito tempo, estive oito anos fora. Tive ocasião de o fazer mais cedo e não quis. É óbvio que gosto da política. Mesmo nos anos em que não estive num cargo político, estive a fazer política: no partido, quando organizei as noites da oposição. Nunca deixei de participar. Eu acho que tenho obrigação de participar. Pode ser de uma maneira mais intensa, menos intensa, mais visível, menos visível. E tenho uma experiência acumulada que pode ser que sirva para alguma coisa. Devo confessar que estou aqui bem, gosto da experiência que estou a ter. Sinto-me pessoalmente compensada por ter arriscado voltar.
Que tipo de conversas tem com o seu grande amigo Marcelo?
O Marcelo sempre me pressionou a fazer, e a voltar. Mas isso é uma parte ínfima das conversas que temos. Obviamente a política ocupa uma parte importante das conversas, mas não é só a política. Quando entrei para a faculdade, com o meu ímpeto feminista, as primeiras conversas com o Marcelo versavam sobre estas questões. [Naquele primeiro] mês de Dezembro, nas festas, o Marcelo mandou-me um cartão com uma frase da Madame de Stäel que dizia... O sentido da frase era que as mulheres que se metem na política dão cabo da sua felicidade. Lembro-me de lhe ter respondido com uma frase do Papa a dizer que as mulheres tinham os mesmos direitos e capacidade de participação. Hoje é um dos ardentes defensores de uma participação elevada das mulheres na vida política.
Para terminar gostava de lhe pedir que descrevesse um almoço com a sua família de origem.
[risos] Contamos imensas coisas de como é que era, arreliamo-nos uns aos outros. São momentos muito bons de lembrar coisas idas, sobretudo de brincarmos com a nossa mãe, de como é que ela nos tratava. Vivemos muito próximos uns dos outros. Digamos que falei com todos os meus irmãos nos últimos dias.
E falam de política?
Ah, falamos de tudo. Os meus irmãos menos metidos na política fazem sempre uns comentários..., porque é que a gente foi para ali, para que é que fez aquilo, «Mas que raio de ideia tiveste de fazer não sei o quê?». Há sempre esse género de arrelias; com os outros metemo-nos por outras razões. Mas seguimo-nos muito de perto.
Têm orgulho uns nos outros?
Temos, claro que temos, e é das coisas boas da vida, isso.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003