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Anabela Mota Ribeiro

Margarida Rebelo Pinto

23.02.14

Margarida Rebelo Pinto é formada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Publicou o seu primeiro romance em 1999, «Sei lá», com o qual ganhou o prémio Fnac (“É o meu único romance premiado”, diz...). Desde aí lançou quatro romances, três livros de crónicas e uma biografia de Herman José. A sua aventura mais recente é um livro de género incerto, mas que se pode apresentar como uma carta de amor: «Diário da tua ausência». No total, são dez livros que venderam como pão quente num país vagamente iletrado: 800 mil exemplares. Está publicada em Espanha, França, Alemanha, Holanda, Bélgica e Brasil.

Margarida Rebelo Pinto diagnostica como uma patologia o não saber viver sem amor. A escritora confessa padecer de uma adição ao amor. Aos 40 anos, revê o papel que protagonizou a vida toda: o da princesa que espera o seu príncipe na torre. Margarida confirma tudo o que sabíamos sobre o amor, as suas regras e disposições universais. Não é por isso surpreende saber que sofreu incontáveis desgostos de amor. Mas é imensamente surpreendente ouvi-la falar disso, ou de como converteu isso em facturação literária. O livro mais recente, «Diário da tua ausência», é uma longa carta de amor dirigida a um amor, a amores perdidos. É um livro que a revela em transição, ciente de que o desencontro amoroso é a sua cruz. 

 

 

Neste livro evoca o mito de Sísifo, que se pode resumir assim: Sísifo transporta até ao cimo da montanha uma pedra; quando está prestes a concluir a tarefa, a pedra cai. Mas ele volta a rolá-la.Não desiste: recomeça e repete infinitamente o procedimento. Interroga-se no livro: «Serei eu tão insensata a ponto de fazer o mesmo com os meus amores?» Este mito serve para definir a sua vida amorosa?

A minha vida amorosa e a minha vida profissional. Só que na minha vida profissional, a pedra fica lá em cima. Na vida amorosa não, porque aquilo que espero de uma relação amorosa não depende só de mim, nem da minha vontade, nem do meu amor, nem do meu desejo. Depende do meu interlocutor. Mas ainda não percebi: se eu desistir, o que é que acontece? Desistir é um verbo que não sei conjugar. Já aprendi a conjugar o aceitar...

 

Cita também Truman Capote: “A morte de um sonho é tão triste e dolorosa como a própria morte. Merece, por isso, o respeito e o luto daqueles que a sofrem”.

Exactamente. Não fui habituada na minha educação nem a mudanças nem a perdas. Sempre vivi na mesma casa, não tive traumatismo emocional por morte de pessoas próximas. Gosto de carteiras e sapatos, (são os brinquedos das mulheres), mas não sou assim tão apegada a coisas materiais. Sou apegada aos meus amigos, aos meus amores. Sempre que há uma perda, uma ruptura, e sou obrigada a desistir de uma coisa que idealizei ou sonhei, sofro. Sofro como se fosse a primeira vez.

 

Não consegue desistir do seu ideal romântico?

Escrevi este livro porque queria exacerbar e escalpelizar o amor platónico e o amor idealizado. Percebi que o príncipe tem que descer do cavalo. Se não descer, vivo uma relação virtual com ele. Isto acaba com um padrão que me acompanha há 20 anos e que faz de mim uma pessoa muito solitária. Estou sempre a esperar, a sonhar. Estou habituada a viver assim.

 

A espera é uma das  ideias dominantes do livro. É uma vocação de Penélope, (como lhe chama), que diz sentir. Quer romper com esse paradigma?

Quero mudar o meu registo e a minha visão em relação ao amor, mas não sei como é que o hei-de fazer. Sempre me vi e senti como uma eterna romântica. Não quero perder esse romantismo, mas não posso continuar a viver assim.

 

Custa abdicar do sonho e da idealização...

Sempre encontrei um grande estímulo, (não sei se a palavra é felicidade...), e um grande sentido de realização, a correr atrás dos meus sonhos. Este é o primeiro ano da minha vida em que não defini objectivos profissionais e pessoais. Estou à procura de outras coisas que não sei o que são. Todos os anos eu definia dois objectivos profissionais e um pessoal.

 

Essa calendarização acontecia no início do ano, no seu aniversário?

Não. No fim do Verão decidia o que é que ia fazer no ano seguinte. Como se fosse um programa de uma empresa. Nos últimos anos, cheguei a Abril e já os tinha cumprido... Estou em profunda reflexão. Gosto de ser romântica, mas pago um preço muito caro por isso. Ao mesmo tempo, não quero desistir, não quero perder a minha alegria de viver, o meu optimismo inabalável perante as pessoas e o mundo.

 

Consegue compreender o que é que recorrentemente corre mal?

Consigo. Faço um excesso de projecção na outra pessoa. Quanto mais as pessoas são próximas, mais as idealizo. Os meus amigos são os melhores do mundo, os meus pais são os melhores do mundo, o meu filho é o melhor do mundo. Preciso de idealizar para me sentir feliz. Aalimento-me de sonhos. E depois, como há muitos que já concretizei, acho que concretizo todos. Claro que ninguém concretiza todos.

 

Porque é que tem dificuldade em lidar com a imperfeição?

Gosto da imperfeição_ não é por aí. Eu preciso muito de dar. E sou bastante carente. As pessoas carentes precisam muito mais de dar do que de receber. Embora esperem retorno. Se não tiver a quem dar, isso entristece-me profundamente.

 

Alguma vez falou com a sua mãe sobre os problemas conjugais que ela eventualmente terá tido com o seu pai?

Não. A imagem de relação perfeita, harmoniosa e equilibrada que me foi dada pelos meus pais, e que é, aliás, esmagadora, porque é uma referência com um padrão elevado, nunca foi desmontada. Há um véu que os meus pais gostam de manter. Todas as famílias são um bocado disfuncionais, todas as pessoas têm fantasmas e todas as personalidades têm um lado negro. E eu fui criada num mundo em que...

 

Sobre essa realidade cai um véu.

O véu da harmonia, de uma certa perfeição, de uma imagem intocada e imaculada do que deve ser uma relação amorosa.

 

Parece refém dessa realidade ficcionada. E, por essa razão, é tão difícil o embate com a realidade, com a imperfeição.

Por isso é que escrevi este livro. O próximo príncipe, ou vem sem cavalo, ou já vem com o cavalo à trela. Todos os homens, enquanto estão lá em cima são extraordinários, não é? Ninguém imagina o Bradd Pitt com mau hálito.

 

Mas enquanto as figuras forem o príncipe a cavalo e o Bradd Pitt, não pode tropeçar no jardineiro. Porque é que não lhe acontece apaixonar-se pelo jardineiro? Dantes acontecia às senhoras terem casos com jardineiros e motoristas...; mas eram casos.

No fundo, sou muito mais parecida com a minha mãe do que julgo que sou. Sou um espírito livre, aventureira, logistica e financeiramente autónoma desde os 23 anos. Mas há uma carga que carrego e que tem a ver com o meu património genético, de uma burguesia muito redutora, de um espírito de família, com obrigações e deveres. E depois há uma necessidade quase compulsiva de projectar uma conjugalidade. Sou a única mulher avulsa na minha família.

 

Avulsa?

Sempre vi o mundo aos pares. Tenho uma crónica escrita sobre isso, chamada “O número mágico”. Uma pessoa chega aqui a casa e vê dois cache-pots, duas molduras, dois castiçais, dois pratinhos. Sempre vi o meu pai com a minha mãe, o meu avô com a minha avó, as minhas tias com os meus tios, os meus primos casados, os meus irmãos casados. Não há na minha família uma tradição, seja ela cultural ou genética, de mulheres independentes.


Sim, mas adora desconcertar. O seu modo de ser, independente e rebelde, contraria esse modelo burguês no qual foi criada.

Sou profundamente ambivalente, eu sei que sou. Às segundas, quartas e sextas adoro a minha total liberdade e às terças, quintas e sábados gostava de ter um marido e mais dois filhos em casa. Vivo em dois mundos. Até vivo bem com isso e faço humor comigo própria. É um processo catártico.

 

Como a escrita.

Não sei se alguma vez escreverei livros não-catárticos, nem sequer tenho essa ambição. As actividades criativas são como o amor. Não amamos como queremos, nem escrevemos como queremos. Amamos como podemos e escrevemos como podemos. Por outro lado, estou cansada de reverter para a escrita os meus fantasmas e desgostos. É um processo que está a tornar-se um bocado repetitivo.

 

O que é que significou fazer 40 anos?

A primeira coisa em que pensei foi: onde é que quero estar quando tiver 50? Só que não percebi como é que quero estar aos 50. Não tenho medo de envelhecer, não me sinto a envelhecer. Nem fisicamente, nem emocionalmente. Sinto-me a amadurecer, emocionalmente. Começo a ser mais sensata, mais desconfiada. São coisas que poderão parecer óbvias, mas no meu caso não são.


Receia não poder cumprir aquilo a que se propõe?

Em 20 anos só vivi uma relação plena, durante dois anos. Uma relação amorosa em que fui profundamente feliz e na qual tinha essa pessoa ao meu lado. Tenho medo de nunca mais viver isso. Começo a achar que me falta essa dimensão. Consegui um objectivo muito burguês, que é a casa dos meus sonhos. Foi um objectivo importante.  

 

Os seus objectivos são bem definidos, a sua vida parece arrumada em gavetas. Imagino que seja profundamente arrumada. Na cabeça, pelo menos.

Sou uma falsa arrumada. Parece que está tudo arrumado, mas depois as minhas gavetas são uma confusão.

 

É uma rapariga sem tempo. Sente isso?

Sempre fui fora do meu tempo, e sempre fui um bocado fora do meu país. Quando era mais nova sentia-me um bicho estranho. Estava sempre a transbordar dos cânones burgueses, católicos, do colégio de freiras e das férias em S. Martinho do Porto. Mas, em três ou quatro princípios, sou muito clássica. Neste livro um personagem diz: “Se calhar estou fora do meu tempo, porque vivo um amor idealizado”. Com uma ideia de comprometimento e de entrega, e de algum espírito de missão, que as relações amorosas também devem ter. Mas as pessoas já não estão para isso.

 

Esse modo de ser, ambíguo, fora do tempo, assusta os homens?

Na minha vida doméstica sou uma gueixa ocidental! Gosto de cozinhar, gosto de...

 

É demasiado poderosa para encarnar a gueixa.

Vivo as minhas relações, não digo com submissão, mas com grande dedicação. A imagem pública é o oposto disto. Antes de eles entrarem cá em casa já têm a imagem pública.

 

Como é que a imagem da mulher poderosa e bem-sucedida afectou as suas relações amorosas?

Como não me vejo assim, não penso que o meu parceiro me possa ver assim! Sempre separei a Margarida da Margarida Rebelo Pinto. Sou muito mais a Margarida do que a Margarida Rebelo Pinto. Mas, infelizmente, o ego é muito importante para os homens, mais do que para as mulheres.

 

Eles começam por ficar deslumbrados com a Margarida Rebelo Pinto e não querem a Margarida?

Quando conhecem a Margarida, ficam muito surpreendidos. Não a conseguem imaginar por detrás da Margarida Rebelo Pinto. O mundo não está para relações. Os homens vão demorar algumas gerações a adaptar-se a esta nova mulher que no mundo ocidental, e sobretudo na Europa, está a explodir. Há um misto de fascínio e estranheza e desconfiança em relação a mulheres de sucesso. Se eu caço e luto, como é que posso esperar que o meu príncipe me venha resgatar à minha torre? Deixo de ser o objecto idealizado, não estou na torre, estou a caçar com ele. Ou à frente dele. Ou a dizer onde é que está a presa.

 

Então os homens podem ter medo de si?

Os homens têm muito medo das mulheres. Conheçopoucos homens que sejam felizes sendo o marido de. Um deles é o meu pai. O meu pai é felicíssimo porque é o marido da minha mãe. E há outros, provavelmente o marido da Isabel Allende.

 

No fundo, precisava de um secretário, e de um amantíssimo marido que tomasse conta de si e que servisse de retaguarda.
Sou filha de um biólogo e de uma psicóloga. A biologia tem soluções para grande parte dos comportamentos humanos. Gostava que o homem que estivesse ao meu lado fosse um macho alfa. Eu sou nitidamente um macho alfa. Controlo, comando, defino objectivos, alcanço objectivos, tenho uma personalidade marcada. O que gostava era de ter uma pessoa que fosse um pouco o meu espelho.

 

Mas se forem iguais...

Sempre achei, durante muitos anos, que o amor era a fusão total. Saint-Exupéry, um sábio, dizia: “o amor não é olharem um para o outro, mas é olharem na mesma direcção”. Demorei imenso tempo para perceber isso. Tenho a profunda convicção de que só uma pessoa com determinadas características próximas das minhas será o meu par ideal. Mas há uma coisa fundamental para que ele seja o meu par ideal.

 

Que é?

É que ele queira ser o meu par ideal.

 

E se acontecer, mesmo sem esse querer tão deliberado?

Se isso acontecer, como diz a Florbela Espanca, “paz após tão longa espera”.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2005

 

Helena Carmona

22.02.14

Helena Carmona é um nome dos bastidores. Trabalha na SIC há 18 anos. Trabalhou na construção da imagem de Catarina Furtado ou João Adelino Faria. É consultora de imagem, e fala de Sócrates, de Angela Merkel ou de Kate Middleton… Tem 50 anos. Há pouco mais de 20, era professora de Filosofia no liceu.

Se pensa que a roupa que se veste é um assunto frívolo, sem importância, faça uma pesquisa sobre a t-shirt preta e justa de Anderson Cooper, o super repórter da CNN. Ou siga a discussão acerca do corte de cabelo de Hillary Clinton. Ou pense em algumas das razões porque Mad Men é uma série de culto. Ou veja o reality show de Rachel Zoe, a stylist que produz a imagem de Nicole Kidman ou Cameron Diaz na passadeira vermelha. Chegará a uma questão inesgotável: o que é que se comunica através da imagem?

Helena Carmona é fã de Mad Men, aprecia o estilo cuidado de Hillary Clinton. Fez com que a parceria de Bárbara Guimarães e José António Tenente ou a de Catarina Furtado e Nuno Baltazar acontecessem e funcionassem. É responsável desde a fundação da SIC pela imagem dos profissionais da estação (informação e entretenimento).

Nesta entrevista fala da roupa que se veste, do corte de cabelo, de como isso importa. As audiências confirmam-no. Os profissionais de televisão sabem-no – os políticos também. Os anunciantes compram essa atenção, a economia imiscui-se no que apenas parecia ser um certo vermelho no vestido.

É uma mulher discreta, que se licenciou em Filosofia na Universidade Clássica de Lisboa e fez o curso de Design de Moda no IADE. Um dia, decidiu que não queria passar o resto da vida fechada numa sala de aulas.  

 

 

Como é que se cria uma imagem que seja forte?

Estamos a falar de uma imagem para televisão? É completamente diferente se falamos de um cliente particular que vem ter comigo a dizer que quer mudar de imagem ou retrabalhar a sua imagem. Em televisão, como em tudo o que é espectáculo, as coisas são mais fabricadas para aquele momento, aquele público, aquele cenário, aquele horário. Temos que considerar um número vasto de itens. Sendo que a imagem de um pivot de informação ou apresentador de televisão no momento em que está a trabalhar pode ser completamente diferente daquilo que ele é quando sai do palco, do ecrã. Muitas vezes, as pessoas estão na rua, de jeans, desmaquilhadas, e não as reconhecem. “Ah, a menina é tão diferente do que é na televisão”.

 

Esse elemento de fantasia, em televisão, é assumido. O ideal é que não haja um grande desfasamento entre a imagem televisiva e a identidade daquele que comunica, fora do palco?

O que se tenta é não corromper essa identidade. Cada pivot é patrocinado por uma marca e no momento de a escolher tento que ela coincida com aquela personalidade (que já conheço, de conversas anteriores à escolha da marca, e que são importantes para que a pessoa não esteja com uma farda que não tem nada que ver com ela). Os pivots e apresentadores não estão contrariados, a usar uma coisa que os violenta, que os incomoda, com a qual não se identificam. Esse é outro item a considerar: a pessoa sentir-se bem.

 

Procura-se elaborar uma imagem que passe coisas como credibilidade, seriedade, maturidade, jovialidade… Como é que isso de faz através da roupa, ou do corte da cabelo, ou da maquilhagem?

Parece uma ironia dizer que isso se consegue com tempo (porque trabalhar em televisão significa trabalhar muito depressa e contra o tempo). Uma imagem não é só a roupa. É o corte de cabelo, os óculos, os cuidados com o corpo (fazer uma dieta, ginástica). Tudo isso precisa de tempo. A solução é: vamos criar esta imagem o melhor possível para o arranque, e depois vamos fazer experiências, as coisas vão evoluindo. No cabelo, fazem-se muitas experiências, de corte, de cor, ao longo do período em que a pessoa está no ar, ou nos três ou seis meses que dura o programa. 

 

Normalmente as pessoas têm uma noção apurada da imagem que transmitem, têm uma consciência do seu corpo e de como ele comunica? Não é raro verem-se em televisão pela primeira vez e acharem que não são elas; ou ouvirem a voz e reagirem com estranheza.

No início, toda a gente tem esse choque. Que é trabalhado a vários níveis, não só pela roupa. Têm aulas de dicção, postura. Quando dou formação, quer para jornalistas, quer para outras pessoas, sublinho que a postura acaba por ser mais contundente do que uma peça de roupa. Pode-se estar muito bem vestida, mas se se estiver torta, desengonçada, nada daquilo bate certo. Não sou eu que faço esse treinamento, mas qualquer pivot tem essa formação, além das dicas dadas pelos realizadores e produtores. “Agora mexeste-te muito. Agora repetiste muito aquele gesto de mãos. Tens um aspecto inibido”.

 

As mulheres, quando são bonitas, para serem levadas a sério, para serem consideradas mais do que tudo pelo seu potencial profissional, têm de se desfear, têm de apagar a sua sensualidade? Ou pelo menos não explorar a sua feminilidade. Ana Lourenço e Clara de Sousa são dois exemplos.

A beleza dessas mulheres pode ser tornada mais discreta, mas não apagada, neutralizada. Há 18 anos, quando a SIC começou, o espírito do tempo era esse. As coisas evoluíram muito. Em Portugal, no mundo inteiro, não só as mulheres, mas os homens, valorizam cada vez mais a sua imagem, o seu corpo. No caso das pivots de informação é preciso ser mais cuidadoso com o tamanho das saias, com a altura dos decotes, com a abertura do casaco. Não creio que a Ana Lourenço ou a Clara de Sousa se sintam masculinizadas ou castradas na sua feminilidade. Não o procuram, nem o procura a estação. Já não é verdade que uma mulher, para ser levada a sério, tenha de usar blazer. Se fizermos um zapping, canais abertas e por cabo, portugueses e estrangeiros, percebemos que essa foi a evolução. É comum ver uma jornalista da BBC a dar as notícias com uma peça que não é um casaco. No entanto, não tem a exuberância de um vestido de uma apresentadora de um programa de entretenimento em prime-time.

 

Conceição Lino fez informação na SIC 18 anos; está agora num formato de entretenimento. O que é que mudou na imagem dela?

Era importante que não deixasse de ser ela, com as características que teve enquanto jornalista, na sua relação com o público. Mudou o guarda-roupa. O briefing que me foi dado foi que não podia ser a imagem do “Nós por cá” (o programa anterior) – calças e camisas, malhas. Não podia parecer um pivot de informação. Mas ela tem uma personalidade, uma presença física próprias; não podíamos vesti-la como uma apresentadora do Fama Show. Fizemos experiências em termos de peças de vestuário, até chegarmos a um ponto de equilíbrio. Está num cenário que a expõe dos pés à cabeça, usa uma roupa mais vistosa, mais feminina, vestidos (que alongam a silhueta), mais do que as duas peças. Usa roupa com mais cor (outro item que nos restringe: trabalhamos com o que o mercado oferece. Não temos uma costureira a quem dizemos: faça isto que queremos, nesta cor). Estampados; se bem que em televisão sejam difíceis de usar, a não ser que o desenho seja pouco confuso. Tudo o que faz ruído de imagem impede uma boa passagem da mensagem. Sou pouco apologista de acessórios em quantidade – também fazem ruído de imagem. Aplica-se na televisão e na vida: less is more.     

 

A informação e o entretimento são igualmente desafiantes?

Gosto de fazer tudo. O que dá mais trabalho? O entretenimento. A informação é mais previsível, padronizada, os jornalistas repetem a roupa. Não estão a passar modelos. Na SIC, o método usado é o seguinte: para todos os pivots de informação são estabelecidos plafonds, e essa roupa fica para eles. Não é emprestada e devolvida. Inclusive se for preciso arranjos (subir mangas, apertar na cintura, fazer bainhas), fazem-se.

 

São compradas uma série de peças que são consideradas as essenciais para fazer uma temporada?

Exactamente. Por isso é possível fazer um mapa de coordenados e repeti-lo. No entretenimento, sobretudo no caso das mulheres, a roupa nunca repete. A imagem tem de ser diferente da da semana anterior, tem de atrair o espectador pelo brilho, pela cor, pelo lado sexy. Isso representa uma rotação muito maior e uma pesquisa muito mais intensiva. Pode ser frustrante correr Lisboa e arredores à procura de um vestido que achamos que é o ideal para o tema daquele programa e ficarmos ao lado do desejado.

 

A Bárbara Guimarães e a Catarina Furtado são dois casos paradigmáticos disso que acaba de dizer. Muitas vezes, as pessoas ligam a televisão para saber o que trazem vestido. A sua persona televisiva parece indissociável do que vestem, e do que comunicam através da roupa. Esteve ligada à construção da imagem de uma e de outra.

A Catarina já está na RTP há muitos anos, mas começou na SIC. É alguém com quem desenvolvi uma relação muito próxima, e a Bárbara também. Rapidamente chegámos à conclusão de que o melhor seria associá-las a um criador de moda português que fizesse por medida tudo aquilo que sonhamos para aquele programa e imagem. Ainda hoje essa associação se mantém. Se perguntar ao José António Tenente ou ao Nuno Baltazar se trabalhar para televisão é diferente do que fazem no seu atelier, responderão que sim. O Tenente disse numa entrevista que é como fazer figurinos. A Bárbara, quando foi para a SIC para apresentar o Chuva de Estrelas, ela própria sugeriu o Tenente para a vestir, e tem sido um “casamento” de anos. A Catarina Furtado vestiu o Zé Carlos no Chuva de Estrelas (dos poucos criadores que trabalhavam para televisão e que tinham noção do espectáculo e do que é vestir uma apresentadora); depois retirou-se, esteve em Londres; quando voltou sugeri-lhe que experimentasse ser vestida pelo Nuno Baltazar (que na altura começava a ser conhecido e trabalhava com o Paulo Cravo). Estabeleceram-se esses laços entre os dois e quando a Catarina saiu da SIC para a RTP continuou a ser vestida pelo Nuno Baltazar. Até agora.

 

Qual é o seu papel, depois de estabelecida a relação entre o criador e a apresentadora?

Faço a ponte entre os dois. Um criador, no começo de um trabalho destes, muitas vezes não sabe com que linhas se há-de coser. [risos] Quais são os tecidos, os materiais, os brilhos ou a ausência deles, as coisas que funcionam bem e mal em televisão. Há muitos tecidos que engordam, que são demasiado brilhantes, que produzem efeitos ópticos que não queremos. O que queremos é destacar tudo o que é bom na pessoa, e o que é menos bom, disfarçar, esconder. (Falar das cintas e de tudo o que se usa por baixo é todo um capítulo…) Se a pessoa é baixa, torná-la mais alta, se a anca é larga, torná-la mais estreita. Queremos criar o efeito óptico da harmonia, e isso pode ser estragado por um tecido.

O criador está habituado a criar à sua vontade. Telefona a dizer que acabou de chegar um tecido fantástico, e depois o tecido é changeant, e eu tenho de dizer que aquilo não resulta em televisão. Mas em alguns destes casos, depois de anos de trabalho, o criador, a apresentadora e eu já comunicamos por telepatia [riso].  

 

A maior parte dessas mulheres são bonitas, voluptuosas e o sex-appeal não é nada despiciendo na maneira como comunicam. Uma actriz de Hollywood dizia recentemente que o sistema era impiedoso com as feias e as gordas.

E as velhas. As mulheres são muito penalizadas por envelheceram. Os homens, não, nem no cinema nem na televisão.

 

Há casos de mulheres menos vistosas que comunicam igualmente bem. As feias, gordas e velhas impõem-se pelo carisma?

Ter carisma é uma bênção e é melhor do que tudo, precisamente porque a beleza não dura sempre. Há pessoas que, por mais que tentem, não conseguem ter, e outras têm-no naturalmente. O carisma não é o parente pobre da imagem. Obviamente uma apresentadora que não seja tão bonita e sensual impõe-se pelo carisma. Também temos exemplos de mulheres bonitas que não se impuseram como apresentadoras de televisão. Os padrões de beleza podem ser uma enorme ditadura, mas há outras coisas. Ao longo destes 18 anos assisti a inúmeras tentativas de lançar caras novas, bonitas, e que não funcionaram; não eram bons comunicadores. Se calhar, as feias são mais desinibidas. A Oprah [Winfrey] nunca foi uma mulher bonita – está mais interessante agora, sofreu o tal processo de tratamento da sua imagem –, está sempre a engordar e a fazer dieta, e parece muito mais desinibida e segura de si do que uma mulher bonita.

 

Esteve ligada à criação da imagem de João Adelino Faria ou José Alberto Carvalho, para falar de dois profissionais conhecidos. É impensável um pivot de informação não usar gravata?

Um pouco. Embora tenha havido, ao longo destes anos, algumas fugas à norma. Umas vezes com bom feedback, outras não. O José Alberto Carvalho, à sexta-feira, ou ao fim de semana, já tem apresentado o Telejornal sem gravata. Os estudos de credibilidade relativamente a pivots de informação estão sempre associados a fato e gravata, a camisas brancas ou bastante claras ou lisas. Esses estudos são os mesmos para os políticos. Por isso vemos quase sempre os políticos de todo o mundo com camisa branca, fato escuro, gravatas lisas ou falsas lisas (as que têm pouco desenho). Estamos um pouco condicionados por isso. As camisas escuras podem dar um ar mafioso, as gravatas pretas com riscas brancas, também, a ausência de gravata pode dar um ar blazé demais ou passar por falta de respeito. Portugal é um país conservador. Se morre uma figura pública, e se o pivot estava destinado a usar uma gravata cor-de-rosa ou vermelha, mudamos rapidamente para uma gravata azul escura ou preta. O público repara imenso nessas coisas.

 

Nos homens, as mudanças são menos acentuadas do que nas mulheres. Parece que eles estão sempre mais ou menos na mesma.

A moda masculina e as mudanças na modelagem são muito subtis. De uma estação para outra, a banda do casaco vai alargando um centímetro, a largura das gravatas vai diminuindo um centímetro, os tamanhos dos colarinhos também, as calças vão afunilando ou alargando… Além disso, em televisão não trabalhamos com a vanguarda da moda, não é possível.

 

Porquê? Porque se olha apenas para o objecto da moda e não para a pessoa que o veste?

Por um lado é isso. Por outro lado, a retina do espectador precisa de tempo para se habituar a essas mudanças.

 

Gostava de pôr sob o seu escrutínio a imagem de José Sócrates. É um dos políticos em que a mudança é mais significativa, se olharmos para imagens antigas. O que é que na imagem do primeiro-ministro comunica de uma maneira diferente?

No caso de José Sócrates, o corte de cabelo é uma coisa fundamental. Fica mais leve, mais bonito com o cabelo mais curto. Os homens portugueses, de uma maneira geral, têm um terrível defeito: querem “sentir-se à vontade” e usam a roupa dois tamanhos acima. O que dá um resultado informe, que os faz parecer mais fortes, velhos, pesados. Às vezes, basta conseguir convencer a pessoa a usar um fato mesmo à medida do corpo, que não lhe sobre nos ombros, mais cintado, uma camisa mais justa e esticada no peito (que não faça foles quando se põe a gravata), para fazer uma enorme diferença. No caso de Sócrates, os fatos têm uma modelagem mais cintada, mais actual, as calças não têm pregas, a perna das calças é mais a direito, não tem tecido a mais, o que faz uma perna mais longa, mais elegante.

 

Os homens continuam a ter uma grande resistência a esses cuidados? Persiste o estigma de que esse cuidado com a imagem é uma coisa de mulheres ou de homossexuais? Como se perdessem virilidade pelo facto de olharem para si e se cuidarem.

Se formos ver bem, uma grande parte dos homens ligados à música, sobretudo cantores pimba, e os futebolistas adoptaram, sem que isto seja um processo consciente, a estética gay no modo de vestir. E são geralmente homens associados a uma grande virilidade, à heterossexualidade…

 

Outro estigma é o de que isto é uma coisa frívola e por isso incompatível com a seriedade de um cargo político.

Não é uma coisa frívola porque o que traz vestido é o seu cartão de visita ainda antes de ter aberto a boca. É preciso lutar contra esses estigmas. Os políticos, que têm assessores que lhes passam estes estudos, sabem que se estiverem bem vestidos, se tiverem um bom corte de cabelo, se não tiverem brilhos na cara quando vão à televisão (que se resolve com base ou pó), sabem que tudo o que lhes favoreça a imagem os ajuda a ganhar votos, ou a ter a simpatia do público.

 

Há estudos que referem que 60% da comunicação é não-verbal. E aí entra o modo de vestir, a linguagem corporal…

Acredito que seja mais do que 60%. Há tempos um jornalista da SIC disse-me: “Eu que andei anos tantos anos preocupado em escrever bons textos e em passar bem a mensagem, cheguei à conclusão de que a gravata que uso é mais importante do que tudo o mais!”. É disso que as pessoas falam no dia seguinte.

 

Falou do corte de cabelo como elemento fundamental na imagem do primeiro-ministro. O que é que normalmente provoca as mudanças mais significativas? O cabelo, os dentes, os sapatos? Recentemente muito se falou dos dentes embranquecidos de Paulo Portas.

Demasiado embranquecidos. O puro-branco-omo não é natural. Pessoalmente acho os dentes fundamentais. Nos tempos que vão correndo, o que vou dizer não é politicamente correcto, mas não sou adepta de grandes operações plásticas, próteses mamárias, alteração dos dentes. Não vejo necessidade disso na maioria das vezes. Se me perguntam se devem fazer operações ao nariz ou aumentar o peito, digo sempre que não. Nos dentes, sou apologista de correcções, que estejam bem tratados. O sorriso é das coisas que mais caracterizam a personalidade de uma pessoa. Se fica completamente diferente, não é a mesma pessoa. Há tantas formas de correcção que não é preciso arrancar os dentes e pôr outros diferentes. Estamos numa época menos de bisturi e mais de prevenção.

 

Pode falar de um caso em que a imagem não é boa?

Angela Merkel. Funciona mal. Não tem cuidado com o corpo, é demasiado forte, a roupa não lhe cai bem, os fatos são demasiado quadrados. Não tem bom gosto e não tem assessores de imagem; ou tem, e não segue os conselhos que lhe dão. É uma mulher que não tem graça nenhuma. Será que para os alemães isto não tem grande importância? Mas podia fazer-se qualquer coisa. A Hillary Clinton, hoje [dia 19], à chegada a Lisboa, a sair do avião, directamente para os ecrãs e os microfones, não estava especialmente arranjada, mas estava bem. Está sempre muito melhor do que a Angela Merkel. Mais cuidada.

 

Outra imagem: a de Kate Middleton no dia em que foi anunciado o noivado com o príncipe Williams. Os tempos são outros, Kate tem 28 anos e não 19, como a princesa Diana tinha quando o seu noivado foi anunciado, a imagem parece menos conservadora.

O anel da princesa Diana [que Williams lhe ofereceu] tem uma pedra azul e Kate decidiu usar um vestido da mesma cor. Não havia muitas disponíveis. No caso de uma futura princesa e de uma monarquia conservadora, se optasse por um vestido branco, ia parecer uma noiva. Se fosse preto, seria pesado. Se fosse vermelho, ia parecer muito atrevida. (Em televisão, a cor que dá sempre melhor resultado e que tem mais feedback em termos de público, sobretudo masculino, é o vermelho, nas suas possíveis gradações. Está sempre associado à fogosidade, a uma carga sexual forte. Uma mulher que vai ser princesa não deve usar uma cor esfuziante ou com uma simbologia sexual.) 

Kate Middleton é esbelta, alta, tem boa figura. Não é difícil que um vestido lhe assente bem. O decote é bonito, sem ser escandaloso. O comprimento é importante, é ligeiramente acima do joelho: é aí que ela pode afirmar a sua modernidade e juventude.

 

O que é que leva uma licenciada em Filosofia a ocupar-se da imagem da SIC?

São as voltas que as vidas das pessoas dão. Quando surgiram em Portugal os cursos de design já eu tinha quase 30 anos. Antes do 25 de Abril, antes do boom de lojas e de criadores disponíveis em Portugal, já tinha o hábito de fazer as minhas próprias roupas. A minha mãe sempre costurou muito bem e aprendi com ela, a cortar e a fazer. Simultaneamente, sempre gostei muito de ler e escrever; achei que a Filosofia promovia a discussão, uma certa inquietação em relação às questões existenciais. Não pensei nas saídas profissionais. Confrontei-me com isto: sou professora de Filosofia e isto agora vai ser o resto da minha vida. Fui professora de liceu cinco anos.

Outra coisa que me interessava era o teatro. Via e criticava os figurinos. “Se fosse eu faria de outra maneira. Aquele personagem não corresponde àquele figurino”. Quando passou a haver cursos de moda, achei que queria aprender mais sobre roupa, sobre os aspectos teóricos e técnicos, e queria ser figurinista de teatro. Fiz experiências titubeantes como figurinista. Curiosamente nunca quis ser estilista. Todos os meus colegas do IADE (um deles foi o Filipe Faísca) queriam ser estilistas. 

 

Isso era viver uma outra vida.

De facto. Houve um período em que dava aulas de dia e frequentava o IADE à noite. Tive a sorte de encontrar duas mulheres importantes neste meu percurso: a Greta Statter (a primeira consultora de moda em Portugal) e a Maria da Assunção Avillez. A Greta convidou-me para sua assistente e não hesitei. Passado um ano éramos sócias. A Maria da Assunção Avillez teve a ideia pioneira de criar um gabinete de imprensa de moda, com o Paulo Valente e a Greta. Encontrámo-nos todos nesse projecto. Anos mais tarde, a Maria da Assunção e eu fomos convidadas para fazer na SIC este trabalho de consultoria de imagem (que não existia).

 

Como é que definiria o seu estilo?

Sou muito básica. Não sou nada fashion victim. Aplico muito a máxima do less is more a mim própria. Aposto em peças básicas e intemporais. Tenho algumas referências: Chanel forever! [riso] No meu dia a dia, tenho de ter roupa muito prática e sapatos rasos. O meu trabalho é muito físico, vou a muitas lojas, carrego muitos sacos de roupa, faço muitos quilómetros por dia, de loja em loja, de estúdio em estúdio.

 

A sua vida é ver lojas, filmes, revistas…

… e ver pessoas. Perceber quais são as tendências, adaptá-las aquilo que faço, às exigências da televisão. Ver pessoas é importante, porque sou uma pessoa de afectos. Afeiçoo-me às pessoas que visto. Por graça, em ambientes informais, quando me perguntam o que faço, digo que sou baby sitter de pessoas crescidas. Também é um bocadinho isso.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

 

Luís Mira Amaral

21.02.14

Quem é Luís Mira Amaral? É um homem diferente daquele que era quando foi ministro de Cavaco. Dez anos da vida dele. Mais os dez em que ajudou o PSD. Vinte anos, tudo somado. Um homem aos 60 é forçosamente diferente de um homem que é ministro antes dos 40. Mas foi tarde que ele sentiu a facada nas costas, e não aos 40, quando a vida de ministro e todas as outras eram possíveis. Luís Mira Amaral tinha em si todos os sonhos do mundo. Não se pode, a propósito dele, parafrasear Pessoa no começo da Tabacaria: Não sou nada, nunca serei nada… Ele não era menos do que os outros, inferior aos outros – a certeza disto é dele.

Alô, alô PSD: não contem mais com ele. Para o caso de não saberem, Mira Amaral está zangado. Este intróito funciona apenas como teaser de capítulos suculentos. Mira Amaral decide abrir o livro sobre o cavaquistão, de que foi o carregador do piano – a definição também é dele.

Está muito satisfeito na sua nova vida de “o nosso homem em Angola”. Estando em Lisboa. É o presidente do BIC. Novo fôlego quando já não estava à espera que grandes coisas lhe acontecessem.

Gravação de uma hora e meia com mais palavras a serem debitadas por segundo do que é imaginável. Sílabas atropeladas, o que se sabe, se nos lembrarmos dele na televisão. Amável. Num e-mail posterior à entrevista, realizada no meio de Dezembro, recordou o tom despreocupado da primeira parte – vida curiosa, a deste rapaz de Lisboa. Pediu que incluísse “uma nota de extrema preocupação com a actual situação do país, na linha, aliás, das minhas recentes intervenções públicas. Também lhe pedia uma referência ao facto de, chegado aos 65 anos, já não ter quaisquer ambições. O único investimento que ainda tenho a fazer é no futuro profissional da minha filha de 20 anos, com um MBA no estrangeiro numa das melhores escolas”. Fica dito.

 

 

Se era para ser um homem de negócios, porque é que foi estudar engenharia?

Hesitei entre o Técnico e o então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actual ISEF. Fui para a situação mais cómoda. A casa dos pais era em frente à igreja de Arroios, a cinco minutos do Técnico, ao passo que o Quelhas era mais longe. No primeiro ciclo e liceu andei sempre na chamada boa-vai-ela, entre a Praça de Londres e [a avenida] Estados Unidos da América, entre o café Roma e a [pastelaria] Suprema. Era um dos meninos das Avenidas Novas. O meu grupo de amigos era o dos aceleras da Praça de Londres. Foi tudo para o Técnico, e fui na onda com eles. Em todo o caso, quando no Técnico perguntavam o que é que queria ser na vida, dizia que queria ser presidente de conselho de administração [riso]. Mostra a minha inclinação.

 

Não só a inclinação, revela a sua ambição. Não queria ser o director de serviços, queria ser o homem que manda.

Sejamos claros, sou caracterizado pela franqueza: queria ser um líder empresarial. Achava que andava numa escola de elite. Tinha consciência de que depois do Técnico ia fazer uma formação complementar em Economia e Gestão. Em casa tinha um pai que tinha feito os preparatórios de matemática em Coimbra. Dizia: “O teu irmão vai ser engenheiro mecânico e vai ser um excelente gestor industrial, tu vais ser o homem do planeamento”.

 

A verdade é que os dois são aquilo que o vosso pai disse que iam ser.

O meu pai teve esse feeling. Acabei o curso, andei dois anos com uma vida fabulosa, a ganhar um ordenado fabuloso, 13 contos e 500 por mês, tinha um Renault R8 Gordini, um carro fabuloso, com que me passeava entre Lisboa e Cascais com os meus amigos e amigas. Vivia em casa dos meus pais mas tinha um apartamento em Cascais. Depois fui para a tropa.

 

Diz que o seu pai teve um feeling do que cada um dos filhos podia ser. A questão pode ser vista de outra maneira: ele formou-os para serem o que ele queria que fossem.

Acho que não. Ambos perceberam que tínhamos mentalidades e aptidões diferentes. O meu irmão é um tipo fabuloso como engenheiro mecânico. Desmontava o automóvel e a mota, às vezes sobravam peças mas ele sabia pegar naquilo tudo. Eu não tinha paciência para esse trabalho de mãos, fabril. Hoje é administrador do grupo Queiroz Pereira.

 

O que é que ainda existe desse menino e disso que estava lá de modo embrionário?

No liceu fui um tipo muito certinho. Os pais levavam-me ao Liceu Camões. O reitor, Joaquim Sérvulo Correia, dava uma disciplina férrea. Só podíamos falar com as meninas, alunas, a 500 metros do liceu. Eu era um tipo tímido, até com as raparigas.

 

Porque é que era tímido?

Por feitio. Talvez me faltasse alguma confiança com o sexo oposto.

 

Porque não era bonito? Na adolescência estas coisas importam.

Não pensava nisso na altura. Só percebi, desculpe a imodéstia, quando algumas miúdas ou mulheres me disseram que era um homem bonito ou atraente. Por mim, não reconhecia isso. Eu era um tipo muito trabalhador e muito bom aluno, ao contrário do irmão, que era mais cábula. Os pais: qualquer dos dois quis fazer um curso superior e não o acabou. Canalizaram para mim a ambição de ter o primeiro filho licenciado.

Não me distraía com coisas secundárias, tinha objectivos claros. Quando havia miúdas ou automóveis, aparecia para conviver. Não andava com os melhores alunos do Técnico, andava com os borgas, na coboiada. Quando não havia miúdas nem automóveis, ia para casa estudar, e eles iam jogar cartas, perder tempo estupidamente.

 

Foi um muito bom aluno?

Conseguia ter as melhores notas. Já notavam em mim uma ambição.

 

De onde vem essa ambição?

É natural. Achei desde novo que tinha algumas qualidades intelectuais, que podia liderar outros.

 

Liderar outros, ser um líder, sempre foi um fito?

O meu fito era ter qualidade de vida, viver bem.

 

Como é que se vivia em sua casa? Qual era o quadro dos seus pais?

O meu pai fez os preparatórios para a Faculdade de Ciências, para entrar para a Academia Militar. Depois, tinha uma pequena deficiência cardíaca e não o deixaram entrar. Foi jogador da Académica de Coimbra. Veio para Lisboa e entrou para o Ministério das Finanças, onde esteve a vida toda como funcionário. A mãe fez o 7º ano do liceu em Beja; o meu avô não a deixou vir para Lisboa fazer um curso superior. O meu pai conheceu a minha mãe quando foi, como alferes miliciano, para Beja, fazer a tropa. Era funcionária dos CTT, onde esteve 20 anos. O regime salazarista não a deixava chegar a funções de chefia.

 

Por ser mulher?

Exactamente. Quando entra o Marcelo Caetano abre um concurso internacional e a senhora foi das primeiras a atingir lugares de chefia. Pertencia a uma pequena, média burguesia. Não tinham dinheiro para me dar Ferraris, nunca me faltou nada, nem a mim nem ao irmão.

 

Como é que germina em si o desejo de subir na vida, de ser o presidente do conselho de administração? Quem era o presidente do conselho de administração que conhecia, ou de ver na televisão, ou de ler nos jornais, que pudesse servir de referência?

Havia o meu professor de electrónica, Carvalho Fernandes, que era presidente da Standard Eléctrica. Havia outro, que foi meu professor de Economia no Técnico, o Prof. Daniel Barbosa, presidente do Banco de Fomento.  

 

Que sinais via neles?

A boa posição na vida. Uma posição – ou numa empresa de electricidade ou num banco, coisas de que intelectual e profissionalmente gostava. Havia um misto de gostar do que eles faziam e do status social, ao qual, como burguês inveterado, sou sensível. A questão de um jovem que andava a pedir o carro emprestado ao pai de vez em quando, mas que não tinha carro próprio, e que via tipos chegarem ao Técnico de chofer, num bruto Mercedes. Depois, outra coisa com imensa piada: um ministro do Dr. Salazar, o Dr. Correia de Oliveira, foi dos primeiros tipos em Lisboa a ter um Porsche, um 911. Eu ia fazer umas ceias ao Gambrinus…

 

Como é que ia fazer umas ceias ao Gambrinus enquanto estudante?

Não tinha dinheiro para jantar, mas a ceia era uma sandes de carne assada e uma cerveja, ao balcão. E para isso, a mesada chegava. E quem é que via sair do Gambrinus, de jantar? O Dr. Correia de Oliveira, ministro de Salazar, de Porsche, ao lado do motorista. Achava um desperdício o tipo andar de Porsche com o motorista a guiar! Foi das únicas vezes na vida em que me senti socialista, achei que a riqueza estava mal distribuída [riso]. Todo esse status, do automóvel, do chofer, eu, francamente, gostava.

 

O que é que o carro representa para si? Já falou inúmeras vezes de carros, e sei que tem uma paixão por carros.

Primeiro, é um bem utilitário, para a gente não andar a pé, para ser mais cómodo. Segundo, é o prazer de conduzir.

 

De que é que gosta, que é que lhe dá esse frisson?

A adrenalina que a gente sente ao entrar muito rápido numa curva. Sentir a meter a mudança, a travagem no momento exacto, controlar o carro na curva e sentir o risco de bater. O barulho do motor, para mim é uma sinfonia. O terceiro aspecto, que não é despiciendo: a estética do carro. No meu grupo da Pastelaria Roma, a um Fiat, um Opel, chamava-se um carrito. Aos carros de que a gente gostava dávamos um título feminino: era a “Porscheta”, a “Alfeta”, a Ferrari. Havia aqui um conteúdo afectivo.

 

Não é afectivo, é sexual.

Está bem. Mas é o lado afectivo da vida.

 

Era um objecto de desejo, tal como as mulheres eram um objecto de desejo.

Exactamente.

 

Não sendo eu entendida nos carros que tem, tem uma “Porscheta”, uma “Alfeta”, uma Ferrari?

Posso dizer-lhe o que é que comprei. Estava no Governo quando um jornalista d’ A Capital me perguntou numa entrevista de verão: “O que é que quer ter para este verão?”, “Um Porsche e um iate na marina de Vilamoura”. Isto deu primeira página d’ A Capital: “Ministro quer um Porsche”. Acho que o Prof. Cavaco Silva não gostou nada. Ele nessas coisas tinha uns tiques salazaristas, não gostava destes sinais. Quando disse isto comparei-me com o Dr. Correia de Oliveira, pensei que o Dr. Salazar também não devia gostar de ver o Dr. Correia de Oliveira a andar de Porsche.

Depois de sair do Governo, quando regressei à banca, com a remuneração variável do ano no BPI, que o Dr. [Artur] Santos Silva me deu, comprei um Porsche.

 

O seu primeiro brinquedo foi já depois de ter sido ministro?

Saí do Governo sem um tostão, mal tinha dinheiro para pagar a casa. Ganhava 620 contos líquidos.

 

São 3000 e tal euros, não há uma grande diferença em relação aos ordenados de um ministro de agora.

Não há, não. Comprei um Porsche lindo, azul-escuro, estofos bege. Foi a concretização de um sonho. Se não me tivesse distraído nos anos que andei no Governo tinha-o tido mais cedo. Consegui-o aos 55 anos. Depois até mostrei o carro ao Dr. Santos Silva: “Foi a sua variável que me permitiu comprar isto”, e ele disse que o carro era muito bonito.

Mas tenho um MGB descapotável, um clássico de 1973 que comprei em segunda mão. Quando passeio com ele em Cascais os ingleses param. Os meus carros são esses dois.

 

Na sua infância brincou com Dinky Toys? Quais eram os carros com que brincava?

Havia os Dinky Toys e já tentava comprar modelos que fossem Porsche, Ferrari, Maserati, Alfa Romeu. Organizávamos corridas nos passeios do Liceu Camões, corriam uns Dinky Toys contra os outros. Em casa, com o irmão, eu desenhava os volantes dos automóveis, e ele, em papel prensado forte, cortava e construía. A casa tinha um corredor enorme, passávamos um pelo outro a guiar com os volantes de papel.

 

Quem é que lhe deu a confiança em si mesmo para perceber que tudo estava ao seu alcance?

O facto de ter excelentes notas quer no liceu, quer no Técnico. A melhor nota que tive no 5º ano do liceu, actual 9º ano, foi a História, não foi a Matemática nem a Física. O que mostrava que gostava também do conteúdo social, político e económico das coisas. E outra coisa que costumo dizer a alguns amigos de esquerda: sempre tive uma grande preocupação social. Em miúdo, vivemos uma época em Beja, e perguntei à minha mãe: “Porque é que andam ali uns meninos sem sapatos e eu tenho sapatos?”.

 

Para mantermos a terminologia do automóvel: alguma vez se estampou na escola? Teve algum período estroina em que se descentrou daquilo que tinha decidido que a sua vida ia ser?

Não. Quando comecei na estroinice já andava no terceiro ciclo do liceu, a base era sólida.

 

O seu irmão era mais estroina?

Na altura era tímido, ele era muito mais extrovertido. Curiosamente, com a evolução dos anos, se calhar devido à vida social e à política, fiquei mais extrovertido do que ele. Ultrapassei-o, ele é mais reservado.

 

Competiam? Ou sempre amigos?

Tivemos grandes guerras entre os dois. E andámos à chapada e à lambada.

 

As turras eram pela disputa da atenção dos pais?

Sim, ciúmes desses, de miúdos. Ele fez uma coisa... Caí num tanque de lavagem de roupa. Ele, com três anos, foi à sala onde estava a família reunida; sem conseguir falar, puxou os pais para os levar até ao tanque. Teria morrido afogado se não fosse ele.

 

Porque é que se comove a falar disso?

Se estou vivo devo-o a ele. Depois, houve todo um percurso comum até eu entrar para o Governo.

 

Nessa altura deixaram de se dar?

Não deixámos, mas ele achou que eu me tinha tornado uma figura pública. Achou que eu já não era só o engenheiro que até aí tinha sido com ele. Devo dizer, a guiar automóveis é muito melhor do que eu.

 

Ele sentiu orgulho em si?

Felicitou-me vivamente. Quando entrei para o Governo, foi o pai que ficou de mãos na cabeça.

 

Porquê?

Ele foi funcionário das Finanças do Dr. Salazar. Um tipo só chegava a ministro aos 60 anos. Ver um filho com 39 anos chegar a ministro…, achou que o mundo estava perdido [riso].

 

Onde começa a ambição política?

No liceu nunca tive ambição política. Quando estava na tropa, em Nampula, (apanhei quatro anos de tropa, entrei aos 25 e saí aos 29, sou de uma geração sacrificada…), apareceu um jornal, o Expresso, que foi uma referência para mim. Tive este raciocínio: “Não sou de esquerda, nunca me revi nos tipos contestativo-associativos, mas também não me revejo neste regime que sempre me cheirou a bolas de naftalina. Com esta guerra colonial que está condenada, não vamos a lado nenhum. Não vou alinhar com socialistas nem comunistas. A Ala Liberal, com o Francisco Sá Carneiro e o Expresso, é a minha gente. Estes são os tipos em que me revejo politicamente”.

 

O Expresso seguia para Nampula?

Seguia. Eles nem queriam que assinasse, aquilo era perigoso e subversivo. Tive ambição de ser ministro quando ele [Francisco Sá Carneiro] ganha as eleições, torna-se primeiro-ministro do Governo AD, e é o Eng. Álvaro Barreto ministro da Indústria. Pensei que gostaria de ser ministro da Indústria do Dr. Sá Carneiro.

 

Porque é que não era de esquerda? O que é que o desgostava quando olhava para as movimentações da esquerda contestatária?

Achava, com algum espírito económico que tinha – não tinha a formação, mas o bom senso – que aquelas teorias eram máquinas de criar pobreza. Não havia uma óptica de criação de riqueza, era mais um objectivo igualitário de distribuição. Como era um regime de direita autoritário, a luta contra o capitalismo confundia-se com a luta contra o regime do Dr. Salazar. Mas já na altura sabia distinguir. O meu objectivo era viver num país como a França, a Alemanha ou a Inglaterra, uma grande economia de mercado, com uma democracia económica e social, com um poder de compra e uma vida decente para nós.

 

Os esquerdistas do Técnico não apareciam de Porscheta na faculdade e esses sinais de consumo era uma coisa que abominavam.

Uma coisa que sempre lhes disse, e afrontei-os às vezes: “Tenho preocupações sociais mas o meu modelo para chegar lá é diferente do vosso. Vocês querem ir pela distribuição da pobreza, eu acho que primeiro é preciso criar riqueza”. Depois aceito que o Estado intervenha para redistribuir, entre os que ganham mais e os que ganham menos, senão o sistema não é sustentável. Achava que os regimes comunistas em que se reviam eram um total bluff. Não sendo filho de um grande capitalista, tinha essa costela burguesa. Já ia para o Técnico a vestir bem, não ia de jeans rotos e camisolões. Hoje, como professor do Técnico, transpus isto para os meus alunos.

 

Não os deixa aparecer de camisolão e de jeans rotos?

Podem aparecer como querem, só que eles distinguem-me um bocado porque acham que sou dos tipos mais bem vestidos [riso].

 

Sempre gostou de vestir bem.

Sempre gostei de bons restaurantes, bons hotéis, vestir bem, bons automóveis. Digo-o à vontade porque o que tenho obtido é à custa do meu trabalho. Não herdei fortuna nenhuma, por todos os sítios onde tenho passado ninguém me chama incompetente, preguiçoso ou vigarista. Posso dizer com todo o à vontade como disse no Prós e Contras ao Carvalho da Silva: “Trabalho tanto ou mais que vocês, com uma única diferença: gosto dos sinais exteriores da burguesia”.

 

De riqueza.

Não diria de riqueza. Qualidade de vida. Não ando em iates nem em aviões executivos.

 

Estamos a discutir o grau de riqueza.

Para mim os sinais exteriores de riqueza são esses.

 

Quando é que passou a desejar ser rico?

Nunca pensei. Se alguma vez pensasse ser rico não tinha estado no Governo dez anos. Ao fim de pouco tempo de estar no Governo tive propostas para o sector privado a ganhar balúrdios, e não fui. O meu objectivo de vida sempre foi ganhar bem para poder viver bem.

Quando me aconteceu a história [da reforma] na Caixa, fui insultado e enxovalhado de forma vergonhosa no país. A minha filha era aluna no Colégio São João de Brito, e a professora de português, que não sabia que ela era minha filha, falou de um texto, não sei se do Gil Vicente, de um tipo que só tinha ambição de ganhar dinheiro; diz: “Esse tipo é o Mira Amaral”. A miúda sai da sala a chorar copiosamente. Era um insulto que estavam a fazer ao pai. Está a ver quão injusto era isto? Ganhava bem, mas se tivesse a ambição de ser rico nunca tinha aturado o Governo nem o sector público, tinha-me estado nas tintas.

Isto para lhe dizer que a minha ambição foi trabalhar com o Dr. Sá Carneiro. Como é que entro para o Governo? Nem tem nada a ver com o PSD. Depois de vir da tropa consegui matricular-me na Universidade Nova, no mestrado em Economia.

 

Isso em 1982, depois foi mestre em Economia.

Exacto. Tive professores de referência, Miguel Beleza, Manuel Pinto Barbosa, Manuel Sebastião, Abel Mateus, Diogo Lucena. Defendi tese com “muito bom”. Depois fiz cursos executivos de gestão.

 

Qual dessas pessoas que conheceu durante o mestrado foi fundamental para fazer a ligação com o cavaquismo e com o Governo?

Miguel Beleza.

 

Mais novo.

Mais novo do que eu, sim. O Luís Miguel Beleza era da geração do Diogo Lucena, que foi meu aluno no Técnico, e que depois foi meu professor de Economia. O Diogo Lucena, o António Guterres (o aluno mais brilhante que tive), o José Tribolet. Fui dos melhores alunos do Miguel Beleza, pedi-lhe para ser assistente dele, para consolidar, dando aulas aos miúdos, aquilo que tinha aprendido. E aí, a irmã Leonor andava aflita com o deficit da Segurança Social. “Vê lá se me arranjas um tipo para gestor financeiro da Segurança Social”. Estava na altura no Banco de Fomento. Ela convidou-me, estive dois anos como presidente do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

 

Foi a primeira vez que esteve num organismo público e politizado?

Mas como vê não teve nada a ver com o PSD, foi a minha ligação universitária. Aprendi sobre finanças públicas, orçamento de Estado, e pus as finanças da Segurança Social na ordem. Depois é ela, quando o Prof. Cavaco Silva toma a liderança do PSD, que me sugere.

 

Conheciam-se?

Só tinha encontrado o Prof. Cavaco Silva duas vezes. Telefona-me, estava a formar Governo, pediu-me para ir à sede do PSD. Andavam a dizer que podia ir para secretário de Estado da Indústria e da Energia, que era a área de que gostava. Cheguei lá e convida-me para ministro do Trabalho e Segurança Social. Nunca pensei em ser ministro do Trabalho, estive umas horas a pensar e depois aceitei.

 

Porque é que não aceitou logo?

O meu registo mental não estava para a Segurança Social, estava mais para a Indústria e Energia.

 

Quem é que estava na Indústria?

O Eng. Santos Martins.

 

Que já tinha sido convidado.

Sim. Julgo que ele [Cavaco] terá convidado o António Capucho para ministro do Trabalho, não aceitou, a Leonor Beleza sugeriu-me a mim. Pensei: “Isto é um Governo minoritário, vai ser para seis meses, vou fazer uma perninha para ver como é”. Quando o Prof. Cavaco Silva me convida, eu tinha pedido a demissão de presidente do IGF da Segurança Social para entrar na Caixa Geral de Depósitos e substituir o Dr. Filipe Pinhal, que tinha ido para o BCP. Foi a época em que a banca se expandiu em Portugal. Como não me considero pior que os outros também podia ter a mesma carreira que os outros gestores bancários tiveram – florescente. E sabe quem é que me substituiu na Caixa, quando aceitei o convite do Prof. Cavaco Silva? Foi o Dr. Tomás Correia, que é o actual presidente do Montepio.

 

Tudo nomes que conhecemos passados 20 anos. São os mesmos, no essencial.

Não devo nada à política. Fui para o Governo e perdi dinheiro, o que ganharia na banca.

 

Durante dez anos perde dinheiro, mas há um mundo que se abre, e é um investimento a longo prazo. O que faz depois de sair do Governo dá para comprar uma “Porscheta”.

Se não tenho entrado para o Governo, tinha comprado uma “Porscheta” mais cedo. É isso que alguns dizem, que não aceito nem admito, que se não tivesse ido para o Governo… Não me queixo, mas é injusto dizer que foi com o Governo que arranjei estas posições.  

 

Ofende-o dizerem que foi através do Governo que conseguiu estas posições; e ofende-o dizerem que só quer dinheiro. São coisas diferentes.

Estive dez anos no Governo, se tivesse objectivos de dinheiro chegava-me um ou dois anos para me pôr ao fresco, aceitar os convites e ir ganhar dinheiro.

 

Está arrependido? Justamente porque esses que eram da mesma geração mais rapidamente foram presidentes do conselho de administração dos grandes bancos.

Tenho mixed feelings. A minha experiência do Governo de contacto com os empresários foi fabulosa. Saí do Governo com os empresários portugueses todos a elogiarem-me. O meu contacto com a classe política – por aí estou arrependido. Se soubesse o que sei hoje não tinha entrado para o governo do Prof. Cavaco Silva.

 

O que é isso do “se soubesse o que sei hoje”?

Percebi que como líder político, um tipo tem duas opções: ou é político profissional, está a fazer carreira, ou, se não é, é um erro estar lá dez anos. Só vale a pena entrar para o Governo como entrou o Dr. Catroga, ou o Morais Sarmento ou o José Luís Arnaut com o [Durão] Barroso.

 

Ou seja.

Amigo do primeiro-ministro. Como dizem os meus amigos, nunca passei da Infantaria, nunca cheguei ao Estado Maior no cavaquismo. Andei sempre a fazer o trabalho de sapa, a carregar o piano. Quando chegava a altura dos louros e do poder, era sempre para os outros, nunca para mim. Era ingénuo, vi o Prof. Cavaco Silva como uma alternativa ao meu líder, que era o Dr. Sá Carneiro. Entrei para o Governo com grande entusiasmo, mas percebi ao fim de algum tempo que estava farto daquilo.

 

Porque é que ficou dez anos, então?

É que depois percebi uma coisa. Quando o Eng. Oliveira Martins se zanga com o Eng. Falcão e Cunha e saem os dois do Ministério das Obras Públicas, vem a seguir o Eng. Ferreira do Amaral e aproveita o trabalho todo que tinham feito. Quem montou o plano rodoviário foi o Eng. Oliveira Martins, quem montou a máquina da Junta Autónoma das Estradas para fazer as auto-estradas foi o Eng. Falcão e Cunha. Os dois saíram, quem é que teve os louros todos da festa? O Eng. Ferreira do Amaral. Foi o super-ministro das Obras Públicas. Eu engoli vários sapos: “Não vou deixar que me façam isto. Se sair, fiz o trabalhinho todo e outros vão colher”.

 

Carrega com o piano e depois senta-se ao piano, e não é outro que se senta ao piano.

Exactamente.

 

Alguma vez as suas relações com o Prof. Cavaco Silva se entornaram?

Nunca se entornaram por causa dos vários sapos que engoli. Tive frieza, em nome disto que disse, (as pessoas julgam que sou muito emotivo, mas não sou tanto quanto pensam), [e decidi]: “Vou ser o carregador de pianos do cavaquismo até ao fim”. Toda a gente dizia que devia ser ministro da Economia, e só era ministro da Indústria. Havia um Ministério do Comércio que não fazia sentido económico existir, mas que havia porque o Prof. Cavaco Silva não podia dar o poder da Economia todo. Aguentei estoicamente, sempre, nesta perspectiva: “Se vou sair a bater com a porta, é sempre o mais fraco que se trama, e depois vem outro que aproveita o trabalho que fiz e sai em ombros”. Saí em ombros em termos dos empresários portugueses.

 

Um dos sapos que engoliu foi o Prof. Cavaco Silva não lhe ter dado a Economia?

As pessoas diziam que queria ser ministro das Finanças, e é verdade. E eu dizia: “Ele nem o Ministério da Economia me dá, quanto mais o das Finanças”.

 

Porque é que acha que o Prof. Cavaco Silva não lhe dava esses ministérios?

Aqui há tempos estive num júri de uma tese de mestrado com duas pessoas do ISEG, que tinham sido colegas do Prof. Cavaco Silva. Perguntaram-me assim: “O senhor, como economista que também é, não conseguiu explicar ao Prof. Cavaco Silva que aquela divisão entre Indústria e Comércio não fazia sentido?, devia ser um Ministério só”. “Estão a cometer o erro habitual, estão a ver o Prof. Cavaco Silva como vosso colega, professor de Economia, e ele no Governo actua como líder político”. Se vê um tipo que tem personalidade forte, não sendo ele da sua confiança pessoal, não lhe vai fazer isso. Ele só vai pôr em pastas fortes tipos da sua confiança pessoal.

Em todo o caso, há um episódio revelador da diplomacia e algum savoir-faire que ele tem. Quando o Prof. Braga Macedo estava para sair do Governo dizia-se que havia duas soluções internas para ministro das Finanças: ou eu ou a Dra. Manuela Ferreira Leite. Depois podia haver uma solução externa. Ele convidou, e bem, o Dr. Eduardo Catroga, foi um grande ministro das Finanças. No dia em que o convidou telefona-me e trata-me por Eng. Mira Amaral, em vez de me tratar por Sr. ministro da Indústria. Percebi logo que algo se passava, estava a gerir-me psicologicamente.

 

Era assim que se dirigiam a uns e a outros normalmente, numa reunião de conselho de ministros?

Sempre. Manteve sempre esse formalismo comigo. Nunca houve uma ligação afectiva pessoal entre os dois, foi uma ligação sempre fria e impessoal. Nesse dia aparece-me ao telefone: “Sabe Eng. Mira Amaral, gostaria de lhe ter dado isto em primeira mão, tem um novo colega no Governo”. Em oito anos tinham entrado e saído ministros, nunca me tinha passado cartão. “Vai ter como colega o Dr. Eduardo Catroga, se calhar já sabe”, “Ouvi na TSF agora, Sr. Primeiro-ministro, obrigado”, “Sei que os dois são muito amigos” – o que é verdade – “vão fazer uma excelente equipa em conjunto” – o que foi verdade – “e agora queria afirmar-lhe o meu apoio, o meu grande apreço ao trabalho que está a fazer”. Como em oito anos nunca tinha afirmado nada, era um pouco excessivo. O que concluo disto é que o Dr. Cavaco Silva achava que eu tinha a expectativa de ser ministro das Finanças, e como não me deu o lugar, teve a atenção de me gerir psicologicamente.

 

É público que as suas relações com a Manuela Ferreira Leite não são as melhores. A disputa vem desse tempo?

Não, não vem desse tempo. A senhora não tinha categoria para passar de secretária de Estado. Ministra da Educação já foi uma promoção um pouco excessiva. Ele [Cavaco] não tinha outra solução. Posso contar-lhe aqui com toda a franqueza. Estava eu como administrador do BPI… 

 

Parêntesis: como é que vai para o BPI?

Era quadro do Banco de Fomento antes de ir para o Governo. Acabou o Governo e passei a quadro do Banco de Fomento. Depois fui dirigir a banca de investimentos. O BPI comprou o Banco de Fomento, tornei-me quadro do BPI, cheguei a administrador do BPI. Gosto de vincar: não tem nada a ver com o PSD. Não devo nada ao PSD nesta matéria. Quando estava no BPI, o Dr. Durão Barroso pede-me para resolver o problema de Cahora Bassa, um problema que se achava insolúvel. Resolvi com as tarifas que consegui arranjar. Tenho a honra de ter resolvido o último contencioso português, coisa que ele nunca me agradeceu. Tratou-me pior do que se trata uma mulher de limpeza, que também se deve tratar bem.

 

Durão?

O Durão. Depois a Dra. Manuela Ferreira Leite, há um dia que me telefona, pede-me para ir lá, estava muito aflita porque o Prof. António de Sousa, presidente da Caixa, não controlava aquilo. Precisava de um tipo para controlar a Caixa, e não o podia substituir antes do fim do mandato. Entrei como vice-presidente, com expectativa de que ia ser o presidente no fim do mandato. Não fiz exigências nenhumas, só disse: “Tenho 57 anos, já tenho garantido que me vou reformar [pelo] BPI, venho para cá se me derem o mesmo ou mais. Isso tem que ser garantido”. Foram ver a legislação, com os anos de descontos que tinha para a Segurança Social e para a Caixa Geral de Aposentações, o cidadão Mira Amaral não precisou de nenhuma lei específica: eram as condições normais, podia reformar-me pela Caixa em vez de me reformar pelo BPI. Uma reforma até ligeiramente superior à do BPI, porque entrava para a Caixa como vice-presidente, e no BPI era só administrador.

Mas não foi isso que me motivou. Já tinha a reforma de ministro, dava-me para viver. O que me motivou foi a perspectiva de poder vir a ser presidente da Caixa – o que a senhora me deu a perceber. Chegou ao fim, chama-me lá, explica-me o modelo de gestão da Caixa. Oiço tudo, digo que não aceito, e a senhora diz-me uma frase que nunca mais lhe perdoo: “Então isto é uma grande promoção e o senhor ainda refila?”. Esquece-se que me tinha pedido para aguentar aquilo que o Prof. António de Sousa não aguentava e ainda me ofende? Nesse dia acabaram as relações com ela. Até hoje. Está a ver a diferença entre ela e o Prof. Cavaco Silva, que, no dia em que nomeou o Catroga, soube-me gerir psicologicamente?

 

A pega é essa?

É esta frase, que é uma frase assassina. Depois queria-me ir embora, telefona-me o Barroso: “Vocês, as estrelas do PSD só nos dão chatices”. O Barroso a dar música. “Veja lá se chega a acordo com o Prof. António de Sousa”.

 

E porque é que andou, tão publicamente – ouviu-se muito cá fora – em contenda com o António de Sousa?

Lá fiz um acordo com o Prof. António de Sousa. Tinha de gerir toda a parte bancária e também tinha que ter a banca de investimentos. Ele aceitou que ficasse com a banca de investimentos, e ao fim de um mês rompeu o acordo comigo e tomou conta da banca de investimentos. Aí escrevi um papel para me ir embora. Só que o Barroso, entretanto, resolve ir para Bruxelas e fiquei em standby até ao próximo Governo. Quando entrou o Governo meti o papel.

Nesse momento achei, e acho ainda hoje, que nos dez anos do Governo, nos 20 anos que estive a ajudar o PSD, tinha trabalhado com gente que não merecia toda a lealdade e dedicação com que trabalhei com eles. Quando me fazem isto na Caixa, senti que o cavaquismo tinha sido uma facada nas costas, que tinha perdido 20 anos da minha vida.

 

São os dez anos de Governo e os dez anos a seguir?

Embora ao serviço do BPI, fui sempre ajudando o PSD. Senti: “Se não tenho vindo trabalhar com estes tipos estava na minha vida bancária, tinha muito mais dinheiro do que tenho hoje. Enganei-me com esta gente quando fui trabalhar para o Governo e para o PSD”. Fui insultado e enxovalhado nos jornais, chamaram-me tudo.

 

O assunto da sua reforma foi muito comentado.

Há pessoas com reformas superiores à minha e com toda a razão, tem a ver com o nível de vencimentos que cada um tem. Não tenho a maior soma do país, nem pouco mais ou menos, mas fui insultado. Nesse momento fui-me abaixo. Passei o pior ano da minha vida quando saí da Caixa, em Setembro de 2004. Há duas coisas que me valeram nessa altura, a minha filha e a minha casa de Cascais. A miúda andava no São João de Brito (agora já está na universidade), chegava a casa às seis da tarde e aparecia aos saltinhos, agarrada a mim: “Papá, tenho dúvidas, vem-me explicar a matemática e a física”. Era um bálsamo.

 

Foi pai tarde.

Fui, casei-me aos 35 e fui pai aos 44, sou pai, avô. Percebi o quão importante é ter uma família e uma miúda para me aguentar. Andava completamente despassarado.

 

Chegar a casa às seis e meia da tarde, neste contexto, é muito sintomático de não ter nem reconhecimento social nem um projecto entusiasmante.

Com esta cena fui para a prateleira do BPI, estava lá o dia todo e não fazia nenhum. Pegava no carro e ia para Cascais passear a pé no paredão ou andar de bicicleta na ciclovia, ou sentava-me a ver o mar. Andei um ano nisto. Se não fossem estas duas coisas tinha dado o berro, tinha entrado numa depressão profunda. Resolvi o problema de Cahora Bassa de graça, andei dois anos a negociar com os sul-africanos as tarifas para Cahora Bassa. Meti 900 milhões de dólares no Tesouro português sem lhes exigir um tostão. No mínimo deviam ter algum reconhecimento – que não tiveram – por mim.

 

Sentiu-se dorido porque não lhe estavam a reconhecer…

É mais do que isso. Se esta cena me acontecesse aos 40 anos, recuperava. Quando esta cena me acontece aos 59 anos de idade, já não tive tempo de recuperar. Este estado do espírito, vou com ele para a cova. Não sou o mesmo tipo que era antes disto. Deixei de ter disponibilidade para o PSD. Hoje a única disponibilidade que tenho é: se um líder do PSD, que seja amigo, com quem me dê bem, me telefone para dar umas opiniões, eu dou. Andar na lutar pelo PSD, não contem comigo para mais nada.

Quando o Dr. Luís Filipe Menezes ganhou o PSD, numa sexta-feira à noite, segunda-feira estava no Altis a jantar comigo. Queria que fosse vice-presidente da comissão política e ministro sombra das Finanças. Disse-lhe que não contassem comigo, porque não era o mesmo Luís Mira Amaral que conheciam antes da Caixa.

 

Nesse sentido, foi ouro sobre azul o contacto com os angolanos e com Américo Amorim. É o homem do BIC.

Que vem de onde? Enquanto administrador do BPI, era o CEO, embora não residente, do Banco de Fomento de Angola. Durante dois anos fui o responsável dos Bancos de Fomento de Angola e Moçambique. Ia lá todos os meses. O homem que geria o banco era o Dr. Fernando Teles. Quando o Sr. Américo Amorim e a Isabel dos Santos convidam o Dr. Fernando Teles para sair do Banco de Fomento e fazer um novo banco em Angola, (BIC Angola), e quando resolvem abrir em Portugal o BIC português, o Dr. Fernando Teles lembrou-se de mim. Dava-se muito bem comigo, dizia que era das pessoas com quem gostava de trabalhar no BPI. É por eles que volto a ter esta oportunidade que tenho hoje em dia. Acabo por ter sorte.

 

Mais do que tudo, isto deu-lhe um entusiasmo e um reconhecimento social que sentiu que perdeu com o episódio da Caixa?

Aos 65 anos não tenho as ambições que tinha aos 50. As ambições que tive: podia ter sido ministro das Finanças, podia ter sido presidente da Caixa, da EDP, da PT, da GALP, podia ter sido isso tudo, não tinha menos competência que os que lá têm andado. O bloco central político-financeiro que manda no país nunca me quis dar essas oportunidades.

 

Porquê?

Porque não sou um yes man. O que eles querem é gente que alinhe com eles sem lhes criar ondas. Não tive nada disso. A partir dos 60 não tinha as ambições que tinha tido. Tive a sorte de os meus accionistas do BIC me convidarem para formar um novo banco. Foi uma tarefa apaixonante, coisa que nunca tinha feito. Em 11 de Janeiro de 2008 deram-me os cheques para a mão e disseram: “Faça o banco”.

 

Quem é que lhe disse isso?

Américo Amorim, Fernando Teles e Isabel dos Santos, na constituição da sociedade. Em Maio de 2008 tínhamos o banco a funcionar. Em 2008 ainda tivemos saldo negativo. Em 2009 já deu um pequeno lucro. E em 2010 vem a ter um lucro maior, apesar das dificuldades do país.

 

Ambições políticas, nenhumas?

Já não tenho nenhumas ambições políticas. Estou à frente de um banco a fazer o que gosto. Estou satisfeito e tranquilo com o que faço, com três accionistas impecáveis que nos deixam (à comissão executiva) gerir o banco. Tenho uma equipa com colegas impecáveis. Ultrapassei toda essa fase do vazio, mas não ultrapassei a mágoa e o ressentimento pelos líderes do PSD. Só há três pessoas a que estou grato, e não esqueço: José Sócrates, António Guterres e Luís Filipe Menezes.

 

Dois socialistas em três homens políticos.

Nenhum deles me deve nada politicamente. José Sócrates telefona-me quando faz o acordo de Cahora Bassa a dizer: “Sei que isto é possível graças ao seu trabalho”. Leva-me a Moçambique, em público, em frente do Governo moçambicano, faz-me um grande elogio – que eu tinha sido decisivo para o acordo. Estou farto de o criticar com a política económica actual, mas não me posso esquecer disto. António Guterres, sempre me elogiou: “Gostava que fosse meu ministro”. E o Luís Filipe Menezes diz em público que eu seria o ministro das Finanças ideal. Dos outros todos não digo isto.

 

Houve uma fase da sua vida em que estava muito nos jornais, disse que foi vilipendiado. Porque é que acha que suscita esta reacção junto da opinião pública?

Modéstia à parte, acho que trabalhar para o Governo foi marcante. Ainda há pouco tempo fizeram um inquérito no Expresso, para saber quem eram os dois melhores ministros das Finanças e da Economia da democracia portuguesa. Fui eleito junto ao meu amigo Miguel Cadilhe, como ministro das Finanças, e eu como ministro da Economia – coisa que nem fui, só fui da Indústria. Acho que marquei em termos empresariais. Sou um alvo fácil para um país de inveja, de coisas menores. Não sou politicamente correcto. Sou franco, aberto.

 

É uma pessoa de frases simples e directas – descreve-o assim Miguel Cadilhe no prefácio do seu livro E Depois da Crise?.

É meu amigo. Eu era mestre em Economia e quando chegava ao conselho de ministros tinha a mania que sabia de Economia, que era o único ministro em condições de discutir a política económica e financeira com o Dr. Miguel Cadilhe.

 

Nunca se sentiu inseguro na vida?

Senti-me inseguro em dois momentos. Quando saí do Governo e regressei à banca. Tinha estado dez anos sem lá estar, e vi tipos mais novos que eu, que sabiam mais da matéria. A tal angústia do tipo que não é político profissional (andei a perder o meu tempo e não domino os assuntos como dominava). E depois da cena da Caixa, em que o mundo que tinha construído, trabalhando para gente que achava que era do meu partido, tinha desabado.

Um ano depois da Caixa, uma senhora que ia no eléctrico, pôs a cabeça de fora e começou a insultar-me: “Vocês é que deram cabo das finanças públicas com as reformas que têm”. Paguei para a minha reforma, as reformas têm base contributiva, isto não caiu de borla, não é? Ainda há dias na televisão, o Louçã fez demagogia sobre mim. O que tenho de reforma, não devo ao Estado português, é o que qualquer cidadão teria, com os ordenados que eu tinha, com o que descontei. Pode dizer que devo ao PSD uma notoriedade pública que não teria se não estivesse no Governo. E o apreço da classe empresarial.

 

E contactos. Com uma agenda faz-se negócio, e a notoriedade nos contactos também vem desses dez anos.

Se estivemos a fazer um trabalho leal e honesto, porque é que se há-de preocupar de ter essa notoriedade e esses contactos?

 

Onde é que aprendeu a fazer negócios? Com quem e em que circunstâncias aprendeu a fazer negócios?

Aprendi nos tempos do Banco de Fomento, e sobretudo nos tempos do BPI. Quando saí do Governo reaprendi tudo. O BPI é um grupo financeiro fabuloso.

 

Uma última pergunta: porque é que fala tão depressa?

É do entusiasmo. Tenho algum entusiasmo no que digo. Uma vez no Brasil falei depressa e na televisão ninguém me percebeu.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

Patrícia Muller

21.02.14

É a autora das novelas de maior audiência em Portugal. Podia ser uma actriz das novelas de maior audiência em Portugal. Bonita, elegante, loura. Patrícia Muller assinou Mar de Paixão, na TVI, os primeiros episódios de Deixa que te Leve, escreveu a série cómica Ele é Ela. Mudou-se para a SIC recentemente, escreve a novela da noite Rosa Fogo. Coordena uma equipa de três pessoas que escrevem com ela um ano de episódios diários.

Fala muito depressa, tem um discurso torrencial. Dir-se-ia caótica, mas vive numa casa especialmente arrumada. Estudou Comunicação Social. Passou há pouco dos 30. Diz que tem orgulho na sua biblioteca e no seu armário.

 

Personagem Patrícia Muller: como é que a apresentaríamos? Façamos de conta que é preciso passar o essencial dela a uma actriz que lhe vai dar corpo.

É uma pergunta difícil, mesmo difícil. Há a que fica aqui em casa. (Este trabalho é muito solitário e ocupa muito do meu tempo. A parte profissional é também quem eu sou.) Há a que tem um filho, sítios onde ir, a vidinha normal. Uma mina a outra. Sou uma dramática furiosa em qualquer momento da minha vida.

 

O que é que faz desta pessoa/personagem uma dramática furiosa?

Não sei. Não sei se nasci assim, se a ficção teve tanta importância que, não só definiu o meu percurso profissional, como formatou quem eu sou. Eu não brincava. Não desenhava (os meus pais são ambos arquitectos). Li tudo o que havia para ler. A construção de histórias, a definição de estereótipos de personagens, toda a maneira de encarar a realidade, entrou por via da leitura. Tinha 14 anos quando li O Primo Basílio. Achei-o erótico. Não me esqueço da Luísa, à espera do amante, com a empregada… De cada vez que vejo alguém com um grande decote, penso nos “seios arfantes” da personagem do Eça.

 

E como é a família? É fácil pensar que a dramática furiosa deriva daí também…

Tive muita sorte. A família é uma âncora importante. Pais separados. Mas exemplos de estabilidade. Sempre me motivaram a que fizesse o que queria. (Mesmo que seja uma trabalhadora independente, a recibos verdes. O trabalhinho das nove às cinco, nunca tive.) Há uma ligação constante, diária. A minha mãe vive em frente, a minha avó vive na esquina. Fazemos um triângulo.

Há uma enorme intrusão. Ambiente muito feminino.

 

Mãe cúmplice.

Muito cúmplice. Tem mais vinte anos do que eu.

 

Era fascinada pelo mundo dos adultos?, queria crescer depressa, ouvir as conversas?

Não. Não sei se alguma vez quis crescer. Ainda hoje, não quero. Detesto fazer anos. Idealmente teria sempre 26 anos. Sou avessa a mudanças. E talvez por isso a ficção.

 

Porque a controla?, controla as eventuais mudanças?

Na ficção há uma realidade que construo. Com um princípio, um meio e um fim. (Não é uma coisa muito artística. Há ideias muito boas, maneiras engenhosas, regras. Não existe a coisa da inspiração que jorra…) A ficção não se desfaz, é imutável e perene.

 

O que a angustia é o fim em aberto?

Provavelmente. A realidade bate na cara com uma força imprevisível.

 

Fernando Pessoa escreve no Livro do Desassossego: “A minha vida é como se me batessem com ela”. A ficção não bate.

A ficção é uma coisa que eu modelo. Na vida, como é que se faz isso? Acontecem-nos as coisas mais bizarras, as maiores estranhezas! Eu não tenho uma alma aventureira. Tenho um pensamento louco. O imprevisto assusta-me. Sou uma pessoa que tem os mesmos amigos há 30 anos.

 

Quer que a sua narrativa seja, não uma coisa empolgante de se ler, mas de se viver. Voltamos à personagem por onde começámos. O que escolhe para si?

Acima de tudo, que faça sentido. Coerência. Não estou a falar de justificações foleiras para os actos. Mas de um percurso forte, lógico, válido. Que na narrativa as acções não sejam mesquinhas, pequenas. Num bom sentido. Não num sentido católico. Mas num sentido harmónico. Que se olhe e se diga: isto está no sítio certo. Há pessoas que vivem para o conflito. Eu detesto.

 

Sabe, nem que seja pela experiência profissional, que as personagens são tão mais ricas quanto mais contrastadas forem. Como é que se constrói uma personagem pela qual se tem fascínio e isso é, ao mesmo tempo, uma coisa com a qual convive bem?

Esse é o meu grande drama. Porque depois, a minha vida é como se me batessem com ela. Porque depois há o conflito entre as coisas como elas são e as coisas como eu gostaria que fossem.

Passo o dia a pensar a vida de outros que não existem fora de mim. A certa altura, penso na minha vida como se pensasse a vida de outros. Acabo por criar a minha personagem como se fosse uma personagem de ficção. Quando a vida me bate, essa personagem é confrontada com coisas absurdas. Lido mal com a surpresa. A criatividade é uma coisa incandescente, da imaturidade. A criatividade não lida bem com a contrariedade.

 

Enquanto autora, que temas dominam, mais do que tudo, as suas novelas?

As relações mãe-filha. Perdas. A morte. O amor, sim. Interessa-me mais o amor de uma mãe por um filho do que de um homem por uma mulher. A família. Ando a ler o guião do Ingmar Bergman do Fanny e Alexander, sobre os dois miúdos e a mãe, e é o tipo de universo que adoro. Porquê estes temas? Gosto de auscultar-me nas minhas relações pessoais; porque é que fiz isto e não fiz aquilo. Mas não em relação ao trabalho.

 

O amor e o sexo são omnipresentes numa novela. Não falou disso.

Amor e sexo estão relacionados com tudo. Faço uma ficha para cada personagem onde trabalho vários aspectos. A parte prática; onde nasceu, quem são os pais, o que é que fazem. A seguir, a parte emocional; que traços físicos, psicológicos. Como é que ela/ele encara o sexo?, o amor?; que experiência teve? Entra em qualquer personagem, faz parte dos ingredientes básicos. Como ainda hoje me dizia a rapariga que me arranja as unhas: “Uma novela sem triângulo amoroso não é uma novela!”.

 

Como é que se constrói uma novela? Há uma história principal, com um certo número de personagens, um conjunto de histórias subsidiárias, a correr em paralelo…

Posso concretizar a partir desta última, Rosa Fogo. A ideia surgiu-me quando li no jornal a história de uma mulher que vai desbaratando a sua fortuna com um homem que se aproxima dela.

 

Uma ideia decalcada do caso L’Oreal? Há na suposta relação de Liliane Bettencourt com aquele homem várias assimetrias (de faixa etária, de capacidade financeira). Um investimento interesseiro numa relação amorosa é um tema palpitante.

Era. Os ingredientes estão lá todos. Dramaticamente é muito complexo. Mas não basta ter ingredientes palpitantes – senão teríamos “homem matou mulher por causa de café”. Há uma velhota dona de um grande império que vê o seu mundo abalado pela entrada de um homem que se diz seu filho. Há 50 anos, de facto, ela abandonou um filho. Qualquer pessoa em casa pensa: “Isto podia acontecer-me”. Fantasioso, mas não demasiado irreal. (O caso da Maddie e do Rui Pedro comprovam-no. Imagine que o Rui Pedro, ao cabo de 20 anos, voltava para a mãe.) O cunho novela: ele não é o filho dela, é um impostor que quer o dinheiro dela.

 

Tem à partida apenas o traço grosso da novela? Os personagens ganham uma definição, um traço fino, apenas na escrita?

A base está pré-definida. Mas são muitos episódios, quase um ano no ar. Trabalhamos com 35 personagens que têm percursos que vamos delineando à medida que o tempo passa.

 

Essencialmente há duas dimensões nas novelas. A do sonho que distancia as pessoas da realidade. E a do reconhecimento que faz que as pessoas sintam que aquilo lhes podia acontecer. Com qual se identifica mais?

As novelas dão-nos elementos identificadores da nossa cultura. É por isso, creio, que as novelas portuguesas funcionam tão bem em Portugal. Jogo sempre com o sonho e com o espelho. Dou um upgrade na vida das pessoas, fazendo-as sentir que aquilo era possível.

 

Escreve a pensar em determinados actores? Tem algum papel decisório nisso?

Depende. Tenho tido sorte, quer na TVI quer na SIC. Chamam-me. Mas obviamente não sou eu que tenho a decisão final. É sempre a estação. Nesta novela tenho um elenco fabuloso. Tenho actores que as pessoas reconhecem muito. O cenário é importante. O que vem antes da novela é importante (se passar um telejornal é uma coisa, se passar um reality show é outra). É incrível analisar o comportamento dos produtos que assino de acordo com os meios e condições em que são apresentados.

 

A sua equipa é constituída por quantas pessoas?

Trabalho com três pessoas (Na ficha técnica aparece: uma novela de Patrícia Muller, escrita com…) Reunimos todas as semanas e fazemos um plano para cada personagem para cinco episódios. Estruturar todos os personagens, que interagem, é complicadíssimo. É um puzzle de 35 peças que estão sempre a mudar em cada episódio.

 

Quais são as suas referências? Tem na estante Nelson Rodrigues, que tinha uma alma folhetinesca, ou séries com o Mad Men. Isto aparece no que escreve?

Nelson e Tennessee Williams são os meus dramaturgos favoritos.

 

Nos dois, tudo está à flor da pele. Há um exacerbar dos sentimentos. A pulsão sexual é central.

São dramáticos furiosos! No cinema, Douglas Sirk e Fassbinder. São as minhas grandes referências.

 

Aprendeu mais sobre as pessoas nos livros ou observando à sua volta?

Para a construção de personagens? Tenho aprendido a olhar. Sobretudo desde que o meu filho nasceu.

 

Falou da caracterização física de uma personagem. Que importância teve na sua construção enquanto pessoa ser uma mulher bonita, elegante e loura?

Sou excessivamente vaidosa! Sou muito insegura, também. Nunca acho que estou bem. Tenho quilos de roupa. Vou imenso ao ginásio, tenho cuidado com o que como, com a maneira como me apresento. Tenho preocupação com o impacto que causo nos outros. A minha mãe está-me sempre a dizer que não devia vestir-me como n’ Os morangos com Açúcar. Como tenho pavor de envelhecer… Como tenho pavor da morte. Quem é que ia ao meu funeral se eu morresse? Escrevi isto uma vez num filme.

 

Apontou a morte e a perda como temas constantes das suas novelas. Quem foram as suas perdas?

O meu avô, de quem eu gostava muito, morreu quando eu tinha oito anos. Tenho muitas memórias dele. Tenho uma memória na praia. Um rapaz magoou-me nas costas. Nem me magoou muito. O meu avô, que era enorme, levantou-se, e foi comigo refilar com o rapaz. A sensação de conforto e protecção que tive… Penso nesse momento variadíssimas vezes. Não me esqueço de quando a minha mãe me disse que ele tinha morrido – estava numa cama com o meu irmãos e os meus primos. “O avô foi para o céu”. Foi um dos diálogos desta novela, a miúda não percebe como é que a mãe foi para o céu…  

 

Que pessoa era você com 26 anos?

Engravidei. Vou fazer 33 anos no mês que vem. A entrada do Manel foi a mudança mais radical da minha vida. Foi ter que ser atenta, responsável em relação a alguém. Agora já não sou eu que importo.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2011

 

Sabiá

21.02.14

Fevereiro em Londres, neve, nem cinco da manhã. Estação de metro. O primeiro comboio era afinal às 5.45. Esperei quieta, sozinha, sem medo. Fiquei a ouvir os pássaros, que cantavam maravilhosamente. Pássaros nocturnos, num cenário branco. Irreal, de certa maneira. O tipo de coisa que não se pode esquecer. 
Eu paro para ouvir os pássaros. Se não tivesse ouvidos para os ouvir é que seria triste. 
Por causa do Tom Jobim, gosto de urubus e, sobretudo, de sabiás. 
Por causa dele, esta é a minha canção: 
http://www.youtube.com/watch?v=J9dOtQ6tK_k

 

 

Jacinto Nunes

20.02.14

Liguei num dia à tarde, na semana passada. Encontrámo-nos passados dois dias, estava uma luz cálida de Inverno. Em pano de fundo: o país na iminência de implodir, um horizonte temporal em que todas as soluções políticas pareciam possíveis, Sócrates, Passos, Cavaco, o PEC. Mas do que falámos foi do seu percurso académico e político. E daquele que se lembra do nome das professoras, que vivia num último andar no Campo Santana e que veio na primeira página do jornal quando se doutorou com 19.

Uma viagem ao passado.

Pelo meio há conversas com Salazar, a recordação das redacções primorosas de Cardoso Pires (o Pim!), detalhação do percurso e da obra, a relação com a Junta de Salvação Nacional. O que fica quando tudo arde?

Jacinto Nunes tem 85 anos. Tem uma filha. Quando se olhar para o século XX português e para a história da Economia no nosso país, o nome dele consta. 

 

 

Está óptimo para a idade que tem.

Sinto-me bem, de cabeça e fisicamente. Há um joelho que tem umas quebras no Inverno, mas é normal os [problemas] reumáticos apareceram com a idade.

 

Quase não tem rugas aos 85 anos. De quem herdou isso?

Tenho muita gordura na pele [riso], a gordura conserva, evita as rugas.

 

Pergunto-lhe pela genealogia e responde-me com a genética. Há alguém na sua família a quem saia?

À minha mãe, também tinha a pele boa. Morreu mais cedo, aos 74.

 

O tópico da idade serve de intróito para falar de uma coisa importante: já viveu muito, já viveu muitos momentos importantes na vida do país.

Com 85 anos já passei o prazo de validade. É como os remédios. Tive uma vida longa.

 

Nasceu em 1926. Como era a vida então? O que é que recorda?

Fiz a instrução primária num colégio particular onde tinha estado a minha irmã, mas depois estive doente, queimei-me, perdi um ano, e fui para a escola oficial. A 37, onde hoje é a Universidade Autónoma. Ali havia gente muito modesta a quem davam uma refeição a meio da manhã. Eu não comia lá, vinha almoçar a casa. Depois fui para o Liceu Camões. Era um aluno mediano, tinha 12, 13. A partir do 4º ano tive uma professora de Matemática que me influenciou e que mudou tudo. Ofélia Azinheira.

 

Antes de falarmos dessa professora gostava de perceber melhor que enquadramento social e familiar era o seu.

A escola particular era cara e os meus pais eram modestos.O meu pai era motorista de uma senhora que morava no mesmo prédio. Uma coisa importante é que, nos prédios, ali no Campo Santana, não havia a segregação social que há hoje. No 1º andar moravam pessoas muito ricas, no 2º um pouco menos ricas, no 3º, modestas, e no último andar, mais modestas. Morava no 4º andar.

 

Por isso é que as pessoas mais ricas viviam no 1º andar, porque não tinham de subir escadas.

Evidente. Havia comunicação, não havia segregação, as pessoas eram corteses umas com as outras.

 

Mas cada uma sabia o seu lugar, ou não?

Não havia discriminação nem rivalidades. As pessoas aceitavam o seu estatuto. Os vizinhos cumprimentavam-me. Às vezes até ia para casa de alguns. O do 3º andar deu-me lições de inglês. Era um senhor que estava doente.

 

Isso já me responde um pouco a uma pergunta que trazia: como é que aprendeu inglês para, mais tarde, negociar o Plano Marshall. Começou aí?

De pequeno aprendi alguma coisa com esse vizinho, o Sr. Alçada. E depois no liceu.

 

Estava a contar de os seus pais terem feito um esforço no sentido de o pôr no colégio.

Estive uns oito meses em casa porque entornei uma cafeteira de café a ferver na barriga. E não sarava. Enfraqueci, tive de tomar aquelas coisas que se tomavam na altura, óleo de fígado de bacalhau, horrível. A minha doença também provocou mais despesas e fui para a escola pública. Em casa tínhamos um nível melhor do que muita gente que andava nessa escola.

 

Intelectual e de vida?

Sim, mesmo de vida.

 

Então os seus pais perceberam cedo que era importante investir na vossa educação, por isso o esforço do colégio.

No liceu consegui isenção de propinas, nunca paguei. Os rendimentos eram baixos. No 7º ano até tive uma bolsa de 300 escudos por mês. Fazia jeito.

 

A sua mãe, com o seu pai, acreditava na importância capital da educação? Isto nos anos 30.

A minha mãe era fortemente activa. A minha irmã foi para uma escola industrial de artes decorativas. Assustaram os meus pais, uns maus amigos, com o custo do liceu. Mas quando chegou a minha altura, a minha mãe, com muita força, disse: “Ele vai mesmo para o liceu”. Havia uma certa discriminação entre o liceu e o ensino industrial. A minha mãe gostava muito de Júlio Dinis e Camilo. Obrigava-nos à noite a ler, depois do jantar.

 

Um mais inflamado do que o outro. A sua mãe e o seu pai. Júlio Dinis e Camilo.

A minha mãe era mais inflamada. Líamos o Diário de Lisboa. Estava sempre à espera que o meu pai chegasse a casa porque havia umas crónicas do Joaquim Manso, o director, de que gostava muito. Mais tarde começou a aparecer o rádio. A minha mãe era uma mulher inteligente e muito rígida do ponto de vista da moralidade. Não podíamos pisar o risco. Era católica, ia à missa, mas não se confessava. Íamos à missa todos os domingos, eu confessava-me e comungava, ela não. Muito afeiçoada, muito terna para nós, mas muito severa.

 

Teria tido o percurso profissional que teve se não fosse a sua mãe?

A minha mãe morreu quando entrei para o Banco de Portugal em 1960. Acabei o liceu, fui para Económicas, trabalhei no ministério da Economia, fui assistente, fui sub-secretário do Tesouro. E quando saí, uns meses depois, fui para o Banco de Portugal. A minha mãe ainda soube que ia para lá. Tinha um grande orgulho em mim, é verdade.

Mas o meu pai também estava de acordo com a minha ida para o liceu. Acabei com boas notas e acharam que devia continuar, fui para a faculdade.

 

Lembra-se muito, nestes anos da velhice, da sua infância, do seu pai, da sua mãe, do seu percurso?

Lembro. Quando falo dos meus pais é sempre com saudade, mas não vivo virado para o passado. Tenho uma filha de que gosto muito. Vivo para a minha filha. Não é parva de todo, já fez o seu doutoramento, dá aulas na universidade e é tradutora, nos tribunais; vive na Alemanha.

 

Quando é que as línguas foram essenciais na sua vida, na sua carreira? Frequentemente trabalhou com estrangeiros.

Fui para o Instituto Francês, aprendi muito bem. No ministério da Economia, o meu primeiro emprego, passava metade do tempo em Paris e metade em Lisboa, por causa do Plano Marshall. Depois passei para o inglês, porque os livros para o doutoramento eram todos em inglês. Tínhamos um grande embaixador em Portugal no Plano Marshall, o Teixeira Guerra, um homem de grande nível.

 

Começou a sua carreira como professor, em 1948.

Três professores convidaram-me para assistente e escolhi Estatística, com o Eng. Leite Pinto. Tive um professor de Contabilidade que teve a gentileza de me dizer esta graça, depois de ter tido a melhor nota na teoria: “Para o Sr. Prof. Gonçalves da Silva o senhor é o melhor aluno, para mim não é”. E eu, com uma calma, disse: “Opiniões Sr. Dr.”. No último exame, de Contabilidade Bancária, fui o único que fez o ponto todo certo. Chegou ao pé de mim e disse: “Agora é que você me convenceu”. “Demorou três anos”.

 

Não duvidava de si, confiava nas suas capacidades?

Não tinha medo dos exames. Não era estúpido, mas estudava. Nos primeiros anos brincava muito no jardim do Campo Santana, mas estudava, e não estudava só nas vésperas do exame.

 

Quando é que passou a ser um aluno brilhante?

A partir do 4º ano do liceu fui, quando encontrei a tal professora. Depois tornei-me mais sisudo e sério, mas nessa altura era traquina. A professora estava a dar Geometria, e um colega estava a desinquietar-me; ela disse: “Não distraia o Nunes porque ele interessa-se por estas coisas”. Parece uma frase insignificante, mas foi para mim um toque.

 

Tanto que não se esqueceu dela.

Nunca. Nem sequer era bonita.

 

É engraçada que o note.

No 2º ano perguntou-me a Ilda Ribeiro, professora e Português, quanto é que eu queria pelas minhas pestanas (parece que tinha pestanas grandes). Essa deixou-me encarnado, mas esta não era bonita.

Senti que tinha para com a professora de Matemática um dever de corresponder ao que ela me tinha dito. Comecei a estudar, e também todas as outras disciplinas, com mais afinco.

 

Eis uma frase banal que mudou a sua vida.

É verdade. Por isso a cito num livrito de memórias que fiz, ao correr da pena. Tinha um colega, o Santos Fernandes, que foi para engenharia, depois teve um desgosto amoroso e foi para padre.

 

Ter um desgosto amoroso e ir para padre é um como, no Amor de Perdição, Teresa ter um desgosto de amor e recolher ao convento.

O pai dele era engenheiro na CUF, tinha uma biblioteca extraordinária. Nas férias ia a casa dele, levava duas malas e enchia-as de livros. Li tudo, Herculano, Ramalho. Do Oliveira Martins tenho 20 ou 30 livros, li tudo. Li o Aquilino à medida que ia saindo, e há uns anos resolvi reler. Li a Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira. O José Cardoso Pires, que até me ofereceu alguns, era meu colega de curso.

 

Que memória tem dele?

Era o Pim. Foi meu colega de curso porque chumbou um ano. Um dia, passados anos, já estava casado, morava na Infante Santo, vou abrir a minha porta e vejo um fulano que estava a tocar a campainha. “O senhor para que andar vai?”, “Vou para o Abel Manta”. O pintor Abel Manta era meu vizinho e o filho era o João, tenho aí muitos livros dele. “Eh pá, és o Pim”, “Sou o José Cardoso Pires”. Já no liceu fazia umas redacções primorosamente escritas, de tal modo que a professora, Carolina Valente da Costa, mandava-o ler em voz alta. Eu lia livros do José Cardoso Pires, mas não julgava que era o Pim. Reatámos uma amizade. A mulher dele, a Edite, gostava muito de moedas; quando estava no Banco de Portugal dava-lhe sempre moedas comemorativas. Ele ofereceu-me os livros; A Cartilha do Marialva diz assim: “Estas enormidades, para tu leres”.

 

Essas enormidades eram a má vida do Cardoso Pires? Nunca teve uma fase de desvario na sua vida? Nunca se permitiu a irresponsabilidade?

[muito sério] Não. Detesto as pessoas irresponsáveis. Nunca me meti verdadeiramente na política porque às vezes as pessoas têm que fazer coisas que desrespeitam a respeitabilidade. Fiz uma vida normal do ponto de vista dos comportamentos. Mas dava-me muito com artistas.

 

Porquê Economia?

Por acidente. No meu tempo, a faculdade de Medicina e a faculdade de Direito eram no Campo Santana, e eu brincava no jardim. Os estudantes andavam por ali, sentavam-se na relva. O meu pai conhecia pessoas, eu conhecia os professores, os estudantes diziam: “Aquele é o Montenegro”. Direito: ser juiz fazia-me uma aflição tremenda – julgar os outros. Advogado, também me fazia confusão – tem de defender um acusado, quanto mais não seja para lhe aliviar a pena. Por outro lado gostava muito de Matemática, tinha sempre 19. Fui para Económicas, que não me dizia nada. Os meus pais aceitaram; depois que comecei a ser um aluno destacado, tinham uma certa consideração por mim.

 

Já era assim sério e sisudo? Quando é passou a ser sério e sisudo?

Ainda tenho um bocadinho de ironia. Às vezes sou um bocadinho sarcástico. Depois arrependo-me. A estupidez é uma coisa que me irrita [riso]. Não é azedume, sou mesmo cáustico. Mas evito. Gosto de agradar e ser simpático com as pessoas, e consigo. Mesmo com os alunos. Fui 20 anos professor no Instituto de Altos Estudos Militares, dois anos no Técnico, um ano na Universidade Católica; nunca tive problemas com alunos. Mesmo naqueles períodos de 1968. Queimei os dedos todos a fechar a Associação Académica para a polícia não entrar lá.

 

Antes disso, esteve na grande convulsão académica de 1961.

Às vezes iam às aulas fazer comunicados e eu deixava. Nessa altura os discursos eram intervalados por “pá”. “Vê lá se não dizes tantos “pá”, fala direito”. Queimei os dedos a lacrar as instalações onde a Associação Académica tinha papéis.

Quando fui presidente da Associação Académica fiz uma cantina em Económicas, que não tinha, consegui que o ministério das Obras Públicas e o Dr. Perdigão me dessem dinheiro, nacionalizei as folhas (aquilo era um negócio e passou a ser a um preço mais barato).

 

Tinha essa preocupação com o social. Que derivava do quê?

Da minha formação. Talvez da minha origem. Nunca tive complexos com a origem. Há bocado disse-lhe a profissão do meu pai sem hesitações. Conto-lhe uma que lhe dá o sentido do social. No liceu fui da PREJEC, (porque era antes dos 14 anos), com o Duarte Abecassis. Quando chegou a altura de ir para a JEC [Juventude Escolar Católica], na minha freguesia abriu uma secção da JOC, Juventude Operária Católica. No liceu disse aos meus amigos: “Desculpem, mas vou para a JOC”. Andei a colar cartazes e a fugir da polícia.

 

A JOC era considerada do Reviralho, mais subversiva?

Não tinha ligações com o Reviralho, mas era não afecta ao regime. Pugnava muito pelo social. Trabalhei a acção social no bairro da Curraleira, ia aos fins-de-semana ensinar-lhes questões de higiene, jogar à bola com eles. Sou um liberal em Economia, desde que se tenha em atenção o social.

 

Como é que ganhou consciência política e cívica? Em casa, na escola, em discussões?

No liceu, pouco. O Antero era um homem que fazia uns colóquios e umas discussões que seguíamos com interesse, e o Campos. Eram duas personalidades de que ainda me lembro. Reuníamos numa sacristia da Igreja do Coração de Jesus. E lia muita coisa. Uma obra que me marcou um bocadinho foi a do Trindade Salgueiro, um homem que foi arcebispo de Évora. Perdi a fé aos 16 anos. Falei-lhe da Carolina Valente da Costa; era muito minha amiga e eu amigo dela. Quando saíamos juntos do liceu acompanhava-a, falávamos.

 

Essa era bonita?

Não era feia, mas era mais velha que eu. Era uma mulher de 40 e muitos e eu tinha 16 ou 17 anos. Discutíamos problemas religiosos e sociais. Era uma óptima professora, às vezes dava-me uns livros para ler; o último que me deu foi A Imitação de Cristo. Não cheguei a acabá-lo, deixei de acreditar. Não tem explicação nenhuma. Fiquei aborrecido porque no centenário do Liceu Camões (fui um dos 100 escolhidos para figurar no livro), refere-se essa parte, que é uma coisa íntima. É uma coisa que sucede às pessoas, sucedeu-me. Perdi a fé. Continuo a ter uma ideia de Deus, mas de práticas religiosas…

 

Mas porquê? Passaram tantos anos.

Isso gostava eu de saber. Comecei a ler muitas coisas sobre ciência, sobre a formação do universo, e disse: “Isto não joga”. Mas respeito muito a Igreja. Até com o actual patriarca tive relações boas. Convidou-me para director da Faculdade de Ciências Empresariais da Universidade Católica, calcule. Disse-lhe que não era [católico], e ele disse-me: “Não tem de ser”.

 

Isto era a propósito da consciência social e política, e de como a adquiriu. Era uma dificuldade para si saber como lidar com o regime, como fazer a sua vida? Ainda agora disse que chegou a colar cartazes.

Considero isso uma espécie de brincadeira. Éramos uns rapazolas com 16, 17 anos, andávamos a fazer aquilo porque achávamos que era preciso ter mais atenção a certos problemas. Mas não era uma coisa consciente.

 

Nunca fez acção política na oposição?

Não. Acusaram-me disso na Associação Académica, quando no Instituto fizemos a cantina. Acusavam-nos de ser de esquerda.

 

Isso foi enquanto aluno ou já como professor?

Enquanto aluno, nos últimos anos.

 

Como é que olhava nesses anos para Salazar? O que é que era para si o regime?

Não era uma coisa que me preocupasse muito, estava afastado. Havia uma coisa que continuo a dizer: na parte do reequilíbrio financeiro teve uma obra notável. De resto, da parte política, houve umas coisas…; sobretudo através dos meus contactos com o João Abel Manta, essa gente mais ligada à esquerda, ouvia esses relatos. Ainda me lembro da morte do Coelho, na Rua dos Lusíadas. Não gostava dessas coisas, mas não tomei posições políticas.

Admirava o Salazar, guardo ali a Reforma Tributária que fez, daquilo sabia, era um bom professor. Mais tarde vim a dar-me muito com o Prof. Teixeira Ribeiro, um homem de esquerda. Uma vez, quando estava no ministério das Finanças, como secretário, fizemos uma coisa sobre o imposto complementar, e queria alargar a taxa até 45 por cento; ele só queria 40 por cento. Dizia-lhe: “Você que é socialista só quer 40 por cento?”. Tal era o meu sentido de que era preciso repartir por aqueles que não tinham.

 

Porque é que nesses anos esteve menos ligado à política? A sua ligação à política não é constante, mas faz-se sobretudo numa fase posterior. Nos anos anteriores ao 25 de Abril, mais que tudo, a sua carreira é académica.

Não, fui sub-secretário do Tesouro de 1955 a 59, com o Prof. Pinto Barbosa. Mas o lugar de sub-secretário naquela altura, a não ser para aqueles que andavam na vida política, era puramente técnico. Nunca fiz um discurso, nunca pertenci à União Nacional, trabalhava. Fiz a reforma do crédito, a criação do Banco de Fomento Nacional, reformei os serviços da Casa da Moeda, uma reforma da Fazenda Pública. Em 1960 fui para o Banco de Portugal. Integrou-se o Fundo de Fomento Nacional no banco que se criou. O Dr. Rafael Duque achava que eu era um rapazinho novo mas que levava as coisas a sério. Houve uma vaga no Banco de Portugal e convidou-me para ir para lá.

 

Insisto: porque é que acha que a questão política não o atraiu especialmente?

Ainda tentei uma vez. Às vezes tinha umas tentações de me interessar mais por isso. Lembra-me que tentei entrar para a SEDES, falei ao João Salgueiro. Do Centro Nacional de Cultura, a Helena Vaz da Silva falou-me várias vezes. Talvez haja um pouco de preguiça. Ou uma certa relutância em envolver-me. Gosto pouco de estar regimentado. Por isso é que nunca aderi a nenhum partido político, nem antes nem depois do 25 de Abril. Sou um pouco individualista. Não me agrada ter disciplina, obrigações. Sou muito amigo da minha independência, da minha liberdade.

 

Doutorou-se em 1957, tinha 31 anos. Eram poucas as pessoas que se doutoravam, e tão novas.

Formei-me com 21 anos, ainda levei nove anos para fazer a dissertação. Atrasei-me um bocadinho, que já tinha a tese bastante adiantada quando fui para o ministério; lá, tinha que me levantar cedo e aproveitar os fins-de-semana para concluir a tese.

 

Nota: 19. Foi um grande acontecimento?

Naquela altura foi. Vim na 1ª página do Diário de Notícias, com o resultado e com fotografia. Os jornais davam relevo a essas coisas. Não era por ser sub-secretário. Dava-se relevo.

 

O que é que representou para si ter 19 no doutoramento?

Creio que as provas me correram bem. O Prof. Teixeira Ribeiro, de Coimbra, que era considerado uma fera, implacável (houve um professor que saiu a chorar depois das coisas que ele lhe disse na prova), quando acabei, disse-me estas palavras, ficou toda a gente abismada: “O senhor acaba de mostrar que pode vir a ser um grande professor”. Não disse que era. Que acabava de mostrar com a lição que podia vir a ser um grande professor. Pensei: “Vou ter uma classificação boa”. Não estava à espera do 19.

 

Porque é que o comove falar disso?

Não me comove. Considero dos maiores elogios que tive na vida. Era um homem, não direi intratável, depois dei-me com ele e dávamo-nos bem; conhecendo o que ele era, era um elogio pouco comum.

 

Foi nessa altura que teve a noção de que tinha um belo futuro à sua frente, ou já antes tinha essa noção?

Pensei que tinha a carreira de docente assegurada, mas não mais que isso. Não atribuí um significado especial. Fiquei satisfeito, mas foi uma satisfação quase momentânea.

 

A sua mãe ainda era viva, assistiu a essa consagração.

Para a minha mãe, era uma alegria enorme. Mas nunca o comentei com a minha mãe. Tenho a certeza de que ela deve ter falado nesse assunto, mas não comigo.

 

Era uma família que não falava muito sobre as suas coisas.

Sobre as nossas coisas, não. Ela tinha grande orgulho e prazer, mas connosco não falava. Comigo comentou, quando fui para o Banco de Portugal: “Sei que te estão a preparar o gabinete”. Foi a única conversa que tivemos.

 

Sabe que ela ficou orgulhosa porque sente ou porque outras pessoas lho disseram?

Sinto. Conhecendo a minha mãe como conhecia, de certeza que ficou satisfeita. E o meu pai também, mas ele era mais introvertido, manifestava menos as coisas.

 

Alguma vez ofereceu um presente à sua mãe, com o seu primeiro ordenado, uma coisa assim?

Ofereci-lhe uma telefonia [riso]. Não sei a propósito do que foi, uma Telefunken. Era uma telefonia bonita, grande. Não sei se foi quando fui para o Conselho. Fui para o Instituto e ao mesmo tempo para o ministério da Economia, onde ganhava bem. Ganhava um conto e 800 no Instituto, e quatro contos no ministério. Entrei com a Isabel Magalhães Colaço, que foi a primeira catedrática de Direito. Ao fim de um mês fomos os dois promovidos, porque fizemos um regulamento do comércio externo; andava lá há meses e ninguém era capaz de mexer naquilo.

 

Como é que fizeram isso?

Metemo-nos na repartição, vimos como é que funcionava, eu dizia as coisas numa linguagem que não era jurídica, e ela passava aquilo para técnica jurídica. O presidente, com medo que nos fôssemos embora – sabia-se cá fora que tínhamos feito obra – promoveu-nos ao fim de 40 dias. Foi em 1948, quando me formei.

 

O seu problema com a escassez de dinheiro ficou resolvido logo aí.

Logo. Para aquela altura, seis contos por mês, para um rapaz que acabou de se formar, era um óptimo ordenado. E ainda dava explicações de matemática. Depois fui para professor do Técnico, um conto e 800. Entretanto arranjaram-nos uma bolsa para fazermos o doutoramento no Instituto Nacional de Estatística. Eu, o Luís Teixeira Pinto e o Francisco Pereira de Moura. Ao mesmo fizemos um trabalho sobre a estrutura da economia portuguesa, um trabalho muito célebre, saiu em 1954. Passou a ser texto nas faculdades de Economia, toda a gente o adoptou para dar lições. Foi de tal modo que no Instituto de Estatística os funcionários não nos viam com grandes olhos. Não nos chamavam bolseiros, chamavam-nos “bolsistas”, ironicamente.

 

Tudo mudou quando o trabalho saiu.

Passámos a ser bolseiros, a ser cumprimentados, respeitadíssimos, viram que tínhamos estado dois anos a trabalhar. Nunca ganhei muito, mas ganhei sempre o suficiente para fazer uma vida sem preocupações. Mesmo no Banco de Portugal, como governador, ganhava pouco mais do que o sub-secretário do Tesouro. O Salazar não deixava. Havia tipos que faziam negócios, mas a ideia dele é que nestas funções era uma honra servir.

O Dr. Rafael Duque saiu do Banco por limite de idade. Fiquei três anos como vice-governador, mas a dirigir o Banco.

 

Porque é que não o nomeou?

Não me nomeou porque me convidou para ministro da Economia e disse-lhe que não. Ao fim dos três anos fiz-lhe um relatório do que tinha feito, e ele manda-me uma carta que começa: “Se eu tivesse tido a honra de desempenhar as funções que vossa excelência desempenhou, teria feito exactamente o que fez”. Altamente elogiosa.

 

Porque é que recusou ser ministro da Economia?

Disse-lhe que ele não me deixaria fazer o que queria fazer. Disse-me: “Queria fazer mal aos Champalimaud, aos Mello”. Disse-lhe: “Não quero fazer mal a ninguém”. Depois expliquei-lhe: “Não me importo de entrar numa corrida com poucas probabilidades de ganhar, mas à partida penso que vou ganhar. Sei que os outros corredores são muito bons e naturalmente não ganho. Agora, nesta corrida, à partida sei que perco”. Havia à volta do Governo um conjunto de interesses. Se fosse tocar nisso, era baldeado.

 

O interesse das grandes famílias, como ele dizia.

Ia pôr em ordem certas coisas que estavam nitidamente mal. Havia gente a ganhar dinheiro indevidamente, era preciso mexer nas indústrias, era preciso mexer com muitas coisas. Vi que não conseguia fazer. Havia de encontrar no caminho empecilhos que não me deixavam trabalhar. Pensei: “Isto é para me queimar, daqui a uns meses começam-me a fazer partidas e não consigo fazer nada do que quero”. Para ser ministro? Não tinha vaidades nem ambições políticas.

 

Mas é curioso, e voltando à sua origem, que não se tenha deixado envaidecer com a possibilidade de ser ministro.

Para mim não significava nada.

 

Como é que conheceu o Salazar?

A primeira vez que o vi foi quando tomei posse como secretário. Tomei posse no mesmo dia que o Baltazar Rebelo de Sousa, pai do Marcelo.

Trabalhei com ele na criação do Banco de Fomento, e aí até tivemos um problema. Há duas conversas engraçadas; uma foi sobre o regime de tabacos, embora não fosse do meu pelouro, era do Orçamento; mas o meu colega, Correia de Oliveira, andava sempre em Paris. O ministro estava doente e eu é que fui ao Salazar apresentar [o trabalho]. Obriguei a fazer fábricas novas, as fábricas velhas, que fui visitar, eram uma imundice. Mandei fazer um exame por pessoas habilitadas, no aspecto financeiro, contabilidade, lucros. Equipamentos velhos, condições péssimas. Pagavam 22 por cento, obriguei-as a pagar 27 – sabia que ganhavam bastante. Quando fui ao Salazar, vi que ficou agradado com as fábricas novas. Mas quando foi do imposto, diz-me assim: “Você julga que eles vão diminuir os lucros? Você é muito novo”. Então explicou-me como é que ganhavam dinheiro. Agradeci-lhe e disse: “O senhor é capaz de ter razão, mas faço o que posso”.

 

Lembra-se do que lhe explicou?

Que na compra das ramas do tabaco é que vinha o grande lucro. Davam um preço, mas metade ficava lá fora em nome dos compradores. “Aí você não pode fazer nada. Vamos receber mais um bocadinho, mas eles continuam a ganhar dinheiro”.

A outra coisa foi no Banco de Fomento. Havia dois projectos para o Banco, o do ministério das Finanças, que eu fiz, e o do Dr. Marcelo Caetano. Disse: “Fiz a lei bancária, nessa lei já está prevista a criação do Banco de Fomento, e agora o meu plano é atirado fora. Não aceito isto, vou-me embora”. O Salazar não tocou na lei bancária que fiz, só alterou um número de um artigo, tinha uma certa consideração por mim. Disse ao ministro para me dizer que o projecto que ia para a frente era meu, mas se me importava de receber o projecto do Dr. Marcelo Caetano para fazer alterações. Disse logo que sim, e aproveitei muito do projecto, mas fiz o meu. O Dr. Marcelo Caetano ficou um bocadinho [zangado]. Fomos a África mais tarde e fizemos as pazes. As minhas relações com o Salazar são estas.

 

O senhor era considerado do regime?

Não era considerado da direita do regime. O presidente Américo Thomaz recebia muitos ministros que iam a casa dele ao fim-de-semana, tomar chá. Nunca fui a essas reuniões. Havia outro grupo que ia com o Dr. Marcelo para a Choupana.

 

Não era convidado porque não era considerado?

Se quisesse ia, era só dizer que sim. Qualquer dos grupos me recebia. Tive uma oferta para ter uma moradia no Restelo e não quis.

 

Porque é que não quis?

Dever favores políticos? Aquilo era organizado, inscrevíamo-nos na Legião Naval, na Brigada Naval, e depois tínhamos os terrenos. Não quis dessas coisas.

 

Percebeu que ficaria a dever um favor político.

Queria a independência sempre.

 

É isso que lhe permite ser ministro das Finanças e vice-primeiro-ministro no IV governo constitucional, em 1978?

Fui demitido do Banco [de Portugal] no dia 29 de Maio de 1974. No dia seguinte, telefona-me o Palma Carlos a dizer que tinha de voltar, que era lá preciso. “Só se tiver um papel em como fui nomeado”, e mandou-mo a casa no dia 30 à noite. Dia 31 entrei no Banco com o papel no bolso e comecei a mandar, como vice-governador.

 

Como é que foi a sua convivência com Soares e com todo aquele grupo político no pós-revolução? Esteve em 1978 e 79 no Governo.

Em 1975 as pessoas estranharam muito. Aí é que pensaram que era ligado à esquerda. No 25 de Abril sou chamado à Junta de Salvação Nacional, para ser delegado do ministério das Finanças. Quem me chamou foi o General Spínola. Tinha trabalhado com ele na Siderurgia Nacional. O Galvão de Melo tinha sido meu aluno, o Costa Gomes tinha sido meu colega no Governo, conhecia os três muito bem. Disse que não. Daí a uma semana chamaram o Vieira de Almeida. E continuei a trabalhar com ele, não me importei nada. Fui para a Junta. Um dia trabalhei 17 horas seguidas, almoçando uma sandes de presunto na esquina. Disse: “Trabalho, mas responsabilidades políticas não quero.

 

Tinha sido também esse o seu posicionamento no Antigo Regime. Dizer sim à função, à tecnicidade, mas não ao comprometimento político.

Exactamente. Muitos dos oficiais que participaram naquilo tinham sido meus alunos no Instituto de Altos Estudos Militares. Conhecia o Firmino Miguel, o Loureiro dos Santos, aquela gente toda. Trataram-me muito bem. Como trabalhei lá, embora recusasse qualquer responsabilidade política, as pessoas pensaram que estava ligado ao movimento. O Dr. Marcelo Caetano disse nas suas memórias, infelizmente, que eu era uma das figuras que tinha destruído este país. Faz-me umas acusações... Não respondi. Ele estava no exílio e tinha consideração por ele, no fundo. Não tinha ligações políticas e vi logo que aquilo ia dar fita.

 

Como é que viu isso?

Passavam por mim e trocavam comentários. Os da direita dizendo mal dos da esquerda, os da esquerda dizendo mal dos da direita.

 

O seu posicionamento político era claro para aqueles com quem se dava, ou não?

Sabiam que era relativamente neutro.

 

Era possível ser “relativamente neutro” em anos tão quentes?

Era. Nunca tomei posição. Resolvia os assuntos de acordo com o que tecnicamente achava que eram as soluções correctas. Um dos revolucionários, que depois foi general, disse-me: “Sr. professor, as mulheres dos PIDE não receberam vencimento este mês. Consegue-se fazer alguma coisa?”. Telefonei para o director-geral da Contabilidade Pública, que não conhecia, e as mulheres foram pagas por intervenção de um major da esquerda. Uma coisa justíssima, as mulheres não tinham culpa. Devo dizer que fiz coisas ilegalíssimas, não tinha poderes para nada.

 

Em 1978/79, quem é que o convidou para ser vice primeiro-ministro?

O General Eanes.

 

Foi simultaneamente ministro das Finanças.

Sim. Mas antes disso tinha presidido a um grupo de trabalho que ele criou para fazer uma avaliação económica da situação – era o Dr. Mário Soares primeiro-ministro. Desse grupo fizeram parte o Silva Lopes, o Vítor Constâncio, o João Cravinho, o João Salgueiro e o Sousa Gomes, ministro da Economia. O Expresso chamava-nos ironicamente “o grupo dos sábios”. O General Eanes deve ter ficado bem impressionado com a forma como conduzi os trabalhos.

 

Gostou de ser ministro?

Não.

 

Foram poucos dias.

Quando fui convidado para ministro da Economia disse que não. Cinco anos mais tarde houve possibilidade de ser convidado para ministro das Finanças.

 

Ainda com Salazar.

Sim. Vou ser franco: estive tentado. Tive a tentação porque das Finanças gostava, e o ministério das Finanças tem muito mais poder para fazer coisas.

 

Também não o envaideceu a possibilidade do título de ministro das Finanças?

Não.

 

Não há nada que o envaideça? Com este currículo. Ou é um bocadinho como a sua mãe que assim a despachar vai fazendo uns comentários?

Tive uma condecoração brasileira. O Almeida Ribeiro, Procurador-Geral da Justiça, disse-me assim: “Você é um fulano que passa pelos lugares como quem pede desculpa de os ocupar”. Esta frase, ao princípio, chocou-me, mas depois percebi que tinha razão. Não atribuo grande importância aos lugares que ocupei. Ocupo-os com sentido de responsabilidade, mas não faço disso título de glória.

 

Não houve nada, olhando para o seu percurso e para as muitas coisas que conseguiu, que o tivesse envaidecido?

Ser professor catedrático [em 1963]. A carreira universitária.

Progredir na carreira universitária constituiu um objectivo. Ser ministro, não. Teria desgosto se não conseguisse chegar ao termo da carreira universitária. E com satisfação, cheguei. Não vaidade, mas satisfação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

Jacinto Nunes morreu no dia 14 de Julho de 2014

 

 

 

Inês de Medeiros

20.02.14

Inês de Medeiros tem trinta anos [entrevista de 98], é mãe do Pedro de um ano e meio, filha da jornalista Maria Armanda Passos e do Maestro António Vitorino de Almeida, irmã da Maria e da Anne. Reparte os dias entre Paris e Lisboa. «Senhor Jerónimo» é o título do filme com que se estreou na realização e com o qual venceu o Festival de Curtas-metragens de Vila do Conde. Apesar de bem sucedida na nova experiência, quer investir cada vez mais na sua carreira de actriz. Inês confessou-se num fim de tarde português, na casa da mãe que foi, também, a casa da sua infância. Riu muitíssimo. O bebé dormia no quarto ao lado.

 

Porque é que escolheu a solidão e o envelhecimento para o núcleo central do seu filme?

Foi uma história que tirei de um recorte de jornal. O recorte dizia que o hospital se tinha enganado de morto e tinha avisado a família errada. Pensando um bocadinho achei que este senhor (vítima do engano) teve a sorte de poder ver o luto da sua família, que é uma coisa que nunca ninguém tem.

 

A história dava-se cá ou em França?

Cá, é uma história tipicamente portuguesa.

 

Quando se diz que a realidade supera largamente a ficção é válido para qualquer canto do mundo.

A notícia era óptima, «Morto que afinal estava vivo»! [riso] Foi uma história que escrevi muito depressa, imaginando reacções à notícia.

 

Escreveu compulsivamente achando que tinha descoberto «a história» para o seu filme?

Eu escrevo quase sempre compulsivamente. As histórias andam para aqui, depois concentram-se (parece que cristalizam) e é só escrever. Quanto à velhice e à solidão... Isto não é nenhum julgamento moral ou social das famílias que abandonam os seus velhinhos; é mais a ideia de uma sociedade que anda muito enganada sobre uma data de coisas, algumas óbvias.

 

Como é que uma mulher tão cheia de vida, que foi mãe há pouco tempo, se ocupa de uma história de lutos e equívocos?

Não há melhor maneira de perceber a morte que ser mãe. Durante muito tempo, para mim, a morte foi uma aberração, um acidente. Quando se percebe realmente o que é a vida e se começa a ter medo pela vida de alguém... Porque não se consegue pensar a nossa morte.

 

Não?

Eu não.

 

As mortes por acidente, com uma forte carga fílmica, da Marilyn ao Dean, são, pelo menos, mais facilmente romantizáveis.

Aceita-se melhor a morte por acidente, por fatalidade é mais difícil.

 

Pensei que fosse o contrário.

A grande velhice é outra coisa. As mortes por acidente são romantizáveis, cinematográficas, portadoras de ficção. O outro lado, em que por mais que a gente se cuide por lá passa, é que é difícil de perceber.

 

Qual seria a grande vantagem de viver eternamente?

Ah, não, detestaria morrer aos 130 anos como aquela senhora francesa que morreu há pouco tempo, coitadinha.

 

Morte com dignidade, portanto.

Isso é o filme. Alguém que decide que há-de morrer como entender e ter o domínio sobre a sua vida e sobre a sua morte.

 

Curiosamente a Inês não aparece no filme, ao contrário do que costuma acontecer com a maior parte dos actores que experimentam a realização.

Os actores precisam de alguém que olhe para eles; se eu fosse representar não saberia quem é que olhava para mim.

 

Precisa de ser dirigida, apesar de toda a experiência?

Obviamente, e é muito simples, é porque a gente não se vê. Por muito que se tenha domínio.

 

Porque é que escolheu aqueles actores ( Raul Solnado, José Viana, Rogério Samora, Teresa Roby)? A Patrícia Tavares, por exemplo, é mais conhecida pelo seu desempenho nas telenovelas.

A Patrícia Tavares é muito bonita e tenho a certeza que pode fazer coisas muito boas. A televisão é muito mais dura que qualquer cinema. As pessoas estão muito mais abandonadas. Não falo da Patrícia em particular, mas tenho a sensação que estes esquemas de representação muito rápidos são trituradores e estragam o prazer de representar.

 

É uma das razões pelas quais não faz televisão?

É uma, não é a razão. Julgo que teria muita dificuldade em trabalhar nessas condições. As coisas são escritas muito depressa, que é um erro de produção, porque quando se vêem as boas séries normalmente são todas muito trabalhadas, escritas e reescritas; só que isso custa dinheiro. São opções.

 

Uma das vantagens de fazer televisão é que são coisas bem pagas. Esse lado material não a tenta?

Acho que o lado material tenta toda a gente, quem disser o contrário, das duas, uma: ou é muito rico ou mente.

 

Há, então, pessoas mais tentáveis que outras.

Não é só uma questão de tentação mas de possibilidade. Eu sei que dizer «Faço isto e não faço isto» é um luxo; ou posso ter esse luxo ou não posso. Ou são escolhas, não tenho carta, não tenho carro.

 

Mas gostava de ter?

Não.

 

Não lhe é uma escolha difícil.

Não me é essencial. Durante imenso tempo os actores em Portugal viveram malíssimo e acho naturalíssimo que as pessoas comecem a ganhar mais dinheiro e queiram ganhar mais dinheiro; não quer dizer que tenham de se sujeitar a tudo.

 

Nunca foi sonho seu viver numa casa com piscina e ter um monte no Alentejo?

Claro que é, ainda não desisti. Um monte no Alentejo, com certeza, uma casa com piscina, depende.

 

Qual é a sua ideia de casa-lar?

Ah, é uma casa muito grande mas não nova, com madeiras e com alguns buracos. Tenho uma enorme dificuldade em imaginar-me naqueles apartamentos em torres muito modernas e assépticas.

 

Viveu sempre em casas antigas?

Sim.

 

Como era o seu quarto em pequena?

Era ali ao lado, tinha de o partilhar com a minha irmã. A Maria dizia «Este é o meu lado», que era o arrumado, «E este é o teu lado», que era o desarrumado.

 

Quando vem a Lisboa e fica nesta casa sente uma nostalgia da infância?

O quarto está diferente, as camas já não estão lá, os armários já não são os mesmos. Sinto mais esta sala como sala da minha infância que o quarto.

 

Tudo isto era a propósito do monte alentejano e da tentação do dinheiro. Podia ser uma casa na Provence ou ainda pensa em Portugal como o seu canto?

Não me vejo nada a ter uma casa na Provence, uma casa assim seria em Portugal.

 

Há quantos anos vive em França?

Não há muitos, três, quatro. Há muito tempo que estou a fazer idas e vindas e isso quero continuar a fazer. Nem quero que as pessoas achem que me mudei porque Portugal faz-me falta.

 

O que é que lhe faz falta?

A confusão, o sol, as pessoas que se encontram nos mesmos sítios e às mesmas horas; faz-me falta pelas mesmas razões por que me fui embora, este lado pequenino e provinciano.

 

Como as casas antigas.

Exactamente, como aquela racha que está lá sempre, que se tapa e volta a aparecer.

 

Como é que decidiu instalar-se em França?

Não decidi. Fui para lá por razões profissionais porque achei que cá tinha dado a volta à praça. Dez anos antes tinha feito a escolha de não ir para França, da qual não me arrependo nada. Quando fiz o Rivette tive de decidir se queria ficar ou se queria ir. Nessa altura em Portugal estava a aparecer uma série de gente nova e interessante e senti que havia uma espécie de nova dinâmica que não queria perder. Permitiu-me ter imagens de cinema muito diferentes; permitiu-me trabalhar na escrita com o Joaquim Pinto, como assistente da Teresa Villaverde e do João César Monteiro. Em França são coisas impossíveis: uma actriz é actriz e não pode fazer mais nada. Porque há muita gente e quando alguém vai meter o nariz noutra coisa é suspeito.

 

Na sua decisão, há dez anos, não pesou o facto de a sua irmã Maria estar em Paris?

Não.

 

Sendo mais nova não sentia necessidade de vincar o seu papel e o seu espaço?

Somos muito diferentes. Na altura do Rivette a Maria fazia muitíssimo teatro mas pouco cinema, ela começou a fazer mais cinema a partir do Henry and June. As pessoas é que acham que é mais difícil, duas actrizes irmãs, não sei quê; mas sinceramente, na prática, nunca sentimos nada. Qualquer pessoa que duvide entre mim e a Maria é porque não sabe o que quer do papel. Há dez anos perguntava-me «Para que é que vou para França ser mais uma actriz quando em Portugal posso ter não só uma garantia de trabalho que não quero perder como um contacto muito mais humano e próximo com as pessoas?»

 

O lado hollywoodesco, que acabou por estar ao alcance da Maria, não a seduziu? A Inês parece pouco ambiciosa.

Não tenho ambição de grandes famas, isso não. Tenho uma família recheada de grandes popularidades e não é qualquer coisa de que sinta necessidade. Tenho ambições de trabalho. O facto de ter um pai que... Nunca me incomodou, diga-se de passagem. Não quer dizer que não goste que as pessoas me reconheçam.

 

Aqui em Portugal reconhecem-na muito na rua?

Acho que reconhecem, não sei bem porque são muito delicadas, muito afáveis e mesmo em relação ao meu pai nunca são abusivas. Essa é uma das grandes vantagens de Portugal.

 

Se virmos a questão ao contrário, alguns dos seus mitos, justamente por ter tido essa proximidade, devem ter sido visitas de casa. Não teve o entusiasmo juvenil de pedir autógrafos?

Não tive, confesso.

 

Por ninguém?

Tive, tive pessoas com quem ficava a tremer. Lembro-me que a certa altura filmei com o Sérgio Godinho, que é alguém de quem eu gosto muito, e pensei «Se aos 12 anos me tivessem dito que filmaria com o Sérgio Godinho tinha tido um ataque». Mas Portugal é tão pequenino que inevitavelmente acabamos por nos cruzar com os mitos. As pessoas não deixam de nos emocionar mas temos menos aquela coisa de «Nunca o vou poder alcançar».

 

E lá fora, há alguém que a faça tremer?

Ai, eu até já consegui conhecer o Caetano Veloso! [riso]

 

O que é que lhe disse?

Não disse absolutamente nada. Foi um encontro depois de um concerto no Coliseu, estávamos todos, a Maria, a Teresa Villaverde, o Sérgio Godinho.

 

Podemos voltar à sua vida em França? O que é o seu dia normal?

Então, acordo, vou pôr o meu filho à creche e depois tenho todos os problemas de consciência das mães. O meu dia normal depende muito do que estou a fazer, agora vou filmar como actriz, portanto vão ser ensaios ou provas de roupa ou assim. Mas quando não estou a filmar têm sido muito a escrever, escrever. O que mais gosto de escrever são diálogos; também escrevo histórias muito pequeninas.

 

Começou por frequentar um curso de línguas, não foi?

Saí porque achei que me estava a tirar o gosto da leitura. É a mesma coisa com a música, nunca quis aprender porque achei que me ia estragar o prazer de ouvir. Eu gostava imenso de crítica literária; mas a crítica é anatomia, é dissecar um texto e a certa altura é de tal maneira que já não se lê texto nenhum.

 

Pôs a hipótese de ser professora, que é, normalmente, a profissão esperada quando se tira um curso de letras?

Não, nunca. O que eu queria ser era cantora de ópera. Quando fiz o Amor de Perdição com o Ricardo [Pais] havia pessoas em cima do palco e de repente eles começavam a cantar e eu via semi-deuses entre nós. Pensava «Como é possível que aquilo esteja lá dentro e saia?»

 

Nunca chegou a experimentar?

Não. É uma história da infância: A Maria disse-me que eu ia ficar muito gorda e eu era muito vaidosa e desisti. Só tinha a imagem da Monserrat Caballé e pensei «Ai não, assim não quero ficar».

 

Queria ser cantora de ópera por lhe lembrar Viena?

Não, de Viena lembro-me das orquestras a tocarem no jardim, das pessoas em fato de noite a dançarem a valsa, de nos ensinarem a fazer a vénia. A recordação que tenho é a de um país completamente anacrónico, parado no tempo. Estamos a falar de 74, 73. 

 

Quem é que lhe ensinava a fazer a vénia, o seu pai ou a sua mãe?

Era na escola, no Liceu Francês. Ensinavam as meninas a fazer a vénia e os meninos uma espécie de continência e a baterem com as solas.

 

Nasceu cá ou lá?

Nasci lá. Até aos seis, sete vivi em Viena durante o ano e na Linha, na casa dos meus avós, durante o Verão. Do que eu me lembro é da chegada a Lisboa em 75 no pós revolução e do mundo que eu desconhecia com gente eufórica na rua. Eu e a Maria fazíamos trezentas e cinquenta vénias por segundo durante as manifestações. Era maravilhoso! Os miúdos que viveram de alguma maneira o 25 de Abril só podem ter boas recordações, recordações de alegria absoluta. Na minha família também havia quem não estivesse tão contente, mas esses foram para fora; nós viemos e eles foram.

 

Essa parte da família que foi para fora era do seu pai ou da sua mãe?

Da parte do meu pai; e depois havia os da parte da minha mãe que não foram mas gostariam de ter ido.

 

Continuou cá no Liceu Francês?

Sim, o Liceu Francês era um misto de gente muito curiosa: havia, por um lado, algumas das grandes famílias portuguesas e, por outro, muitos filhos de intelectuais de esquerda. Nós fomos para o Liceu Francês porque não tínhamos a certeza se ficávamos em Portugal e o Liceu era uma maneira de garantir uma continuidade nos estudos. Como éramos todos filhos de pessoas politizadas havia uma grande animação, discutia-se muito. Em pequenina a base era «O teu pai é comunista, o teu pai é fascista». Eu defendia-o sempre e pensava «Será que devo dizer que ele é comunista, porque ele não é?» Depois as discussões foram outras.

 

E a casa, tinha-a sempre cheia de intelectuais a conversarem?

Isso sim, os meus pais eram pessoas muito rodeadas. Como eles estavam separados tinha de um lado e de outro.

 

Que idade tinha quando eles se separaram?

Sete. O meu pai vivia em Viena e eu vivia cá com a minha mãe. A minha mãe era jornalista.

 

Em Paris relaciona-se com as pessoas do cinema?

Tenho uma vida mais isolada que em Lisboa porque as pessoas têm vidas mais isoladas que em Lisboa. Depois de ter vivido muitas saídas à noite sabe-me bem este lado mais recatado. Mas é inevitável que as pessoas com quem me cruzo estejam ligadas ao cinema. Em Lisboa é mais fácil estar em contacto com pessoas que fazem outras coisas, em Paris é tudo muito compartimentado.

 

Tem um agente em Paris? As propostas chegam-lhe com a mesma profusão?

Tenho uma agente. Houve aqui dois anos, e isto tem a ver com o nascimento do meu filho, em que me cortei um bocadinho de tudo voluntariamente. Quis aproveitar ao máximo as coisas que estava a viver.

 

Tinha conseguido amealhar o dinheiro suficiente?

Tinha o programa da televisão («O filme da minha vida») que dava imenso jeito. O dinheiro é uma preocupação óbvia para toda a gente mas acaba-se por encontrar sempre aquilo de que se precisa.

 

O que se procura cada vez mais numa actriz, pelo menos num determinado tipo de cinema, é a femme fatale com silicone injectado e ancas aspiradas. Essa imagem não é agressiva para si?

Está a dizer que não sou boazuda, é isso? [riso] Não acho sequer que seja verdade. Hoje em dia qual será a actriz que mais trabalha em Portugal? Eu acho que deve ser a Rita Blanco, que não é o protótipo da starlett em fato de banho nas praias de St. Tropez. A nível internacional as actrizes europeias com maior prestígio são a Binoche, a Bonnhair, a Béart. Há estereótipos (e continuará a haver) e modelos de sedução e de sex appeal; mas acho que, pelo contrário, quanto mais uma pessoa se vincar num tipo de personalidade e de carácter mais hipóteses tem de resultar.

 

O seu tipo é o da sonhadora e boazinha?

Ah não, espero que não!

 

Era essa a imagem de há uns anos.

As imagens criam-se em função do que as pessoas pedem para fazer e isso não se domina forçosamente, não se controla o que inspiramos nos outros. Eu sempre quis fazer uma comédia e nunca ninguém mo propôs. Portanto, em França não tenho feito tantas coisas quanto isso. Tenho andado muito pacata na minha vidinha de mãe, a escrever e a experimentar. Esta curta-metragem foi uma experiência de que gostei muito. Mesmo que não queira pôr de lado a minha carreira de actriz, bem pelo contrário, sinto-me com muito mais vontade... Porque sempre tive uma relação difícil com a ideia de ser actriz.

 

Porquê?

Isto é muito pretensioso de se dizer mas é verdade, eu não escolhi completamente ser actriz; fui sendo até perceber que não queria fazer outra coisa. Ser actor é uma coisa muito difícil. Porque é uma eterna sedução; ser actor só faz sentido se quisermos que os outros nos amem, é «Gostem de mim, gostem de mim, gostem de mim». Pode dizer-se que todas as pessoas querem que gostem delas, mas no caso de um actor é elevado ao cubo. 

 

Desgasta-se muito na preparação de um personagem ou é uma coisa que lhe é intuitiva?

Depende. Quando uma rodagem corre bem é um dos maiores prazeres que se pode ter; quando corre mal é um pesadelo. Eu sei que sou profundamente infeliz quando estou a fazer qualquer coisa na qual não acredito a 150%! Quero lá saber que o resultado não seja aquele que esperei; na altura em que estou a filmar tenho de estar convencidíssima de estar a fazer uma obra prima. O resultado final é outra relação. Os actores só se têm a si próprios para se usarem, não têm utensílios, não têm uma caneta sequer, têm as suas mãos, a cara, a voz. Não quer dizer que se tenha de usar o passado ou os traumas de infância, isso são outras teorias com as quais não estou completamente de acordo. Temos de nos usar a nós próprios, é um investimento físico; e, como tudo o que é físico, é muito mais difícil que o mental.

 

Pensei que fosse ao contrário. As coisas mentais não são as que ficam e doem? A feridinha passa com um bocadinho de mercúrio.

Voltando ao que falávamos no princípio, a solidão é uma coisa física, a paixão é uma coisa física...

 

Então, como é que sente no corpo a infelicidade?

Fico cheia de olheiras, com um olhar baço, mal disposta, não acordo de manhã. Uma depressão não é uma coisa física? Não estamos a falar de traumas terríveis enfiados no subconsciente; acho que o mental pode ser dominado e contornado e contado de novas maneiras, o físico tem qualquer coisa de irredutível. Quando se tem frio tem-se frio, não se experimentam técnicas zen.

 

Essa inspiração oriental, a astrologia, a meditação transcendental, todas essas coisas que elevam o espírito, atraem-na?

Tentei fazer ioga mas adormeci sempre, é que eu não tenho problema nenhum em descontrair. Sou supersticiosa como qualquer pessoa que compra uma revista e a primeira coisa que faz é ler os signos; meia hora depois esqueci-me do que lá está. Não passo debaixo de um escadote; gatos pretos é que tive vários e acho que dá imensa sorte.

 

Vivia sozinha nessa altura?

Tive um gato preto quando era pequenina e agora tenho uma gata preta de quem tenho muitas saudades porque não a posso levar comigo para Paris. Eu adoro gatos, mas um gato não substitui nada. A casa é pequena e eu já tenho um filho.

 

Sentiu com a criança uma transformação na sua vida, no seu corpo?

Claro que senti. O mais perturbante quando se está à espera de um filho é saber que não se domina de modo nenhum o nosso corpo, que pertence a outra pessoa. É fascinante e terrível.

 

Como é que decidiu ter um filho? Sentiu que aos 29 anos era altura de ser mãe?

Eu decidi ter um filho quando achei que tinha encontrado o pai certo. Volta e meia também há as vontades físicas que não têm a ver com a ideia de educar um filho; são mesmo físicas.

 

Ficou com um medo enorme do que pudesse mudar?

Eu acho que só se percebe mesmo o que muda uma vez que a criança nasce. Todo o lado prático muda e, a partir daqui, são novas bases. As coisas comezinhas são essenciais; a felicidade está nas coisas comezinhas e a tristeza também. Não se trata de um sacrifício, é um ser que não pede licença para nada, que exige e a quem se dá sem sequer perceber que se dá. É extraordinário existir alguém que nos pode exigir tudo.

 

É a forma última do amor.

É uma forma do amor, é uma coisa que só se aceita a um filho. Eu nunca quereria ter uma relação amorosa destas a não ser com um filho. Não aceitaria nunca que alguém fosse tão dono de mim.

 

Sempre foi muito independente?

Sempre. E simplifica imenso a vida! Uma data de interrogações, «Será que devo fazer isto ou aquilo, ser mais assim ou mais assado?», não têm importância nenhuma. Tudo passa a ser tão relativo em relação à enormidade que aconteceu. Para mim foi uma espécie de libertação.

 

Quais eram as suas grandes angústias?

Iguais às de toda a gente, «Será que estou bem, será que estou bonita, será que gostam de mim, será que disse uma asneira, será que vou ganhar mais dinheiro?». Estava a falar de dinheiro? Agora com o dinheiro é assim: tenho que ter dinheiro porque tenho um filho, pronto. Todos esses problemas, «Será que posso fazer esta concessão?», se eu não tenho dinheiro tenho que fazer as concessões todas. Eu sozinha posso comer batatas durante três meses, com um filho não posso.

 

Angustia-se em relação ao seu talento?

Claro, toda a gente se angustia.

 

Uns são mais visíveis, outros parecem mais autoconfiantes.

Acha que eu pareço muito autoconfiante? Engana-se, pelo contrário. Tenho sempre um medo absurdo antes de começar as coisas. O que eu acho é que uma pessoa angustia-se e deve angustiar-se pelo seu talento; mas tem também que poder aceitar que o que faz é, em grande parte... No resultado final domina o quê, 30%?

 

Estava mais angustiada do que é normal em relação à sua estreia na realização?

Claro que estava. Mas há acasos... Quando escrevi pensei nuns actores e depois noutros e depois tinha de filmar naquela altura, com aquele dinheiro, naquelas condições. Falei com o Raul Solnado e o José Viana três dias antes de começar. Não tinha actores; não tinha porque não achava possível ter aqueles actores, «O quê, ir buscar o Raul Solnado que deve ter tanto que fazer?» E foi e correu tudo maravilhosamente.

 

Como é que foi o momento em que disse pela primeira vez «Acção»?

Isso foi uma vergonha! [riso] Mas passa depressa. Pior que Acção é Corta. Se estiver a representar é com certeza muito mais difícil; a realizar vê-se o que não está bem. Como é uma evidência no momento, mesmo que seja uma burrice, dá uma enorme força. Nas curtas-metragens há uma vantagem: como nunca há condições nenhumas, as pessoas estão lá porque acreditam e têm vontade. Não se pode desiludi-las e, como se sabe que as pessoas lá estão porque gostam, há uma liberdade muito grande.

 

O filme vai ser comercializado? Em Portugal temos assistido à experiência de algumas curtas a precederem as longas-metragens.

Em princípio sim, é bastante comprido (21 minutos) e é preciso encontrar um filme que não seja muito longo. Já houve contactos mas não sei quando nem como.

 

Está com medo da crítica, do público, do que os amigos do meio vão dizer? Ou com essa relativização de que falava há pouco as críticas não a tocam de todo?

Ah mas é essa a imagem? Não é nada verdade, as coisas tocam-me imenso. E as críticas dos amigos são as piores de todas, amigos do meio e sem ser do meio. Agora estou um bocadinho mais descansada, o filme foi bem aceite, Vila do Conde (Festival de Curtas-metragens) correu bem, foi vendido para o Canal Plus...

 

Se tivesse corrido mal, seria o suficiente para a deprimir?

O estado de espírito para este filme era «Vou ver se eu sou capaz ou não, se tenho ideias, se sei dirigir actores, se gosto ou não gosto». Se o filme tivesse corrido mal provavelmente teria arrumado as botas.

 

Lidar com o fracasso é uma coisa complicada. Uma coisa é dizer «Pronto, arrumo as botas» outra é...

Claro que é difícil lidar com o fracasso, teria detestado, teria estado deprimidíssima. Aturavam-me em casa.

 

Não me lembro de nenhuma situação sua de fracasso.

Não. Não ter fracassos também prova que não corro muitos riscos. Não tenho a sensação que seja uma atitude muito consciente, mas parece-se um bocadinho evidente.

 

Porque é que o homem do filme se chama Jerónimo?

Porque é um nome que eu gosto, que soa bem, tem um O lá dentro.

 

Fala com o seu filho em português?

Sempre, sempre em português. Falo em francês com o meu marido.

 

Casou mesmo, pela igreja e isso tudo?

Não, não, tenho que tratar agora dos papéis. Pela igreja não me caso de certeza, mas quero casar-me. Não sei bem como dizer, digo «o meu marido», mas ele não é meu marido; não suporto «companheiro» e «namorado» já não pode ser porque ele é mais do que isso.

 

Nem em miúda sonhou com o vestido de noiva?

Não, eu morria de vergonha num vestido de noiva, fugia logo. Entrar na igreja com as pessoas à volta e o padre ao fundo, com um véu e umas grinaldas, que horror!

 

O casamento simboliza o ideal romântico feminino. O seu era o do príncipe que vem buscar a donzela?

O casamento era bom para as bonecas, para as Barbies. O meu... Mas eu sou muito romântica [riso]. Ideais românticos há vários, mas parece-me que são mais quotidianos.

 

O Senhor Jerónimo acaba sozinho debaixo de uma árvore.

Pensei que era uma morte digna. Não há pior solidão do que a solidão que se sente no meio de uma cidade com as ruas apinhadas de pessoas, a rirem, a falarem, a cantarem, a namorarem. Quando se está completamente sozinho a solidão não tem o mesmo peso. 

 

De qualquer maneira agora tem o seu filho. Estava a pensar naqueles pais que dizem que os filhos são um amparo para a velhice.

Sei lá, se calhar vai fechar-me num asilo [riso].

 

Dá-lhe para pensar no futuro?

Ai nem penso nisso, eu aos setenta, que horror! Gostaria imenso de conseguir envelhecer bem; para já não consigo e acho uma aberração. Vê como não sou assim tão segura, também tenho algumas angústias.

 

 

A sua imagem é muito mais de uma pessoa convicta, muito pouco de alguém frágil e inseguro do seu trabalho.

Se quiser pode ir ali falar com o meu marido e ele dá-lhe outra versão. Passo a vida entre Lisboa e Paris e não há nada que me angustie mais que partir. Na véspera de uma partida estou angustiadíssima, quer num sítio quer noutro. 

 

Medo de quê, afinal?

Medo que as coisas desapareçam com o partir. Eu sei e sou absolutamente capaz de fechar portas.

 

Cortar relações com pessoas?

Cortar relações é uma forma de manter ainda uma relação qualquer, mesmo mentalmente.

 

O que pode ser tão grave para fechar assim uma porta?

Pode ser uma traição.

 

Perdoa?

Não, perdoo pouco. O mais doloroso é quando se percebe que não há mais nada a dizer, que não há qualquer afinidade. O meu maior pânico são os desgastes, a usura, nem sequer é o corte de uma relação.

 

Já foi trocada?

Fui uma vez enganada, mas trocada, trocada não. Foi uma sensação muito esquisita. Nunca troquei uma pessoa por outra.

 

A fidelidade é-lhe natural?

É, não só a amorosa mas também a profissional; eu podia trabalhar só com três realizadores. Não se trata de jogar pelo seguro, acho é que se vai mais longe; Os inícios são penosos e difíceis, normalmente são menos penosos porque são entusiasmantes, mas não deixam, por isso, de ser laboriosos. Acredito nas coisas que se constroem na duração, não tenho fascínio pela aventura. Não quer dizer que não goste de descobrir coisas novas mas não me sobe a adrenalina. Tenho imensas reticências em viajar por viajar, estou sempre à espera de um pretexto para ir trabalhar num sítio que quero conhecer.

 

Demora muito tempo a deixar que os outros entrem no âmago de si?

Talvez, não sei. Não tenho a sensação de fazer grande mistério.

 

Acha-se fácil?

Então não sou fácil e acessível?

  

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998