Quando o Luiz Pacheco morreu
“Qual é o seu prazo de validade?
- É o que estás a ver, tu é que podes dar uma ideia a esse respeito.
Logo na primeira página d’ «O Libertino» há uma referência à morte: «Como morrerei, colapso, desastre, loucura súbita e logo suicida?».
- Isto é uma boa experiência, sabes porquê? Porque não dá vontade de viver muito tempo. A degradação física e mental a que aqui se assiste... Em três meses, envelheci dez anos, é inevitável. Vais no corredor e vês um gajo numa cadeira de rodas ou um gajo com um passinho assim assim, e tens de fazer um passinho também assim. E depois não tenho dinheiro para me tratar! Precisava de ir a um bom médico dos ouvidos ou pôr um aparelho, ir a uma médica dos olhos e pôr dois pares de lentes novas.
Como acha que vai ser a sua morte: colapso, desastre, loucura?
- Loucura, a que tenho é a que já tinha. Colapso, quando me deito tenho uma frase estúpida mas matemática: mais um dia, menos um dia. Nunca julguei aguentar aqui um ano.
Apesar de se sentir depauperado, este é, provavelmente, o sítio onde vai acabar os seus dias.
- Sei lá, não me interessa pensar nisso.
Que coisas gostava ainda de fazer?
- Não faço ideia. É a caminhar que se faz o caminho, não é? Um gajo chega à mesa e a conversa é: 13-7, 14-9, que são as tensões arteriais; o da frente não caga há quatro dias, sete dias, dêem-lhe um purgante ou um clister!; o outro está com a dentadura na mão, estou a comer a sopa e vejo ao lado um gajo a olhar para a dentadura. Que horas são?
Cinco e meia.
- Tenho de tomar esta merda. Este é para a asma e este é para a angina de peito.
Quem é que acha que vai chorar por si?
- Ninguém vai chorar por mim, para que é que haviam de chorar? Um homem chora, não é? Com toda a franqueza eu ainda fico chocado, magoado, mas chorar não me é muito fácil. As pessoas têm pena quando alguém morre? Porque é que se deve ter pena de uma pessoa que está aqui, que não fala, que não sabe onde está, que se borra e mija e que já não dá por isso? Isso é que me faz impressão. Eu, por enquanto, ainda não cheiro a mijo. Mas arriscar-me a sair daqui? “
Chamam ao telefone o senhor Pacheco – grasnou uma voz metalizada, pelo altifalante. Eu propunha-me entrevistar o Luiz Pacheco e falava para o lar da terceira idade onde ele vivia. [A entrevista foi publicada no DNa] Acordámos um dia, meti-me no comboio a caminho de Lisboa, e depois num carro com o fotógrafo até Palmela. Nos dias que mediaram uma conversa e outra, o Pacheco enviou-me para o Porto uns livros (as “Noites Brancas” do Dostoievski, uma pequena novela do Tchekov, e outro que não tinha interesse nenhum). Enviou-os enfaixados em papel higiénico!, voltas e mais voltas de papel higiénico. Uma questão de poupança. «Sabes quanto é que custa cada envelope almofadado? Cento e quinze paus, menina, é quanto custa!».
O Pacheco era o Pacheco dos livros. Trágico e pirotécnico. O entrevistado que bota frases de efeito garantido – “Faz favor, lá por ter sido enrabado pelo outro gajo duas ou três vezes, não fiquei paneleiro!”. O outro gajo era uma pessoa próxima da família – como costuma ser – e o episódio deixou-lhe uma sensação de culpabilidade – o que também costuma acontecer. Tinha 11 anos.
“Sente muito a falta do sexo?
- Não, nada [gargalhada]. Há umas raparigas que servem aqui, são mulheres casadas e avós, dão um bocadinho de animação, porque aquelas velhas... Não faz falta nenhuma. Tens uma entrevista em que eu digo que desde o dia 31 de Dezembro de 1974 nunca mais dei uma foda. Com uma maluca de uma fulana, a tal que fazia broches de pino. Fazes ideia o que é aquilo?
Não.
- Ó pá, um gajo está deitado... Há bocado estavas a dizer sexo oral; é muito mais giro dizer broche, as palavras corriqueiras que as pessoas entendem. Olha, se fores ali à gaveta encontras um caralhinho que me ofereceram há dois ou três dias, tem sido aqui um corropio, não é das velhas, é das criadas. Aqui não há privacidade possível, elas reviram tudo. O tal de pino. Um gajo está deitado, não é?, e a rapariga faz o pino, encosta os pés à parede e começa a fazer o coiso normal. O pior é se ela se desequilibra.
Um número acrobático, portanto.
- Um número acrobático, mas um gajo está a ver aquilo borrado de medo.
Porque é que nunca mais deu nenhuma?
- Não calhou, não calhou. Eu tinha complicações cardíacas, tinha uma coisa muito chata: era estar na cama com uma rapariga, uma mulher casada, fosse o que fosse, e de repente ter um ataque cardíaco. Tive isso duas vezes! Não fazes ideia de como é desagradável para o tipo que está a ter o ataque e está a ver se se safa do ataque com qualquer pastilha que mete na boca e ao lado está uma pobre paciente que é interrompida e se vê na situação de ter de agarrar num morto ou fugir. Deu-me duas vezes, não me posso nem masturbar.
Quantos anos tinha?
- Ó pá, eu agora tenho 73. As famas são uma coisa e a realidade é outra. Nunca fui um tipo muito sexuado.
Mais um bocadinho e diz que é púdico.
- Uma coisa é luxúria mental... Leste «O Libertino»?
Li.
- Não se passa nada, a não ser uma punheta. Não consegui engatar nenhuma miúda e não foi preguiça, estava era com uma grande dose de vinho verde, o magala ficou lá no mesmo sítio e a fama era que eu andava em Braga a engatar magalas.
Era uma flor carnívora. Um maldito sensual que falava de sexo às criancinhas. Também às velhinhas. Que vivia entre os mortos.
Falámos de sexo e de morte. Tudo em Pacheco se passava entre o sexo e a morte. Escreveu sobre ela n’ “O Teodolito”.
"Naquela altura morria muita gente de tuberculose, hoje é de cancro ou do coração, morre-se de qualquer coisa, tanto faz, vivemos entre mortos, gente que vai morrer e sabe que vai morrer e gente que já morreu, gente morta ou provavelmente morta ou morta daqui a bocado, amanhã, hoje ainda talvez, morte súbita, morte zás! e adeus... os mortos caem em todos os lados, caem-nos em cima, apertam-nos, já não metem medo, são tantos, há muitos, há cada vez mais companhia de mortos, tornam-se maçadores, abafam o ar. Aparecem-nos às vezes com um sorriso, fingem bem, mas debaixo dos fatos vem um cheiro que não engana, os olhos são vazios e lúcidos, já não querem ou esperam nada, estão mortos por detrás da gravata.
(...) Vamos criando distâncias pela vida fora, vamos morrendo uns para os outros. E também vamos morrendo dentro de nós. Dou os bons-dias a tipos que já matei; passo na rua por alguns satisfeitos fantasmas que se espantam (gritam-me: Ó pá, inda és vivo?) quando me vêem respirando e mexendo dentro da minha farpela pobre. Dormi mais de dez anos com o cadáver da minha mulher e na mesma cama. Jamais nos conhecemos, fomos sempre dois mortos um para o outro. São coisas que acontecem."
Uma tarde de Outono, com o Pacheco. Em vésperas do fim do século. Do fim do mundo que não chegou a ser. Ele a deitar os foguetes e a apanhar as canas. A manter a temperatura dos vivos. Para não soçobrar, num mundo de sombras. Quando me recebeu no lar, apresentou-me às criadas, apontou para um quarto fúnebre: “Aqui, é onde se morre”. Cá fora havia lençóis dependurados, as luzes estavam já acesas, o crepúsculo anunciava-se. O Pacheco posava para o fotógrafo, com os óculos fundo de garrafa e o roupão andrajoso. Ainda ouço a voz tonitruante, a dicção deficiente.
Qual foi a sua primeira experiência sexual com mulheres?
- Com uma puta de vinte escudos, com uma gaja do antigo Martim Moniz que tinha a alcunha de Arco Royal. Sabes o que era um Arco Royal? Era um monstro, um porta-aviões americano por vinte escudos. Eu estava a fornicar a rapariga e ela estava a comer uma maçã, o que não é propriamente entusiasmante. Aquilo foi arquitectado com um colega de liceu. Tinha treze, catorze anos. Mas com essa idade batia-se muita punheta. Ao lado uma rapariguinha de muita mama, muito rabo... Ó pá, há uma atracção mútua, há um convívio que vai aumentar uma intimidade e chega-se a vias de facto.
Nunca mais teve sexo na vida por problemas de saúde?
- Ó pá, lê «O Libertino» com atenção e vês que ali há sempre maluqueira na minha cabeça. Sou um tipo muito mais sensual que sexual. O que eu arranjei durante a vida foram complicações sexuais que hoje eram inteiramente impossíveis.
Como beijar uma rapariga e ser preso?
- São histórias do arco da velha em que fui sempre, mais ou menos, o estúpido da coisa. No Limoeiro apareço por um crime de estupro em que disse logo: «Eu caso com a rapariga». Os padrinhos da rapariga, quando souberam que era um teso, já não queriam que ela casasse.
Mas a sua família tinha algum dinheiro, ou não?
- Era um teso, desculpa lá, era um teso. O meu pai era um funcionário público de merda, em casa não se pagava às criadas, devia-se dinheiro à mercearia, era uma casa de tesura. Hoje os rapazes têm semanadas ou mesadas; o meu pai para me dar cinco paus era um caso sério. Eu era um teso e como tal os padrinhos da rapariga escreveram uma carta a dizer que ela era ainda muito nova e que ia tirar um cursozinho. Ela tinha catorze e eu tinha dezoito”.
Mais tarde, voltou a falar-se da sua putativa paneleiragem. Que tinha uma história de amor mal resolvida com Cesariny.
“O Cesariny é que é mesmo o paneleiro chapado. Dessa eu quero falar porque aparece sempre. Há uns meses dei uma entrevista ao «Jornal de Letras», ao Rodrigues da Silva que me conhece há cinquenta anos do Café Gelo e ao tal outro gajo, o Ricardo [de Araújo Pereira, então estagiário no JL]. Vieram-me com essa história do Cesariny. Julgam que tivemos relações um com o outro?
Ora pois não é! O Cesariny com vinte anos _ já eu era casado _não tinha aqueles ademanes, as mãozinhas, nada disso, vai a Paris e depois volta e começa a entrar no chamado paneleiro descarado! Fiquei chocadíssimo! No meio de uma tradução que estávamos a fazer, passa um gajo na rua, perde a cabeça e vai-se embora! Vá lá para o raio que o parta! Nós tínhamos no grupinho umas certas regras em relação ao meio literário, em relação ao Surrealismo, e ele entrou na grande bagunça, tornou-se pintor! Perguntarem-me porque é que eu me zanguei com o Cesariny tem alguma coisa a ver com paneleiragem? Era uma questão de ética, estética, camaradagem, de ele ser um tipo exigentíssimo, contra o mercenarismo na arte e essa coisa toda. As pessoas mudam muito. O Cesariny que eu conhecia já morreu há muito tempo. Tenho ali um livro do Cesariny, «O Virgem Negra», que estou farto de comprar e de oferecer, um livro de que nenhum paneleiro pode gostar, onde ele goza imenso com o Pessoa. Aquelas cartas do Pessoa à Ofeliazinha são uma baboseira pegada! Tu não conheces «O Virgem Negra»? Eu vou-to oferecer.”
O Pacheco. Escreve-se nos blogues e nos jornais que era um filho da puta. Irresistível, corrosivo, feérico. Mas um sacana de um filho da puta. Um escritor que dizia enormidades. Um surrealista. Um homem que fazia o “toma” do Zé Povinho para a fotografia. Ou que punha corninhos de diabo, também para a fotografia. Tomai lá do Pacheco. Fodei-vos! – uma expressão mais apachecada. Um tipo tão singular que transformou o seu estilo em adjectivo. [Este texto permite-se um tom apachecado]. Um libertino que passeou por Portugal o seu esplendor. Mais um tipo livre que um libertino, na verdade. Dizia o que pensava – e esse talvez tenha sido o mais libertário dos gestos.
Sempre sem cheta. Mas um dia, por causa do “Sonâmbulo chupista” (um caso de plágio que visava Fernando Namora), ele estava com dinheiro no bolso e entrou numa mercearia para comprar um cacho de bananas. Nuno Artur Silva estava num banco da Avenida da Liberdade, agarrado a um livro de António Maria Lisboa quando o viu a aproximar-se. Pacheco espreitou por cima do ombro e começou: “Isso que estás a ler é uma merda. Em vez de estares a ler essa merda devias era estar à cata de estrangeiras…”. Nuno Artur fechou o livro e seguiram pela avenida. Entraram num café, distribuíram-se bananas pelos presentes. “Um alimento óptimo, muito completo”, garantia o Pacheco. Foi há 20 anos.
“Resume-se a isto o espólio de uma vida?
- Com um bocadinho de lucidez percebe-se que a pessoa que mais tem não precisa de nada porque morre. Isso dá-me um grande desprendimento em relação à parte material. Eu não fazia isto [editar livros] se não tivesse de arranjar cinquenta contos por mês, que não tenho. Queria lá saber desta merda, estava a ler ou a reler o Vergílio Ferreira só para me chatear e sublinhar os livros. Isto, além de ser uma mola para eu pensar de noite, como é e como não é, é uma forma de estar cá e estar lá fora. Sabes como é que a enfermeira chama a um gajo que anda aí? «Ah, aquilo é como se fosse um vegetal»! Àquela sala que tu viste eu chamo a horta. Entre o gajo que está a dormir e o sofá a distinção não é muito grande. Pago 185 contos por mês. Mas não é só isso: os remédios são à parte, se for de ambulância ao hospital é à parte.
Ainda sonha levar a bandeira do Partido Comunista sobre o caixão?
- Por acaso achava graça, mas agora devo lá quotas. Sempre tive muita inveja do Ary dos Santos ( nós detestávamo-nos um ao outro ). O caixão subiu com a malta a dizer: «Ary amigo, o povo está contigo».”
Foi cremado. Quando o conheci, tinha-se mudado para o lar com uma cadeira, a televisão, “aquele móvel e mais uma mesinha que está para aí caída”. Reencontrei-o anos mais tarde, à volta de livros velhos no Jardim do Príncipe Real. Mas ele não me reconheceu – diziam que estava praticamente cego, “as malditas cataratas…”. Lembrou-se de mim, em todo o caso, quando o seu biógrafo, João Pedro George foi ao meu programa de televisão. Mandou por ele uma mensagem: “Um beijinho, muito repenicado, muito bem dado”. Obrigada, Pacheco.
O Pacheco morreu. Foda-se, o Pacheco morreu! Ele às vezes tinha medo da morte.
“Quando a dor no peito me oprime, corre o ombro, o braço esquerdo, surge nas costas, tumifica a carótida e dá-lhe um calor de que não gosto; quando a respiração se acelera em busca duma lufada que a renasça, o medo da morte afinal se escancara (medo-mor, tamanha injustiça, torpeza infinita), aperto a mão da Irene, a sua mão débil e branca. Quero acordá-la. E digo : «Não me deixes morrer, não deixes...». Penso para comigo, repito para me convencer: «Esta pequena mão, âncora de carne em vida, estas amarras suas veias artérias palpitantes, este peso dum corpo e este calor, não me deixarão partir ainda...» E aperto-lhe a mão com força, e acabo às vezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida”. (A Comunidade).
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008