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Anabela Mota Ribeiro

Júlia Pinheiro

23.02.14

Fim da tarde. No camarim, há chariots com roupa dependurada, dezenas de sapatos, colares e pulseiras. Também há água em garrafas de meio litro, um computador, e livros.

Júlia Pinheiro, a apresentadora de televisão, escreveu um livro. “Não sei nada sobre o amor”. Porquê? “Preciso de uma coisa, uma parede contra a qual me atiro. Me testo”. Esta parede, escrever, existia para ela há anos.

É formada em Línguas e Literaturas Modernas. É uma leitora furiosa. É a autora de um romance onde se narra uma saga familiar. Começa no início do século XX, com Maria da Glória, e termina com Benedita (bisneta daquela), no tempo presente. Entre elas há Purificação e Ana Clara. Como pano de fundo, há o Portugal de Salazar, um pai que é inspector da PIDE, um tempo em que o sexo era uma porcaria e o amor um infortúnio.

Temos a ideia de que a conhecemos bem. Ela mesma começa por dizer: “Que é que quer saber que não saiba já?”. O que o livro mostra é que Júlia Pinheiro, além de ser aquela que vemos na televisão lá de casa, é também outra.

 

No livro, a primeira tentação é procurá-la nas personagens. Há uma sobre quem se diz: “Uma amazona desconcertante que provocava uma ventania onde quer que chegasse”!

Nunca provoquei tanta ventania! O livro não sou eu. Se houver nele um bocadinho de mim é na Ana Clara, no tempo da Revolução. Eu tinha 11 anos no 25 de Abril. Os rapazes podiam ir para as manifestações, podiam ter envolvimento político. As meninas não. Viviam resguardadas, num modelo em que tinham vivido as mães e as avós. Passei o dia da Revolução a jogar Monopólio!, o que é um anacronismo bizarro.

 

A sua família era politizada?

A minha família tinha um distanciamento em relação ao que se estava a passar. Depois vim a saber que não. O meu avô teve ligações ao Partido Comunista. Mas não se falava disto. Os anos seguintes, os anos de transformação cultural, de mentalidades e costumes, foram estranhos para quem estava a crescer. O que está retratado [no livro] é a minha iniciação à sexualidade, àqueles códigos de enamoramento e aproximação. Que era quase à chapada! Era uma coisa que tínhamos que despachar! Ora hoje vamos beijar, amanhã fazemos outra coisa, e andou! 

 

Era preciso ser livre e moderno, e contrariar o puritanismo que vinha de trás.

Era. Eu, até aos 15 anos, não era particularmente interessada [nos rapazes]. Vivia centrada na leitura. Li tudo o que havia para ler cedo demais. Comi tudo lá em casa, e como o meu avô tinha uma livraria, comi o resto na livraria. Passava os tempos livres a fazer arqueologia amadora. O meu primeiro beijo foi dado dentro de um buraco! [risos] Quando comecei a crescer para a feminilidade, talvez já fosse essa amazona: era grandalhona e tal. Não causando ventania, era desconcertante. O meu pai era muito autoritário e rigoroso; retardou tudo o que pôde, tratou mal os namorados todos. A minha mãe tinha uma atitude moderna e despachada. A combinação disto acabou por dar uma coisa temperada.

 

A saga desta família é contada a partir do ponto de vista das mulheres.

A figura feminina da minha vida é a minha mãe. Com quem tenho uma relação óptima. É a grande formatadora do meu carácter. É a pessoa que me ensinou a amar.

 

No livro, as mulheres não sabem amar.

O livro é o reflexo dos milhares de histórias que tenho ouvido nos últimos anos. Só neste programa [As tardes da Júlia], já entrevistei três mil pessoas. A determinada altura, as pessoas contam a vida toda… O que vou apanhando? Nos homens, uma austeridade, um código quase prussiano no modo como lidam com os afectos; mas basta tocar-lhes e percebe-se que nunca tiveram uma manifestação de carinho.

 

As mulheres, escreve, “passavam às filhas o credo simples de uma existência segura e inquestionável: labuta, obediência e Deus”.

As mulheres, durante décadas, não tiveram direito ao prazer, a uma realização pessoal. A moldura era a cozinha, o marido, os filhos. Não tiveram direito à noção de que são pessoas. Na maior parte dos casos que observei, isso reside sempre na mesma coisa: ninguém lhes ensinou, num determinado momento das suas vidas, a amar. Não diria que são pessoas infelizes. Mas são embotadas.

 

A constatação disso, além de dar título ao romance, funciona como um denominador comum.

Muitas mulheres reproduzem isto!, fazem filhos que são iguais. Eu queria contar a história dessa dificuldade de amar, e de como essa dificuldade em expressar afecto iria determinar a existência delas.

 

Elis Regina cantou nos anos 70 “Como nossos pais”. Os jovens achavam que iam fazer o oposto daquilo que os pais tinham feito. A liberdade por oposição à proibição. E acabaram fazendo o mesmo!

Porque é que se faz a mesma coisa? Somos todos muito parecidos. A vida, embora em circunstâncias diferentes, acaba por nos pôr perante os mesmos dilemas. O amor. A existência real e quotidiana, (que nos obriga a fazer coisas que não queremos, cedências que nunca pensámos fazer). A geração da Elis Regina foi a dos grandes desiludidos: porque não cumpriram a utopia. A minha geração nem utopia tinha.

 

Estas mulheres não são mães ideais… Mexe numa ferida. Porque a mãe é o ser inatacável. O grande mito. “Mãe há só uma”.

Estas mães só fazem porcaria. Há mulheres que pensam que a maternidade é um passeio no parque. É uma convicção que tenho há muito tempo: a maior parte das pessoas não tem grandes condições e vocação para a exercer. O instinto maternal não existe, é um condicionamento cultural. Há muitos seres infelizes porque foram filhos de mães que não o deviam ter sido. Há imensos homens que dão umas excelentes mães!

 

O que quer isso dizer?

Que têm mais vocação para ser “a mãe”. Ser mãe é cuidar, é abnegação, é sacrifício. É entregar a nossa existência a outro ser. Todas as nossas necessidades são subalternizadas às do outro ser, e é assim até morrer. Não quer isto dizer que eu tenha uma experiência terrífica. Sou uma mãe muito feliz. Mas consciente de que não é fácil. Nem todos os dias da minha vida com os meus filhos são luminosos para mim e para eles. Escamotear isto é estupidez, e não é verdade. Mais: eu não queria ser mãe.

 

Tem três filhos. O que a fez ter filhos?

Tive o meu primeiro filho por amor ao meu marido. Que é um homem que podia ser mãe! É um cuidador por natureza. Não estava à espera que a coisa me batesse tão forte…, mas mal a criatura vem, foi demencial! Tenho com os meus filhos uma relação telúrica.  

 

Para eles, a mãe é também a Júlia Pinheiro…

Não sou nada! Estão-se nas tintas. Tive esse cuidado: afastar essa sujeita da televisão e contextualizar sempre. Sou a senhora que lhes limpou o rabinho e que continua a dizer: “Olha a camisola”. O boneco da televisão, a notoriedade que tenho por trabalhar neste meio, a eles não lhes traz vantagem nenhuma. À semelhança da minha mãe, sou exigente e autoritária. Mas desejo que se autonomizem. Não sou muito ansiosa nem super-protectora. Tento estar tranquila em relação às suas dores de alma. 

 

É bem resolvida porque a ensinaram a amar?

Acho que sim. Tenho dois esteios importantíssimos na minha formação: a certeza absoluta de que era amada no meu reduto familiar. (Sou filha única). E porque me foi inoculada – como se fosse uma bactéria – a auto-estima. Todos os dias me diziam que era fantástica! Quando o mundo estivesse a desabar, havia sempre uma prateleira onde me podia acolher, e onde havia sempre sol. Isto foi-me dito todos os dias! A minha mãe, não passou um único dia sem que me dissesse como gostava de mim. O meu pai não verbalizava da mesma maneira; era através de um humor desconcertante que demonstrava a sua ternura.

 

Cresceu a achar que era a melhor do mundo?

Cresci a pensar que não havia nada no mundo que eu não conseguisse fazer. Não que era a melhor. Mas que não havia limites.

 

Há no livro várias conversas decisivas. Perguntava-me se esta mulher, que escreveu isto, não se habituou sempre a ter conversas verdadeiras, sem máscaras.

Não tenho nenhum problema em ter conversas decisivas, que são de ruptura ou de avanço. Mas sempre achei que algumas pessoas não estão disponíveis para essa troca de verdade, ou não estão no mesmo plano de verdade que eu.  Habituei-me, na idade adulta, ao “vamos lá decidir isso”. A ambiguidade, as meias tintas, incomodam-me. Tenho um problema: sou apressada. Se é preciso ter a conversa, tenho-a agora, não deixo para amanhã. O tempo não me tempera, e é mau. Tirando a precipitação, gosto da verdade, em todos os planos.

 

[entra o assistente de guarda roupa com o vestido que Júlia vai usar no dia seguinte, na apresentação do livro]

 

A que escreve o livro, é a mesma que apresenta “As tardes da Júlia”, e a que gosta de vestidos e sapatos?

É a mesma pessoa, revelada de outra maneira. O livro permite uma reflexão que a televisão, por ser tão rápida, não permite. O que as pessoas vão descobrir é que eu, no meu histrionismo e na permanente e incómoda alegria, escondo alguma sombra. Se calhar não sou tão alegre quanto se pensa. E tenho preocupações que as pessoas não vêem. Fico contente que descubram que isso coabita em mim.  

 

No livro, está arredada a coquetterie. Porque decidiu retirar os vestidos, os sapatos, os cremes, toda essa dimensão que importa também na sua vida?

Eu adoro isto, [aponta para os vestidos e sapatos], são os meus brinquedos! Mas já foi mais importante. A idade, a maturidade, leva-nos para outros caminhos. Há um código que nos faz estar atentas aos trends; a televisão obriga-me a esta disciplina. Mas, em privado, sou mais desligada do que pareço. Não apareceu no livro porque essas mulheres não eram coquettes, nem fashion victims.

 

O seu pai, a quem dedica o livro, já o leu?

Está a ler. A única pessoa que o leu antes de ser publicado foi o meu marido. Os meus pais vibram com tudo o que acontece na minha vida, vêem-me no programa todos os dias. Mas acham que isto é um disparate e que é preciso haver algum distanciamento. Mas quero acreditar que esteja a ler!

 

 

 Publicado originalmente na Máxima em 2009

 

Margarida Rebelo Pinto

23.02.14

Margarida Rebelo Pinto é formada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Publicou o seu primeiro romance em 1999, «Sei lá», com o qual ganhou o prémio Fnac (“É o meu único romance premiado”, diz...). Desde aí lançou quatro romances, três livros de crónicas e uma biografia de Herman José. A sua aventura mais recente é um livro de género incerto, mas que se pode apresentar como uma carta de amor: «Diário da tua ausência». No total, são dez livros que venderam como pão quente num país vagamente iletrado: 800 mil exemplares. Está publicada em Espanha, França, Alemanha, Holanda, Bélgica e Brasil.

Margarida Rebelo Pinto diagnostica como uma patologia o não saber viver sem amor. A escritora confessa padecer de uma adição ao amor. Aos 40 anos, revê o papel que protagonizou a vida toda: o da princesa que espera o seu príncipe na torre. Margarida confirma tudo o que sabíamos sobre o amor, as suas regras e disposições universais. Não é por isso surpreende saber que sofreu incontáveis desgostos de amor. Mas é imensamente surpreendente ouvi-la falar disso, ou de como converteu isso em facturação literária. O livro mais recente, «Diário da tua ausência», é uma longa carta de amor dirigida a um amor, a amores perdidos. É um livro que a revela em transição, ciente de que o desencontro amoroso é a sua cruz. 

 

 

Neste livro evoca o mito de Sísifo, que se pode resumir assim: Sísifo transporta até ao cimo da montanha uma pedra; quando está prestes a concluir a tarefa, a pedra cai. Mas ele volta a rolá-la.Não desiste: recomeça e repete infinitamente o procedimento. Interroga-se no livro: «Serei eu tão insensata a ponto de fazer o mesmo com os meus amores?» Este mito serve para definir a sua vida amorosa?

A minha vida amorosa e a minha vida profissional. Só que na minha vida profissional, a pedra fica lá em cima. Na vida amorosa não, porque aquilo que espero de uma relação amorosa não depende só de mim, nem da minha vontade, nem do meu amor, nem do meu desejo. Depende do meu interlocutor. Mas ainda não percebi: se eu desistir, o que é que acontece? Desistir é um verbo que não sei conjugar. Já aprendi a conjugar o aceitar...

 

Cita também Truman Capote: “A morte de um sonho é tão triste e dolorosa como a própria morte. Merece, por isso, o respeito e o luto daqueles que a sofrem”.

Exactamente. Não fui habituada na minha educação nem a mudanças nem a perdas. Sempre vivi na mesma casa, não tive traumatismo emocional por morte de pessoas próximas. Gosto de carteiras e sapatos, (são os brinquedos das mulheres), mas não sou assim tão apegada a coisas materiais. Sou apegada aos meus amigos, aos meus amores. Sempre que há uma perda, uma ruptura, e sou obrigada a desistir de uma coisa que idealizei ou sonhei, sofro. Sofro como se fosse a primeira vez.

 

Não consegue desistir do seu ideal romântico?

Escrevi este livro porque queria exacerbar e escalpelizar o amor platónico e o amor idealizado. Percebi que o príncipe tem que descer do cavalo. Se não descer, vivo uma relação virtual com ele. Isto acaba com um padrão que me acompanha há 20 anos e que faz de mim uma pessoa muito solitária. Estou sempre a esperar, a sonhar. Estou habituada a viver assim.

 

A espera é uma das  ideias dominantes do livro. É uma vocação de Penélope, (como lhe chama), que diz sentir. Quer romper com esse paradigma?

Quero mudar o meu registo e a minha visão em relação ao amor, mas não sei como é que o hei-de fazer. Sempre me vi e senti como uma eterna romântica. Não quero perder esse romantismo, mas não posso continuar a viver assim.

 

Custa abdicar do sonho e da idealização...

Sempre encontrei um grande estímulo, (não sei se a palavra é felicidade...), e um grande sentido de realização, a correr atrás dos meus sonhos. Este é o primeiro ano da minha vida em que não defini objectivos profissionais e pessoais. Estou à procura de outras coisas que não sei o que são. Todos os anos eu definia dois objectivos profissionais e um pessoal.

 

Essa calendarização acontecia no início do ano, no seu aniversário?

Não. No fim do Verão decidia o que é que ia fazer no ano seguinte. Como se fosse um programa de uma empresa. Nos últimos anos, cheguei a Abril e já os tinha cumprido... Estou em profunda reflexão. Gosto de ser romântica, mas pago um preço muito caro por isso. Ao mesmo tempo, não quero desistir, não quero perder a minha alegria de viver, o meu optimismo inabalável perante as pessoas e o mundo.

 

Consegue compreender o que é que recorrentemente corre mal?

Consigo. Faço um excesso de projecção na outra pessoa. Quanto mais as pessoas são próximas, mais as idealizo. Os meus amigos são os melhores do mundo, os meus pais são os melhores do mundo, o meu filho é o melhor do mundo. Preciso de idealizar para me sentir feliz. Aalimento-me de sonhos. E depois, como há muitos que já concretizei, acho que concretizo todos. Claro que ninguém concretiza todos.

 

Porque é que tem dificuldade em lidar com a imperfeição?

Gosto da imperfeição_ não é por aí. Eu preciso muito de dar. E sou bastante carente. As pessoas carentes precisam muito mais de dar do que de receber. Embora esperem retorno. Se não tiver a quem dar, isso entristece-me profundamente.

 

Alguma vez falou com a sua mãe sobre os problemas conjugais que ela eventualmente terá tido com o seu pai?

Não. A imagem de relação perfeita, harmoniosa e equilibrada que me foi dada pelos meus pais, e que é, aliás, esmagadora, porque é uma referência com um padrão elevado, nunca foi desmontada. Há um véu que os meus pais gostam de manter. Todas as famílias são um bocado disfuncionais, todas as pessoas têm fantasmas e todas as personalidades têm um lado negro. E eu fui criada num mundo em que...

 

Sobre essa realidade cai um véu.

O véu da harmonia, de uma certa perfeição, de uma imagem intocada e imaculada do que deve ser uma relação amorosa.

 

Parece refém dessa realidade ficcionada. E, por essa razão, é tão difícil o embate com a realidade, com a imperfeição.

Por isso é que escrevi este livro. O próximo príncipe, ou vem sem cavalo, ou já vem com o cavalo à trela. Todos os homens, enquanto estão lá em cima são extraordinários, não é? Ninguém imagina o Bradd Pitt com mau hálito.

 

Mas enquanto as figuras forem o príncipe a cavalo e o Bradd Pitt, não pode tropeçar no jardineiro. Porque é que não lhe acontece apaixonar-se pelo jardineiro? Dantes acontecia às senhoras terem casos com jardineiros e motoristas...; mas eram casos.

No fundo, sou muito mais parecida com a minha mãe do que julgo que sou. Sou um espírito livre, aventureira, logistica e financeiramente autónoma desde os 23 anos. Mas há uma carga que carrego e que tem a ver com o meu património genético, de uma burguesia muito redutora, de um espírito de família, com obrigações e deveres. E depois há uma necessidade quase compulsiva de projectar uma conjugalidade. Sou a única mulher avulsa na minha família.

 

Avulsa?

Sempre vi o mundo aos pares. Tenho uma crónica escrita sobre isso, chamada “O número mágico”. Uma pessoa chega aqui a casa e vê dois cache-pots, duas molduras, dois castiçais, dois pratinhos. Sempre vi o meu pai com a minha mãe, o meu avô com a minha avó, as minhas tias com os meus tios, os meus primos casados, os meus irmãos casados. Não há na minha família uma tradição, seja ela cultural ou genética, de mulheres independentes.


Sim, mas adora desconcertar. O seu modo de ser, independente e rebelde, contraria esse modelo burguês no qual foi criada.

Sou profundamente ambivalente, eu sei que sou. Às segundas, quartas e sextas adoro a minha total liberdade e às terças, quintas e sábados gostava de ter um marido e mais dois filhos em casa. Vivo em dois mundos. Até vivo bem com isso e faço humor comigo própria. É um processo catártico.

 

Como a escrita.

Não sei se alguma vez escreverei livros não-catárticos, nem sequer tenho essa ambição. As actividades criativas são como o amor. Não amamos como queremos, nem escrevemos como queremos. Amamos como podemos e escrevemos como podemos. Por outro lado, estou cansada de reverter para a escrita os meus fantasmas e desgostos. É um processo que está a tornar-se um bocado repetitivo.

 

O que é que significou fazer 40 anos?

A primeira coisa em que pensei foi: onde é que quero estar quando tiver 50? Só que não percebi como é que quero estar aos 50. Não tenho medo de envelhecer, não me sinto a envelhecer. Nem fisicamente, nem emocionalmente. Sinto-me a amadurecer, emocionalmente. Começo a ser mais sensata, mais desconfiada. São coisas que poderão parecer óbvias, mas no meu caso não são.


Receia não poder cumprir aquilo a que se propõe?

Em 20 anos só vivi uma relação plena, durante dois anos. Uma relação amorosa em que fui profundamente feliz e na qual tinha essa pessoa ao meu lado. Tenho medo de nunca mais viver isso. Começo a achar que me falta essa dimensão. Consegui um objectivo muito burguês, que é a casa dos meus sonhos. Foi um objectivo importante.  

 

Os seus objectivos são bem definidos, a sua vida parece arrumada em gavetas. Imagino que seja profundamente arrumada. Na cabeça, pelo menos.

Sou uma falsa arrumada. Parece que está tudo arrumado, mas depois as minhas gavetas são uma confusão.

 

É uma rapariga sem tempo. Sente isso?

Sempre fui fora do meu tempo, e sempre fui um bocado fora do meu país. Quando era mais nova sentia-me um bicho estranho. Estava sempre a transbordar dos cânones burgueses, católicos, do colégio de freiras e das férias em S. Martinho do Porto. Mas, em três ou quatro princípios, sou muito clássica. Neste livro um personagem diz: “Se calhar estou fora do meu tempo, porque vivo um amor idealizado”. Com uma ideia de comprometimento e de entrega, e de algum espírito de missão, que as relações amorosas também devem ter. Mas as pessoas já não estão para isso.

 

Esse modo de ser, ambíguo, fora do tempo, assusta os homens?

Na minha vida doméstica sou uma gueixa ocidental! Gosto de cozinhar, gosto de...

 

É demasiado poderosa para encarnar a gueixa.

Vivo as minhas relações, não digo com submissão, mas com grande dedicação. A imagem pública é o oposto disto. Antes de eles entrarem cá em casa já têm a imagem pública.

 

Como é que a imagem da mulher poderosa e bem-sucedida afectou as suas relações amorosas?

Como não me vejo assim, não penso que o meu parceiro me possa ver assim! Sempre separei a Margarida da Margarida Rebelo Pinto. Sou muito mais a Margarida do que a Margarida Rebelo Pinto. Mas, infelizmente, o ego é muito importante para os homens, mais do que para as mulheres.

 

Eles começam por ficar deslumbrados com a Margarida Rebelo Pinto e não querem a Margarida?

Quando conhecem a Margarida, ficam muito surpreendidos. Não a conseguem imaginar por detrás da Margarida Rebelo Pinto. O mundo não está para relações. Os homens vão demorar algumas gerações a adaptar-se a esta nova mulher que no mundo ocidental, e sobretudo na Europa, está a explodir. Há um misto de fascínio e estranheza e desconfiança em relação a mulheres de sucesso. Se eu caço e luto, como é que posso esperar que o meu príncipe me venha resgatar à minha torre? Deixo de ser o objecto idealizado, não estou na torre, estou a caçar com ele. Ou à frente dele. Ou a dizer onde é que está a presa.

 

Então os homens podem ter medo de si?

Os homens têm muito medo das mulheres. Conheçopoucos homens que sejam felizes sendo o marido de. Um deles é o meu pai. O meu pai é felicíssimo porque é o marido da minha mãe. E há outros, provavelmente o marido da Isabel Allende.

 

No fundo, precisava de um secretário, e de um amantíssimo marido que tomasse conta de si e que servisse de retaguarda.
Sou filha de um biólogo e de uma psicóloga. A biologia tem soluções para grande parte dos comportamentos humanos. Gostava que o homem que estivesse ao meu lado fosse um macho alfa. Eu sou nitidamente um macho alfa. Controlo, comando, defino objectivos, alcanço objectivos, tenho uma personalidade marcada. O que gostava era de ter uma pessoa que fosse um pouco o meu espelho.

 

Mas se forem iguais...

Sempre achei, durante muitos anos, que o amor era a fusão total. Saint-Exupéry, um sábio, dizia: “o amor não é olharem um para o outro, mas é olharem na mesma direcção”. Demorei imenso tempo para perceber isso. Tenho a profunda convicção de que só uma pessoa com determinadas características próximas das minhas será o meu par ideal. Mas há uma coisa fundamental para que ele seja o meu par ideal.

 

Que é?

É que ele queira ser o meu par ideal.

 

E se acontecer, mesmo sem esse querer tão deliberado?

Se isso acontecer, como diz a Florbela Espanca, “paz após tão longa espera”.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2005