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Anabela Mota Ribeiro

Quando o Luiz Pacheco morreu

25.02.14

“Qual é o seu prazo de validade?

- É o que estás a ver, tu é que podes dar uma ideia a esse respeito.

 

Logo na primeira página d’ «O Libertino» há uma referência à morte: «Como morrerei, colapso, desastre, loucura súbita e logo suicida?».

- Isto é uma boa experiência, sabes porquê? Porque não dá vontade de viver muito tempo. A degradação física e mental a que aqui se assiste... Em três meses, envelheci dez anos, é inevitável. Vais no corredor e vês um gajo numa cadeira de rodas ou um gajo com um passinho assim assim, e tens de fazer um passinho também assim. E depois não tenho dinheiro para me tratar! Precisava de ir a um bom médico dos ouvidos ou pôr um aparelho, ir a uma médica dos olhos e pôr dois pares de lentes novas.

 

Como acha que vai ser a sua morte: colapso, desastre, loucura?

- Loucura, a que tenho é a que já tinha. Colapso, quando me deito tenho uma frase estúpida mas matemática: mais um dia, menos um dia. Nunca julguei aguentar aqui um ano.

 

Apesar de se sentir depauperado, este é, provavelmente, o sítio onde vai acabar os seus dias.

- Sei lá, não me interessa pensar nisso.

 

Que coisas gostava ainda de fazer?

- Não faço ideia. É a caminhar que se faz o caminho, não é? Um gajo chega à mesa e a conversa é: 13-7, 14-9, que são as tensões arteriais; o da frente não caga há quatro dias, sete dias, dêem-lhe um purgante ou um clister!; o outro está com a dentadura na mão, estou a comer a sopa e vejo ao lado um gajo a olhar para a dentadura. Que horas são?

 

Cinco e meia.

- Tenho de tomar esta merda. Este é para a asma e este é para a angina de peito.

 

Quem é que acha que vai chorar por si?

- Ninguém vai chorar por mim, para que é que haviam de chorar? Um homem chora, não é? Com toda a franqueza eu ainda fico chocado, magoado, mas chorar não me é muito fácil. As pessoas têm pena quando alguém morre? Porque é que se deve ter pena de uma pessoa que está aqui, que não fala, que não sabe onde está, que se borra e mija e que já não dá por isso? Isso é que me faz impressão. Eu, por enquanto, ainda não cheiro a mijo. Mas arriscar-me a sair daqui? “

 

Chamam ao telefone o senhor Pacheco – grasnou uma voz metalizada, pelo altifalante. Eu propunha-me entrevistar o Luiz Pacheco e falava para o lar da terceira idade onde ele vivia. [A entrevista foi publicada no DNa] Acordámos um dia, meti-me no comboio a caminho de Lisboa, e depois num carro com o fotógrafo até Palmela. Nos dias que mediaram uma conversa e outra, o Pacheco enviou-me para o Porto uns livros (as “Noites Brancas” do Dostoievski, uma pequena novela do Tchekov, e outro que não tinha interesse nenhum). Enviou-os enfaixados em papel higiénico!, voltas e mais voltas de papel higiénico. Uma questão de poupança. «Sabes quanto é que custa cada envelope almofadado? Cento e quinze paus, menina, é quanto custa!».

O Pacheco era o Pacheco dos livros. Trágico e pirotécnico. O entrevistado que bota frases de efeito garantido – “Faz favor, lá por ter sido enrabado pelo outro gajo duas ou três vezes, não fiquei paneleiro!”. O outro gajo era uma pessoa próxima da família – como costuma ser – e o episódio deixou-lhe uma sensação de culpabilidade – o que também costuma acontecer. Tinha 11 anos.

 

“Sente muito a falta do sexo?

- Não, nada [gargalhada]. Há umas raparigas que servem aqui, são mulheres casadas e avós, dão um bocadinho de animação, porque aquelas velhas... Não faz falta nenhuma. Tens uma entrevista em que eu digo que desde o dia 31 de Dezembro de 1974 nunca mais dei uma foda. Com uma maluca de uma fulana, a tal que fazia broches de pino. Fazes ideia o que é aquilo?

 

Não.

- Ó pá, um gajo está deitado... Há bocado estavas a dizer sexo oral; é muito mais giro dizer broche, as palavras corriqueiras que as pessoas entendem. Olha, se fores ali à gaveta encontras um caralhinho que me ofereceram há dois ou três dias, tem sido aqui um corropio, não é das velhas, é das criadas. Aqui não há privacidade possível, elas reviram tudo. O tal de pino. Um gajo está deitado, não é?, e a rapariga faz o pino, encosta os pés à parede e começa a fazer o coiso normal. O pior é se ela se desequilibra.

 

Um número acrobático, portanto.

- Um número acrobático, mas um gajo está a ver aquilo borrado de medo.

 

Porque é que nunca mais deu nenhuma?

- Não calhou, não calhou. Eu tinha complicações cardíacas, tinha uma coisa muito chata: era estar na cama com uma rapariga, uma mulher casada, fosse o que fosse, e de repente ter um ataque cardíaco. Tive isso duas vezes! Não fazes ideia de como é desagradável para o tipo que está a ter o ataque e está a ver se se safa do ataque com qualquer pastilha que mete na boca e ao lado está uma pobre paciente que é interrompida e se vê na situação de ter de agarrar num morto ou fugir. Deu-me duas vezes, não me posso nem masturbar.

 

Quantos anos tinha?

- Ó pá, eu agora tenho 73. As famas são uma coisa e a realidade é outra. Nunca fui um tipo muito sexuado.

 

Mais um bocadinho e diz que é púdico.

- Uma coisa é luxúria mental... Leste «O Libertino»?

 

Li.

- Não se passa nada, a não ser uma punheta. Não consegui engatar nenhuma miúda e não foi preguiça, estava era com uma grande dose de vinho verde, o magala ficou lá no mesmo sítio e a fama era que eu andava em Braga a engatar magalas.

 

Era uma flor carnívora.  Um maldito sensual que falava de sexo às criancinhas. Também às velhinhas. Que vivia entre os mortos.

Falámos de sexo e de morte. Tudo em Pacheco se passava entre o sexo e a morte. Escreveu sobre ela n’ “O Teodolito”.

"Naquela altura morria muita gente de tuberculose, hoje é de cancro ou do coração, morre-se de qualquer coisa, tanto faz, vivemos entre mortos, gente que vai morrer e sabe que vai morrer e gente que já morreu, gente morta ou provavelmente morta ou morta daqui a bocado, amanhã, hoje ainda talvez, morte súbita, morte zás! e adeus... os mortos caem em todos os lados, caem-nos em cima, apertam-nos, já não metem medo, são tantos, há muitos, há cada vez mais companhia de mortos, tornam-se maçadores, abafam o ar. Aparecem-nos às vezes com um sorriso, fingem bem, mas debaixo dos fatos vem um cheiro que não engana, os olhos são vazios e lúcidos, já não querem ou esperam nada, estão mortos por detrás da gravata.
(...) Vamos criando distâncias pela vida fora, vamos morrendo uns para os outros. E também vamos morrendo dentro de nós. Dou os bons-dias a tipos que já matei; passo na rua por alguns satisfeitos fantasmas que se espantam (gritam-me: Ó pá, inda és vivo?) quando me vêem respirando e mexendo dentro da minha farpela pobre. Dormi mais de dez anos com o cadáver da minha mulher e na mesma cama. Jamais nos conhecemos, fomos sempre dois mortos um para o outro.
São coisas que acontecem."

 

Uma tarde de Outono, com o Pacheco. Em vésperas do fim do século. Do fim do mundo que não chegou a ser. Ele a deitar os foguetes e a apanhar as canas. A manter a temperatura dos vivos. Para não soçobrar, num mundo de sombras. Quando me recebeu no lar, apresentou-me às criadas, apontou para um quarto fúnebre: “Aqui, é onde se morre”. Cá fora havia lençóis dependurados, as luzes estavam já acesas, o crepúsculo anunciava-se. O Pacheco posava para o fotógrafo, com os óculos fundo de garrafa e o roupão andrajoso. Ainda ouço a voz tonitruante, a dicção deficiente.

 

Qual foi a sua primeira experiência sexual com mulheres?

- Com uma puta de vinte escudos, com uma gaja do antigo Martim Moniz que tinha a alcunha de Arco Royal. Sabes o que era um Arco Royal? Era um monstro, um porta-aviões americano por vinte escudos. Eu estava a fornicar a rapariga e ela estava a comer uma maçã, o que não é propriamente entusiasmante. Aquilo foi arquitectado com um colega de liceu. Tinha treze, catorze anos. Mas com essa idade batia-se muita punheta. Ao lado uma rapariguinha de muita mama, muito rabo... Ó pá, há uma atracção mútua, há um convívio que vai aumentar uma intimidade e chega-se a vias de facto.

 

Nunca mais teve sexo na vida por problemas de saúde?

- Ó pá, lê «O Libertino» com atenção e vês que ali há sempre maluqueira na minha cabeça. Sou um tipo muito mais sensual que sexual. O que eu arranjei durante a vida foram complicações sexuais que hoje eram inteiramente impossíveis.

 

Como beijar uma rapariga e ser preso?

- São histórias do arco da velha em que fui sempre, mais ou menos, o estúpido da coisa. No Limoeiro apareço por um crime de estupro em que disse logo: «Eu caso com a rapariga». Os padrinhos da rapariga, quando souberam que era um teso, já não queriam que ela casasse.

 

Mas a sua família tinha algum dinheiro, ou não?

- Era um teso, desculpa lá, era um teso. O meu pai era um funcionário público de merda, em casa não se pagava às criadas, devia-se dinheiro à mercearia, era uma casa de tesura. Hoje os rapazes têm semanadas ou mesadas; o meu pai para me dar cinco paus era um caso sério. Eu era um teso e como tal os padrinhos da rapariga escreveram uma carta a dizer que ela era ainda muito nova e que ia tirar um cursozinho. Ela tinha catorze e eu tinha dezoito”.

 

Mais tarde, voltou a falar-se da sua putativa paneleiragem. Que tinha uma história de amor mal resolvida com Cesariny.

“O Cesariny é que é mesmo o paneleiro chapado. Dessa eu quero falar porque aparece sempre. Há uns meses dei uma entrevista ao «Jornal de Letras», ao Rodrigues da Silva que me conhece há cinquenta anos do Café Gelo e ao tal outro gajo, o Ricardo [de Araújo Pereira, então estagiário no JL]. Vieram-me com essa história do Cesariny. Julgam que tivemos relações um com o outro?

Ora pois não é! O Cesariny com vinte anos _ já eu era casado _não tinha aqueles ademanes, as mãozinhas, nada disso, vai a Paris e depois volta e começa a entrar no chamado paneleiro descarado! Fiquei chocadíssimo! No meio de uma tradução que estávamos a fazer, passa um gajo na rua, perde a cabeça e vai-se embora! Vá lá para o raio que o parta! Nós tínhamos no grupinho umas certas regras em relação ao meio literário, em relação ao Surrealismo, e ele entrou na grande bagunça, tornou-se pintor! Perguntarem-me porque é que eu me zanguei com o Cesariny tem alguma coisa a ver com paneleiragem? Era uma questão de ética, estética, camaradagem, de ele ser um tipo exigentíssimo, contra o mercenarismo na arte e essa coisa toda. As pessoas mudam muito. O Cesariny que eu conhecia já morreu há muito tempo. Tenho ali um livro do Cesariny, «O Virgem Negra», que estou farto de comprar e de oferecer, um livro de que nenhum paneleiro pode gostar, onde ele goza imenso com o Pessoa. Aquelas cartas do Pessoa à Ofeliazinha são uma baboseira pegada! Tu não conheces «O Virgem Negra»? Eu vou-to oferecer.”

 

O Pacheco. Escreve-se nos blogues e nos jornais que era um filho da puta. Irresistível, corrosivo, feérico. Mas um sacana de um filho da puta. Um escritor que dizia enormidades. Um surrealista. Um homem que fazia o “toma” do Zé Povinho para a fotografia. Ou que punha corninhos de diabo, também para a fotografia. Tomai lá do Pacheco. Fodei-vos! – uma expressão mais apachecada. Um tipo tão singular que transformou o seu estilo em adjectivo. [Este texto permite-se um tom apachecado]. Um libertino que passeou por Portugal o seu esplendor. Mais um tipo livre que um libertino, na verdade. Dizia o que pensava – e esse talvez tenha sido o mais libertário dos gestos.

Sempre sem cheta. Mas um dia, por causa do “Sonâmbulo chupista” (um caso de plágio que visava Fernando Namora), ele estava com dinheiro no bolso e entrou numa mercearia para comprar um cacho de bananas. Nuno Artur Silva estava num banco da Avenida da Liberdade, agarrado a um livro de António Maria Lisboa quando o viu a aproximar-se. Pacheco espreitou por cima do ombro e começou: “Isso que estás a ler é uma merda. Em vez de estares a ler essa merda devias era estar à cata de estrangeiras…”. Nuno Artur fechou o livro e seguiram pela avenida. Entraram num café, distribuíram-se bananas pelos presentes. “Um alimento óptimo, muito completo”, garantia o Pacheco. Foi há 20 anos.

 

“Resume-se a isto o espólio de uma vida?

- Com um bocadinho de lucidez percebe-se que a pessoa que mais tem não precisa de nada porque morre. Isso dá-me um grande desprendimento em relação à parte material. Eu não fazia isto [editar livros] se não tivesse de arranjar cinquenta contos por mês, que não tenho. Queria lá saber desta merda, estava a ler ou a reler o Vergílio Ferreira só para me chatear e sublinhar os livros. Isto, além de ser uma mola para eu pensar de noite, como é e como não é, é uma forma de estar cá e estar lá fora. Sabes como é que a enfermeira chama a um gajo que anda aí? «Ah, aquilo é como se fosse um vegetal»! Àquela sala que tu viste eu chamo a horta. Entre o gajo que está a dormir e o sofá a distinção não é muito grande. Pago 185 contos por mês. Mas não é só isso: os remédios são à parte, se for de ambulância ao hospital é à parte.

 

Ainda sonha levar a bandeira do Partido Comunista sobre o caixão?

- Por acaso achava graça, mas agora devo lá quotas. Sempre tive muita inveja do Ary dos Santos ( nós detestávamo-nos um ao outro ). O caixão subiu com a malta a dizer: «Ary amigo, o povo está contigo».”

 

Foi cremado. Quando o conheci, tinha-se mudado para o lar com uma cadeira, a televisão, “aquele móvel e mais uma mesinha que está para aí caída”. Reencontrei-o anos mais tarde, à volta de livros velhos no Jardim do Príncipe Real. Mas ele não me reconheceu – diziam que estava praticamente cego, “as malditas cataratas…”. Lembrou-se de mim, em todo o caso, quando o seu biógrafo, João Pedro George foi ao meu programa de televisão.  Mandou por ele uma mensagem: “Um beijinho, muito repenicado, muito bem dado”. Obrigada, Pacheco.

O Pacheco morreu. Foda-se, o Pacheco morreu! Ele às vezes tinha medo da morte.

“Quando a dor no peito me oprime, corre o ombro, o braço esquerdo, surge nas costas, tumifica a carótida e dá-lhe um calor de que não gosto; quando a respiração se acelera em busca duma lufada que a renasça, o medo da morte afinal se escancara (medo-mor, tamanha injustiça, torpeza infinita), aperto a mão da Irene, a sua mão débil e branca. Quero acordá-la. E digo : «Não me deixes morrer, não deixes...». Penso para comigo, repito para me convencer: «Esta pequena mão, âncora de carne em vida, estas amarras suas veias artérias palpitantes, este peso dum corpo e este calor, não me deixarão partir ainda...» E aperto-lhe a mão com força, e acabo às vezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida”. (A Comunidade).

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

 

Vasco Graça Moura

25.02.14

Diz de si que não é um político, que nunca esteve interessado em carreira política. Em todo o caso, é próximo dos círculos de poder há pelo menos 30 anos. Diz que se interroga sobre o que propicia o acontecer das coisas, que se enreda num «ir derivando», que é próprio das letras, da especulação, da filosofia. Mas não perde de vista um sentido pragmático, uma preocupação com o rigor. Nasceu no Porto, numa família burguesa com tradição no Direito. Notabilizou-se, mais que tudo, a escrever poesia e a traduzir poesia. O mercado recebe por estes dias dois novos títulos com a sua assinatura: um bestiário “encontrado” na poesia de Rilke, que traduz; e um livro de poemas que escreveu para as esculturas de José Aurélio, com fotografias de Ana Gaiaz. É um homem erudito. O estilo virulento, a crer no seu auto-retrato, disfarça uma timidez: «Sou um tímido. Nas coisas que me tocam mais fundo, sou ainda muito mais».

 

Tenho dois pontos de partida e proponho-lhe que escolha um. Apontou a tradução da «Divina Comédia» como um dos momentos mais felizes da sua vida; quer falar da sua relação com Dante? Ou prefere falar de uma coisa tão prosaica como o assunto do jantar de domingo com as suas filhas?

Nos jantares vêm à baila várias coisas: desde as leituras que estão a fazer, àquilo que eu estou a fazer, a conferência em que vou participar amanhã. Quer esteja em Estrasburgo ou em Bruxelas ou num sítio qualquer telefono-lhes todos os dias, falamos sobre as várias coisas que se passam. Ainda hoje disseram que tinham ido ver um filme de vampiros de que eu não ia gostar com certeza! Hoje também falámos da utilização que estão a fazer de um livro de cozinha...

 

Portanto está preso à vida de todos os dias, às coisas mais comezinhas...

Sim. O quotidiano, nas suas implicações imediatas, merece-me toda a atenção. O que não quer dizer que não haja uma corrente subliminar em que outras coisas estão a ser digeridas simultaneamente.

 

Está sempre num registo de palimpsesto... Porque é que escolheu começar pelo jantar e preteriu o Dante?

O Dante acabou em 95, não é?, e isto acabou há três quartos de hora. O Dante era uma aposta interpretativa extremamente complexa e correspondeu a um período de concentração intensíssima. Trabalhava durante o dia na Comissão dos Descobrimentos e fazia o Dante à noite e nos fins-de-semana. Lembro-me que acabei num domingo e fiquei com uma sensação muito exaltante. Foi um momento epifânico.

 

O que é que fez para comemorar?

Não fiz nada. Tinha uns cunhados para almoçar e disse: “Acabei o Dante”. Os autores que traduzi por iniciativa própria acompanham-me desde os 17, 18 anos. Lorca, Rilke, Villon, Ronsard, Dante, Petrarca.

 

Numa entrevista, a propósito da velocidade com que trabalha, fala da percepção da rede: “De repente, encontrei a forma e atirei-me à tradução como se tudo se tivesse tornado inteligível”. Como se fosse um tapete, cuja trama consegue deslindar?

Há coisas que têm um desenho regular que você sabe que se vão repetir ou ecoar de alguma maneira. Acontece no Dante, acontece no Petrarca. Trabalhar depressa significa não perder a capacidade de surpreender simetrias, prolongamentos, ecos, que depois convergem para dar à tradução um tipo de unidade tão correspondente quanto possível àquela que ela tem no original.

 

Se olhássemos para a sua vida, se a víssemos como um tapete, quais seriam os nós centrais?

Ui, está cheia de nós, centrais e periféricos. Há nós que não sei identificar em termos de calendário, nem de topografia, mas que correspondem a recorrências, a focos de irradiação doutras zonas da tapeçaria. Fui sempre muito fascinado, quer pelas artes plásticas – hesitei entre o Direito e as artes plásticas – quer pela música, e encontro muitas vezes naquilo que estou a escrever vestígios disso. Marcas a que podia chamar as minhas hipálages interiores, que me dão a sensação de que estou a trabalhar uma coisa com a palavra, mas que estou de facto a trabalhar noutra área da criação como sucedâneo ou possível equivalente. 

 

Faz muito esse exercício introspectivo, no sentido de identificar os seus pontos regulares?

Não tenho autofagias introspectivas nem especulativas.

 

As suas recorrências aparentes são a melancolia, a ironia, a vontade de ordem, a erudição, a tentativa de harmonia...

Não podia conviver com isso tudo, não é?

 

Pois não. Mais atrás, há uma infância e uma adolescência que define como extremamente felizes. Parece que não há pontos dissonantes. A melancolia radica justamente nisto?

A melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com um certo sentido de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um lado mais saturniano, mas humoral, mais irónico e mais reflexivo.

 

Tem uma preocupação obsessiva com a oficina, com o trabalho, com o rigor. Todavia, dispõe-se a empresas arriscadas, hercúleas. Porquê?

Tenho muito a tentação de experimentar. É uma espécie de acicate permanente. Nunca parto para as coisas com a certeza de que as faço. Parto com a certeza de que farei tudo para as fazer. E parto com a certeza de que se correr bem, faço depressa. Sei que estou disponível para me atirar; a questão prática acaba por passar para segundo plano, a questão é a disponibilidade mental.

 

Um dos problemas da Pátria tem que ver com uma atitude laxista? Concorda que o seu posicionamento é em, muitos aspectos, o contrário do que é comum em Portugal?

Provavelmente. As pessoas estão desorientadas, ou por empanturramento construtivo, ideológico, teórico, ou por excesso de negligência, de improviso. A minha atitude parte, em relação a estes dois aspectos, de um ângulo mais pragmático. Procuro ter as minhas opiniões mais ou menos bem formuladas, mas não me sinto nada empertigado com noções filosóficas. E também não sou um improvisador, no sentido português do desenrascar. Sou alguém que desenvolveu capacidades que têm a ver com uma certa agilidade perante uma situação.

 

Que ferramentas são essas?

Passa tudo pela escola, pela noção de disciplina e esforço. Sou um bocado contra os subsídios de criação. A criação cultural tem que se debater com as dificuldades.

 

No pain, no glory?

Exactamente. Tem que haver um tipo de esforço e disciplina que deve começar na escola. A escola é fundamental, não apenas em questões de língua, mas em questões de aprendizagem, de esforço e de prémio desse esforço. Penso que esse é o ponto mais complicado da vida portuguesa hoje. E depois há um segundo aspecto: sobretudo no sector masculino da população começa a haver um grave efeito da falta do serviço militar obrigatório, nos termos em que fiz o meu.

 

Como sim?

Fiz 39 meses de serviço militar obrigatório. Tinha vinte e cinco anos, o curso feito, casado e pai de dois filhos, a ganhar 17 ou 18 escudos por mês como recruta. De maneira que foi muito mau, em termos de vida doméstica e de vida profissional. Mas em termos de perceber uma série de coisas ligadas ao esforço, à necessidade de concertação de esforços para determinados objectivos, à necessidade de disciplina, foi importantíssimo. O meu filho Vasco, que tem 39 anos, fez o serviço militar em Lisboa, sentado a uma secretária, durante seis meses.

 

Não há outras maneiras, e já agora também às mulheres, de incutir a importância do esforço e a meritocracia?

As mulheres têm agora essa carreira aberta... Não sei, falo por mim: achei importante ter feito o serviço militar. Para perceber aspectos da realidade e para ganhar competências de controlo da realidade. Não é andar à pancada, como é evidente... São formas de disciplina, formas de saber que depois de correr 14 somos capazes de correr mais cinco se for preciso.

 

Portugal vive uma crise de auto-estima? Os escândalos na Justiça e os problemas económicos corroboram uma visão desesperada que temos de nós mesmos? 

O meu diagnóstico é suspeito, dadas as minhas posições políticas, mas uma parte fundamental está corrigida. Temos o azar disso que aconteceu, uma crise que ainda não acabou, e provavelmente uma outra crise que está em vias de se abrir, que tem a ver com o choque petrolífero. Mas, nesse aspecto, penso que estamos hoje muito melhor do que estávamos há dois anos.

 

Há a premência da sobrevivência, em muitos casos da vida portuguesa.

As pessoas vivem a vida dominada por três ou quatro preocupações. Uma é: desde que tenham o ordenado garantido, não se preocupam minimamente em que o seu trabalho corresponda. Depois há o caso das pessoas que estão desesperadas, evidentemente. Há um outro lado que tem a ver com a superficialização da dimensão interior das pessoas, para o que contribui a televisão, a sociedade do espectáculo, a facilidade com que certas coisas são acessíveis, tipo internet. E não há uma reelaboração crítica. Isto, com níveis culturais tão baixos como os que nós temos, conjuga-se num cocktail implosivo: acaba por destruir toda a gente por dentro. Mas não temos solução que não seja a de rapidamente sair daqui, senão estamos lixados. Com a Europa, o alargamento e com o abrir das competitividades, estamos completamente lixados.

 

Somos sempre um país de segunda...

Só fomos um país que deu cartas no mundo na altura dos Descobrimentos.

 

Gosta de ser político? Ou vê isso como uma contingência, por precisar de ganhar a vida e não poder tê-la tão folgada quanto gostaria através da escrita?

O problema não se põe talvez assim. Eu não gostaria de ser político com responsabilidades executivas.

 

Esse apego ao poder, não o tem realmente?

Fiz a experiência em 75, chegou-me. Não governava nada, mas enfim...

 

Disse que gostaria de ter sido um intelectual do Renascimento, que acompanha e aconselha os príncipes nos domínios da estética. Ora, este é um lugar de enorme influência. Tento perceber o seu apego ao poder...

Há dois tipos de relação com o poder. Na Imprensa Nacional [Casa da Moeda], onde estive dez anos, na Comissão dos Descobrimentos, onde estive oito, tinha o prazer de poder promover coisas que achava importantes. Estava convencido da utilidade e da necessidade do que fazia. Agora participo de formas de expressão do poder em que o mais que posso fazer é conjugar-me com outros colegas que representam os mesmos interesses ou o interesse nacional. Mas agrada-me aexistência da possibilidade. Sei que se precisar de algum assunto que tenha a ver com tubos de escape ou com a produção de coelhos bravos, tenho informação. A partir do meu gabinete, do meu computador e da biblioteca do Parlamento [Europeu], tenho acesso a tudo.

 

O que era suposto que fosse a sua vida aos 16 anos, ainda antes de ter ido para a faculdade?

Depois das hesitações em relação às Belas-Artes e às Letras, decidi ir para Direito.

 

Sucumbiu às pressões familiares, ou à tradição, pelo menos...

Há uma tradição de cem anos. O meu avô paterno era advogado, o meu tio era advogado, eu e dois primos fomos advogados e filhos de vários de nós já o são também. Isto tem um peso enorme num miúdo de 16 anos. Esperavam que fosse para Direito e que fosse advogado e que fosse bem sucedido.

 

Mas o seu pai tinha uma ligação à poesia. Citava-lhe Baudelaire, não era?

Desde a minha infância mais recuada preocupava-se muito com a minha educação cultural, digamos assim. Uma vez ele chegou a casa e eu mostrei-lhe uns versos que tinha feito; explicou-me todo o jogo de tónicas, a métrica... Eu tinha para aí seis anos ou sete.

 

Eram aqueles poeminhas que escreveu para a sua mãe, para o Dia da Mãe?

Desse género. O meu pai não exprimia expectativas. O meu pai, como todos os pais, estava convencido da qualidade dos filhos. Era de uma tolerância total, nunca nos impôs rigorosamente nada. Mas falava-me da importância do irmão, que era um grande advogado e tal, da importância do pai que era um senhor muito respeitado e tal... Os paradigmas que me apresentou traziam todos a mensagem: “Tens que ficar a esse nível” ou “É de esperar que fiques a esse nível”. 

 

E a sua mãe?

A minha mãe era um pouco o contraponto disso. Tinha, como todas as meninas prendadas da época, estudado piano e francês, dava-nos muitas vezes algumas ideias de apreciação musical, discordava do meu pai em relação às leituras que ele nos punha nas mãos, menos próprias para a nossa idade. Mas tinha outro tipo de ocupação diária, tratar de cinco filhos...

 

É o mais velho desses cinco filhos, que vem estudar para Lisboa. A sua família é burguesa, do Porto.

O meu pai tinha umrigor enorme e procurava incuti-lo, em conversas à mesa com os filhos. Nos princípio dos anos 20, quando o meu pai tinha 16 ou 17 anos, o meu avô morreu arruinado, a tentar salvar os filhos. Aquelas tragédias da tuberculose, eram nove irmãos, morreram cinco... Estavam atrapalhados. Nessa altura, o meu pai fez umas traduções para um tio que vivia no Brasil e tinha uma editora.

 

Tinha uma relação confessional com ele? Teve-a com alguém? Ou só com a escrita?

Só com a escrita. Era um adolescente muito fechado.

 

Mas ainda hoje parece, sabe?

Sou meditativo, se quiser, ou muito reflexivo. Mas isso não impede alguma acção.

 

Ou seja, onde podemos encontrá-lo mais intimamente é na sua escrita?

Provavelmente.

 

É na verdade da escrita que gostaria de ser lido e recortado daqui a 30 anos? Como acha que as suas filhas o vão recortar daqui a 30 anos?

Tenho uma relação com elas muito especial, muito terna e completa. Penso que hão-de ter uma boa recordação minha. Mas o mais interessante neste momento é começar a descortinar as apetências que têm, caminhar com elas, ajudar à problematização...

 

Quase nunca fala de amor.

Eu?

 

Evidentemente há a sua poesia, os romances; mas na vida real, escuda-se.

É uma zona mais pudica, que não implica exteriorizações excessivas. É uma questão, a meu ver, de bom gosto.

 

Não acha que a apreciação da sua poesia fica muito tingida e inquinada pela sua acção política?

Penso que não. De um modo geral, mesmo os meus mais evidentes adversários políticos têm uma certa apreciação pelo que faço enquanto poeta.

 

Nem sempre foi assim. Talvez tenha que ver com os prémios que lhe foram atribuídos, com uma consolidação do seu percurso intelectual.

Talvez. Começo a tomar posições políticas regulares desde 74. Antes disso, as minhas colaborações eram literárias. Nos últimos quinze anos é que, não fazendo política no sentido executivo, fiz política no sentido da militância. Exponho-me muito. Apesar de não ser o único a expor-me...

 

Reage com extrema violência. O seu estilo, que apelidam de trauliteiro, tosco, excessivo, entre outros epítetos, é muito falado.

É uma reacção.

 

Por se tratar de uma reacção, ia perguntar-lhe se é muito susceptível?

Não sou nada susceptível. Agora, se me põem em questão em termos que me desagradam, respondo com a maior eficácia de que sou capaz. E às vezes, sou capaz.

 

Retornemos a Dante para encerrar o ciclo. Jorge Luís Borges  tinha uma predilecção por um verso da «Divina Comédia», do primeiro canto do Purgatório: “Dolce color d’oriental zaffiro”

A Sophia de Mello Breyner também. A Sophia cita sempre esse verso da Divina Comédia.

 

Será a música deste verso? Como escolher um verso entre 14 mil? Qual é o seu verso?

Há um, no episódio de Francesca, que me arrepia: “Na boca mi baciou tutto tremente”. A própria orquestração do verso dá até um frémito, não é?

 

O que queria saber é se isto o comove para além da apreciação estética?

Comove-me a dimensão cósmica do amor.

 

E a “selva oscura”, que é uma expressão de Dante a que recorre num poema do seu último livro, «Variações Metálicas»?

É uma expressão que uso muito, por influência dantesca e porque dá a ideia do labirinto, de uma coisa inexplicável.

 

Dê-me um momento da sua vida que possa corresponder a esta “selva oscura” e que seja confessável?

Senti uma grande depressão aí por 1982. Uma depressão sentimental, com efeitos noutras áreas da minha vida, durante três ou quatro meses. Há um poema chamado “A Viagem de Outono”, é uma descida do Reno de barco, que termina a falar da selva escura e um pouco com o mesmo sentido.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004