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Anabela Mota Ribeiro

Jacinto Nunes

20.02.14

Liguei num dia à tarde, na semana passada. Encontrámo-nos passados dois dias, estava uma luz cálida de Inverno. Em pano de fundo: o país na iminência de implodir, um horizonte temporal em que todas as soluções políticas pareciam possíveis, Sócrates, Passos, Cavaco, o PEC. Mas do que falámos foi do seu percurso académico e político. E daquele que se lembra do nome das professoras, que vivia num último andar no Campo Santana e que veio na primeira página do jornal quando se doutorou com 19.

Uma viagem ao passado.

Pelo meio há conversas com Salazar, a recordação das redacções primorosas de Cardoso Pires (o Pim!), detalhação do percurso e da obra, a relação com a Junta de Salvação Nacional. O que fica quando tudo arde?

Jacinto Nunes tem 85 anos. Tem uma filha. Quando se olhar para o século XX português e para a história da Economia no nosso país, o nome dele consta. 

 

 

Está óptimo para a idade que tem.

Sinto-me bem, de cabeça e fisicamente. Há um joelho que tem umas quebras no Inverno, mas é normal os [problemas] reumáticos apareceram com a idade.

 

Quase não tem rugas aos 85 anos. De quem herdou isso?

Tenho muita gordura na pele [riso], a gordura conserva, evita as rugas.

 

Pergunto-lhe pela genealogia e responde-me com a genética. Há alguém na sua família a quem saia?

À minha mãe, também tinha a pele boa. Morreu mais cedo, aos 74.

 

O tópico da idade serve de intróito para falar de uma coisa importante: já viveu muito, já viveu muitos momentos importantes na vida do país.

Com 85 anos já passei o prazo de validade. É como os remédios. Tive uma vida longa.

 

Nasceu em 1926. Como era a vida então? O que é que recorda?

Fiz a instrução primária num colégio particular onde tinha estado a minha irmã, mas depois estive doente, queimei-me, perdi um ano, e fui para a escola oficial. A 37, onde hoje é a Universidade Autónoma. Ali havia gente muito modesta a quem davam uma refeição a meio da manhã. Eu não comia lá, vinha almoçar a casa. Depois fui para o Liceu Camões. Era um aluno mediano, tinha 12, 13. A partir do 4º ano tive uma professora de Matemática que me influenciou e que mudou tudo. Ofélia Azinheira.

 

Antes de falarmos dessa professora gostava de perceber melhor que enquadramento social e familiar era o seu.

A escola particular era cara e os meus pais eram modestos.O meu pai era motorista de uma senhora que morava no mesmo prédio. Uma coisa importante é que, nos prédios, ali no Campo Santana, não havia a segregação social que há hoje. No 1º andar moravam pessoas muito ricas, no 2º um pouco menos ricas, no 3º, modestas, e no último andar, mais modestas. Morava no 4º andar.

 

Por isso é que as pessoas mais ricas viviam no 1º andar, porque não tinham de subir escadas.

Evidente. Havia comunicação, não havia segregação, as pessoas eram corteses umas com as outras.

 

Mas cada uma sabia o seu lugar, ou não?

Não havia discriminação nem rivalidades. As pessoas aceitavam o seu estatuto. Os vizinhos cumprimentavam-me. Às vezes até ia para casa de alguns. O do 3º andar deu-me lições de inglês. Era um senhor que estava doente.

 

Isso já me responde um pouco a uma pergunta que trazia: como é que aprendeu inglês para, mais tarde, negociar o Plano Marshall. Começou aí?

De pequeno aprendi alguma coisa com esse vizinho, o Sr. Alçada. E depois no liceu.

 

Estava a contar de os seus pais terem feito um esforço no sentido de o pôr no colégio.

Estive uns oito meses em casa porque entornei uma cafeteira de café a ferver na barriga. E não sarava. Enfraqueci, tive de tomar aquelas coisas que se tomavam na altura, óleo de fígado de bacalhau, horrível. A minha doença também provocou mais despesas e fui para a escola pública. Em casa tínhamos um nível melhor do que muita gente que andava nessa escola.

 

Intelectual e de vida?

Sim, mesmo de vida.

 

Então os seus pais perceberam cedo que era importante investir na vossa educação, por isso o esforço do colégio.

No liceu consegui isenção de propinas, nunca paguei. Os rendimentos eram baixos. No 7º ano até tive uma bolsa de 300 escudos por mês. Fazia jeito.

 

A sua mãe, com o seu pai, acreditava na importância capital da educação? Isto nos anos 30.

A minha mãe era fortemente activa. A minha irmã foi para uma escola industrial de artes decorativas. Assustaram os meus pais, uns maus amigos, com o custo do liceu. Mas quando chegou a minha altura, a minha mãe, com muita força, disse: “Ele vai mesmo para o liceu”. Havia uma certa discriminação entre o liceu e o ensino industrial. A minha mãe gostava muito de Júlio Dinis e Camilo. Obrigava-nos à noite a ler, depois do jantar.

 

Um mais inflamado do que o outro. A sua mãe e o seu pai. Júlio Dinis e Camilo.

A minha mãe era mais inflamada. Líamos o Diário de Lisboa. Estava sempre à espera que o meu pai chegasse a casa porque havia umas crónicas do Joaquim Manso, o director, de que gostava muito. Mais tarde começou a aparecer o rádio. A minha mãe era uma mulher inteligente e muito rígida do ponto de vista da moralidade. Não podíamos pisar o risco. Era católica, ia à missa, mas não se confessava. Íamos à missa todos os domingos, eu confessava-me e comungava, ela não. Muito afeiçoada, muito terna para nós, mas muito severa.

 

Teria tido o percurso profissional que teve se não fosse a sua mãe?

A minha mãe morreu quando entrei para o Banco de Portugal em 1960. Acabei o liceu, fui para Económicas, trabalhei no ministério da Economia, fui assistente, fui sub-secretário do Tesouro. E quando saí, uns meses depois, fui para o Banco de Portugal. A minha mãe ainda soube que ia para lá. Tinha um grande orgulho em mim, é verdade.

Mas o meu pai também estava de acordo com a minha ida para o liceu. Acabei com boas notas e acharam que devia continuar, fui para a faculdade.

 

Lembra-se muito, nestes anos da velhice, da sua infância, do seu pai, da sua mãe, do seu percurso?

Lembro. Quando falo dos meus pais é sempre com saudade, mas não vivo virado para o passado. Tenho uma filha de que gosto muito. Vivo para a minha filha. Não é parva de todo, já fez o seu doutoramento, dá aulas na universidade e é tradutora, nos tribunais; vive na Alemanha.

 

Quando é que as línguas foram essenciais na sua vida, na sua carreira? Frequentemente trabalhou com estrangeiros.

Fui para o Instituto Francês, aprendi muito bem. No ministério da Economia, o meu primeiro emprego, passava metade do tempo em Paris e metade em Lisboa, por causa do Plano Marshall. Depois passei para o inglês, porque os livros para o doutoramento eram todos em inglês. Tínhamos um grande embaixador em Portugal no Plano Marshall, o Teixeira Guerra, um homem de grande nível.

 

Começou a sua carreira como professor, em 1948.

Três professores convidaram-me para assistente e escolhi Estatística, com o Eng. Leite Pinto. Tive um professor de Contabilidade que teve a gentileza de me dizer esta graça, depois de ter tido a melhor nota na teoria: “Para o Sr. Prof. Gonçalves da Silva o senhor é o melhor aluno, para mim não é”. E eu, com uma calma, disse: “Opiniões Sr. Dr.”. No último exame, de Contabilidade Bancária, fui o único que fez o ponto todo certo. Chegou ao pé de mim e disse: “Agora é que você me convenceu”. “Demorou três anos”.

 

Não duvidava de si, confiava nas suas capacidades?

Não tinha medo dos exames. Não era estúpido, mas estudava. Nos primeiros anos brincava muito no jardim do Campo Santana, mas estudava, e não estudava só nas vésperas do exame.

 

Quando é que passou a ser um aluno brilhante?

A partir do 4º ano do liceu fui, quando encontrei a tal professora. Depois tornei-me mais sisudo e sério, mas nessa altura era traquina. A professora estava a dar Geometria, e um colega estava a desinquietar-me; ela disse: “Não distraia o Nunes porque ele interessa-se por estas coisas”. Parece uma frase insignificante, mas foi para mim um toque.

 

Tanto que não se esqueceu dela.

Nunca. Nem sequer era bonita.

 

É engraçada que o note.

No 2º ano perguntou-me a Ilda Ribeiro, professora e Português, quanto é que eu queria pelas minhas pestanas (parece que tinha pestanas grandes). Essa deixou-me encarnado, mas esta não era bonita.

Senti que tinha para com a professora de Matemática um dever de corresponder ao que ela me tinha dito. Comecei a estudar, e também todas as outras disciplinas, com mais afinco.

 

Eis uma frase banal que mudou a sua vida.

É verdade. Por isso a cito num livrito de memórias que fiz, ao correr da pena. Tinha um colega, o Santos Fernandes, que foi para engenharia, depois teve um desgosto amoroso e foi para padre.

 

Ter um desgosto amoroso e ir para padre é um como, no Amor de Perdição, Teresa ter um desgosto de amor e recolher ao convento.

O pai dele era engenheiro na CUF, tinha uma biblioteca extraordinária. Nas férias ia a casa dele, levava duas malas e enchia-as de livros. Li tudo, Herculano, Ramalho. Do Oliveira Martins tenho 20 ou 30 livros, li tudo. Li o Aquilino à medida que ia saindo, e há uns anos resolvi reler. Li a Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira. O José Cardoso Pires, que até me ofereceu alguns, era meu colega de curso.

 

Que memória tem dele?

Era o Pim. Foi meu colega de curso porque chumbou um ano. Um dia, passados anos, já estava casado, morava na Infante Santo, vou abrir a minha porta e vejo um fulano que estava a tocar a campainha. “O senhor para que andar vai?”, “Vou para o Abel Manta”. O pintor Abel Manta era meu vizinho e o filho era o João, tenho aí muitos livros dele. “Eh pá, és o Pim”, “Sou o José Cardoso Pires”. Já no liceu fazia umas redacções primorosamente escritas, de tal modo que a professora, Carolina Valente da Costa, mandava-o ler em voz alta. Eu lia livros do José Cardoso Pires, mas não julgava que era o Pim. Reatámos uma amizade. A mulher dele, a Edite, gostava muito de moedas; quando estava no Banco de Portugal dava-lhe sempre moedas comemorativas. Ele ofereceu-me os livros; A Cartilha do Marialva diz assim: “Estas enormidades, para tu leres”.

 

Essas enormidades eram a má vida do Cardoso Pires? Nunca teve uma fase de desvario na sua vida? Nunca se permitiu a irresponsabilidade?

[muito sério] Não. Detesto as pessoas irresponsáveis. Nunca me meti verdadeiramente na política porque às vezes as pessoas têm que fazer coisas que desrespeitam a respeitabilidade. Fiz uma vida normal do ponto de vista dos comportamentos. Mas dava-me muito com artistas.

 

Porquê Economia?

Por acidente. No meu tempo, a faculdade de Medicina e a faculdade de Direito eram no Campo Santana, e eu brincava no jardim. Os estudantes andavam por ali, sentavam-se na relva. O meu pai conhecia pessoas, eu conhecia os professores, os estudantes diziam: “Aquele é o Montenegro”. Direito: ser juiz fazia-me uma aflição tremenda – julgar os outros. Advogado, também me fazia confusão – tem de defender um acusado, quanto mais não seja para lhe aliviar a pena. Por outro lado gostava muito de Matemática, tinha sempre 19. Fui para Económicas, que não me dizia nada. Os meus pais aceitaram; depois que comecei a ser um aluno destacado, tinham uma certa consideração por mim.

 

Já era assim sério e sisudo? Quando é passou a ser sério e sisudo?

Ainda tenho um bocadinho de ironia. Às vezes sou um bocadinho sarcástico. Depois arrependo-me. A estupidez é uma coisa que me irrita [riso]. Não é azedume, sou mesmo cáustico. Mas evito. Gosto de agradar e ser simpático com as pessoas, e consigo. Mesmo com os alunos. Fui 20 anos professor no Instituto de Altos Estudos Militares, dois anos no Técnico, um ano na Universidade Católica; nunca tive problemas com alunos. Mesmo naqueles períodos de 1968. Queimei os dedos todos a fechar a Associação Académica para a polícia não entrar lá.

 

Antes disso, esteve na grande convulsão académica de 1961.

Às vezes iam às aulas fazer comunicados e eu deixava. Nessa altura os discursos eram intervalados por “pá”. “Vê lá se não dizes tantos “pá”, fala direito”. Queimei os dedos a lacrar as instalações onde a Associação Académica tinha papéis.

Quando fui presidente da Associação Académica fiz uma cantina em Económicas, que não tinha, consegui que o ministério das Obras Públicas e o Dr. Perdigão me dessem dinheiro, nacionalizei as folhas (aquilo era um negócio e passou a ser a um preço mais barato).

 

Tinha essa preocupação com o social. Que derivava do quê?

Da minha formação. Talvez da minha origem. Nunca tive complexos com a origem. Há bocado disse-lhe a profissão do meu pai sem hesitações. Conto-lhe uma que lhe dá o sentido do social. No liceu fui da PREJEC, (porque era antes dos 14 anos), com o Duarte Abecassis. Quando chegou a altura de ir para a JEC [Juventude Escolar Católica], na minha freguesia abriu uma secção da JOC, Juventude Operária Católica. No liceu disse aos meus amigos: “Desculpem, mas vou para a JOC”. Andei a colar cartazes e a fugir da polícia.

 

A JOC era considerada do Reviralho, mais subversiva?

Não tinha ligações com o Reviralho, mas era não afecta ao regime. Pugnava muito pelo social. Trabalhei a acção social no bairro da Curraleira, ia aos fins-de-semana ensinar-lhes questões de higiene, jogar à bola com eles. Sou um liberal em Economia, desde que se tenha em atenção o social.

 

Como é que ganhou consciência política e cívica? Em casa, na escola, em discussões?

No liceu, pouco. O Antero era um homem que fazia uns colóquios e umas discussões que seguíamos com interesse, e o Campos. Eram duas personalidades de que ainda me lembro. Reuníamos numa sacristia da Igreja do Coração de Jesus. E lia muita coisa. Uma obra que me marcou um bocadinho foi a do Trindade Salgueiro, um homem que foi arcebispo de Évora. Perdi a fé aos 16 anos. Falei-lhe da Carolina Valente da Costa; era muito minha amiga e eu amigo dela. Quando saíamos juntos do liceu acompanhava-a, falávamos.

 

Essa era bonita?

Não era feia, mas era mais velha que eu. Era uma mulher de 40 e muitos e eu tinha 16 ou 17 anos. Discutíamos problemas religiosos e sociais. Era uma óptima professora, às vezes dava-me uns livros para ler; o último que me deu foi A Imitação de Cristo. Não cheguei a acabá-lo, deixei de acreditar. Não tem explicação nenhuma. Fiquei aborrecido porque no centenário do Liceu Camões (fui um dos 100 escolhidos para figurar no livro), refere-se essa parte, que é uma coisa íntima. É uma coisa que sucede às pessoas, sucedeu-me. Perdi a fé. Continuo a ter uma ideia de Deus, mas de práticas religiosas…

 

Mas porquê? Passaram tantos anos.

Isso gostava eu de saber. Comecei a ler muitas coisas sobre ciência, sobre a formação do universo, e disse: “Isto não joga”. Mas respeito muito a Igreja. Até com o actual patriarca tive relações boas. Convidou-me para director da Faculdade de Ciências Empresariais da Universidade Católica, calcule. Disse-lhe que não era [católico], e ele disse-me: “Não tem de ser”.

 

Isto era a propósito da consciência social e política, e de como a adquiriu. Era uma dificuldade para si saber como lidar com o regime, como fazer a sua vida? Ainda agora disse que chegou a colar cartazes.

Considero isso uma espécie de brincadeira. Éramos uns rapazolas com 16, 17 anos, andávamos a fazer aquilo porque achávamos que era preciso ter mais atenção a certos problemas. Mas não era uma coisa consciente.

 

Nunca fez acção política na oposição?

Não. Acusaram-me disso na Associação Académica, quando no Instituto fizemos a cantina. Acusavam-nos de ser de esquerda.

 

Isso foi enquanto aluno ou já como professor?

Enquanto aluno, nos últimos anos.

 

Como é que olhava nesses anos para Salazar? O que é que era para si o regime?

Não era uma coisa que me preocupasse muito, estava afastado. Havia uma coisa que continuo a dizer: na parte do reequilíbrio financeiro teve uma obra notável. De resto, da parte política, houve umas coisas…; sobretudo através dos meus contactos com o João Abel Manta, essa gente mais ligada à esquerda, ouvia esses relatos. Ainda me lembro da morte do Coelho, na Rua dos Lusíadas. Não gostava dessas coisas, mas não tomei posições políticas.

Admirava o Salazar, guardo ali a Reforma Tributária que fez, daquilo sabia, era um bom professor. Mais tarde vim a dar-me muito com o Prof. Teixeira Ribeiro, um homem de esquerda. Uma vez, quando estava no ministério das Finanças, como secretário, fizemos uma coisa sobre o imposto complementar, e queria alargar a taxa até 45 por cento; ele só queria 40 por cento. Dizia-lhe: “Você que é socialista só quer 40 por cento?”. Tal era o meu sentido de que era preciso repartir por aqueles que não tinham.

 

Porque é que nesses anos esteve menos ligado à política? A sua ligação à política não é constante, mas faz-se sobretudo numa fase posterior. Nos anos anteriores ao 25 de Abril, mais que tudo, a sua carreira é académica.

Não, fui sub-secretário do Tesouro de 1955 a 59, com o Prof. Pinto Barbosa. Mas o lugar de sub-secretário naquela altura, a não ser para aqueles que andavam na vida política, era puramente técnico. Nunca fiz um discurso, nunca pertenci à União Nacional, trabalhava. Fiz a reforma do crédito, a criação do Banco de Fomento Nacional, reformei os serviços da Casa da Moeda, uma reforma da Fazenda Pública. Em 1960 fui para o Banco de Portugal. Integrou-se o Fundo de Fomento Nacional no banco que se criou. O Dr. Rafael Duque achava que eu era um rapazinho novo mas que levava as coisas a sério. Houve uma vaga no Banco de Portugal e convidou-me para ir para lá.

 

Insisto: porque é que acha que a questão política não o atraiu especialmente?

Ainda tentei uma vez. Às vezes tinha umas tentações de me interessar mais por isso. Lembra-me que tentei entrar para a SEDES, falei ao João Salgueiro. Do Centro Nacional de Cultura, a Helena Vaz da Silva falou-me várias vezes. Talvez haja um pouco de preguiça. Ou uma certa relutância em envolver-me. Gosto pouco de estar regimentado. Por isso é que nunca aderi a nenhum partido político, nem antes nem depois do 25 de Abril. Sou um pouco individualista. Não me agrada ter disciplina, obrigações. Sou muito amigo da minha independência, da minha liberdade.

 

Doutorou-se em 1957, tinha 31 anos. Eram poucas as pessoas que se doutoravam, e tão novas.

Formei-me com 21 anos, ainda levei nove anos para fazer a dissertação. Atrasei-me um bocadinho, que já tinha a tese bastante adiantada quando fui para o ministério; lá, tinha que me levantar cedo e aproveitar os fins-de-semana para concluir a tese.

 

Nota: 19. Foi um grande acontecimento?

Naquela altura foi. Vim na 1ª página do Diário de Notícias, com o resultado e com fotografia. Os jornais davam relevo a essas coisas. Não era por ser sub-secretário. Dava-se relevo.

 

O que é que representou para si ter 19 no doutoramento?

Creio que as provas me correram bem. O Prof. Teixeira Ribeiro, de Coimbra, que era considerado uma fera, implacável (houve um professor que saiu a chorar depois das coisas que ele lhe disse na prova), quando acabei, disse-me estas palavras, ficou toda a gente abismada: “O senhor acaba de mostrar que pode vir a ser um grande professor”. Não disse que era. Que acabava de mostrar com a lição que podia vir a ser um grande professor. Pensei: “Vou ter uma classificação boa”. Não estava à espera do 19.

 

Porque é que o comove falar disso?

Não me comove. Considero dos maiores elogios que tive na vida. Era um homem, não direi intratável, depois dei-me com ele e dávamo-nos bem; conhecendo o que ele era, era um elogio pouco comum.

 

Foi nessa altura que teve a noção de que tinha um belo futuro à sua frente, ou já antes tinha essa noção?

Pensei que tinha a carreira de docente assegurada, mas não mais que isso. Não atribuí um significado especial. Fiquei satisfeito, mas foi uma satisfação quase momentânea.

 

A sua mãe ainda era viva, assistiu a essa consagração.

Para a minha mãe, era uma alegria enorme. Mas nunca o comentei com a minha mãe. Tenho a certeza de que ela deve ter falado nesse assunto, mas não comigo.

 

Era uma família que não falava muito sobre as suas coisas.

Sobre as nossas coisas, não. Ela tinha grande orgulho e prazer, mas connosco não falava. Comigo comentou, quando fui para o Banco de Portugal: “Sei que te estão a preparar o gabinete”. Foi a única conversa que tivemos.

 

Sabe que ela ficou orgulhosa porque sente ou porque outras pessoas lho disseram?

Sinto. Conhecendo a minha mãe como conhecia, de certeza que ficou satisfeita. E o meu pai também, mas ele era mais introvertido, manifestava menos as coisas.

 

Alguma vez ofereceu um presente à sua mãe, com o seu primeiro ordenado, uma coisa assim?

Ofereci-lhe uma telefonia [riso]. Não sei a propósito do que foi, uma Telefunken. Era uma telefonia bonita, grande. Não sei se foi quando fui para o Conselho. Fui para o Instituto e ao mesmo tempo para o ministério da Economia, onde ganhava bem. Ganhava um conto e 800 no Instituto, e quatro contos no ministério. Entrei com a Isabel Magalhães Colaço, que foi a primeira catedrática de Direito. Ao fim de um mês fomos os dois promovidos, porque fizemos um regulamento do comércio externo; andava lá há meses e ninguém era capaz de mexer naquilo.

 

Como é que fizeram isso?

Metemo-nos na repartição, vimos como é que funcionava, eu dizia as coisas numa linguagem que não era jurídica, e ela passava aquilo para técnica jurídica. O presidente, com medo que nos fôssemos embora – sabia-se cá fora que tínhamos feito obra – promoveu-nos ao fim de 40 dias. Foi em 1948, quando me formei.

 

O seu problema com a escassez de dinheiro ficou resolvido logo aí.

Logo. Para aquela altura, seis contos por mês, para um rapaz que acabou de se formar, era um óptimo ordenado. E ainda dava explicações de matemática. Depois fui para professor do Técnico, um conto e 800. Entretanto arranjaram-nos uma bolsa para fazermos o doutoramento no Instituto Nacional de Estatística. Eu, o Luís Teixeira Pinto e o Francisco Pereira de Moura. Ao mesmo fizemos um trabalho sobre a estrutura da economia portuguesa, um trabalho muito célebre, saiu em 1954. Passou a ser texto nas faculdades de Economia, toda a gente o adoptou para dar lições. Foi de tal modo que no Instituto de Estatística os funcionários não nos viam com grandes olhos. Não nos chamavam bolseiros, chamavam-nos “bolsistas”, ironicamente.

 

Tudo mudou quando o trabalho saiu.

Passámos a ser bolseiros, a ser cumprimentados, respeitadíssimos, viram que tínhamos estado dois anos a trabalhar. Nunca ganhei muito, mas ganhei sempre o suficiente para fazer uma vida sem preocupações. Mesmo no Banco de Portugal, como governador, ganhava pouco mais do que o sub-secretário do Tesouro. O Salazar não deixava. Havia tipos que faziam negócios, mas a ideia dele é que nestas funções era uma honra servir.

O Dr. Rafael Duque saiu do Banco por limite de idade. Fiquei três anos como vice-governador, mas a dirigir o Banco.

 

Porque é que não o nomeou?

Não me nomeou porque me convidou para ministro da Economia e disse-lhe que não. Ao fim dos três anos fiz-lhe um relatório do que tinha feito, e ele manda-me uma carta que começa: “Se eu tivesse tido a honra de desempenhar as funções que vossa excelência desempenhou, teria feito exactamente o que fez”. Altamente elogiosa.

 

Porque é que recusou ser ministro da Economia?

Disse-lhe que ele não me deixaria fazer o que queria fazer. Disse-me: “Queria fazer mal aos Champalimaud, aos Mello”. Disse-lhe: “Não quero fazer mal a ninguém”. Depois expliquei-lhe: “Não me importo de entrar numa corrida com poucas probabilidades de ganhar, mas à partida penso que vou ganhar. Sei que os outros corredores são muito bons e naturalmente não ganho. Agora, nesta corrida, à partida sei que perco”. Havia à volta do Governo um conjunto de interesses. Se fosse tocar nisso, era baldeado.

 

O interesse das grandes famílias, como ele dizia.

Ia pôr em ordem certas coisas que estavam nitidamente mal. Havia gente a ganhar dinheiro indevidamente, era preciso mexer nas indústrias, era preciso mexer com muitas coisas. Vi que não conseguia fazer. Havia de encontrar no caminho empecilhos que não me deixavam trabalhar. Pensei: “Isto é para me queimar, daqui a uns meses começam-me a fazer partidas e não consigo fazer nada do que quero”. Para ser ministro? Não tinha vaidades nem ambições políticas.

 

Mas é curioso, e voltando à sua origem, que não se tenha deixado envaidecer com a possibilidade de ser ministro.

Para mim não significava nada.

 

Como é que conheceu o Salazar?

A primeira vez que o vi foi quando tomei posse como secretário. Tomei posse no mesmo dia que o Baltazar Rebelo de Sousa, pai do Marcelo.

Trabalhei com ele na criação do Banco de Fomento, e aí até tivemos um problema. Há duas conversas engraçadas; uma foi sobre o regime de tabacos, embora não fosse do meu pelouro, era do Orçamento; mas o meu colega, Correia de Oliveira, andava sempre em Paris. O ministro estava doente e eu é que fui ao Salazar apresentar [o trabalho]. Obriguei a fazer fábricas novas, as fábricas velhas, que fui visitar, eram uma imundice. Mandei fazer um exame por pessoas habilitadas, no aspecto financeiro, contabilidade, lucros. Equipamentos velhos, condições péssimas. Pagavam 22 por cento, obriguei-as a pagar 27 – sabia que ganhavam bastante. Quando fui ao Salazar, vi que ficou agradado com as fábricas novas. Mas quando foi do imposto, diz-me assim: “Você julga que eles vão diminuir os lucros? Você é muito novo”. Então explicou-me como é que ganhavam dinheiro. Agradeci-lhe e disse: “O senhor é capaz de ter razão, mas faço o que posso”.

 

Lembra-se do que lhe explicou?

Que na compra das ramas do tabaco é que vinha o grande lucro. Davam um preço, mas metade ficava lá fora em nome dos compradores. “Aí você não pode fazer nada. Vamos receber mais um bocadinho, mas eles continuam a ganhar dinheiro”.

A outra coisa foi no Banco de Fomento. Havia dois projectos para o Banco, o do ministério das Finanças, que eu fiz, e o do Dr. Marcelo Caetano. Disse: “Fiz a lei bancária, nessa lei já está prevista a criação do Banco de Fomento, e agora o meu plano é atirado fora. Não aceito isto, vou-me embora”. O Salazar não tocou na lei bancária que fiz, só alterou um número de um artigo, tinha uma certa consideração por mim. Disse ao ministro para me dizer que o projecto que ia para a frente era meu, mas se me importava de receber o projecto do Dr. Marcelo Caetano para fazer alterações. Disse logo que sim, e aproveitei muito do projecto, mas fiz o meu. O Dr. Marcelo Caetano ficou um bocadinho [zangado]. Fomos a África mais tarde e fizemos as pazes. As minhas relações com o Salazar são estas.

 

O senhor era considerado do regime?

Não era considerado da direita do regime. O presidente Américo Thomaz recebia muitos ministros que iam a casa dele ao fim-de-semana, tomar chá. Nunca fui a essas reuniões. Havia outro grupo que ia com o Dr. Marcelo para a Choupana.

 

Não era convidado porque não era considerado?

Se quisesse ia, era só dizer que sim. Qualquer dos grupos me recebia. Tive uma oferta para ter uma moradia no Restelo e não quis.

 

Porque é que não quis?

Dever favores políticos? Aquilo era organizado, inscrevíamo-nos na Legião Naval, na Brigada Naval, e depois tínhamos os terrenos. Não quis dessas coisas.

 

Percebeu que ficaria a dever um favor político.

Queria a independência sempre.

 

É isso que lhe permite ser ministro das Finanças e vice-primeiro-ministro no IV governo constitucional, em 1978?

Fui demitido do Banco [de Portugal] no dia 29 de Maio de 1974. No dia seguinte, telefona-me o Palma Carlos a dizer que tinha de voltar, que era lá preciso. “Só se tiver um papel em como fui nomeado”, e mandou-mo a casa no dia 30 à noite. Dia 31 entrei no Banco com o papel no bolso e comecei a mandar, como vice-governador.

 

Como é que foi a sua convivência com Soares e com todo aquele grupo político no pós-revolução? Esteve em 1978 e 79 no Governo.

Em 1975 as pessoas estranharam muito. Aí é que pensaram que era ligado à esquerda. No 25 de Abril sou chamado à Junta de Salvação Nacional, para ser delegado do ministério das Finanças. Quem me chamou foi o General Spínola. Tinha trabalhado com ele na Siderurgia Nacional. O Galvão de Melo tinha sido meu aluno, o Costa Gomes tinha sido meu colega no Governo, conhecia os três muito bem. Disse que não. Daí a uma semana chamaram o Vieira de Almeida. E continuei a trabalhar com ele, não me importei nada. Fui para a Junta. Um dia trabalhei 17 horas seguidas, almoçando uma sandes de presunto na esquina. Disse: “Trabalho, mas responsabilidades políticas não quero.

 

Tinha sido também esse o seu posicionamento no Antigo Regime. Dizer sim à função, à tecnicidade, mas não ao comprometimento político.

Exactamente. Muitos dos oficiais que participaram naquilo tinham sido meus alunos no Instituto de Altos Estudos Militares. Conhecia o Firmino Miguel, o Loureiro dos Santos, aquela gente toda. Trataram-me muito bem. Como trabalhei lá, embora recusasse qualquer responsabilidade política, as pessoas pensaram que estava ligado ao movimento. O Dr. Marcelo Caetano disse nas suas memórias, infelizmente, que eu era uma das figuras que tinha destruído este país. Faz-me umas acusações... Não respondi. Ele estava no exílio e tinha consideração por ele, no fundo. Não tinha ligações políticas e vi logo que aquilo ia dar fita.

 

Como é que viu isso?

Passavam por mim e trocavam comentários. Os da direita dizendo mal dos da esquerda, os da esquerda dizendo mal dos da direita.

 

O seu posicionamento político era claro para aqueles com quem se dava, ou não?

Sabiam que era relativamente neutro.

 

Era possível ser “relativamente neutro” em anos tão quentes?

Era. Nunca tomei posição. Resolvia os assuntos de acordo com o que tecnicamente achava que eram as soluções correctas. Um dos revolucionários, que depois foi general, disse-me: “Sr. professor, as mulheres dos PIDE não receberam vencimento este mês. Consegue-se fazer alguma coisa?”. Telefonei para o director-geral da Contabilidade Pública, que não conhecia, e as mulheres foram pagas por intervenção de um major da esquerda. Uma coisa justíssima, as mulheres não tinham culpa. Devo dizer que fiz coisas ilegalíssimas, não tinha poderes para nada.

 

Em 1978/79, quem é que o convidou para ser vice primeiro-ministro?

O General Eanes.

 

Foi simultaneamente ministro das Finanças.

Sim. Mas antes disso tinha presidido a um grupo de trabalho que ele criou para fazer uma avaliação económica da situação – era o Dr. Mário Soares primeiro-ministro. Desse grupo fizeram parte o Silva Lopes, o Vítor Constâncio, o João Cravinho, o João Salgueiro e o Sousa Gomes, ministro da Economia. O Expresso chamava-nos ironicamente “o grupo dos sábios”. O General Eanes deve ter ficado bem impressionado com a forma como conduzi os trabalhos.

 

Gostou de ser ministro?

Não.

 

Foram poucos dias.

Quando fui convidado para ministro da Economia disse que não. Cinco anos mais tarde houve possibilidade de ser convidado para ministro das Finanças.

 

Ainda com Salazar.

Sim. Vou ser franco: estive tentado. Tive a tentação porque das Finanças gostava, e o ministério das Finanças tem muito mais poder para fazer coisas.

 

Também não o envaideceu a possibilidade do título de ministro das Finanças?

Não.

 

Não há nada que o envaideça? Com este currículo. Ou é um bocadinho como a sua mãe que assim a despachar vai fazendo uns comentários?

Tive uma condecoração brasileira. O Almeida Ribeiro, Procurador-Geral da Justiça, disse-me assim: “Você é um fulano que passa pelos lugares como quem pede desculpa de os ocupar”. Esta frase, ao princípio, chocou-me, mas depois percebi que tinha razão. Não atribuo grande importância aos lugares que ocupei. Ocupo-os com sentido de responsabilidade, mas não faço disso título de glória.

 

Não houve nada, olhando para o seu percurso e para as muitas coisas que conseguiu, que o tivesse envaidecido?

Ser professor catedrático [em 1963]. A carreira universitária.

Progredir na carreira universitária constituiu um objectivo. Ser ministro, não. Teria desgosto se não conseguisse chegar ao termo da carreira universitária. E com satisfação, cheguei. Não vaidade, mas satisfação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

Jacinto Nunes morreu no dia 14 de Julho de 2014

 

 

 

Inês de Medeiros

20.02.14

Inês de Medeiros tem trinta anos [entrevista de 98], é mãe do Pedro de um ano e meio, filha da jornalista Maria Armanda Passos e do Maestro António Vitorino de Almeida, irmã da Maria e da Anne. Reparte os dias entre Paris e Lisboa. «Senhor Jerónimo» é o título do filme com que se estreou na realização e com o qual venceu o Festival de Curtas-metragens de Vila do Conde. Apesar de bem sucedida na nova experiência, quer investir cada vez mais na sua carreira de actriz. Inês confessou-se num fim de tarde português, na casa da mãe que foi, também, a casa da sua infância. Riu muitíssimo. O bebé dormia no quarto ao lado.

 

Porque é que escolheu a solidão e o envelhecimento para o núcleo central do seu filme?

Foi uma história que tirei de um recorte de jornal. O recorte dizia que o hospital se tinha enganado de morto e tinha avisado a família errada. Pensando um bocadinho achei que este senhor (vítima do engano) teve a sorte de poder ver o luto da sua família, que é uma coisa que nunca ninguém tem.

 

A história dava-se cá ou em França?

Cá, é uma história tipicamente portuguesa.

 

Quando se diz que a realidade supera largamente a ficção é válido para qualquer canto do mundo.

A notícia era óptima, «Morto que afinal estava vivo»! [riso] Foi uma história que escrevi muito depressa, imaginando reacções à notícia.

 

Escreveu compulsivamente achando que tinha descoberto «a história» para o seu filme?

Eu escrevo quase sempre compulsivamente. As histórias andam para aqui, depois concentram-se (parece que cristalizam) e é só escrever. Quanto à velhice e à solidão... Isto não é nenhum julgamento moral ou social das famílias que abandonam os seus velhinhos; é mais a ideia de uma sociedade que anda muito enganada sobre uma data de coisas, algumas óbvias.

 

Como é que uma mulher tão cheia de vida, que foi mãe há pouco tempo, se ocupa de uma história de lutos e equívocos?

Não há melhor maneira de perceber a morte que ser mãe. Durante muito tempo, para mim, a morte foi uma aberração, um acidente. Quando se percebe realmente o que é a vida e se começa a ter medo pela vida de alguém... Porque não se consegue pensar a nossa morte.

 

Não?

Eu não.

 

As mortes por acidente, com uma forte carga fílmica, da Marilyn ao Dean, são, pelo menos, mais facilmente romantizáveis.

Aceita-se melhor a morte por acidente, por fatalidade é mais difícil.

 

Pensei que fosse o contrário.

A grande velhice é outra coisa. As mortes por acidente são romantizáveis, cinematográficas, portadoras de ficção. O outro lado, em que por mais que a gente se cuide por lá passa, é que é difícil de perceber.

 

Qual seria a grande vantagem de viver eternamente?

Ah, não, detestaria morrer aos 130 anos como aquela senhora francesa que morreu há pouco tempo, coitadinha.

 

Morte com dignidade, portanto.

Isso é o filme. Alguém que decide que há-de morrer como entender e ter o domínio sobre a sua vida e sobre a sua morte.

 

Curiosamente a Inês não aparece no filme, ao contrário do que costuma acontecer com a maior parte dos actores que experimentam a realização.

Os actores precisam de alguém que olhe para eles; se eu fosse representar não saberia quem é que olhava para mim.

 

Precisa de ser dirigida, apesar de toda a experiência?

Obviamente, e é muito simples, é porque a gente não se vê. Por muito que se tenha domínio.

 

Porque é que escolheu aqueles actores ( Raul Solnado, José Viana, Rogério Samora, Teresa Roby)? A Patrícia Tavares, por exemplo, é mais conhecida pelo seu desempenho nas telenovelas.

A Patrícia Tavares é muito bonita e tenho a certeza que pode fazer coisas muito boas. A televisão é muito mais dura que qualquer cinema. As pessoas estão muito mais abandonadas. Não falo da Patrícia em particular, mas tenho a sensação que estes esquemas de representação muito rápidos são trituradores e estragam o prazer de representar.

 

É uma das razões pelas quais não faz televisão?

É uma, não é a razão. Julgo que teria muita dificuldade em trabalhar nessas condições. As coisas são escritas muito depressa, que é um erro de produção, porque quando se vêem as boas séries normalmente são todas muito trabalhadas, escritas e reescritas; só que isso custa dinheiro. São opções.

 

Uma das vantagens de fazer televisão é que são coisas bem pagas. Esse lado material não a tenta?

Acho que o lado material tenta toda a gente, quem disser o contrário, das duas, uma: ou é muito rico ou mente.

 

Há, então, pessoas mais tentáveis que outras.

Não é só uma questão de tentação mas de possibilidade. Eu sei que dizer «Faço isto e não faço isto» é um luxo; ou posso ter esse luxo ou não posso. Ou são escolhas, não tenho carta, não tenho carro.

 

Mas gostava de ter?

Não.

 

Não lhe é uma escolha difícil.

Não me é essencial. Durante imenso tempo os actores em Portugal viveram malíssimo e acho naturalíssimo que as pessoas comecem a ganhar mais dinheiro e queiram ganhar mais dinheiro; não quer dizer que tenham de se sujeitar a tudo.

 

Nunca foi sonho seu viver numa casa com piscina e ter um monte no Alentejo?

Claro que é, ainda não desisti. Um monte no Alentejo, com certeza, uma casa com piscina, depende.

 

Qual é a sua ideia de casa-lar?

Ah, é uma casa muito grande mas não nova, com madeiras e com alguns buracos. Tenho uma enorme dificuldade em imaginar-me naqueles apartamentos em torres muito modernas e assépticas.

 

Viveu sempre em casas antigas?

Sim.

 

Como era o seu quarto em pequena?

Era ali ao lado, tinha de o partilhar com a minha irmã. A Maria dizia «Este é o meu lado», que era o arrumado, «E este é o teu lado», que era o desarrumado.

 

Quando vem a Lisboa e fica nesta casa sente uma nostalgia da infância?

O quarto está diferente, as camas já não estão lá, os armários já não são os mesmos. Sinto mais esta sala como sala da minha infância que o quarto.

 

Tudo isto era a propósito do monte alentejano e da tentação do dinheiro. Podia ser uma casa na Provence ou ainda pensa em Portugal como o seu canto?

Não me vejo nada a ter uma casa na Provence, uma casa assim seria em Portugal.

 

Há quantos anos vive em França?

Não há muitos, três, quatro. Há muito tempo que estou a fazer idas e vindas e isso quero continuar a fazer. Nem quero que as pessoas achem que me mudei porque Portugal faz-me falta.

 

O que é que lhe faz falta?

A confusão, o sol, as pessoas que se encontram nos mesmos sítios e às mesmas horas; faz-me falta pelas mesmas razões por que me fui embora, este lado pequenino e provinciano.

 

Como as casas antigas.

Exactamente, como aquela racha que está lá sempre, que se tapa e volta a aparecer.

 

Como é que decidiu instalar-se em França?

Não decidi. Fui para lá por razões profissionais porque achei que cá tinha dado a volta à praça. Dez anos antes tinha feito a escolha de não ir para França, da qual não me arrependo nada. Quando fiz o Rivette tive de decidir se queria ficar ou se queria ir. Nessa altura em Portugal estava a aparecer uma série de gente nova e interessante e senti que havia uma espécie de nova dinâmica que não queria perder. Permitiu-me ter imagens de cinema muito diferentes; permitiu-me trabalhar na escrita com o Joaquim Pinto, como assistente da Teresa Villaverde e do João César Monteiro. Em França são coisas impossíveis: uma actriz é actriz e não pode fazer mais nada. Porque há muita gente e quando alguém vai meter o nariz noutra coisa é suspeito.

 

Na sua decisão, há dez anos, não pesou o facto de a sua irmã Maria estar em Paris?

Não.

 

Sendo mais nova não sentia necessidade de vincar o seu papel e o seu espaço?

Somos muito diferentes. Na altura do Rivette a Maria fazia muitíssimo teatro mas pouco cinema, ela começou a fazer mais cinema a partir do Henry and June. As pessoas é que acham que é mais difícil, duas actrizes irmãs, não sei quê; mas sinceramente, na prática, nunca sentimos nada. Qualquer pessoa que duvide entre mim e a Maria é porque não sabe o que quer do papel. Há dez anos perguntava-me «Para que é que vou para França ser mais uma actriz quando em Portugal posso ter não só uma garantia de trabalho que não quero perder como um contacto muito mais humano e próximo com as pessoas?»

 

O lado hollywoodesco, que acabou por estar ao alcance da Maria, não a seduziu? A Inês parece pouco ambiciosa.

Não tenho ambição de grandes famas, isso não. Tenho uma família recheada de grandes popularidades e não é qualquer coisa de que sinta necessidade. Tenho ambições de trabalho. O facto de ter um pai que... Nunca me incomodou, diga-se de passagem. Não quer dizer que não goste que as pessoas me reconheçam.

 

Aqui em Portugal reconhecem-na muito na rua?

Acho que reconhecem, não sei bem porque são muito delicadas, muito afáveis e mesmo em relação ao meu pai nunca são abusivas. Essa é uma das grandes vantagens de Portugal.

 

Se virmos a questão ao contrário, alguns dos seus mitos, justamente por ter tido essa proximidade, devem ter sido visitas de casa. Não teve o entusiasmo juvenil de pedir autógrafos?

Não tive, confesso.

 

Por ninguém?

Tive, tive pessoas com quem ficava a tremer. Lembro-me que a certa altura filmei com o Sérgio Godinho, que é alguém de quem eu gosto muito, e pensei «Se aos 12 anos me tivessem dito que filmaria com o Sérgio Godinho tinha tido um ataque». Mas Portugal é tão pequenino que inevitavelmente acabamos por nos cruzar com os mitos. As pessoas não deixam de nos emocionar mas temos menos aquela coisa de «Nunca o vou poder alcançar».

 

E lá fora, há alguém que a faça tremer?

Ai, eu até já consegui conhecer o Caetano Veloso! [riso]

 

O que é que lhe disse?

Não disse absolutamente nada. Foi um encontro depois de um concerto no Coliseu, estávamos todos, a Maria, a Teresa Villaverde, o Sérgio Godinho.

 

Podemos voltar à sua vida em França? O que é o seu dia normal?

Então, acordo, vou pôr o meu filho à creche e depois tenho todos os problemas de consciência das mães. O meu dia normal depende muito do que estou a fazer, agora vou filmar como actriz, portanto vão ser ensaios ou provas de roupa ou assim. Mas quando não estou a filmar têm sido muito a escrever, escrever. O que mais gosto de escrever são diálogos; também escrevo histórias muito pequeninas.

 

Começou por frequentar um curso de línguas, não foi?

Saí porque achei que me estava a tirar o gosto da leitura. É a mesma coisa com a música, nunca quis aprender porque achei que me ia estragar o prazer de ouvir. Eu gostava imenso de crítica literária; mas a crítica é anatomia, é dissecar um texto e a certa altura é de tal maneira que já não se lê texto nenhum.

 

Pôs a hipótese de ser professora, que é, normalmente, a profissão esperada quando se tira um curso de letras?

Não, nunca. O que eu queria ser era cantora de ópera. Quando fiz o Amor de Perdição com o Ricardo [Pais] havia pessoas em cima do palco e de repente eles começavam a cantar e eu via semi-deuses entre nós. Pensava «Como é possível que aquilo esteja lá dentro e saia?»

 

Nunca chegou a experimentar?

Não. É uma história da infância: A Maria disse-me que eu ia ficar muito gorda e eu era muito vaidosa e desisti. Só tinha a imagem da Monserrat Caballé e pensei «Ai não, assim não quero ficar».

 

Queria ser cantora de ópera por lhe lembrar Viena?

Não, de Viena lembro-me das orquestras a tocarem no jardim, das pessoas em fato de noite a dançarem a valsa, de nos ensinarem a fazer a vénia. A recordação que tenho é a de um país completamente anacrónico, parado no tempo. Estamos a falar de 74, 73. 

 

Quem é que lhe ensinava a fazer a vénia, o seu pai ou a sua mãe?

Era na escola, no Liceu Francês. Ensinavam as meninas a fazer a vénia e os meninos uma espécie de continência e a baterem com as solas.

 

Nasceu cá ou lá?

Nasci lá. Até aos seis, sete vivi em Viena durante o ano e na Linha, na casa dos meus avós, durante o Verão. Do que eu me lembro é da chegada a Lisboa em 75 no pós revolução e do mundo que eu desconhecia com gente eufórica na rua. Eu e a Maria fazíamos trezentas e cinquenta vénias por segundo durante as manifestações. Era maravilhoso! Os miúdos que viveram de alguma maneira o 25 de Abril só podem ter boas recordações, recordações de alegria absoluta. Na minha família também havia quem não estivesse tão contente, mas esses foram para fora; nós viemos e eles foram.

 

Essa parte da família que foi para fora era do seu pai ou da sua mãe?

Da parte do meu pai; e depois havia os da parte da minha mãe que não foram mas gostariam de ter ido.

 

Continuou cá no Liceu Francês?

Sim, o Liceu Francês era um misto de gente muito curiosa: havia, por um lado, algumas das grandes famílias portuguesas e, por outro, muitos filhos de intelectuais de esquerda. Nós fomos para o Liceu Francês porque não tínhamos a certeza se ficávamos em Portugal e o Liceu era uma maneira de garantir uma continuidade nos estudos. Como éramos todos filhos de pessoas politizadas havia uma grande animação, discutia-se muito. Em pequenina a base era «O teu pai é comunista, o teu pai é fascista». Eu defendia-o sempre e pensava «Será que devo dizer que ele é comunista, porque ele não é?» Depois as discussões foram outras.

 

E a casa, tinha-a sempre cheia de intelectuais a conversarem?

Isso sim, os meus pais eram pessoas muito rodeadas. Como eles estavam separados tinha de um lado e de outro.

 

Que idade tinha quando eles se separaram?

Sete. O meu pai vivia em Viena e eu vivia cá com a minha mãe. A minha mãe era jornalista.

 

Em Paris relaciona-se com as pessoas do cinema?

Tenho uma vida mais isolada que em Lisboa porque as pessoas têm vidas mais isoladas que em Lisboa. Depois de ter vivido muitas saídas à noite sabe-me bem este lado mais recatado. Mas é inevitável que as pessoas com quem me cruzo estejam ligadas ao cinema. Em Lisboa é mais fácil estar em contacto com pessoas que fazem outras coisas, em Paris é tudo muito compartimentado.

 

Tem um agente em Paris? As propostas chegam-lhe com a mesma profusão?

Tenho uma agente. Houve aqui dois anos, e isto tem a ver com o nascimento do meu filho, em que me cortei um bocadinho de tudo voluntariamente. Quis aproveitar ao máximo as coisas que estava a viver.

 

Tinha conseguido amealhar o dinheiro suficiente?

Tinha o programa da televisão («O filme da minha vida») que dava imenso jeito. O dinheiro é uma preocupação óbvia para toda a gente mas acaba-se por encontrar sempre aquilo de que se precisa.

 

O que se procura cada vez mais numa actriz, pelo menos num determinado tipo de cinema, é a femme fatale com silicone injectado e ancas aspiradas. Essa imagem não é agressiva para si?

Está a dizer que não sou boazuda, é isso? [riso] Não acho sequer que seja verdade. Hoje em dia qual será a actriz que mais trabalha em Portugal? Eu acho que deve ser a Rita Blanco, que não é o protótipo da starlett em fato de banho nas praias de St. Tropez. A nível internacional as actrizes europeias com maior prestígio são a Binoche, a Bonnhair, a Béart. Há estereótipos (e continuará a haver) e modelos de sedução e de sex appeal; mas acho que, pelo contrário, quanto mais uma pessoa se vincar num tipo de personalidade e de carácter mais hipóteses tem de resultar.

 

O seu tipo é o da sonhadora e boazinha?

Ah não, espero que não!

 

Era essa a imagem de há uns anos.

As imagens criam-se em função do que as pessoas pedem para fazer e isso não se domina forçosamente, não se controla o que inspiramos nos outros. Eu sempre quis fazer uma comédia e nunca ninguém mo propôs. Portanto, em França não tenho feito tantas coisas quanto isso. Tenho andado muito pacata na minha vidinha de mãe, a escrever e a experimentar. Esta curta-metragem foi uma experiência de que gostei muito. Mesmo que não queira pôr de lado a minha carreira de actriz, bem pelo contrário, sinto-me com muito mais vontade... Porque sempre tive uma relação difícil com a ideia de ser actriz.

 

Porquê?

Isto é muito pretensioso de se dizer mas é verdade, eu não escolhi completamente ser actriz; fui sendo até perceber que não queria fazer outra coisa. Ser actor é uma coisa muito difícil. Porque é uma eterna sedução; ser actor só faz sentido se quisermos que os outros nos amem, é «Gostem de mim, gostem de mim, gostem de mim». Pode dizer-se que todas as pessoas querem que gostem delas, mas no caso de um actor é elevado ao cubo. 

 

Desgasta-se muito na preparação de um personagem ou é uma coisa que lhe é intuitiva?

Depende. Quando uma rodagem corre bem é um dos maiores prazeres que se pode ter; quando corre mal é um pesadelo. Eu sei que sou profundamente infeliz quando estou a fazer qualquer coisa na qual não acredito a 150%! Quero lá saber que o resultado não seja aquele que esperei; na altura em que estou a filmar tenho de estar convencidíssima de estar a fazer uma obra prima. O resultado final é outra relação. Os actores só se têm a si próprios para se usarem, não têm utensílios, não têm uma caneta sequer, têm as suas mãos, a cara, a voz. Não quer dizer que se tenha de usar o passado ou os traumas de infância, isso são outras teorias com as quais não estou completamente de acordo. Temos de nos usar a nós próprios, é um investimento físico; e, como tudo o que é físico, é muito mais difícil que o mental.

 

Pensei que fosse ao contrário. As coisas mentais não são as que ficam e doem? A feridinha passa com um bocadinho de mercúrio.

Voltando ao que falávamos no princípio, a solidão é uma coisa física, a paixão é uma coisa física...

 

Então, como é que sente no corpo a infelicidade?

Fico cheia de olheiras, com um olhar baço, mal disposta, não acordo de manhã. Uma depressão não é uma coisa física? Não estamos a falar de traumas terríveis enfiados no subconsciente; acho que o mental pode ser dominado e contornado e contado de novas maneiras, o físico tem qualquer coisa de irredutível. Quando se tem frio tem-se frio, não se experimentam técnicas zen.

 

Essa inspiração oriental, a astrologia, a meditação transcendental, todas essas coisas que elevam o espírito, atraem-na?

Tentei fazer ioga mas adormeci sempre, é que eu não tenho problema nenhum em descontrair. Sou supersticiosa como qualquer pessoa que compra uma revista e a primeira coisa que faz é ler os signos; meia hora depois esqueci-me do que lá está. Não passo debaixo de um escadote; gatos pretos é que tive vários e acho que dá imensa sorte.

 

Vivia sozinha nessa altura?

Tive um gato preto quando era pequenina e agora tenho uma gata preta de quem tenho muitas saudades porque não a posso levar comigo para Paris. Eu adoro gatos, mas um gato não substitui nada. A casa é pequena e eu já tenho um filho.

 

Sentiu com a criança uma transformação na sua vida, no seu corpo?

Claro que senti. O mais perturbante quando se está à espera de um filho é saber que não se domina de modo nenhum o nosso corpo, que pertence a outra pessoa. É fascinante e terrível.

 

Como é que decidiu ter um filho? Sentiu que aos 29 anos era altura de ser mãe?

Eu decidi ter um filho quando achei que tinha encontrado o pai certo. Volta e meia também há as vontades físicas que não têm a ver com a ideia de educar um filho; são mesmo físicas.

 

Ficou com um medo enorme do que pudesse mudar?

Eu acho que só se percebe mesmo o que muda uma vez que a criança nasce. Todo o lado prático muda e, a partir daqui, são novas bases. As coisas comezinhas são essenciais; a felicidade está nas coisas comezinhas e a tristeza também. Não se trata de um sacrifício, é um ser que não pede licença para nada, que exige e a quem se dá sem sequer perceber que se dá. É extraordinário existir alguém que nos pode exigir tudo.

 

É a forma última do amor.

É uma forma do amor, é uma coisa que só se aceita a um filho. Eu nunca quereria ter uma relação amorosa destas a não ser com um filho. Não aceitaria nunca que alguém fosse tão dono de mim.

 

Sempre foi muito independente?

Sempre. E simplifica imenso a vida! Uma data de interrogações, «Será que devo fazer isto ou aquilo, ser mais assim ou mais assado?», não têm importância nenhuma. Tudo passa a ser tão relativo em relação à enormidade que aconteceu. Para mim foi uma espécie de libertação.

 

Quais eram as suas grandes angústias?

Iguais às de toda a gente, «Será que estou bem, será que estou bonita, será que gostam de mim, será que disse uma asneira, será que vou ganhar mais dinheiro?». Estava a falar de dinheiro? Agora com o dinheiro é assim: tenho que ter dinheiro porque tenho um filho, pronto. Todos esses problemas, «Será que posso fazer esta concessão?», se eu não tenho dinheiro tenho que fazer as concessões todas. Eu sozinha posso comer batatas durante três meses, com um filho não posso.

 

Angustia-se em relação ao seu talento?

Claro, toda a gente se angustia.

 

Uns são mais visíveis, outros parecem mais autoconfiantes.

Acha que eu pareço muito autoconfiante? Engana-se, pelo contrário. Tenho sempre um medo absurdo antes de começar as coisas. O que eu acho é que uma pessoa angustia-se e deve angustiar-se pelo seu talento; mas tem também que poder aceitar que o que faz é, em grande parte... No resultado final domina o quê, 30%?

 

Estava mais angustiada do que é normal em relação à sua estreia na realização?

Claro que estava. Mas há acasos... Quando escrevi pensei nuns actores e depois noutros e depois tinha de filmar naquela altura, com aquele dinheiro, naquelas condições. Falei com o Raul Solnado e o José Viana três dias antes de começar. Não tinha actores; não tinha porque não achava possível ter aqueles actores, «O quê, ir buscar o Raul Solnado que deve ter tanto que fazer?» E foi e correu tudo maravilhosamente.

 

Como é que foi o momento em que disse pela primeira vez «Acção»?

Isso foi uma vergonha! [riso] Mas passa depressa. Pior que Acção é Corta. Se estiver a representar é com certeza muito mais difícil; a realizar vê-se o que não está bem. Como é uma evidência no momento, mesmo que seja uma burrice, dá uma enorme força. Nas curtas-metragens há uma vantagem: como nunca há condições nenhumas, as pessoas estão lá porque acreditam e têm vontade. Não se pode desiludi-las e, como se sabe que as pessoas lá estão porque gostam, há uma liberdade muito grande.

 

O filme vai ser comercializado? Em Portugal temos assistido à experiência de algumas curtas a precederem as longas-metragens.

Em princípio sim, é bastante comprido (21 minutos) e é preciso encontrar um filme que não seja muito longo. Já houve contactos mas não sei quando nem como.

 

Está com medo da crítica, do público, do que os amigos do meio vão dizer? Ou com essa relativização de que falava há pouco as críticas não a tocam de todo?

Ah mas é essa a imagem? Não é nada verdade, as coisas tocam-me imenso. E as críticas dos amigos são as piores de todas, amigos do meio e sem ser do meio. Agora estou um bocadinho mais descansada, o filme foi bem aceite, Vila do Conde (Festival de Curtas-metragens) correu bem, foi vendido para o Canal Plus...

 

Se tivesse corrido mal, seria o suficiente para a deprimir?

O estado de espírito para este filme era «Vou ver se eu sou capaz ou não, se tenho ideias, se sei dirigir actores, se gosto ou não gosto». Se o filme tivesse corrido mal provavelmente teria arrumado as botas.

 

Lidar com o fracasso é uma coisa complicada. Uma coisa é dizer «Pronto, arrumo as botas» outra é...

Claro que é difícil lidar com o fracasso, teria detestado, teria estado deprimidíssima. Aturavam-me em casa.

 

Não me lembro de nenhuma situação sua de fracasso.

Não. Não ter fracassos também prova que não corro muitos riscos. Não tenho a sensação que seja uma atitude muito consciente, mas parece-se um bocadinho evidente.

 

Porque é que o homem do filme se chama Jerónimo?

Porque é um nome que eu gosto, que soa bem, tem um O lá dentro.

 

Fala com o seu filho em português?

Sempre, sempre em português. Falo em francês com o meu marido.

 

Casou mesmo, pela igreja e isso tudo?

Não, não, tenho que tratar agora dos papéis. Pela igreja não me caso de certeza, mas quero casar-me. Não sei bem como dizer, digo «o meu marido», mas ele não é meu marido; não suporto «companheiro» e «namorado» já não pode ser porque ele é mais do que isso.

 

Nem em miúda sonhou com o vestido de noiva?

Não, eu morria de vergonha num vestido de noiva, fugia logo. Entrar na igreja com as pessoas à volta e o padre ao fundo, com um véu e umas grinaldas, que horror!

 

O casamento simboliza o ideal romântico feminino. O seu era o do príncipe que vem buscar a donzela?

O casamento era bom para as bonecas, para as Barbies. O meu... Mas eu sou muito romântica [riso]. Ideais românticos há vários, mas parece-me que são mais quotidianos.

 

O Senhor Jerónimo acaba sozinho debaixo de uma árvore.

Pensei que era uma morte digna. Não há pior solidão do que a solidão que se sente no meio de uma cidade com as ruas apinhadas de pessoas, a rirem, a falarem, a cantarem, a namorarem. Quando se está completamente sozinho a solidão não tem o mesmo peso. 

 

De qualquer maneira agora tem o seu filho. Estava a pensar naqueles pais que dizem que os filhos são um amparo para a velhice.

Sei lá, se calhar vai fechar-me num asilo [riso].

 

Dá-lhe para pensar no futuro?

Ai nem penso nisso, eu aos setenta, que horror! Gostaria imenso de conseguir envelhecer bem; para já não consigo e acho uma aberração. Vê como não sou assim tão segura, também tenho algumas angústias.

 

 

A sua imagem é muito mais de uma pessoa convicta, muito pouco de alguém frágil e inseguro do seu trabalho.

Se quiser pode ir ali falar com o meu marido e ele dá-lhe outra versão. Passo a vida entre Lisboa e Paris e não há nada que me angustie mais que partir. Na véspera de uma partida estou angustiadíssima, quer num sítio quer noutro. 

 

Medo de quê, afinal?

Medo que as coisas desapareçam com o partir. Eu sei e sou absolutamente capaz de fechar portas.

 

Cortar relações com pessoas?

Cortar relações é uma forma de manter ainda uma relação qualquer, mesmo mentalmente.

 

O que pode ser tão grave para fechar assim uma porta?

Pode ser uma traição.

 

Perdoa?

Não, perdoo pouco. O mais doloroso é quando se percebe que não há mais nada a dizer, que não há qualquer afinidade. O meu maior pânico são os desgastes, a usura, nem sequer é o corte de uma relação.

 

Já foi trocada?

Fui uma vez enganada, mas trocada, trocada não. Foi uma sensação muito esquisita. Nunca troquei uma pessoa por outra.

 

A fidelidade é-lhe natural?

É, não só a amorosa mas também a profissional; eu podia trabalhar só com três realizadores. Não se trata de jogar pelo seguro, acho é que se vai mais longe; Os inícios são penosos e difíceis, normalmente são menos penosos porque são entusiasmantes, mas não deixam, por isso, de ser laboriosos. Acredito nas coisas que se constroem na duração, não tenho fascínio pela aventura. Não quer dizer que não goste de descobrir coisas novas mas não me sobe a adrenalina. Tenho imensas reticências em viajar por viajar, estou sempre à espera de um pretexto para ir trabalhar num sítio que quero conhecer.

 

Demora muito tempo a deixar que os outros entrem no âmago de si?

Talvez, não sei. Não tenho a sensação de fazer grande mistério.

 

Acha-se fácil?

Então não sou fácil e acessível?

  

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998