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Anabela Mota Ribeiro

30 anos de O que Diz Molero

13.02.14

E então Molero notou que é no “oásis pantanoso da infância” que se deve procurar. Ou no “sotão da infância”, que vem a ser o mesmo lugar. “Se não encontrar um gato sarnento, encontra-se outra coisa qualquer”. Uma insignificância qualquer, polida pelo tempo, reinventada pela memória. Uma insignificância que atribua sentido a isto que aqui andamos a fazer. “Do que as pessoas são capazes para iludir a ausência de um sentido para a vida, para escaparem à miséria...”. Será triste descobrir que “todas as pessoas são mais ou menos infelizes, mas os artistas são infelizes de outra maneira, talvez de uma maneira dramaticamente infeliz”.

Dinis Machado foi feliz? Fala o próprio, pelo próprio, e não através de Molero: “Integrei na minha vida o absurdo que a vida a certa altura me pareceu que era. Pensei, quando estiver a envelhecer, tiver doenças, quando a vida se tornar insuportável, quando me chatearem muito, antecipo-me ao meu inimigo. Implica, de facto, uma hipótese de suicídio, nunca a recusei. Mas entretanto criei umas amarras, criei amarras de afecto muito fortes, (para mim são mais importantes as pessoas que amo que eu próprio), e encontro um certo sentido da vida”.

Molero procurava a sua “inocência perdida”, estava mesmo disposto a “dar um ano de ordenado por um momento da sua inocência”, inventa em epígrafe. E Dinis Machado tamborila os dedos na madeira, puxa uma fumaça, confunde-se com os seus personagens, regressa com eles a um lugar onde foi feliz.

O que é “O que diz Molero”, livro mítico, inclassificável, onde se escreve que o “coração é bússola doida”? Bastaria a já celebérrima cena de pancadaria, com os “camones” de impoluta farda branca, girls, we want girls, os Vai ou Racha, bando feérico do qual fazem parte Pé de Cabra (passatempo favorito: dar carolos nos mais miúdos para enrijar a moleirinha), ou Peito Rente (que dizia por tudo e por nada “é rachmaninófico”),  Ângelo, “de calça creme bem vincada, que tocava na harmónica tatatataritata, acabava e dizia finish”; bastaria este “maior fogo de artifício de que há memória em matéria de pancadaria” para “O que diz Molero” entrar para a história das letras portuguesas do século XX.

O que diz Dinis: “Quando fiz o Molero, a Marília [sua primeira mulher, entretanto falecida] foi a primeira que ouviu. Depois chamei os meus amigos lá a casa, os sete, e fiz a leitura do Molero. Ó pá, esses somos nós, mas como é que tu conseguiste fazer uma coisa tão nossa? Identificaram-se completamente”. Molero c’est moi, “tudo o que criamos é apenas o que somos”, escreve a páginas 20.

Era uma geração de quem, retrospectivamente, se pode dizer que viveu uma felicidade dourada. Inventava a alegria, a comicidade, como fuga e arma essencial para as situações trágicas que a vida nos traz. Uma malta que alugava livros na Barateira, como hoje se alugam dvd’s nos clubes de bairro. Que recitavam poemas uns aos outros no café. Gente de um tempo que deixou de existir. O livro é o testemunho, angustiado-existencialista, dessa geografia e de certa arquitectura que deixou de se praticar.

Quem é este Rapaz? Dinis Machado usou, como recurso narrativo, Mister DeLuxe e Austin, “inspectores” que escrutinam a vida de um rapaz. Molero é aquele que lhes dá acesso às “idiossincrasias desse sujeito”, autor do “relatório” que permite reconstituir a sua vida, as suas deambulações. O livro começa pela infância, porque deve começar-se pelo princípio: “Teve uma infância estranha, disse Austin. Em última análise, todas as infâncias o são, disse Mister DeLuxe”.

Da infância do Rapaz, nota Molero, escreve Machado, faz parte uma galeria de personagens inadjectivável, mas caleidoscópica de certeza! O Pai, que jogava bowling com garrafas vazias, depois de as beber. La petite Mireille, que se dava silenciosamente no chão. O Tio Napolitano, que tentava acertar no escarrador cuspindo a alguns metros de distância, e errava quase sempre (“É como o destino do género humano: quase nunca acertar”). Leduc, que suou 15 anos para conseguir um Cristo perfeito e acabou numa cadeira de rodas. Zuca, o “adolescente azougado” que fazia “exóticas masturbações, com arames na uretra e não sei que mais”. A Tia, que chalou e lhe deu um aparelho para os dentes que só usavam os copinhos de leite. Ou a Mãe, que um diz pôs a mão no rosto do homem que tinha o Rato Mickey tatuado no peito.

Passam todos com “uma rapidez que já está”, página após página, e gostamos tanto deles que apetece que passem de novo, “ao ralenti”. Conhecêmo-los ao mesmo tempo que acompanhamos o Rapaz na busca da “última fronteira”, da “palavra-resumo”, da “palavra-origem”. Da essência filosofal. Embarcamos com ele na viagem mais fundante das nossas vidas. Vamos à Pensylvânia por causa do som da palavra, recuperamos Dostoievski e Teixeira de Pascoaes, atravessamos o deserto do Sarah em cima de não sei quantos camelos. Chegados à última página, percorrido todo o espólio do Rapaz, “que sabemos nós? Nada de nada”. Talvez o Rapaz seja alguém como nós. Mas não fomos nós que inventámos a palavra “iglantónico”, nem tivemos uma vida com essa medida!  

 

“O que diz Molero” apareceu em 77 e causou espanto na “literatura encasacada” de então. Há 30 anos, Dinis Machado deu a conhecer quem era. Nuno Artur Silva, que reeditou o Molero nos anos 90, ao fazer a adaptação do texto para teatro, perguntou-lhe quanto tempo demorou a escrever este livro. Ele respondeu: talvez a vida toda. Mas já tinha escrito outros, na verdade. A história é a seguinte: meses antes de nascer a sua única filha, Rita, Dinis Machado precisava de dinheiro. O seu editor da altura propôs-lhe comprar três policiais, assinados com nome americano, e entregues, os três, no espaço de um ano. Foi assim que em 68 nasceu Dennis McShade.

“Os romances policiais eram um bocado subvertores; a linguagem procurava ser americana, mas muito cortada por paródias europeias. Imagine um tipo, no mercado do crime americano, implacável, que tem cultura! A incongruência dos romances policiais, é que o tipo fala aos outros do mundo do crime como se estivesse num plano superior, «Pois o Rimbaud também pensava assim»; o outro gajo sabe lá quem é o Rimbaud, o que é que isso interessa para a conversa!. Este lado gozão dos romances policiais era também um apetrechamento para uma possível escrita minha. Estava a fazer um curso de aprendizagem da minha própria escrita para escrever um dia um livro”. O “Molero”.  

Dinis Machado nasceu e viveu a vida toda em Lisboa. Nunca foi à América, mesmo que trate Raymond Chandler por tu, e ame Rita Hayword, tão bela e tão perversa. Foi jornalista desportivo, dirigiu uma revista chamada Tintim que fez de meninos de uma geração amantes de banda desenhada. Na escola, gostava de Português.

“Sempre fui muito inventivo nas redacções. Não sei se escrevia bem ou mal, mas os professores achavam que devia ir para Letras, e eu nunca fui. Também Geografia, liguei sempre a Geografia a um certo sentido de diáspora. Sempre gostei muito dos lugares imaginários do cinema e dos livros, gostei mais deles... Nunca senti necessidade que fossem reais. 

Andei na Escola Industrial, onde perdi por faltas por causa do cinema. Na Escola Comercial perdi também por faltas por causa do futebol à porta da escola. Enquanto houvesse luz!, e quando não houvesse luz havia a luz dos candeeiros! Fiz até ao terceiro ano. Jogava na rua com uns sapatos velhos que a minha mãe me dava. Os polícias corriam atrás de mim, eu corria muito bem, fugia muito. Estafava-me a jogar à bola, chegava a casa e a minha mãe batia-me, dava-me palmadas porque eu não almoçava, passava a vida no futebol ou no cinema. A minha vida foi muito isso. Já nos jornais, tinha uma grupo noctívago, íamos para a Brasileira». Nessa altura dava-se com o Roussado Pinto, Ross Pyn para os amigos e para os livros, e durante um mês, escreveram sozinhos um jornal! Literalmente. Da primeira à última página. Mas este é só um dos episódios dessa época irreal.

“Fui para as Caixas de Previdência, emprego arranjado pela minha tia Edite que tinha uma certa relação com os poderes instituídos. Conheci lá o Eugénio de Andrade e o Jaime Cortesão Casimiro, que perceberam que eu tinha algum jeito para as palavras e andaram três anos a leccionar-me literatura. Não foram só as conversas, e verem os meus poemas e emendarem-nos; cada um procurava dar-me linhas de orientação que lhes eram adstritas. O Eugénio depois de ler um poema meu disse assim: «Ó Machado, você sem o Pessoa não vai lá, ninguém vai lá». Com 18 anos, fui ler o Pessoa todo para a Biblioteca Municipal. Trouxe-o para a mesa do café, foi uma festa com o Pessoa, descobrimos imensa coisa com o Pessoa.  

Já na idade adulta comecei a entender-me com mensagens literárias e cinematográficas onde ia recolhendo informação, percebendo melhor as coisas, mas onde ia morrendo a inocência. Quando dei por mim, já estava com uma carga de referências tão grande, de coisas tão complexas... A partir dessa altura, só há um caminho a seguir: ir continuando. Quando uma pessoa já sabe, não pode fingir que não sabe, ou então engana-se. Mas ao saber que sabe, e cada vez sabe menos, (o problema é sempre o mesmo), a tal nostalgia da inocência aparece”.

Dinis Machado disse todas estas coisas há sete anos, numa tarde de calor, a fumar cigarrilhas. Como num filme americano, daqueles de que gosta muito, com a persiana corrida e uma luz a entrar por entre os espaços em branco. Continua a fumar cigarrilhas. Às vezes vai-se um bocado abaixo das canetas. Mas anda agora muito bem disposto!

“Ainda preservo alguma inocência organizada através do intelecto. Uma inocência que já perdi e que quero recuperar, não sei como. Recuperando a pouco e pouco, nestas tentativas de ser sincero, de ser outra vez o melhor que fui. Um florescimento permanente, uma primavera que foge todos os dias. É estranho como envelhecendo, perdemos tudo”.

Corre nele, desde sempre, uma “melancolia um pouco espessa”. Na próxima quarta feira, dia que anuncia um florescimento permanente, faz 77 anos.

 

Pelos trinta anos da edição original de «O que diz Molero», são lançadas no mercado duas novas edições da obra de Dinis Machado. Uma, ilustrada por António Jorge Gonçalves, que já tinha assinado os figurinos e cenário da peça homónima de 94 (Bertrand Editora); e outra pelo Círculo de Leitores. O Círculo, a pretexto deste número redondo, faz sair ao longo do ano a obra integral de Machado, inclusive os policiais, há muito esgotados, assinados com o pseudónimo Dennis McShade.

A sessão de lançamento ocorre quarta feira, 21 de Março, dia de aniversário do autor. António Mega Ferreira, António Feio, José Pedro Gomes, Ricardo Araújo Pereira e Rui Cardoso Martins lêem excertos do Molero e fazem comentários à obra. Nuno Artur Silva faz a moderação. Às 18h 30, Teatro Tivoli, em Lisboa.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

Ler Jesus

12.02.14

Ler Jesus, como ler Jesus?, que palavras dizem Jesus?, Ele está sempre no meio de nós?, existe um antes e um depois na vida de Jesus?

No próximo Ler no Chiado vamos falar de Jesus com o jornalista António Marujo, o padre Carreira das Neves e o pastor evangélico Tiago Cavaco. 
O polémico livro O Zelota, de Reza Aslan, é uma das portas de entrada para este assunto inesgotável que é o mistério e a marca de Jesus na cultura ocidental. 
Dia 13 de Fevereiro, às 18.30h, na Bertrand do Chiado.
Eu modero.
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand. 

Manoel Carlos (ou Maneco)

11.02.14

Se perguntarem no Brasil quem é Maneco, ou Manoel Carlos, todo o mundo saberá dizer. É o homem que faz das suas personagens femininas ícones de imperfeição e estoicismo – as Helenas – e que assina algumas das maiores novelas de sucesso do Brasil.

No dia de aniversário da Globo, o autor desmonta a máquina de fazer novelas. Conversa exclusiva numa cervejaria, no Leblon, claro.  

Vamos começar pelo princípio: eu não sabia como chegar a Manoel Carlos. Além de autor da Globo, dinossauro da televisão brasileira. O Maneco que comeu macarrão com Fernanda Montenegro, adaptou Dostoievski para televisão, realizou programas musicais como o “Fino da Bossa” (após o que comia uma pizza com Elis no boteco da esquina), conheceu Chico Buarque e Marieta Severo quando eles ainda não eram o Chico Buarque e a Marieta Severo (à saída do restaurante, no fim da entrevista, por coincidência, Maneco encontra Marieta).

Vivem no Leblon (Chico também). É a vida de classe média do Leblon que aparece nas suas novelas. Maneco é, mais do que tudo, um autor de novelas. Estreou-se em 1978 com “Maria, Maria”, foi colaborador de Gilberto Braga em “Água Viva”, teve em “Baila Comigo” a sua primeira novela das oito.   

As suas novelas falam d’ “A vida como ela é” – título roubado a Nelson Rodrigues, mesmo que o universo de Maneco em nada coincida com o de Rodrigues. Os dois têm diferentes maneiras de olhar e falar da vida, como ela é. Maneco fala de mulheres apaixonadas, de crianças que irrompem pela cena, de vidas no fio da navalha – os cenários hospitalares são quase obrigatórios –, de homens que nunca têm o mesmo carisma que as mulheres têm. Da imperfeição, do defeito, da falha, da ambiguidade da escolha, da redenção. Os cenários nunca são sujos, a música é sempre de bom gosto. Não é uma vida impostora a que ali conta. É a vida que ele vê passar na rua, no bairro.

Eu não sabia como chegar a Manoel Carlos, e para ontem. Tentei vários acessos. Disseram-me que Maneco estava a escrever, fechado, dia após dia, sobre a trama de “Viver a vida” (que passa actualmente na SIC). Tentei uma hipótese esdrúxula: fui à Livraria Argumento (onde o autor vai regularmente) fazer aquilo que fazem as aspirantes a actriz: deixar o meu cartão com a balconista, just in case. Por fim, comprei uma revista semanal de grande tiragem, li a crónica de Manoel Carlos (sobre a biografia de Warhol), enviei um email e sentei-me com ele no Leblon no dia seguinte.

Foram horas de conversa, antes do dilúvio que nesse fim de tarde se abateu sobre o Rio. (Era uma chuva de Verão se pensarmos na hecatombe recente). Manoel Carlos tem 77 anos e é um óptimo contador de histórias. O que espantaria é que o contador de histórias da Globo não contasse bem a sua história.

 

 

 

 

 

 

Comecemos por desmontar a máquina. Como é que se faz uma novela de sucesso?

Não há nenhuma receita para isso. O que há, ou já houve, de receita mostrou-se não-verdadeiro, não deu certo. Parte-se sempre do princípio de que uma novela deve atrair a atenção do maior número possível de pessoas, entre sete, dez anos e 100 anos, e que o Brasil é um país de dimensões intercontinentais, com muita variedade cultural. A receita boa seria uma história que alcançasse essa diversidade cultural toda – como um bom romance alcança, um bom romance brasileiro, português ou francês.

 

A história sabe para onde vai? Existe essa esquematização de raiz?

A novela é um produto cultural popular muito extenso. Hoje estou escrevendo o capítulo 158, são 215. Estou trabalhando nisso há um ano, e é todo o dia, todo o dia. É muito difícil saber, quando começa uma novela, como vai continuar. Você vai tacteando.

 

Tem temas base, personagens base, e a partir deles vai construindo a trama?

Exactamente. Parto de uma sinopse, que no meu caso é muito precária. A história central, que às vezes nem é muito central, é uma espinha dorsal, e depois há as histórias paralelas principais. Um capítulo é um pouco palavra puxa palavra, um capítulo vai puxando o outro.

 

Um exemplo.

Coloquei uma garota de programa num capítulo em que o rapaz está triste porque a namorada que tem há tantos anos rompeu com ele. É um arquitecto todo certinho, vai a um bar e fica conversando com a moça. Dois dias depois volta, vai para um motel, mas não consegue ter uma relação porque está traumatizado com o fim do namoro. Mas a garota é muito compreensiva, e o rapaz volta novamente. Ou seja, ela ia entrar um dia e está há oito capítulos. Os jornais já estão dizendo que há possibilidade de ele se casar com ela! Esse personagem é absolutamente imprevisto e imprevisível, nem me ocorreu isto quando pensei na novela.

 

É volúvel ao impacto que as personagens têm na opinião pública?

Muito, muito volúvel. É um problema de experiência e sensibilidade para sentir o que vale a pena e o que não vale. Tive um caso numa novela de uma mulher que tinha câncer, estava meio terminal, fazendo quimioterapia; eu ia matá-la. Recebi uma carta de uma mulher com câncer, uma psicóloga de 47 anos, uma carta tão maravilhosa, tão lúcida, que suspendi a morte da personagem. Porque essa mulher dizia: “O senhor deve saber que numa cama de hospital a única diversão que temos é ver televisão, e eu vejo a sua novela. Na hora que vi que a mulher ia morrer de câncer, estava com meu marido e meus filhos, e todos ficaram profundamente incomodados. Eu gostaria de ver essa mulher com possibilidades de se curar. Para que eu também tivesse essa esperança”.

 

E aí, já estamos a jogar com a identificação do público, que é um elemento essencial nas novelas.

Isso. Recebi essa carta e fiquei até constrangido. Respondi (nunca respondi antes): para ficar tranquila, ela não ia morrer.

 

Em quase todas as novelas, há uma doença que é abordada. Com um fundo pedagógico? Disse que não há receitas, mas este é um dos ingredientes constantes.

Nas minhas, é muito comum. Tenho sempre um hospital, médicos.

 

Porquê?

Adoro. Acho o personagem médico muito bom e o hospital um cenário fantástico. É muito rico, na medida em que é um centro de vida e de morte extraordinário. Tem pediatria, oncologia, cirurgia plástica, tem mil possibilidades.

 

E é onde as pessoas estão mais expostas. Quando estão doentes, não importa o seu estatuto, estão todas no mesmo quadro de vulnerabilidade.

Sem dúvida. A minha filha que é actriz, tem 27 anos agora, quase morreu várias vezes quando era pequena (tinha três, quatro anos). Fiquei amigo de tantos médicos que conheço um pouco do quotidiano deles e da vida no hospital.

 

Ainda que nas novelas possa salvar, recuperar para a vida, nos hospitais nem sempre é assim.

Mas sempre morre alguém, não salvo todos. Em “Laços de família”, uma actriz extremamente carismática, a Carolina Dieckmann, tinha leucemia, rapava a cabeça. Ela estava mobilizando o país inteiro. Não tinha pensado matá-la, mas era um caso bem grave. Então, fiz entrar para o quarto ao lado no hospital uma outra moça também com leucemia; e matei a outra moça. Nem mostrei. Um dia passaram pelo quarto e a cama está arrumada. Todo o mundo entendeu. Esse tipo de coisa, tem que negociar com o público, não adianta ficar numa posição teimosa. Novela é que nem passarinho, é de quem pegar, novela é de todo o mundo. Novela, você constrói ouvindo uma coisa aqui, uma coisa ali.

 

Até onde é que consegue prever que certa personagem vai empatizar com o público?

Não consigo prever muito. Consigo prever uma parte, claro, porque depende de como você faz, do traçamento. Sei que personagem criança, se for bem feito, é muito atraente. (A maior parte dos autores não tem filhos, eu tive cinco. Desde os 19 anos. Tenho um filho de 57 anos e um filho de 18).

 

É a evocação da infância de cada um de nós? As crianças são atraentes porque encarnam a esperança?

Pode ser uma chata, mas não existe família sem criança. A criança é um telespectador muito fiel, mais que o adulto, vê todo o dia. Criança dá certo. Talvez as minhas novelas se diferenciem um pouco das dos meus colegas, porque as tramas familiares são as mais fortes. É a relação marido/mulher, a relação mãe/filha.

 

É a clássica disputa entre mulheres? O que é que está na base

disso?

Também existe, claro. Acho uma relação muito rica, entre mãe e filha. Na verdade, entre pais e filhos. Mas o pai é sempre um pouco distante. A figura masculina é pequena nas minhas novelas.

 

De certeza que já se interrogou sobre isso. Porque é que os homens são menos fulgurantes, menos fortes, e as mulheres são as heroínas?

Na vida real as mulheres são as pessoas mais importantes. Fui criado só por mulheres.

 

Tem mais a ver com isso do que com o facto de o público ser mais feminino do que masculino?

Sim, sim. Escrevo para televisão há mais de 50 anos. Quando comecei, era uma coisa só vista por mulheres. Os homens não viam. Novela?, de jeito nenhum! Hoje em dia não é mais assim. Mas não foi por isso. As mulheres são confessionais, os homens não. Se uma mulher é traída pelo marido, ela reúne as amigas, conta que o marido está tendo um caso com a secretária, e todas a consolam. Homem é traído e…

 

Impõe-se o orgulho.

É. É tão difícil fazer um homem traído crível…, porque os homens não falam sobre isso. Julgo conhecer muito melhor o universo feminino do que o masculino. Fui criado mais pela minha mãe que pelo meu pai, com duas irmãs mais velhas, que também foram meio mães, por duas avós (não conheci os avôs), e por três tias solteironas que ajudaram a me criar. O meu contacto desde a infância com as mulheres foi muito intenso, e tenho mais amigas do que amigos.

 

Um autor, ainda que esteja a ficcionar, nunca deixa de ser quem ele é e a sua história? Atendendo à sua história, seria improvável que o seu universo criativo fosse dominado por homens.

Sem dúvida. Outro dia, José Mayer, o actor, me chamou à atenção: “Maneco, você reparou que todos os seus cenários são casa de mulher, nunca do homem?”. É verdade.

 

Ancestralmente o homem é aquele que vai caçar, que domina na ágora, a mulher é a que fica na retaguarda, em casa.

Nos outros autores é: “sala de João”, e o João tem mulher, tem filhos. Para mim será: “sala de Maria”. Instintivamente tudo pertence à mulher.

 

A família é o seu tópico essencial.

Quase exclusivamente.

 

Aparece pouco aquele que marcava as novelas, sobretudo nos anos 80: a luta entre ricos e pobres.

As minhas novelas nunca tiveram isso. Aliás, me chamam de elitista. As minhas novelas são como são por uma razão simples: só escrevo sobre aquilo que vivo diariamente. Para escrever uma novela passada num morro carioca, numa favela, preciso de ajuda, não conheço bem esse universo. Escrevo sempre sobre o bairro do Leblon porque vivo aqui. Se for morar na Barra, será na Barra. Gosto de ver os meus personagens andando na rua, comprando na padaria, vindo ao restaurante. O meu universo é o universo da classe média/alta porque é a classe a que pertenço. Não sou um autor realista. Mas sou um autor que não delira. Ninguém voa na minha novela, as pessoas têm os pés no chão.

 

Existe a preocupação da verosimilhança?

Tenho uma preocupação muito grande com o que é verosímil, não com o que é verdadeiro. Não estou me comparando, mas você pega a Madame Bovary, que para mim é o romance mais importante dos últimos séculos: é realista, mas muito bem tratado ficcionalmente.

 

Flaubert dizia: “Bovary c’est moi”.

Tudo aquilo sou eu mesmo. Reproduzo conversas da minha mãe, reproduzo conversas que tive, e tenho, com meus filhos, integralmente. Aproximo a minha ficção de dados reais. Faço uma listagem dos personagens mais importantes e dou data de nascimento para cada um deles, signo e horóscopo. Não acredito na astrologia, mas no Brasil as pessoas são muito ligadas em comportamentos ditados pelos astros. Às vezes ponho frases assim: “Isso é típico de um leonino”. São só ferramentas, me amparo nessas coisas.

 

As suas heroínas são Helena. A sua mãe é Helena?

Não. É a pergunta que mais ouço nestes anos todos. Quem foi Helena na minha vida? Ninguém. Tenho uma Helena na família, neta da minha irmã, tem dez anos de idade e uso Helena há 30 anos. Nunca tive uma namorada Helena, nenhuma irmã, nenhuma filha.

 

É uma evocação da Helena de Tróia?

É muito disso. Sempre me interessei pela mitologia. E pela Helena do Machado de Assis, que é um romance que li muito novo e que adaptei para televisão quando tinha 20 anos. Sempre achei que era mais um nome de personagem do que de pessoa da vida real.

 

Senta-se para escrever e depois tem uma equipa, a quem dá as directrizes? Como é que a máquina funciona no dia-a-dia?

Trabalham comigo oito pessoas. Adivinhe…, são oito mulheres. Tenho três pesquisadoras; digo que vou fazer um parto e tenho uma moça que levanta tudo, desde como está a sala de partos a quem participa do parto. No caso do personagem que teve a lesão medular e que está numa cadeira de rodas, tenho uma que só cuida dela.

 

Luciana é uma das personagens centrais da novela “Viver a Vida”.

A actriz que está assim, a Alinne [Moraes], é assistida por uma pesquisadora que se reporta ao Dr. Paulo Niemeyer, o maior neurocirurgião do Brasil. Ele é que orienta e diz o que ela pode ou não fazer, como pega no talher. Fora isso tenho cinco colaboradoras (cada autor da Globo pode ter quantas quiser) que já trabalham comigo há algum tempo. Elas escrevem e depois vem para mim. Evidentemente eu mudo, acrescento. Ou não mudo nada, acho óptimo e fica. Os 30 ou 40 primeiros capítulos escrevo absolutamente sozinho, e elas lêem assim que termino, antes que mande para a produção. É o primeiro feedback que tenho.

 

Como são elas?

Uma é casada, 42 anos, tem dois filhos. Uma é solteira, separou agora de um namorado com quem vivia há muito tempo. Uma outra é escritora, branca, casada com um negro, professor de literatura. A outra é gay. E a outra é casada com um rapaz que é dono de restaurante e que fez curso de literatura na Universidade Católica. Têm várias culturas: uma é bem de vida, a outra lida com uma dificuldade filha da mãe, uma tem filhos, a outra não pode ter filhos. Essa que é casada com o negro, conheço a luta que teve para vencer o preconceito da família – e não venceu, acabou por se distanciar. Tudo o que elas são vem na apreciação que fazem dos meus capítulos.

 

Numa segunda fase, elas começam a escrever.

Até que todos os personagens fundamentais entrem – são uns 60 –e tenham uma fisionomia reconhecível, não quero que elas escrevam, senão me confundem. Depois que sabem como eles pensam, começam a colaborar comigo.

 

Diariamente, tem uma reunião?

Fiz durante muito tempo uma reunião semanal, aqui nessa mesa; depois, quinzenal; agora, quando é necessário a gente faz. O computador mudou tudo, o telefone nem uso, sei que elas estão diante do computador o dia inteiro, como eu. Hoje vou ter uma reunião porque falta já pouco para acabar, precisamos definir os rumos dos personagens.

 

A distância entre a escrita, a gravação e a emissão vai sendo cada vez mais curta?

Se pudesse, escrevia hoje para gravar amanhã. Há até uma brincadeira que fazem comigo, outros me largam pau: de que escrevo na última hora. É também um pouco de folclore, na Globo dizem que não atraso. Eu preciso sentir o capítulo. É também por uma razão que se acentuou com a idade: não abri mão da minha vida pessoal.

 

Que é que isso quer dizer?

Vou ao cinema, venho jantar, saio com a minha mulher. Os autores normalmente ficam encarcerados um ano, não saem nem para o enterro da mãe. Evidentemente que reduzo muito. Quando não estou fazendo novela, aqui ou nos Estados Unidos, (vou muito para lá), vou ao cinema todos os dias. Escrevendo a novela vou uma vez por semana. Daqui a uma semana faço 77 anos, não tenho mais como abrir mão de nada. É muita vida já e sobra pouco para viver.

 

Escreve com que distância da emissão?

Varia muito. Normalmente os autores têm um distanciamento de 18 capítulos, às vezes até mais. Eu tenho de uma semana, dez dias. Está gravando hoje o que vai no ar daqui a uma semana. Não é problema para a Globo que hoje tem uma infra-estrutura em que grava um capítulo por dia se quiser. Sai cinco frentes de directores, cinco equipas de cameramen, é só coordenar. E tem que dar um tempo mínimo para os actores decorarem. Dou em cima da hora mas exijo que seja dito tudo direitinho.

 

Disse que já é muita vida para trás. Isto que agora faz, com este sucesso, aconteceu depois dos 50.

A primeira novela que escrevi para a TV Globo foi “Maria, Maria”, em 1976, tinha 40 e poucos anos. Sou da primeira geração que trabalhou para a televisão.

 

É um fundador.

Na época fazia-se de tudo. Não existiam pessoas especializadas. A televisão foi inaugurada de uma maneira improvisada, em São Paulo, por um louco, Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados. Os técnicos: mandou uma dúzia para os Estados Unidos, aprenderam e vieram. E gente para escrever? E para dirigir? E para representar? Não tinha ninguém. Por não terem como preencher toda a programação, recorreram ao teatro amador, que em São Paulo era forte. Eu era actor amador. A televisão foi inaugurada em Setembro de 1950 e em Março de 1951, seis meses depois, fiz 18 anos. Na mesma semana, estreei como actor de televisão.

 

Qual era o seu sonho de menino, ser galã de televisão?

De jeito nenhum. Era ser escritor. Quando era pequeno, via nas antologias um soneto do Olavo Bilac ou um conto do Machado de Assis e vinha assim: “da Academia Brasileira de Letras”. Eu dizia: “Quando crescer quero entrar para essa Academia”. Pensei que fosse uma escola. Fiz muita poesia e publiquei livros de poesia. Um dia, no grupo amador do meu bairro, iam fazer uma peça, o director falou: “Você gosta tanto de escrever, dá uma lida e mexe um pouquinho”.

 

Quando apareceu a televisão, dá o salto.

Eu e mais dois ou três que já morreram pegámos em scripts internacionais de cinema. Comecei a fazer script de televisão baseado nisso. Até hoje a nomenclatura usada é a mesma. Comecei a adaptar, fiz muito Tchekov e Pirandello. A televisão não tinha videotape e não tinha corte. Para ter uma outra cena com o mesmo actor, fazia-se uma cena intermediária para ele ter tempo de mudar de roupa. Às vezes o actor passava gatinhando do lado da câmara para ir no outro cenário…

 

Eram os primórdios da televisão brasileira.

Eram. Em 1955, 1956, 1957 escrevi para o grande teatro Tupi, feito por um grupo ao qual eu pertencia, com Sérgio Brito, Fernanda Montenegro, Natália Thimberg, Ítalo Rossi (os maiores actores brasileiros da época). Adaptei mais de 100 romances, 100 histórias para televisão, para esse grupo! Dostoievski fiz quatro, Balzac, cinco.

 

Como é que tinha tempo para fazer isso tudo, ler os livros e fazer a adaptação?

Tinha já um bom cabedal de leitura, tinha uma semana para fazer. Com 19, 20, 21 anos escrevia de manhã à noite, exactamente o que faço hoje. Chegava a levantar de manhã e ficar de pijama até à hora de dormir – e era máquina de escrever, com carbono, ficava todo azul.

 

Seria um bom título para si, “O homem da máquina de escrever”? Embora agora seja do computador.

[risos] A máquina de escrever, usei até há pouco tempo. Quando chegaram as máquinas eléctricas, cheguei a ter três, porque às vezes quebrava e não podia parar. Tenho uma leitura dinâmica incrível. Para fazer esse trabalho, não leio na horizontal, leio na vertical. Fiz um curso sobre isso em S. Paulo, na época do Kennedy (diziam que tinha a tal leitura dinâmica). Bato os olhos numa página e sei exactamente o que me interessa ler.

 

Como é que desde o princípio percebe o que é que realmente interessa e o que é que prende o leitor? Intuitivamente?

Intuitivamente, e o conhecimento que você tem de literatura. Nunca adaptei nada de que não gostasse ou que não conhecesse. Só quando fiz “Maria, Maria” é que nem o autor conhecia (Lindolfo Rocha, um autor brasileiro do começo do século XX). Foi o Paulo Mendes Campos, um escritor brasileiro, que sugeriu. Disse que ia dar uma bela novela das seis da tarde. Agora, quando adaptei Dostoievski, tinha lido todo o Dostoievski.

 

Em que momento da sua vida desistiu de ser um escritor que é admitido na Academia? Para muitos, o que faz é uma arte menor.

Foi um problema de sobrevivência. Me casei com 18 anos.

 

Porquê?

Porque me apaixonei por uma menina que era bailarina, que tinha 16 anos, e ela ficou grávida.

 

É sempre o contingente a definir a vida?

É. O meu primeiro filho nasceu quando eu ainda não tinha 19, o segundo nasce quando tinha 20. Precisava sustentar minha mulher, dois filhos e minha sogra. Meu pai me ajudou muito. Tive que me render à televisão porque era uma coisa que pagava muito bem. A demanda era grande e não havia mão-de-obra. Escrevia para o Rio de Janeiro os mesmos textos que eram feitos em São Paulo, escrevia para a TV Jornal do Comércio de Recife, escrevia para um grupo na TV de Belo Horizonte.

 

Gosta do que escreveu nessa altura?

Gosto, descontando toda essa técnica, ou falta de técnica.

 

Como é que era esse jovem rapaz a escrever, que mundo é que ele espelhava?

Era extremamente literário. Com 14, 15 anos de idade tinha lido todos os romances de Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queirós (escondido da família, eu e minhas irmãs, porque meus pais não permitiam que se lesse Eça de Queirós).

 

O que é que fez durante o período da ditadura militar?

Nunca sofri censura política. A censura que senti foi a moralista, conservadora – porque tem uma prostituta na novela… Mas durante esse tempo, fiquei desempregado muitas vezes. Recebia metade do salário, a outra metade ficava para o mês seguinte. Muita televisão fechou, muitos grupos se dissolveram. Já estava escrevendo para televisão e fui vendedor de assinatura de revista, de porta em porta.

 

É curioso que o dinheiro, que é uma mola na vida das pessoas, e que o foi na sua, não apareça permanentemente nas suas novelas.

Nem um pouco. Quando minha mulher deixou de amamentar, eu andava quilómetros a pé para ir buscar leite para o “nenêm” na casa dos meus pais, porque estava sem dinheiro para comprar.

 

Não usar o dinheiro como tema, é uma recusa desse quadro, disso que viveu?

Não, até conto isso com muito carinho. Foi uma época de dureza mas de muitos sonhos, de muita juventude. Não passei isso sozinho. Outro dia estava com a Fernanda [Montenegro], conversando sobre isso; nós fazíamos teatro na Companhia Maria Della Costa, em 1954, e íamos para casa de um (ou a minha ou a da Fernanda) fazer macarrão para todo o mundo comer. Macarrão com pão, água, às vezes dava para comprar uma cerveja. Ninguém tinha dinheiro para ir no restaurante. Tínhamos salário, trabalhávamos numa companhia profissional, mas o dinheiro era curto.

 

A razão de usar nas novelas muitos actores de teatro tem a ver com a sua relação antiga com o teatro?

Tem. Considero o teatro pai e mãe do acto de representar. Para mim, vem do teatro, já tem crédito. Na televisão não precisa nem saber ler, a não ser para decorar.

 

Fale-me agora dos anos em que foi director e realizador de programas de televisão, nomeadamente do “Fantástico” e do “Fino da Bossa”.

Em todos esses programas, eu escrevi. No “Fino da Bossa”, tudo o que Elis Regina dizia era eu que escrevia, e era o director e produtor do programa. No “Fantástico” fui o primeiro director-geral, mas escrevia aquelas “cabeças” em que aparecia a Regina Duarte e que anunciavam o número. Eu tinha um programa que inaugurou a TV Excelsior chamado “Brasil 60”. Um dia, vim ao Rio de Janeiro para dirigir o primeiro show do Chico Buarque no Canecão. Ele me convidou.


Chico apareceu no programa de Elis Regina, o “Fino da Bossa”.

É. Mas antes disso, quando lançou o primeiro disco, “Pedro, pedreiro”, eu fazia um programa na TV Record, “Astros do disco”, e botava sempre ele para defender [a música]. Como se ele vendesse muito... Mas não vendia, não. Éramos muito amigos. Com o Roberto Carlos foi a mesma história. Bom, vim fazer o Chico no Rio em 1971 – era uma coisa pretensiosa. Chico já era uma paixão das moças. Fiquei no Rio de Janeiro. A oportunidade existia. Eu era aquele homem que fazia tudo.

 

Como se deu o encontro com Elis Regina?

Fiz o “Brasil 60”, apresentado pela Bibi Ferreira [actriz e cantora]. Em 1961 ou 1962, os patrocinadores do programa fizeram uma reunião comigo e disseram que gostavam de uma apresentadora de Porto Alegre. Fui para lá, desfilaram vários cantores e cantoras na Rádio Gaúcha e ela era surpreendentemente melhor que todos eles.

 

De certa maneira, foi quem descobriu Elis Regina.

Fui. Depois contou-se isso de outra maneira. Mas a primeira vez que ela se apresentou foi num programa meu. Foi chamada imediatamente para o Rio de Janeiro porque só aqui é que acontecem as coisas, até hoje. Quando fui fazer o “Fino da Bossa”, lembrámo-nos imediatamente da Elis Regina. Ela já tinha ganho o festival, com “Arrastão”, do Edu Lobo. Fiz dois anos o programa com ela. Aí ela ficou namorando o Ronaldo Bôscoli, e ele, que era muito meu amigo, ficou cheio de cerimónia para dizer se eu me aborreceria se ele passasse a ser o director do programa. Porque ia casar com ela.

 

O Bôscoli tinha trocado a Nara Leão pela Maysa, e acabou por casar com a Elis. A primeira troca marca uma cisão no grupo da Bossa Nova.

Ele tinha um apelido muito engraçado, sabe? “Cometa”. Porque estava sempre na cauda de uma estrela [risos]. Por coincidência, as três morreram de maneira muito dramática. Ele morreu com uma cirrose brutal, bebia muito. Mas não só ele, todo o mundo na época bebia muito.

 

Ainda não falámos dos excessos que marcaram uma geração. Álcool, maconha, cocaína.

Fumei maconha três ou quatro vezes porque alguém estava fumando e experimentei. Não tive nenhum amigo que fumasse maconha. Elis é de uma geração posterior. A entrada da cocaína nesse circuito artístico é mais recente. Na época da minha juventude, a maconha era uma coisa consumida por vagabundo. Quando era menino, o sujeito que conheci que fumava maconha era um negro chamado Genésio, guardador de carro de um posto de gasolina.

 

Havia uma distinção social a partir das drogas que eram consumidas.

Muito. Em 1948, 1949, quando inaugurou o Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, se falava em cocaína e morfina, dos poetas que usavam cocaína. Mas era um negócio que para nós soava estranho, não tinha nem ideia se era pó, se era injectável. A minha geração é álcool e cigarro. Fui um bebedor de uísque, de seis, sete doses todas as noites. Parei de beber em 2001 (não posso esquecer porque foi o ano das Torres [Gémeas] e estava em Nova Iorque). Parei de fumar também.

 

Isso aparece nas suas novelas? Há um lado que nunca é completamente sujo, dependente. Enquanto espelho de uma sociedade, isso quase não tem presença.

Às vezes menciono, mas é proibido. Você pode dizer que fulano é um drogado mas não pode mostrar consumindo droga. Há pouco tempo usei: “Me dá um tapinha”. Me dá uma fumada de maconha. Ou “bagulho”, que no morro carioca é maconha (o “Benê”, que mora no morro, fala).

 

Voltando ao seu percurso. Que outras coisas destacaria?

Fazendo o “Fino da Bossa”, tivemos a ideia de fazer o “Bossaudade”. Era pegar a velha guarda e em contraposição a Bossa Nova. Contratámos a Elizeth Cardoso, “a divina”. Disso nasceu a “Jovem Guarda”. Ficou Elis Regina, Elizeth Cardoso e Roberto Carlos. Como tínhamos um elenco muito grande de cantores fizemos “Essa noite se improvisa”.

 

Título de Pirandello.

Que eu dei, e que no Rio passava com o nome “A palavra é”. Chico Buarque se destacou muito, ganhava todas. Tínhamos mais de 400 contratados e precisava dar vazão a isso: havia dois programas musicais por dia para pôr essa gente a cantar. Nessa época se trabalhava na televisão como se fosse um emprego qualquer. Todos íamos para a televisão 10, 10 e meia da manhã, saíamos para almoçar em casa, voltámos e ficávamos até às sete horas da noite; depois íamos para o teatro e lá fazíamos os programas, terminava tudo pelas 11 horas. Elis, Elizeth, nós todos, comíamos numa pizzaria perto. Íamos para casa dormir e no dia seguinte de manhã voltávamos.

 

Como quem vai para o escritório.

Sim. Depois os artistas ficaram muito importantes – não eram. Mesmo em termos de dinheiro, não eram. Me lembro do primeiro salário do Roberto Carlos, 2000 cruzeiros. Quem assinou o primeiro contrato dele e da Elis com a TV Record fui eu, em nome de Paulo Machado de Carvalho, que era o dono. Não era esse profissionalismo até certo ponto selvagem que se instalou depois. Me lembro que oferecemos o que seriam agora 2000 reais para o Roberto, para o Erasmo [Carlos] 1500, para a Wanderléa 1500. O Roberto disse que não fazia a não ser que os três salários fossem iguais. O Roberto foi sempre um homem de extremo bom carácter. O Chico [Buarque] também. Mesmo com muitas dificuldades. Eles ganhavam muito mal, o show era precário. Isso aproximava muito as pessoas.

 

Quando é que o sucesso e o dinheiro foram uma certeza na sua vida?
Para valer, foi em 1960 com a TV Excelsior, onde fui um dos directores e escrevia programas de televisão.

 

Outro capítulo, outro personagem – como nas novelas. Para falarmos do seu percurso pessoal. Como é que podemos definir este “personagem” que você é nos seus traços principais? O que é que é determinante na sua vida?

Nunca ter parado de trabalhar. É um personagem que tem que trabalhar porque tem família muito cedo, carrega-a muito cedo. Talvez isso resulte no facto de ter sempre criança em novela. Não me lembro de mim sem criança, a vida inteira trabalhei com criança perto, interrompendo. Nunca fechei a porta do meu escritório. Parava no meio do capítulo para apontar [afiar] lápis para filho. Talvez isso seja uma resposta ao meu pai. Para ele o trabalho estava sempre em primeiro lugar.

 

O que é que ele fazia?

Era um industrial, muito bem de vida. Acabou feliz e modestamente com a minha mãe. Já morreram os dois. O meu pai orgulhava-se muito de dizer que não levava problemas para casa. A família era uma coisa totalmente à parte. A vida do trabalho, dos amigos, do clube social, era outra vida. Nunca vi meu pai comer em mangas de camisa, nunca vi o meu pai sem paletó e sem gravata, só quando levantava de manhã ou quando ia dormir de pijama. Essa coisa da formalidade, da família muito querida mas muito distante, sou o oposto. Minha mulher morou em Paris um ano, sozinha, eu fiquei com os filhos; e morreu muito cedo, com 37 anos fiquei viúvo. Tudo isso dá uma proximidade. Até hoje não durmo direito se um filho não chegou.

 

A sua mãe, como era?

Sou muito parecido com ela, quase de uma maneira mediúnica. De uns anos para cá, estou com a letra parecida com a da minha mãe. Essa afinidade, nunca senti com o meu pai. Estava sempre com pressa.

 

Tudo isso se reflecte nos seus ambientes.

O meu pai foi muito bom pai-ausente, a minha mãe muito presente. Se tinha problemas, meu pai me despachava, que eu era muito levado, malcriado. Ele me mandava para casa da minha avó. Com 11 anos, não aguentou mais e me trancou num colégio interno, distante. Fiquei nesse colégio quatro anos, com padres agostinianos, uma disciplina brutal, e foi a melhor coisa que podia ter acontecido na minha vida.

 

Porquê?

Foi onde descobri a literatura. Os padres eram espanhóis, falavam do Cervantes, contavam dos espectáculos que tinham visto em Espanha, Portugal, Itália. Li Kafka com 17 anos, em espanhol. Havia teatro porque eles incentivavam. Apanhei muito, eles batiam muito.

 

As suas Helenas são estóicas.

São. O que gosto muito nas minhas Helenas é que são extremamente imperfeitas como heroínas. Todas elas mentem, todas elas traem, têm muitas fraquezas humanas. Sou capaz de mencionar todas as traições que elas fizeram.

 

E as suas, consegue identificá-las? Até onde é que são as suas imperfeições que ali estão?

Não saberia identificar com muita correcção, mas certamente estou lá. Tudo o que se escreve é autobiográfico, mesmo que se disfarce. Para mim escrever é um acto de confissão.

 

Há um outro aspecto nas suas novelas: as heroínas são imperfeitas, mas quase sempre se recuperam e acabam virtuosas.

É porque elas erram muito por amor ou em nome do amor.

 

Quando é que se permitiu a irresponsabilidade?

Nunca me permito muito. Mas sou tolerante às imperfeições e irresponsabilidades dos meus filhos. Muito mais que minhas três mulheres. Aquele pai: “vou contar para o seu pai!”, no meu caso foi sempre: “vou contar para a sua mãe”. Nunca bati num filho, nunca castiguei de maneira enérgica. Fui preso nesse colégio para ser castigado, para ser recuperado. Meu pai acertou por vias tortas, acertou errando. E nunca me formei em nada, não tenho nem diploma de grupo escolar nem de alfabetização. Fiz muitos cursos de literatura portuguesa e brasileira. Sou um autodidacta absoluto.

 

 

Publicado originalmente no Público

 

 

António Ramalho

07.02.14

“Vou dizer-lhe uma coisa de que me orgulho: quando entrei no BPSM em 1990, tinha um milhão de contos no Fundo de Pensões. Quando saí, tinha 108 milhões”.

Isto foi dito na fase em que António Ramalho me falava das suas conquistas profissionais. Um pouco de crista levantada. Mas uma pessoa dá uma entrevista e deve mostrar o seu melhor lado. Sobretudo, deve manter a discrição que é devida a um banqueiro. Algures na conversa, no almoço que antecedeu a entrevista, comentava que não se deve conhecer a mulher de um banqueiro. Que é uma forma de dizer que este mundo – entenda-se: a banca – não está para gente que aparece nos jornais em mangas de camisa.

Mesmo assim, decidiu dar uma entrevista em que expõe vulnerabilidades, fala da família e diz coisas que um gestor armado em durão não diz. Obrigada pela confiança. Durante a conversa ele esteve em mangas de camisa. Pode ser bastante informal, e é agradável conversar com ele.

Porque é que me deu a entrevista, a primeira entrevista em que fala de si e da sua vida? Porque ele já é o António Ramalho. Ou seja, um presidente de uma empresa que não é uma qualquer; e faz parte do pacote dar entrevistas onde o líder revela o seu lado mais humano. O que tem um pai e uma mãe, as crises, as indecisões, os erros, as fracturas.

A tendência foi inclinar a conversa para o técnico; era a parte em que eu ficava a ver navios. O fundo de verdade, seco, o osso, sem escusas, está nas páginas seguintes. Ficamos a saber razoavelmente quem ele é, o que o fez ser como é,

António Ramalho é formado em Direito. Não tem nem 50 anos. Já foi muito. Ainda pode ser tudo. Ele acredita que sim, e não é o único. É um gestor que rói as unhas. Um compulsivo que debita uma quantidade inimaginável de palavras por minuto. Tem uma voz tonitruante. Continua a ter um ar vagamente traquina, vestígios de um enfant terrible, e pode rir muito. É um presidente que usa um telemóvel baratucho porque queriam uma roubalheira por um melhor.

Em que é que ele é mesmo bom? Porque é que ele está onde está, tão cedo? Porque é que tudo lhe aconteceu tão cedo? Ele tem consciência de tudo isso, e di-lo na entrevista.

 

 

Como conheceu Champalimaud? Vamos começar por essa fase da sua vida.

Conheci António Champalimaud em 1992 quando ele voltou para Portugal. Estava a concorrer à Mundial Confiança. Eu era director financeiro do Banco Pinto e Sotto Mayor (BPSM). O primeiro encontro foi rigorosamente profissional. Foi em casa. O senhor António Champalimaud trabalhava sempre em casa. Era uma pessoa muitíssimo simpática. Criou-se o mito da dureza, mas era muito atencioso. Quando se tratava de negócios, exigia não só resultados como capacidade de decisão. Admito que tenha transmitido essas características ao filho, que foi a pessoa com quem trabalhei mais.

 

Tinha uma grande expectativa em relação a esse “personagem”? Já havia um lado mítico associado a Champalimaud.

Champalimaud era um industrial particularmente relevante. Conheci-o depois do 25 de Abril; o que representa conhecer uma geração de empresários que estavam a tentar reconstruir-se de novo em Portugal, depois de um processo de nacionalizações. O grupo Espírito Santo, o grupo Mello e outros passaram pelo mesmo percurso.

 

Esteve com esta família num momento particular da sua história. O que é que aprendeu?

Isso já foi em 1994. Em 1993 fui convidado para a administração do BPSM. Tinha 30 e poucos anos. Estava-se num processo de privatização. O banco acabou por não ser vendido. A única proposta foi do BCP e o Estado decidiu não vender por ser uma proposta abaixo do preço de referência que existia. O banco foi comprado num segundo processo de privatização. O meu contacto com a família Champalimaud foi após a privatização. Fui o único administrador a passar para o grupo Champalimaud. Fiquei eu e o presidente.

 

Porque é que acha que passou? Que comportamento foi o seu para ditar essa transição?

Tem a ver com o quadro que se vivia. Estávamos a sofrer um conjunto de revoluções simultâneas na banca. Uma revolução tecnológica, uma liberalização, uma revolução de mercados. A banca tinha resquícios da banca pública, tinha suportado o processo do pós-Revolução. Exigia uma reestruturação profunda. Fui para o BPSM em 1990. O banco teria um milhão de resultados por ano, 8% de rácio de crédito vencido, 800 milhões de contos de carteira de crédito, 8500 trabalhadores, 120 balcões, um coast income de 70%; era um banco que tinha um milhão de contos no Fundo de Pensões, e uma conflitualidade sindical brutal. Entre 1990/94 foi feito um plano de recapitalização do banco, com operações apoiadas pelo Estado, foi feita uma redução da carteira de crédito e de custos de pessoal.

Houve um conjunto de pessoas que tinham condições adequadas para responder a este desafio. Falavam inglês – e não francês –, tinham um domínio tecnológico e informático, tinham capacidade de se adaptar ao momento presente. Essa era a prioridade estratégica dos bancos. Eu estava no sítio certo no momento certo.

 

O que é que aprendeu nessa fase? Profissionalmente fez-se aí, adquiriu aí muito do que hoje sabe?

Sem humildades, eu já devia ter alguns skills. Uma vez que tinha sido director financeiro, director de mercado de capitais, administrador do BPSM. Eu tinha já um percurso sufragável. O que é que aprendi? Que a ambição se pode reconstruir.

 

O que quer dizer: não desistir nunca.

Sim. Aprendi que nada se faz sem assumir riscos. Que o risco é a essência dos negócios e das decisões. E aprendi que a riqueza é uma coisa que se gera e que não se apropria. Esta família não tinha qualquer ansiedade de apropriação de riqueza; media-se pela geração de riqueza que conseguia produzir. Em postos de trabalho, em empresas que detinha, em resultados que conseguia gerar.

 

Vamos dissecar isso que aprendeu.

A derrota é meramente pontual. É o início do novo desafio, é só um caminho para uma nova vitória. Não há nada tão forte que aniquile a capacidade de ambicionar e de encontrar soluções para ambicionar. E isto mesmo faz-se assumindo riscos, conhecendo os riscos, e sabendo que não há solução senão os riscos. O que caracterizava a família Champalimaud era a capacidade de se assumir riscos individuais, e quase intuitivamente.

 

Não referiu uma coisa que pensei que tivesse aprendido com a família Champalimaud. A segurança de que o dinheiro aparece sempre. Há riscos que se podem tomar porque aparece sempre alguém para pagar o cheque. Não passa pela cabeça que o cheque seja devolvido.

Não sei se concordo inteiramente com isso. O dinheiro apenas serve para criar riqueza. E deve ser cautelosamente tratado. Há aquela graça: “Rico não é o que ganha muito, é o que consegue não gastar”. [riso]

 

Poupa no papel e escreve nas costas das fotocópias.

Sim, e substituo as velhas canetas entregando as antigas já consumidas. Isto é: gerir o património que não é nosso – é dos accionistas – com toda a cautela e frugalidade. É uma filosofia que mantenho integralmente. Nós tínhamos uma assinatura: António Champalimaud. Era uma assinatura fantástica, com um valor incalculável. Não era só um empresário: era um mito. É um orgulho enorme ter trabalhado nesse grupo. E tínhamos um líder: Luís Champalimaud. É um filho que não sei quantos empresários têm. Com aquela assinatura e aquele líder construiu-se um grupo. E isso mede-se. Mediu-se.

 

O que sentiu quando saiu do grupo?

Não saí do grupo, o grupo foi vendido. Com muita tristeza. Nós tínhamos estado sempre a comprar. O Totta, o Crédito Predial, o Chemical. Havia um instinto ganhador. E há um momento em que é feita a aquisição do banco. Tinha várias oportunidades e optei pelo Santander. Mas estou a fugir à sua pergunta: foi o fim de um ciclo. Foi uma década de ouro da actividade bancária. É um período de reconstrução e reconsolidação da banca. Há uma revolução feita entre 1992 e 2000. As pessoas que participaram neste processo (Artur Santos Silva e Fernando Ulrich, Jardim Gonçalves, Christopher de Beck, Filipe Pinhal, a equipa do Espírito Santo com Ricardo Salgado, a equipa da Caixa Geral de Depósitos com Rui Vilar e João Salgueiro) criaram um dos melhores sistemas financeiros da Europa. Provavelmente o segundo melhor. O melhor estava aqui ao lado, em Espanha. 

 

Viveu tudo isso muito jovem. As pessoas que nomeou pertencem a outra geração.

Aprendi com elas.

 

Horta Osório foi o nome mais proeminente da sua geração.

Sim. Mas há nomes que às vezes passam mais despercebidos.

 

O que quero é provocá-lo e perguntar se quando Horta Osório foi para presidente do Santander pensou que aquele lugar, potencialmente, também podia ser seu.

Não. Nós não somos tão calculistas. [riso]

 

Não acredito.

Há coisas que têm a ver com o momento. Se não fosse a saída do Dr. Farinha Morais do BPSM – que criou uma vaga; o estarmos em processo de privatização e a dificuldade em fazer contratações, provavelmente Fernando Almeida não teria escolhido o seu mais jovem director financeiro, de nome António Ramalho. Foram as circunstâncias. Pode dizer-me que são os meus méritos. Mas isso é a condição mínima e necessária.

 

Não é condição suficiente?

Pode não ser suficiente. Tenho a certeza que uma das coisas que me permitiram crescer no BPSM foi ter um número dois muito bom. Podia sempre ocupar os meus lugares. É importante ter um substituto, alguém que queira o nosso lugar. Cria uma dimensão de competitividade e facilita-nos a aceitação de novos desafios.

 

Está a dizer que nunca temeu ter um número dois que lhe mordesse as canelas?

A competição é uma inevitabilidade e temos de estar sempre preparados para perceber quando é que perdemos na competição.

 

Mas estávamos a falar do trabalho com uma geração que não era a sua.

Todo o processo foi feito por uma junção de gerações. Sou entusiasta disso porque sou filho de um director de banco. O meu pai já faleceu, já tinha falecido nessa altura. Trabalhei com os amigos do meu pai. Fomos capazes de aprender num processo mútuo, e de sentir um respeito mútuo.

 

Vamos lá atrás para saber como se fez, quem é. Que homem é este com quem estou a falar?

Sou uma pessoa de todo em todo normal.

 

Para já, é um beto que usa expressões como “de todo em todo”.

Não sou nada! [risos] Sou filho de uma ruralidade lisboeta, dos bairros rurais que ficam para lá das quintas de Benfica. O metro era em Sete Rios e era preciso apanhar correspondência, nada havia até S. Domingos de Benfica. Convivíamos naquele espaço fechado. O cinema de Benfica era no centro paroquial; havia 300 lugares onde ao domingo nos sentávamos a ver um filme. A pessoa predominante era o Padre Álvaro Proença. Benfica tinha o maior agrupamento de escuteiros do país porque todos os filhos dos habitantes de Benfica eram escuteiros. Sabíamos quem eram os da Situação e os da Oposição, qual era o café da Situação e o da Oposição. Andei no Externato na Luz até à quarta classe e na Preparatória passei para a [Escola] Pedro Santarém, que era em frente a minha casa. Tocava a sineta, eu ouvia, e ia a correr para chegar ligeiramente atrasado. Portanto, não era tão betinho.

 

É filho único?

Não. Tenho um irmão quatro anos mais velho. O meu pai trabalhou toda a vida num banco de fomento. Acabou por ser director, mas licenciou-se tarde. É uma pessoa cheia de méritos. Tirou três anos de Matemática, onde conheceu a minha mãe, que é licenciada em Matemática. Depois teve de trabalhar para ajudar a família, alentejana. Acabou por licenciar-se em Económicas; aliás, em Finanças. Ele dizia sempre que tinha seguido o ramo das Finanças, no ISEG. Já tinha 40 anos.

 

É um exemplo, o do seu pai.

O verdadeiro exemplo foi o que recebi dos meus pais. Que tudo era feito com trabalho, que a estrutura familiar é o único suporte que temos. Que temos de fazer um esforço traduzido em resultados, em sucesso. Nos seminários que dou, digo é que preciso 90% de transpiração, 10% de inspiração e 100% de convicção! Isto só vai lá com 200%!

 

Como era a vossa relação?

Muitíssimo próxima. Sempre vi o meu pai a trabalhar muito. Aprendi com ele a trabalhar em excesso. Gosto de trabalhar! O meu pai trabalhou até aos 63, e faleceu logo a seguir. Gozou muito pouco a reforma.

 

Isso funcionou como um cutelo sobre si, impele-o a viver intensamente?

A vida tem-me acontecido sempre cedo. Mas tem-me acontecido. Comecei a trabalhar na faculdade porque queria ganhar dinheiro. Tinha 19 anos. Consegui fazer a universidade sem nenhum atraso.

 

Quem pagou a Universidade Católica? O seu pai ou o resultado do seu trabalho?

Foi o meu pai. O meu pai discordava da minha opção de trabalhar e cortou-me a mesada. Dizia que quem trabalha tem de assumir com profissionalismo o seu trabalho. Devia depender do meu salário e não diletantemente da mesada. Senti que era uma injustiça. Mas hoje percebo-o.

 

Então?

Se eu queria trabalhar e estudar, tinha de ser profissional nas duas coisas. O meu pai não queria que eu trabalhasse, porque trabalhou para tirar o curso, teve dificuldades, e queria, como todos os pais, que a vida dos filhos fosse melhor.

 

Foi trabalhar porque queria estar por sua conta?

Sim. Sem romantismos: queria ter algum dinheiro. E quando acabasse o curso queria casar. Já tinha encontrado a mulher da minha vida. E assim aconteceu. Era preciso criar as condições.

 

Outra coisa que aconteceu cedo.

É verdade. Casámos com 23 anos. Tivemos uma filha dois anos depois.

 

No grupo Champalimaud aprendeu que é sempre possível re-ambicionar. Quais foram os grandes reveses da sua vida a partir dos quais pôde re-ambicionar?

Entusiasmei-me muito com um projecto no grupo Santander – o projecto Crédito Predial. Não resultou. E foi um erro de avaliação. Foi um revés que me levou a reavaliar o meu quadro mental. Levou-me, até, em 2003 a sair da banca. Estava a fazer dez anos de administração, tinha 43 anos, estava cansado da banca. Mas temos reveses todos os dias.

 

Tem um perfil de um indivíduo católico.

Tive uma educação profundamente católica.

 

Nunca perseverou no catolicismo o suficiente para ser cobiçado pela Opus Dei?

[pequena hesitação] Não lhe respondo a essa pergunta.

 

É também uma maneira de perguntar até onde é ambicioso.

O meu modelo é o de uma profunda independência de espírito. Mas não lhe respondo, essa pergunta não faz sentido. Não sou da Opus Dei. Não gosto de falar da minha religiosidade; é mais fraca do que eu gostaria. Vivo esse conflito comigo próprio.

 

Acredita menos do que gostaria?

Tenho mais dúvidas do que gostaria. A vida é mais fácil quando temos menos dúvidas. Sobretudo quando o nosso quadro educativo e os princípios morais são esses. Mas a religião é também uma máquina montada, um conceito, uma estratégia.

 

É uma casa de poder.

Pois. Essa parte entusiasma-me menos. A religiosidade é uma coisa íntima.

 

Por que quis assentar cedo?

Já lhe disse que a vida não é tão calculada assim. Tinha encontrado a mulher da minha vida. Aliás, encontrei-a no jardim infantil. A minha sogra foi visitar-me quando eu nasci! Reencontrei-a [a mulher] na faculdade.

 

Estou também a perguntar-lhe se não foi velho antes do tempo.

Tenho tentado ser jovem. Sim, a questão do envelhecimento coloca-se – estou a aproximar-se dos 50. Tive uma depressão de dez minutos quando fiz 29 porque no ano seguinte teria 30. Ridículo. 

 

Ainda que não tenha sido uma estratégia, o seu percurso é colado ao do seu pai. Como se o vingasse e conquistasse o que ele não pôde conquistar.

Do ponto de vista emocional, isso não está lá. Do ponto de vista real, está. O meu pai não precisava de ser vingado. Teve uma vida difícil, esforçada, mas sentia-se recompensado pela vida. Foi ficando cada vez mais bem-disposto com o tempo. Eu sou do estilo da minha mãe: bem-disposto de origem. O meu pai derretia-se com as netas. Ao contrário da minha mãe, que gostou imenso de ter filhos rapazes, e depois teve cinco netas! Uma parte gaga. A minha mãe ainda é viva. Nunca se recompôs da morte do meu pai, e foi decaindo.

 

Como foi a relação com o seu irmão? Ele achou graça ao fedelho que chegou quatro anos mais tarde?

Sempre foi boa. Quando fui para a escola primária chamavam-me Jaiminho. 

 

Tendemos a esquecer que as fratrias são das relações mais duradouras das nossas vidas. E competitivas. Foi com o seu irmão que aprendeu que podia ter um número dois que queria o seu lugar?

Isso tem mais que ver com a competitividade que encontrei na escola, na vida, e com características inatas. Sou competitivo. Quando jogo, mesmo que seja a brincar, quero ganhar. Quando estive em Oxford, houve um jogo de snooker e eu não era, de longe, o melhor jogador; esforcei-me de tal maneira que cheguei à final, e ganhei. Tenho lá a taça.

 

Porque é que é tão horrível para si perder?

Não é horrível. Divirto-me quando perco. Não instantaneamente. Mas dez segundos depois já estou a rir-me de mim próprio. Saint Exupéry tem uma frase fantástica na “Cidadela”; diz que o melhor adversário do jogador de xadrez é o campeão do mundo. Sabemos que vamos perder, mas temos a ligeira oportunidade de poder ganhar. Este desafio é constante. 

 

Essa frase persegue-o?

Procuro sempre essa ligeira oportunidade de ganhar e não acho que nenhum resultado esteja estabelecido.

 

Com quem aprendeu a jogar xadrez?

Com o meu pai. Perdia sempre. Até lhe ganhar.

 

Descreva-me o momento em que lhe ganhou. (Descreve pouco, elenca acontecimentos, factos).

Não me lembro do jogo que ganhei. Lembro-me de quando comecei a inverter a tendência para perder. A minha filha mais nova joga.

 

Deixa-a ganhar?

Nunca. Posso explicar-lhe, voltar atrás com as peças, mas tem de ganhar por mérito próprio. Quando ganhei ao meu pai tinha 18 anos. O meu pai era menos competitivo do que eu sou. A minha mulher é também competitiva. É uma académica, acabou de se agregar; tem a minha idade. Gostamos do sucesso um do outro.

 

A família é verdadeiramente o seu núcleo?

Sim. A minha sogra foi uma segunda mãe. É uma pessoa importantíssima na minha vida. Assim como o meu sogro, que tem o nome do meu pai. Havia muitos Jaimes…

 

O seu pai, o seu sogro, o seu irmão. Freud explains!

[riso] Não me venha dizer que é o Freud!

 

Indo outra vez lá atrás: porque estudou Direito?

Apanhei o 25 de Abril com 13 anos. A minha mãe é matemática, o meu pai financeiro, o meu irmão estava a tirar engenharia electrotécnica. Um excesso de ciência. Sempre fui bom aluno a matemática. Só tive, aliás, duas notas: 18 ou 20.

 

Ficava furioso quando tinha 18?

Não. Sempre convivi com pessoas melhores do que eu.

 

Isso é politicamente correcto, mas não bate certo com o seu lado competitivo.

Terei sido um dos bons alunos da faculdade, mas tive alunos claramente melhores do que eu. De quem sou amigo. Por quem tenho admiração. Nuns a genialidade, noutros a capacidade de trabalho. E o conceito do que é o melhor é relativo. Conheço gestores que são melhores do que eu em momentos de serenidade, mas são piores em momentos de emergência.

 

Onde é que é muito bom e se distingue?

Sou bom numa visão de antecipação estratégica e no exemplo e motivação que dou.

 

O seu mundo podia ruir se não ganhasse?

Isso é a nossa capacidade de adaptação. Outra vez o meu pai: quando fui convidado para a administração do banco – no tempo do meu pai um convite desses surgiria aos 55 anos – ele disse-me: “Parabéns. Deves aceitar. Mas tens de pensar o que farás quando deixares de ser administrador. O que acontece habitualmente é a reforma. Mas se te acontece 20 anos mais cedo, não é o que te vai acontecer a ti”.

 

Porque é que nunca esqueceu esta frase?

Porque tem que ver com um princípio de humildade. É a diferença entre estatuto e situação. O único verdadeiro abrigo é a família – são as partes estatutárias da nossa vida. Os outros, não são abrigos. Se o mundo vai ruir se me disserem “Você não serve para nada”? Tenho um suporte: a família. Não quero que o suporte seja o emprego, ou a Segurança Social. Temos feito o outsourcing da nossa segurança. Já passei por fases menos boas.

 

Por exemplo.

Quando saí do Santander não tinha nada. Sempre fui muito bem tratado pelo Santander, mas estava muito cansado de banca. Se estava à espera que viessem, em bandeiras, dizer: “Este homem é o melhor do mundo”? Não! A frase do meu pai era uma frase válida. Nunca somos os melhores do mundo. Somos aquilo em que a situação nos põe, a cada momento.

 

O que é isso de estar cansado de banca?

São dez anos de uma intensidade… Enquanto estive no grupo Champalimaud, estive sete anos sem ir jantar a casa. A minha mulher acompanhou mais o crescimento das miúdas. Tenho ideia que não falhei nenhum momento importante, mas falhei muitos momentos menos importantes. Sempre levei as minhas filhas à escola. Uma vez uma delas disse-me: “Pai, durante a semana, temos 50 minutos contigo”. Eram os dez minutos que tinha com elas, no caminho para a escola. Não é a coisa mais agradável de ouvir.  Mas também lhes dei o exemplo das dificuldades e do esforço; o dinheiro não cai do céu.

 

O dinheiro é fundamental?

Pode servir como álibi do muito entusiasmo que pomos nas coisas profissionais.

 

O que gosta é de poder dizer que, nessa década em que tudo mudou na banca em Portugal, estava lá. “I was there”.

É, é. Tive a minha participação.

 

Entretanto passou pela CP. Por um período curto de tempo, se pensarmos nos ciclos anteriores.

É verdade. Tenho circuitos profissionais longos. A minha saída da CP foi muito dolorosa, foi a decisão mais individual que tomei.

 

Não temeu defraudar as pessoas que depositaram confiança em si, para fazer a reformulação da empresa?

Tinha três objectivos: inverter a queda de passageiros, inverter a flutuação de resultados negativos e reorganizar todo o serviço de clientes numa operação sustentável a prazo. Teve as suas partes de emergência… Quinze dias depois de ser presidente da CP fechou o túnel do Rossio e vi-me com a população de Lisboa às costas às 11 da noite, a gerir uma equipa que ainda mal conhecia, para tentar encontrar uma solução; foi um grande momento de interligação às equipas. Fiz uma conferência às 5.35 da manhã!, às sete estava a andar nos comboios com toda a administração. Foi um período muito intenso, em que tentei criar uma estrutura rejuvenescida. Saíram 700 pessoas da CP sem uma única greve relevante, os comboios nunca pararam. Se defraudei as pessoas? – para não fugir à sua palavra. Cabe aos outros dizer, mas há pessoas que devem sentir isso.

 

A razão principal por que sai é o convite que recebeu para voltar ao sector financeiro.

Um convite de cinco bancos que me pedem para voltar. Era um segundo convite – já tinha sido feito em 2004. Convite feito pelo Dr. Bastos Gomes, representante do BCP – a instituição que seis anos antes tinha comprado o BPSM. Sinal de que tinha comprado uma coisa boa! Era um desafio muito interessante, e não tive coragem de não dizer sim, egoisticamente. É uma decisão que me dói. Porque não terminei o mandato. É uma decisão com que, ainda hoje, acordo. Para essa decisão contribuiu uma terceira questão: os custos, não só financeiros, mas pessoais, de devassa das nossas contas, da aferição da nossa vida.

 

Está a dizer que as suas contas eram devassadas?

As minhas contas foram expostas ao Tribunal Constitucional e os jornalistas, no dia seguinte, conheceram-nas. Faz parte da imagem de transparência que é exigível quando estamos numa empresa pública. Há um quarto aspecto que conta: os gestores têm um preço. Se você se auto-limita e aceita as condições – todos os gestores públicos só podem ganhar “isto” –, está a habituar as pessoas a que aquele valor é aceitável para si. Eu não considerava que aquele valor fosse aceitável para mim.

 

Três anos depois, o apelo do dinheiro chamou-o. Mas também é uma questão de vaidade. Ou seja, chamam-no. É uma forma de dizerem que é bom.

Se dissesse que isso não me diz nada, não seria verdade. Isto do reconhecimento passa por os outros reconhecerem-nos. Sair da CP era uma decisão difícil, não aceitar a UNICRE era uma decisão impossível.

 

Porque é que acha que dar esta entrevista é um risco?

É um risco expormo-nos. A vida é feita de pessoas discretas. E estando no sector financeiro, a discrição é natural.

 

Isso quer dizer que as nossas vulnerabilidades, expostas, podem ser usadas contra nós?

O jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã. O que fica são meia dúzia de ideias, a quem interessar. Para todos os efeitos, damos sempre um pouco de nós próprios.  

 

Roer as unhas, é que nunca foi capaz de deixar.

[gargalhada] Pois, é preciso ter algum escape. Tenho alguns. Mas o bicho de carpinteiro é mais relevante.

 

Levantou-se no meio da entrevista não sei quantas vezes. Não consegue estar quieto.

Normalmente levantar-me-ia mais, mas achei que depois não se ouvia no gravador. Fumar: quando o BPSM foi vendido voltei a fumar! Não fumava há quatro anos. Só me libertei disso há dois anos. Seria um pouco ridículo de duas em duas horas descer o elevador e ir fumar à rua. Não daria um bom exemplo de produtividade aos meus colaboradores. Deixei.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

Atravessar o Canal da Mancha de Comboio

07.02.14

Gare du Nord. Eu nunca tinha chegado à Gare du Nord. Mas conhecia-a de me sentar com Kees Popinga a ver passar os comboios. Kees Popinga, genial invenção de Simenon. O exemplar pai de família, (do tipo que garante um bom fogão de sala à mulher e aos filhos), e que é também assassino. Não estou certa de que o personagem desembarcasse na Gare du Nord, mesmo que o veja a deambular nas imediações de Saint-Denis. Mas isso não afecta a minha devoção pela Gare du Nord como espaço mítico.

Kees Popinga (digo-o ainda de cor, a anos luz da leitura do livro) partia da Holanda em fuga. E em busca de um fragmento de felicidade. Eu vinha de Londres. Podia seguir para a Holanda. Mas fiquei em Paris. Por mais felizes que sejam os dias na Holanda, Paris é Paris; ou, como dizia o Bogart à Ingrid ou a Ingrid ao Bogart, we’ll always have Paris.

Quando Simenon escreveu o romance, estava-se em 1938. Não podia então imaginar que um dia se atravessaria a Mancha de comboio e que a viagem demoraria duas horas e quinze minutos. Repito: duas horas e quinze minutos. Do centro de Londres ao centro de Paris. O tempo de tomar dois cafés com um pingo de leite, ler o Daily Telegraph e assistir ao dia nascer.

Ainda não eram dez quando cheguei a Paris – hora local, mais uma do que em Londres. Manhã demasiado fria para ser verdade. A viagem era substancialmente mais barata às seis e meia da manhã. E permitia-me chegar a Paris a tempo de comer uma omolette meia crua e tomar um café au lait como deve ser. Vários, aliás. Não me ocorre nada melhor que sair de casa de madrugada para estar em Paris daí a pouco a tomar o pequeno almoço… Mas se posso dedicar-me a estes delírios românticos, desorbitar-me da esfera da realidade e pensar nas páginas do Inspector Maigret, os que viajavam comigo pareciam compenetrados nas suas tarefas. Tinham a expressão de quem exige da vida prontidão, eficiência, velocidade. “Porque é que usou o comboio”, perguntei a uma mulher bonita? “Porque estava com pressa”, respondeu ela.

A rapidez talvez seja a razão principal que leva milhares de viajantes a preferir o Eurostar. A empresa apresentou recentemente um novo pacote de destinos, encurtou a duração das viagens e transferiu-se para a estação de St. Pancras. Goodbye Waterloo, Hello St. Pancras – lia-se por toda a cidade, em cartazes afixados nos metros, em páginas inteiras de jornal. Em Paris, um anúncio deitava Napoleão no divã e incentivava-o a esquecer a batalha fatale

A viagem tem zero de glamour. Se estiver inspirada, posso fazer de conta que estou com o Cary Grant e a Eva Marie Saint no North by Nothrwest, do Hitchcock. Mas a verdade é que um bilhete standard dá direito a uns lugares pindéricos. As carruagens de segunda classe da CP são melhores… Mas não tem o mesmo sainete ir de Lisboa ao Porto. Além de que demora mais tempo.

É certo que a viagem já se faz há algum tempo. Mas não em duas horas e um quarto. Para Bruxelas, é uma hora e 51 minutos. Antuérpia, Bruges, Marselha ou Estrasburgo estão também disponíveis – faz-se escala em Paris ou em Bruxelas. Por causa das paranóias de segurança, e da distância a que ficam os aeroportos, viajar de avião passou a consumir demasiado tempo. E o velho e querido comboio, anacronismo do século XIX, voltou a afirmar-se como meio de transporte preferencial.

Um exemplo: sempre que apanho um avião para Lisboa, saio de casa três horas antes de o voo levantar. Apesar de morar numa zona central, preciso de 30 minutos de metro para chegar à estação de Victoria. Aí, apanho o Gatwick Express que me leva em meia hora para o aeroporto. Parte de 15 em 15 minutos. Custa 25 euros.

Houve um tempo em que chegar com uma hora de antecedência era mais do que suficiente para qualquer companhia. Hoje, passar no controle de passaporte, provar que não somos perigosos terroristas, descalçar as botas ou as Birkenstock (aconteceu-me no Verão…), radiografar malas, separar computador, chaves, moedas, despir casaco, olhar para as meias puídas do vizinho…, além de demorar um tempo infinito, exaspera a paciência de um santo. Uma hora e meia passa a correr.

Se o aeroporto for Heathrow, o processo é encurtado – o chegar lá, entendamo-nos. O Heathrow Express demora metade do tempo, e se o trânsito não estiver caótico e a carteira não conhecer restrições, o táxi é uma opção. Pode poupar-se meia hora!, nada mau. (Nem sequer me refiro a Luton ou Stansted, aeroportos que servem sobretudo as companhias low cost: ficam no fim do mundo e só o comboio que dá acesso a cada um deles demora, na prática, uma hora. Mais os 40 minutos de metro para chegar a Liverpool Street, mais a hora e meia no aeroporto…).

Ou seja, posso demorar mais tempo de minha casa até ao avião do que de minha casa a Paris. Do escritório, do hotel, mais a sul ou mais a norte, a variação não é expressiva.

Falta falar dos custos: o bilhete mais barato custa 59 libras. À volta de 90 euros. Ida e volta. As classes “intermédia” e executiva custam o mesmo que um vulgar bilhete de avião. Mas, como nos aviões, comprar em cima da hora representa um acréscimo significativo na factura. Em todo o caso, se somarmos as várias parcelas, o comboio parece sempre uma opção mais razoável. Como me dizia Aldina, uma cabeleireira portuguesa, da segunda geração, com o namorado em Londres, “fica mais fácil de comboio: cada 15 dias vou eu vê-lo a Londres ou vem ele ver-me a Paris”.

Aldina já usava o Eurostar antes da mudança de Waterloo para St. Pancras. Quando chega a Londres, a estação parece-lhe prodigiosa. Imensa, elegante. O maior champagne bar do mundo. O tijolo que confere singularidade. A ideia de que 20 000 pessoas passam por ali diariamente. O apito que anuncia a partida.

São seis da manhã quando chego a St Pancras para fazer o check in. A equipa que acolhe é maioritariamente francesa e é bom ouvi-los em inglês e antecipar os ohh-lala dos próximos dias. Bonjour, aqui está o meu bilhete de identidade, merci e pode passar. Está mais frio do que devia estar, não é verdade? A sala cheira a novo, como se as obras tivessem acabado na véspera. Mas a Rainha já ali fizera um discurso uma semana antes. St. Pancras precisa apenas de ser vivida. E que escritores e cineastas e pessoas a encham com as suas tramas. Penso nos encontros e desencontros que se desenham a partir daquele cais de embarque… Um dia, eu hei-de sentar-me em St. Pancras a ver passar os comboios.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

 

 

 

André Carrilho

07.02.14

Começamos por onde? Por Peter O’Toole, esguio, fleumático, de beleza imaculada? Por Diana, a princesa de olhos marejados de azul que o povo amou na vida e na morte? Por Picasso, de mãos sobre a nuca, poderosas, e os olhos, como faróis, magnéticos? Ou pela Rainha Vitória, de perfil adunco e vestido de seda ondulante? É claro que também podemos começar por Sócrates, atlético, de maxilar proeminente e corte de cabelo irrepreensível. Começamos pelo actor inglês, com que se estreou nas páginas do Independent on Sunday, ou pelo primeiro ministro português, recentemente publicado no Diário de Notícias?

Comecemos pelo seu retrato, traçado em palavras simples. «Sou ilustrador. Em pequeno vivia na angústia de saber o que podia ser... Porque quando dizia que queria desenhar, respondiam-me que isso não era profissão». Se a preferência eram as artes visuais, ele podia sair à família e enveredar pela arquitectura, ou ser pintor, ou ser artista. Mas ser caricaturista, prometia uma vida incerta. De qualquer modo, era já isso que ele fazia nos dias longínquos da infância, e na adolescência, num ano determinante, em Macau.

Tinha dezassete anos e era «o gajo que desenha». Estudava à noite e passava os dias a olhar, a experimentar, a captar influências. A definir a sua identidade.

«Começa-se sempre por copiar os mestres. O António desenhava com lápis, o Vasco com tinta, o Cid com aguarela. E agora, como é que eu faço? Os cabelos, de textura mais fluída, comecei a fazê-los a lápis, a cara, a tinta. O computador ajudou-me a desenvolver um estilo próprio. Não sou imediatista. Tenho de estar sozinho em casa e saber que posso falhar. O computador acelera esse processo e permite combinar coisas improváveis».

Falhar, falhar sempre, falhar cada vez melhor – escrevia Samuel Becket. André Carrilho interpreta literalmente a sentença do escritor irlandês e confessa, humilde, que o erro é fundamental. Falamos a meio da manhã, sob a luz da Primavera. Ele é jovem e está seguro de não poder prescindir do erro; e isto parece augurar o melhor dos futuros. Sobretudo porque esta humildade não surge como exercício retórico. «Falo de espalhanços à séria... Quando estou muito nervoso, cometo os maiores erros!». Peço exemplos, mais ou menos incrédula.

«O “Independente” pediu-me um portfolio de alguns políticos, entre eles o Guterres. Apliquei-me, fi-los com afinco. Era o meu primeiro trabalho profissional para um jornal de referência. E o Jorge Silva (designer) disse que estava tudo uma porcaria! Foi um balde de água fria. Mas só assim é que se aprende. Nao se pode estar num ambiente muito seguro».

Foi pela mão do mesmo Jorge Silva, ainda que inviesadamente, que transitou do Independente para o Independent, um dos maiores jornais ingleses. Recapitulando, André Carrilho já trabalhava para o Público quando Jorge Silva mandou o seu portfolio para a Society for News Design – era um conjunto de ilustrações de figuras do jazz, entre elas uma inesquecível Billie Holiday, de expressão dolorosa e gardénia no cabelo. O prémio neste prestigiado concurso abriu-lhe portas extraordinárias. Mesmo assim, quando se tratou de ir à América receber o galardão, não pôde ir _ «Era preciso pagar 400 dólares para participar nas conferências, mesmo sendo um dos premiados...». O amigo-tutor-designer-Silva depositou, então, uma amostra do seu trabalho numa fila imensa que conduzia ao New York Times. Três meses depois, este jornal americano, que é, também, uma das maiores referênciais no mundo da ilustração, mandou-lhe um email a requisitar os seus serviços. Foi ainda com base nesta amostra que o Independent o contratou para fazer as capas da sua edição de domingo. A estreia deu-se com Peter O’Toole. Fê-lo durante dois anos, todas as semanas. André Carrilho tinha 27 anos.  

Uma caricatura começa por onde? «Se alguém pergunta, “quem é este gajo?”, significa que não está bem feita. É claro que me baseio na semelhança física. Mas depois extrapolo para expressões faciais, maneiras de estar, gestos, informo-me sobre vida e obra. Uma fotografia de passe não me diz nada sobre a pessoa.».

Tudo entra, então. E ainda que o seu estilo, aquilo a que podemos chamar identidade criativa, seja vincada e imediatamente reconhecível, ele fala em elasticidade. Teve de aprender a fazer as perguntas certas, interpretar ou mesmo descodificar as pretensões do cliente, perceber se se quer um tom de homenagem ou uma abordagem corrosiva, se os traços devem ser exagerados ou mais próximos do retrato. O estímulo é a encomenda, e esta obedece a critérios rigorosos: é para uma publicação específica, para um público alvo específico, a pedido de um editor específico, para um texto e uma página de design específicos. Os aspectos técnicos, como ser a cores ou as dimensões, não podem ser descurados e desfasados do processo criativo.

Tem uma vida plácida, em Lisboa. Em Portugal, trabalha em exclusivo para o Diário de Notícias. Experimentou viver alguns meses em Londres e em Nova Iorque. «O mito de Nova Iorque... Num país tão grande, é normal trabalhar por email sem chegar a conhecer a pessoa... Então, prefiro viver no meu país. A qualidade de vida é muito melhor».

É verdade que não foi preciso viver na América dos sonhos para ser publicado na Vanity Fair... Foi a ele que pediram uma caricatura do Proust a propósito, justamente, do Proust Questionnaire. Mas André Carrilho tem apenas 31 anos!, o que pode desejar? Novamente a resposta simples, rente às coisas de todos os dias: «Farto-me de fazer a mesma coisa, de fazer desenhos da mesma maneira! A caricatura é meu ganha-pão. Mas agora que tenho algum crédito, espero voltar à BD, trabalhar numa curta metragem de animação e fazer um livro para crianças para a Random House». Nada mau.

 

Publicado originalmente na revista das Selecções do Reader's Digest em 2006

 

 

  

 

 

Ana Lopes

06.02.14


«Trabalhadores do sexo, uni-vos» abre com uma citação de Marx: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneira diferente; a questão, porém, é transformá-lo». A antropóloga Ana Lopes cita o filósofo no seu livro e apresenta o activismo e a participação cívica como essenciais à sua vida.

É uma “menina de boas famílias” que trabalhou na indústria do sexo durante quatro anos (como operadora de linhas eróticas, modelo e dançarina de striptease). Simultaneamente desenvolveu a sua tese de doutoramento na Universidade de East London sobre os direitos e a organização laboral nesta indústria. É uma tese polémica, condensada num livro recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote.

Ana Lopes tem 27 anos, e regressou agora a Portugal onde trabalha na criação de uma nova associação: «Tem como objectivo fomentar e desenvolver a sustentabilidade daquilo que chamamos a sociedade civil. Para que os cidadãos possam cada vez mais influenciar o local onde vivem, a sociedade onde vivem, o mundo onde vivem».

A palavra é uma arma, e a intervenção a sua divisa.

 

 

“Se pensa que vai aqui encontrar descrições picantes do mundo do sexo e da prostituição está enganado”, escreve na contracapa do seu livro. Mais do que o resumo da sua tese de doutoramento, pode ser lido como um manifesto político?

Pode. Escolhi fazer um doutoramento muito político. Comecei por querer fazer uma investigação ortodoxo da indústria do sexo. Achei que era um tema fascinante, do qual se fala muito, mas do qual se sabe muito pouco.

 

Há em relação ao grupo um sentimento de pertença – é one of them. Se não tivesse pertencido à indústria do sexo, teria esta visão que lhe permitiu fazer uma tese de doutoramento tão original?

Penso que não. Não sentiria autoridade para falar destas coisas da forma como falo, teria sempre que dizer “acho que”, “penso que”. Como já fiz parte e sou uma activista internacional, sinto-me à vontade para falar em “nós”.

 

Quando nos referimos à indústria do sexo, temos quase sempre uma atitude moralista - mesmo que tentemos descartá-la. A posição comum é a de que não pode ser a mesma coisa vender o corpo e vender uma caixa de sapatos…

Não sou diferente das outras pessoas. Até há alguns anos, nunca tinha pensado nestas questões. Descartar-me desses resquícios foi à força de passar muito tempo com trabalhadores do sexo, de me aperceber que são trabalhadores como quaisquer outros, que não há nada de transcendente nesta coisa de vender serviços e fantasias sexuais.

 

Disse “vender serviços sexuais “ e não “vender o corpo”.

É das tais coisas que nos habituamos a ouvir e que não questionamos. Não é o corpo que se vende, vende-se um serviço, que é feito com o corpo, se for - pode ser um serviço de voz, como é feito nos telefones. A maioria das pessoas com quem convivi não sente esse problema da venda de um serviço que é feito com o corpo. São muitas vezes pessoas que se sentem à vontade no seu corpo e na sua sexualidade. Se viesse à Conferência Europeia de Profissionais do Sexo que aconteceu em Outubro de 2005, tinha estado com um grupo de 200 pessoas de quase todos os países europeus que têm essa postura: “Eu não sou uma aberração”.

 

Não é essa a imagem que passa na comunicação social. Esta incide sobre o voyeurismo, a exploração e a indignidade.

Existe esse discurso dominante, as pessoas não têm a coragem de afirmar um discurso alternativo. É uma visão muito a preto e branco. Ter conhecido este grupo de pessoas, e ver que não estava sozinha, encorajou-me a afirmar o meu discurso.

 

Este livro, além de subversivo, é interpelador. Uma ideia base é a de que os trabalhadores do sexo não querem ser salvos, querem é ter direitos iguais aos dos outros trabalhadores. A outra é a de que a percentagem desses que não querem ser salvos é significativa.

As pessoas que estão em condições aberrantes não querem ser salvas da prostituição, querem ser salvas de todo o tipo de abusos: das teias de máfias criminosas, de relações violentas, de um problema de toxicodependência. Existe um mundo de problemas associados à indústria do sexo: são esses que devem ser resolvidos. Para muitas pessoas, o facto de trabalharem na indústria do sexo não é o problema em si. É uma mínima parte da indústria do sexo que está em condições de semi-escravatura.

 

A ideia corrente é a contrária: que aqueles que podem escolher são uma parte irrisória.

Conheci pessoas que trabalham nesta indústria que têm cursos universitários, mestrados, que já tiveram outro tipo de carreiras e optaram pela indústria do sexo. Também não acho que isso seja a maioria. A grande maioria dos que trabalham na indústria do sexo podemos compará-los àqueles que fazem trabalho não-qualificado.

 

Aos que trabalham numa fábrica?

Uma fábrica ou qualquer coisa. É evidente que não é trabalho ideal, mas é uma das poucas escolhas possíveis. Depois, há uma minoria que é realmente forçada. Acho que a pobreza não pode explicar a indústria do sexo, há muitas pessoas muito pobres que não vendem sexo. Os números sobre tráfico, normalmente, vêm de amostras muito pequenas e tendem a confundir a prostituição de rua com indústria do sexo.

 

A definição mais genérica, que consta do livro, abre para filmes, linhas telefónicas, fotografias e até publicidade.

Isso é a indústria do sexo. A prostituição de rua é uma pequena parte se compararmos com a prostituição que se faz em locais escondidos. Mas, por ser visível, é aquela que leva as pessoas ao pânico, porque são todas traficadas e emigrantes!

 

Pensa-se que esta é uma realidade sobretudo feminina. É assim?

Não temos bem a consciência de como o número de homens e transgéneros na indústria do sexo é significativo... Se os juntarmos são quase metade.

 

Por que é que a mulher tem sempre a aura de pecadora ou de perseguida e indefesa? Os homens, mesmo nas rugas, não são condenados pelo seu desejo e procura…

São valores morais muito antigos, e uma pressão sobre a mulher de séculos. A indústria do sexo era maioritariamente feminina e importava castigar a sexualidade feminina. Para o homem era natural ter desejos sexuais, vários parceiros. Muitas das pessoas que são abolicionistas, que dizem que a prostituição não devia existir, não percebem o potencial de trabalhar na indústria do sexo.

 

O que é que quer dizer?

É quase revolucionário para a mulher passar por cima dessa opressão moral, assumir que tem muitos parceiros sexuais e que leva dinheiro por isso. É mesmo empurrar as barreiras dos papéis do género, porque não é isso que a mulher deve fazer: deve ser monogâmica e ter muito controlada a sua sexualidade. Até aos anos 60, às conquistas do movimento feminista, as profissionais do sexo tinham mais direitos do que qualquer outra mulher, tinham acesso a uma educação sexual que outras mulheres não tinham.

 

Essas mulheres eram olhadas como “coitadas”, coisa que hoje, muitas vezes, ainda acontece?

Havia uma diferença entre as mulheres respeitáveis e as pessoas que trabalhavam na indústria do sexo. As mulheres dos descaminhos não eram só aquelas que vendiam serviços sexuais, o leque era mais abrangente.

 

Vemos nos filmes que trabalhar num saloon era o que acontecia a uma mulher que perdia a honra.

Ser artista de cabaré, ser corista - todas essas coisas que agora vemos com o maior respeito...

 

Todavia, continuam a ser olhadas por sectores conservadores como “mulheres perdidas”.

Muito conservadores. Se recuarmos duas ou três gerações, se eu quisesse ser artista de teatro, toda a minha família, não só se oporia como não quereria falar para mim. Hoje, isso não aconteceria.

 

Por que é que decidiu dedicar a sua vida a esta causa? Por que é que sente uma atracção por aqueles que são estigmatizados?

Porque quero fazer deste mundo um mundo melhor e mais justo. Sinto a necessidade de tentar estabelecer os direitos daqueles que não os têm, que estão oprimidos, marginalizados. Os que já têm esses direitos garantidos, não é preciso fazer nada por eles. A minha vida não é toda isto. Mas dediquei-me de corpo e alma a este movimento durante os últimos seis anos.

 

Porquê?

Fui para Inglaterra com 20 anos trabalhar com um antropólogo, Chris Knight, que tem uma teoria sobre a origem da cultura que é controversa, embora cada vez mais aceite: faz uma ligação entre o sexo e a economia, onde nos tornámos humanos modernos. Por outro lado, [pesou] o facto de ter começado a trabalhar nas linhas eróticas.

 

Em que circunstâncias começou a trabalhar nas linhas?

Vi o anúncio numa revista e achei que podia ser fascinante. Em Inglaterra todos os estudantes têm um part-time, e trabalhei em bibliotecas, em cantinas. E depois apareceu-me aquele anúncio. Podia ter passado à frente, mas era curiosa e quis experimentar, saber como é que funciona, ir para além daquilo que vem nas reportagens.

 

Interessava-lhe conhecer verdadeiramente o outro, quando ele não está a posar? Trata-se de conhecer o humano as suas múltiplas dimensões.  Para um antropólogo é isso que se faz todos os dias, a toda a hora, em qualquer sítio.

 

Como é que criou o International Union of Sex Workers – iniciativa que integrou no seu doutoramento?

Estava a trabalhar nas linhas eróticas quando defini a linha do meu doutoramento. Nas entrevistas-piloto que realizei tive a sensação que as pessoas me estavam a dizer que faltava uma coisa. Não era mais um estudo, era uma associação na qual pudessem reivindicar os seus direitos. Reuni outra vez as pessoas que tinha entrevistado e perguntei-lhes se queriam mesmo formar essa plataforma. A resposta foi positiva. Fiquei como uma espécie de resource person, a ser usada para levar a acção em frente, mas sempre guiada pela vontade deste grupo.

 

A leitura que na sua família e socialmente fazem de si é marcada pelas suas posições nesta matéria?

O meu trabalho é político. Acho que tenho argumentos muito bons, acho que foi por isso que tudo isto funcionou, que consegui a filiação no sindicato geral [inglês], que consegui o apoio do movimento laboral de Inglaterra. Quando tenho tempo de explicar às pessoas por que é que faço isto e por que é que penso como penso…, para já não houve ninguém que deixasse de me falar, ou de ser meu amigo.

 

Porque é que decidiu contar que tinha trabalhado na indústria do sexo?

Tenho muitos amigos e amigas na indústria do sexo que optam por não dizer às famílias aquilo que fazem. Eu optei por ser sempre aberta. Nunca estive numa posição de pedir desculpa. Faço aquilo em que acredito, tenho muito orgulho em tudo aquilo que faço. Acho que sou coerente nas minhas acções e nos meus argumentos, portanto estou aqui, sem vergonha. Ou me aceitam ou não me aceitam. Mas sinto-me muito valorizada por aqueles que conheço.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2006