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Anabela Mota Ribeiro

Posso ter cem florins de prazer contigo? (exposição sobre prostituição em Amesterdão)

06.02.14

Lovely. Putain. Sugar. Helga. Loose Woman. Lulu.

Estes são alguns dos nomes das mulheres que encontramos nas salas do Historisch Museum de Amesterdão. Numa das salas, no andar de cima, entro no simulacro de um quarto. O espaço é exíguo, a cama estreita, a colcha enrugada sobre a cama estreita. A mesa de cabeceira, o je t’aime escrito com o dedo no pó da mesa de cabeceira, o perfume barato. Aos pés da cama, sento-me no maple para ver a velha Henriette, a Henriette Espanhola, desfiar memórias num vídeo contínuo.

Henriette tem o cabelo esticado num rabo de cavalo. A boca é fina, quase severa de tão fina. Irá pelos 70 anos. Ou então está longe disso, e foi só a vida que lhe deu um ar gasto. Desconheço se há uma afinidade etimológica entre gasto e agastado. Mas gostaria que houvesse.

Todas as prostitutas têm um ar agastado com a vida. Uma fúria que o tempo não consegue desvanecer. Que está no ar distante e desinteressado das que nos olham por detrás das montras do Bairro Vermelho.

Amesterdão é a cidade da prostituição. Passear nas ruas do Red Light District é um percurso turístico. O bairro ergueu-se debruçado sobre o porto, escancarado para os marinheiros que procuravam

fun fun fun

depois de meses de alto mar.

(O que procuravam eles?, o que se procura quando se procura uma prostituta?).

Henriette aportou na cidade quando era ainda jovem. Julgavam-na espanhola, mas provinha da Suíça. De uma Suíça esquartejada pelo aprumo e pelo asseio. Seria fácil imaginar uma história para Henriette. Mas a ficção resulta sempre mais pobre que a realidade. Era boa no que fazia, garante ela olhando a câmara, era realmente boa. Fez sucesso e dinheiro, di-lo com o mesmo empenho que outros usam para falar dos negócios que proliferam longe. O dinheiro fácil, abundante e fácil, fê-la prosseguir: «Se não tivesse tanto dinheiro, pararia». Fica provado que não se trata apenas de dinheiro, de cheta. Às vezes, simplesmente, já não é possível parar.

Que vida poderia ter Henriette depois daquela vida? E para que quereria ela desfazer-se daquela vida? Aquela vida quer dizer a vida de meretriz que vende

fun fun fun

como quem vende tabaco e ostras e vinho, também procurados por quem procura o prazer no corpo de uma mulher.

Aquela vida não parece importuná-la mais do que esta importunaria. Para o vídeo, Henriette é uma mulher seca, que não lacrimeja como as porto riquinhas. «O nosso único pecado», pronunciam estas num tom exaltado, de costas voltadas para a câmara, «é vender o corpo para sustentar as nossas famílias». Não recorre à lamúria como outra, que se justifica: «É claro que não queria esta vida para a minha filha».

Porque haveria ela de querer mudar de vida?  

Os casos difíceis seguiam para ela, para a sua casa, cujo reflexo se desenhava no canal. E esses pagam sempre bem. Os bons clientes apreciam a bizarria. Nas Massage Parlour, num tempo em que a prostituição era proibida, usavam-se expressões como Russo (sado-masoquismo), Francês (sexo oral) e Grego (sexo anal) para disfarçar a bizarria. A bizarria corresponde a todas as histórias que já ouvimos sobre bizarria; nada, portanto, de realmente bizarro.  

Há em Henriette uma satisfação indisfarçável quando fala da sua competência. Quando desdenha dos alemães e dos ingleses, «ordinários», quando elogia a afabilidade no trato dos suecos e dos holandeses. Quando diz que nunca foi com japoneses. «Não, não, o meu pai esteve num campo japonês durante a guerra, não, não». Quando recusou alguns cuja cor a repugnava; sem alguma vez dizer, de qualquer modo: «Não vou contigo porque não gosto de ti».

Não gosto de ti é uma coisa que não se diz.

Um cliente, no pedestal do poder, acenando com notas e virilidade, não suportaria ouvir uma prostituta dizer que o não quer, que não gosta dele.

(Que procuram eles? Procuram que gostem deles? Procuram um corpo que faça de conta que gosta deles?)

Esquivou-se sempre aludindo a compromissos inventados na hora, à urgência do cliente com hora marcada, prestes a chegar, já aí. O tempo deixaria de ser livre.

Henriette Espanhola é uma loose woman. Perdida para a honra, que é o que isso quer dizer. Os que procuravam o colo de uma mãe talvez lhe chamassem Sugar. Ou Putain, os que aspergiam arrogância e superioridade. Não parece mesmo nada incomodada com isso. Quem domina quem no confronto prostituta-cliente? Quem cede mais da sua honra no confronto prostituta-cliente?

Daqui a alguns anos Henriette morrerá. Que pessoas acompanharão o seu féretro, que dirão da sua vida? É costume enaltecer a virtude, obnubilar o desvio. Que dizer de uma mulher pecadora? Teria sido ela a estar lá, com aqueles homens? Que parte de si manteria incólume, impenetrável à ameaça do mundo?

Talvez Henriette fosse a menos agastada de todas. Aparentemente a vida não a devastou como às outras.

«Posso ter cem florins de prazer contigo?»

Cem florins correspondem a um período de tempo e a um pedaço de corpo. Correspondem, em última instância, a posse e a satisfação.

À entrada do Historisch Museum passa no vídeo uma imagem que impressiona. Num plano aproximado, as mãos de uma mulher lavam-se uma à outra, sob a água corrente do lavatório. Lavam-se longamente, quase se abraçam. Ambas as mãos sabem porque se lavam assim, cúmplices. Há o desejo vigoroso de apagar, mandar pelo ralo, com a água suja que em breve será dos esgotos, as marcas do que se passou.

O que se passou não foi nada do outro mundo. Um homem e uma mulher copularam. Não se beijaram, não se fundiram. Os papéis estão distribuídos; ela é a prostituta, ele é o cliente. Pode imaginar-se o que se passa entre eles. Não se pode saber o que intimamente pensam e sentem. Ela faz a parte dela; reserva-se o direito de não o desejar, não o querer, não sentir prazer com ele. Ele quer cem florins de prazer, seu prazer, com ela, seu instrumento. Talvez não lhe ocorra o modo como ela esfrega as mãos depois de ele sair. O modo como as mãos de reconciliam, em paz, em casa, uma com a outra. A ferocidade com que se esfregam, esfregam-se muito bem, querendo arrancar e mandar pelo ralo aquela marca.

Que importa?

Diz-se que a prostituição é a mais velha profissão do mundo. Quase sempre se omite que o utilizador é o mais velho utilizador do mundo.

Em Amesterdão, a história da prostituição conta-se em quatro séculos e confunde-se com a história da cidade. O Historisch Museum apresentou esta história chamando-lhe «Love for Sale». O título é bom, na apropriação da canção de Cole Porter. Chico Buarque compôs um tema inequivocamente dedicado às Anas de Amsterdam:

«Sou Ana do dique, das docas

Da compra, da venda, das trocas, das pernas,

Dos Braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas

Sou Ana das loucas

Até amanhã

Sou Ana, da cama

Da cana, fulana, bacana

Sou Ana de Amsterdam (...)

Arrisquei muita braçada

Na esperança de outro mar

Hoje sou carta marcada

Hoje sou jogo de azar

Sou Ana de vinte minutos

Sou Ana da brasa, dos brutos, na coxa

Que apaga charutos

Sou Ana dos dentes rangendo

E dos olhos enxutos

Até amanhã, sou Ana

Das marcas, das macas, das barcas, das pratas

Sou Ana de Amsterdam»

As mulheres que aparecem na exposição, bem como as 20 mil que se crê venderem o corpo na capital holandesa, não exclusivamente nos limites do Bairro Vermelho, são Anas de Amsterdam. O seu amor está à venda. Amor é um eufemismo para designar um pedaço da sua coxa, onde se apagam charutos, no espaço de vinte minutos.

O cartaz da exposição tem uma mulher de perna cruzada, de ventre redondo, que observa a rua a partir da montra onde se exibe. Ao contrário do Red Light District, onde as prostitutas são observadas pelos transeuntes, na exposição os transeuntes são observados pelas prostitutas. «Love for Sale», escreve-se no texto que acompanha a exposição, «mostra o que se passa num mundo onde o sexo é pago». Condensa quatro séculos em pintura, fotografia, vídeos, documentos, recriação de espaços (na mezanine do primeiro andar, logo depois de cortinas de tule branco, quadros de grandes dimensões revelam cenas de sexo explícito. À entrada da exposição há uma indicação que adverte: «Pode escolher não ver»). A informação está exposta em grandes painéis e delimita as fases de aceitação, tolerância, proibição e legalização da prostituição na cidade de Amesterdão. A palavra é dada às prostitutas. Falam das suas motivações, dos seus sentimentos. De medo e de repugância.

É de manhã. Maria tem calçadas galochas e luvas de borracha. Lava o vidro da sua montra, deixando-o a brilhar. «O vidro faz-me sentir segura». Por isso é importante que fique asséptico, que lhe dê a ilusão de um contacto que, mesmo perpetrado, não chega a existir. Porque há um vidro de permeio, mesmo quando o cliente entra, depois de acertado o preço.

Maria conserva parte de uma beleza que deve ter sido efusiva. Antes de a vida lhe ter posto, como um emplastro, a cor macilenta no rosto e a melancolia no olhar. Num dia calmo vai com cinco homens. Num dia bom vai com dez, vai com vinte. A maneira como se lhes dirigem, a coacção que pode sentir no olhar deles, a assertividade que usam na abordagem (as palavras coacção e assertividade foram as que empregou), fragilizam-na sobremaneira. Maria tem o olhar murcho das flores que deixaram de o ser. Anseia pelo momento em que partem para acender um cigarro.    

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002  

       

Miguel Pais do Amaral

05.02.14

Tudo é muito aprumado. O cabelo, os dentes certos, os talheres de prata. Nada é ostentatório. Os sapatos, os empregados, o chá de menta que se pede ao meio da manhã. Encontrámo-nos num daqueles hotéis em Mayfair onde nada reluz, porque reluzir é feio. O aparato novo rico é “disguuuusting”. Há gestos do passado, que já só se vêem descritos em livros, e um comedimento no requinte de quem é chique a valer.

Miguel Pais do Amaral vai bem com o Claridge’s. Desce imediatamente quando lhe falam da recepção a anunciar a minha chegada. Tem passos largos, é veloz, é muito alto. Tomámos o pequeno-almoço entre as oito e meia e as nove e meia. Ovos estrelados e café. Durante a conversa, ele foi polido como se deve ser, mas manifestamente estava a ser conduzido para um mundo que lhe é estranho. Disse, aliás, repetidas vezes: “São coisas em que não penso, não lhe sei responder”. Perguntar pela família ou pela infância podem provocar verdadeiro espanto, como se apontasse uma equação indecifrável.

Usa como bordões linguísticos “de facto”, “na realidade”, “basicamente”. Não são palavras vãs, mesmo que possa parecer que o são. Dizem-nos muito deste homem que vive nos factos, se sente melhor próximo da realidade, e se concentra no núcleo do que quer. Talvez isto não seja premeditado, talvez seja só expressão de quem ele é.

É premeditado dizer “maçada” e não “chatice” – que eu uso para provocar, mesmo que saiba que lhe vou parecer vulgar. Dizer uma e não outra é uma escolha cultural. É do domínio da convenção, e Pais do Amaral construiu a sua vida. Nada foi por acaso. Pouco nele é natural, e tudo nele é uma evolução natural. Ter crescido entre uma gente derrotada, não querer ficar desse lado da cerca, fê-lo escolher esta vida. Tem a vida que escolheu ter, procura divertir-se, sabe com o que se entreter.

Tem um olhar frio, e não é impressão causada pelos olhos claros. É porque o mundo cor-de-rosa dos afectos sempre lhe foi estranho. De quem gosta este homem? Dele mesmo. Gosta dos outros, desde que não se metam no caminho e não lhe façam mal. Talvez goste mesmo de outros, mas isso não é da minha conta, e um senhor não aparece em mangas de camisa. Não se mostra, não se revela.

Foi nisso que pensei quando nos despedimos ao fim da manhã, depois de um segundo encontro. Ele seguiria para Lisboa e eu ficaria em Londres. Teve a boa educação de perguntar se eu queria que o motorista me deixasse em qualquer sítio. O Conde de Anadia foi ensinado a ser bem-educado. O Miguel Pais da Amaral tem o dinheiro que possibilita estes gestos.

Que pensarão dele as suas filhas?

 

 

Quando veio pela primeira vez ao estrangeiro?

Não me lembro se a primeira vez foi a Londres ou a Espanha... A primeira vez que vim a Londres tinha 13 ou 14 anos, com os meus pais, passar um fim-de-semana comprido. Já foi há muito tempo, não me lembro dessa parte da minha vida.

 

Porque é que não se lembra?

Não sei. É uma realidade. Por exemplo, essa viagem, se me perguntar o que é que fiz, não me lembro de nada.

 

Tem poucas recordações de si enquanto criança? Consegue perceber o que é que o faz guardar alguns momentos e obliterar outros?

Isso é um problema para um analista, não é um tema sobre o qual me tenha debruçado. [Dessa vinda] recordo-me dos carros, havia carros fantásticos em Londres. Era uma cidade maior do que aquelas a que estava habituado. Os parques, os jardins, (de que gosto bastante), Buckingham Palace, todo aquele aparato à volta da família real. Futebol, acho que fui com o meu pai ver um jogo do Chelsea, (eu era um grande adepto do Chelsea). Foram as primeiras impressões de Inglaterra. Tive dois bisavôs que viveram em Londres.

 

Por via do pai ou da mãe?

Do meu pai. Um foi diplomata, o outro era secretário do rei D. Manuel e veio para cá quando o rei se exilou. A minha família tinha grande tradição inglesa. O ser inglês era associado a ser civilizado. Os ingleses eram uma das formas de civilização, por oposição à forma de civilização francesa. Boas universidades, respeito pela história, pelo património.

 

Associa-se também a um modo de estar mais contido, menos emocional.

Também.

 

A sua mãe era mais afectiva, e mais francesa, neste sentido?

Eu devia ter dito que não gosto de falar da minha família. Os dois pais da minha mãe eram primos direitos. Eram uma família portuguesa que vivia em Portugal.

 

Quando o vi chegar, com esse fato riscado, tão “british”, pensei que podia passar por inglês. Mas as fotografias mostram que é incrivelmente parecido com a sua mãe, cujo tipo não se parece, pela sua descrição, com o de uma inglesa. Estava a tentar reconstituir uma genealogia mais afectiva do que propriamente de sangue. Que lado é mais vincado em si, o civilizado, anglófilo, ou o emocional, português?

Vivi bastante tempo fora de Portugal, e os meus exemplos são mais próximos do primeiro. A segunda parte nunca foi o meu forte, essa parte... você chama-lhe afectiva; não sei o que hei-de chamar-lhe. Vivo mais no mundo racional e lido menos bem com esse mundo das emoções.

 

É um jogo de esgrima que sabe jogar, o racional. O dos afectos é mais arriscado e imprevisível.

No INSEAD havia pessoas de todas as nacionalidades. Entendia-me muito bem com os ingleses. Têm um humor muito próprio, são distantes, não se têm certas intimidades com os ingleses que se podem ter com os espanhóis ou portugueses. Mas sinto-me em casa com os ingleses, e não me sinto tão em casa com os latinos.


Gostava de explorar a noção de intimidade. Trazia notas soltas, como: de que é que este homem tem medo, de quem é que ele é íntimo, em quem é que confia.
Essas perguntas são todas muito perigosas para mim.

 

Porquê?

Não lhe posso dizer porque estamos em entrevista. De quem é que sou íntimo? Sou íntimo de alguns amigos meus.

 

É uma resposta que revela muito pouco. Vamos por outro caminho: a sua vida tem essencialmente dois momentos: um anterior aos 20 anos e outro posterior? A herança que recebeu por essa altura mudou a sua vida? Ou apenas abriu uma possibilidade, uma liberdade que até aí não existia?

A minha vida tem três fases claras. Uma fase até sair de Portugal. Vivia em casa dos meus pais. Ter tido a herança da minha tia, não acho que tenha tido muito impacto. Depois, a fase em que saí. Fui para o INSEAD, depois para Nova Iorque, depois para Londres; comecei a minha carreira e era trabalhador por conta de outrem. Na terceira fase tornei-me um homem de negócios independente; aos 30 e poucos anos passei a ser senhor das minhas iniciativas.

 

Na primeira fase, maquetizou a sua vida desta maneira? Tem um grande sentido estratégico, ou as coisas foram acontecendo?

Eu fazia parte de uma família da aristocracia portuguesa. Uma aristocracia muito decadente. Não gosto de falar disto, pareço ser um pouco cagão. Tinham nomes importantes, casas, viviam de uma forma que era diferente, mas depois não tinham o substrato. E o substrato é o dinheiro. Se for a Inglaterra ou a Espanha, as grandes famílias mantêm patrimónios importantes, e isso dá-lhes outro estatuto. Em Portugal, além de serem decadentes do ponto de vista da influência, não têm dinheiro. Sempre achei que era importante recuperar alguma prosperidade familiar, e achei que isso se conseguia trabalhando. Sendo homem de negócios. Na verdade, sempre tive essa ideia.

 

Porque é que era indispensável ter muito dinheiro?

Não era indispensável, era necessário. Achava um pouco triste que famílias que tinham sido importantes, fossem menos porque não tinham dinheiro. Além disso, gosto daquilo que o dinheiro proporciona. Gosto dos carros, das obras de arte, de ter boas casas, de viajar.

 

Surpreende-me um pouco que o diga com essa franqueza. A história é clara e até conhecida, mas não esperaria que o dissesse assim.

É a realidade. Não tenho que ter vergonha.

 

Ao contrário. É um vencedor, é normal que esteja orgulhoso. Os amigos com quem se deu eram pessoas que tinham dinheiro? Alguma vez sentiu que estava num grupo do qual não fazia parte completamente pelo facto de não ter muito dinheiro?

A sociedade em Portugal é um pouco transversal. No meu grupo de amigos havia de tudo. Os que eram de famílias que tinham indústria, (tinham dinheiro), outros que eram de famílias tradicionais, (tinham propriedades e dinheiro), outros que eram filhos de administradores de bancos, (que eram mais importantes).

 

Estava a tentar perceber se a falta de dinheiro pode fazer com que uma pessoa seja proscrita.

Nunca me senti proscrito. Não tinha falta de dinheiro para fazer a vida normal de uma pessoa de 18, 20 anos, em Lisboa. Tinha falta dinheiro para fazer aquilo que gostaria de fazer.

 

Procurava a liberdade de poder escolher? De poder viajar, de poder comprar o carro sem olhar ao preço.

Se amanhã quiser viver em Londres, posso viver em Londres, ou em Nova Iorque. Hoje em dia posso fazer o que quero. Na altura tinha que viver em Portugal e ter aquela vida um pouco circunscrita.

 

A herança não abriu possibilidades?

Sou o herdeiro porque sou o mais velho, o chefe de família – não ia vender aquilo. Há muita gente que vende. Herdei a minha casa de Lisboa, dos poucos palácios de Lisboa que ainda estão na posse da família original, e a minha casa na quinta. Essas coisas não dão rendimento, dão é despesas.

 

Quando foi estudar Engenharia Mecânica, já tinha decidido que queria ganhar dinheiro? A escolha revela que ainda se deixava entusiasmar pelas suas paixões...

Acabei o liceu com 16 anos, nem sabia o que é que queria fazer! Era bastante infantil. Fui para Engenharia Mecânica porque gostava de carros e era muito bom em Física e Matemática. Achava a Economia uma maçada, não tinha jeito para Letras, portanto, foi uma evolução natural. Passei a ser um pouco mais consciente dessas questões para aí aos 20 anos.

 

Tomou a sua vida em mãos. Como quem guia uma máquina e lhe diz para que lado há-de ir...

É assim que faz toda a gente.

 

Uns mais conscientemente que outros. Já vamos falar dos carros. Para já: o que é que achava que a sua vida ia ser?

Quando fui para o Técnico, não achava nada. Há famílias em que as pessoas vão para Direito, ou para Economia, ou estão nos negócios. Eu não tinha o benefício de ter essas experiências em casa. Na minha família não havia a tradição de tirar cursos, a minha mãe e o meu pai não tinham feito cursos. Tive que decidir por mim. O 25 de Abril aconteceu quando estava no 3º ano. O país estava inapresentável. Eu não queria ficar, não me revia na mediocridade geral que era o Portugal pós-revolucionário – apesar de não ser uma pessoa com muitas referências, nem com muita exposição ao mundo. Mas era ambicioso.

 

Desgostava-o sobretudo o estado caótico do país?

Era caótico, era medíocre, estava a caminho de ser ainda mais pobre. Era mais interessante trabalhar num banco em Londres do que trabalhar numa empresa pública num Portugal socialista. Claramente, a minha opção ficou facilitada pela revolução: “Não quero isto, quero ter uma carreira internacional”. E uma carreira internacional não se tem como Engenheiro Mecânico, tem-se como banqueiro, como funcionário de uma multinacional. Foi aí que pensei em mudar a agulha para “business” e fui fazer o INSEAD.

 

Foi o princípio da sua aventura.

Era um mundo totalmente desconhecido para mim. Mas correu bem. Foi um choque maior o meu primeiro emprego do que propriamente o INSEAD, devo dizer. Eu fazia amizades com grande facilidade, fiquei com óptimos amigos.

 

Essa facilidade nas amizades passava por onde, começava onde? Era menos competitivo? As pessoas davam-se mais francamente?

Era-me mais fácil, não sei porquê. Tinha 20 e poucos anos, agora tenho 50, talvez seja isso.

 

Onde é que viveu? Como é que era a sua vida?

Vivi nas residências para estudantes, com mais seis ou sete participantes do MBA. Era uma vida pacata. No fim estudava-se um bocadinho menos; os primeiros dois, três períodos eram muito exigentes.

 

Lembra-se do seu quarto?

Mal. Era um quarto modesto. Alugavam-se umas casas grandes na cidade de Fontainebleau, e era aí que ficávamos. A minha casa era um bocado velha, mas funcionava. Era aquilo a que estava habituado: a viver em casas grandes e velhas.

 

Portanto, continuou em casa e a pensar: “Que chatice, nunca mais saio disto”.

Isso mesmo. Tinha uma razoável capacidade de adaptação. Hoje, quando penso nisso, fico um bocadinho surpreendido. Não tinha nada, fotografias, essas coisas. Não tinha os meus objectos. Não me interessava. E não tinha como comprá-los. Era uma pessoa com 20 e tal anos que tinha escolhido como missão acabar aquilo [MBA]. Estudava, tínhamos festas, almoçava e jantava com os amigos.

 

O que é que o fez perder essa imaturidade com que se descreve? O que é que operou essa mudança?

O choque que tive no meu primeiro emprego, na Goldman Sachs. Eu vivia num país fora do centro, numa família com uma visão do mundo um pouco especial. Aterrei em Nova Iorque num “investment bank” de Wall street, onde toda a gente do INSEAD queria trabalhar. Fui o único a ir para lá. Foi aí que comecei a perceber regras do que é ser profissional, do que é trabalhar. Foi o meu primeiro emprego e foi a minha escola. Pequenas coisas de que me lembro: eu andava devagar, nos corredores, na rua. E o responsável do meu departamento dizia-me: “You have to rush, Miguel! Why are you going so slowly?”.

 

E isso mudou?

Comecei a andar depressa. Estava habituada ao ritmo de Lisboa, a fazer coisas, calmamente, com um sorriso, ia beber um copo de água, tomar um café... enfim, não tomava café, mas um pouco neste estilo calmo. Em Nova Iorque havia uma coisa chamada “senso de urgência”, que desenvolvi a partir daí. Senso de urgência é o mais importante em termos profissionais: a pessoa se quer fazer uma coisa, tem que fazê-la rápido e bem.

 

Sentiu-se inseguro no embate com a cidade, antes de acompanhar esse senso de urgência?

Naturalmente, quando uma pessoa está num meio que não conhece, está um pouco inseguro. A segurança vai-se construindo à medida que vai ultrapassando os obstáculos e vai fazendo aquilo que é suposto fazer.

 

Nunca foi muito inseguro?

Eu era completamente inseguro, a questão é que consegui lidar com esse tema. Há inseguros para quem a insegurança funciona como...

 

Um travão?

Para mim, funciona como um pedal. Quase que busco situações em que esteja inseguro.

 

É verdade que precisa de ter uma boa dose de autoconfiança para se atirar ao desafio...

Não sei se é autoconfiança ou se é inconfiança. Se me diz que é por causa da autoconfiança... Preciso de estar permanentemente a defrontar “challenges”.


Precisa de estar a desafiar-se. A confirmar que é bom.

Gosto. Faz-me sentir vivo. Não sei se é para confirmar que sou bom. Não me acho especialmente bom.

 

Ah, não?

Sou claramente médio. Os meus padrões são exigentes e agora já não tenho tempo de ser aquilo que acho que deveria ter sido, se fosse bom.

 

Foi uma coisa difícil de aceitar? Que não seria extraordinário, que só seria médio?

Não. É o que é. Tenho bastantes “handicaps”.

 

Quais?

“Handicaps” de educação. Na minha família não se sabia o que era um banco. Tínhamos propriedades agrícolas. Estou em enorme desvantagem relativamente a pessoas que tenham tido a possibilidade, desde muito novas, de conviverem com uma cultura empresarial. No aspecto cultural, gostava de ser mais culto.

 

Ninguém à sua volta lia?

A minha mãe lia muito, a minha avó lia muito. Agora estou a pensar no Miguel Sousa Tavares, não sei porquê: é mais fácil para uma pessoa que nasce num meio culturalmente forte saber de literatura, de música. Apesar dos meus “handicaps” consegui resolver algumas questões, mas estou longe de ser aquilo que gostaria de ser.

 

Frequenta um hotel onde é possível encontrar pessoas da cultura e do espectáculo, também. Pelo jornal, soube que a Emma Thompson esteve cá a dançar ontem à noite. E o Mick Jagger também vem cá. Sobre que falaria com eles se coincidissem numa mesa?

Ah, não tenho qualquer problema em fazer conversa de chacha. Posso falar de arte, de arte contemporânea, de carros, de política internacional, de viagens. Dizer duas ou três baboseiras não quer dizer que a pessoa saiba de arte, de música, de literatura. Considero que sou mais culto do que a média e há certas coisas que sei. Leio livros de História ou trillers. Literatura, poesia ou filosofia não me interessam e, por isso, não sei.

 

Leu o Oscar Wilde?

Não.

 

Podia fazer parte de um dos romances do Oscar Wilde, alguns personagens têm o seu tipo, algo “dandy”. E criou uns aforismos inesquecíveis, como aquele que diz: “Podemos resistir a tudo, menos à tentação”. Esse vai-lhe bem.
Ok. Vou ler Oscar Wilde.

 

Façamos o mesmo na entrevista: sem conversa de chacha, concentremo-nos naquilo de que gosta.

De conversar ou de fazer? Divido estes temas em capítulos. Capítulo profissional, gosto de fazer, e faço, vida de negócios. Não gosto de falar de negócios, de falar das operações. Gosto dos meus “hobbies”, caça e carros, e gosto de falar sobre isso. Depois tenho áreas de interesse. Objectos de arte e peças de que gosto.

 

Que tipo de objectos? Valiosos?

Objectos bonitos.

 

Ainda não tinha usado essa palavra.

Valiosos, é-me indiferente. Objectos bonitos e bons. Estou a fazer uma colecção de serviços, de loiça, do século XVIII e Império, de proveniência real. Comprei quatro serviços fantásticos: um que era um presente do Luís XVI para a Rainha Carlota Joaquina, outro que foi presente do Luís XVIII ao Príncipe Di Parma, um que foi presente do rei Carlos X de França à Duquesa de Berry, que era nora dele, e um outro que foi um presente do Napoleão a um Marquês. São caros, mas é porque são muito bons, são do melhor que há.

 

Dão-lhe o propósito de procurar essas peças. E dão-lhe o prazer de ter aquilo que é raro e que nem todos podem ter.

Nunca me preocupei com os outros. Se são raros, por definição, os outros não têm. Gosto é de ser eu a poder ter uma coisa que é rara.

 

Com o que os outros pensam de si, preocupou-se?

Nada.

 

Nem quando era inseguro?

Quando era novo, obviamente. Faz parte de um jovem importar-se com o que pensam os outros. Mas a partir de determinada altura, estou-me nas tintas. Tenho as minhas exigências, os meus objectivos, é o que me interessa. Quando se vive no mundo dos negócios há um tema importante, que é a credibilidade. Não posso fazer coisas disparatadas que façam com que os outros achem que sou um palhaço; faz com que, depois, não tenha credibilidade para interpor uma operação a alguém. Nesse aspecto preocupo-me um pouco, o suficiente.


Quem são os outros que contam mesmo na sua vida?

Os outros que contam em que aspecto? Tenho a minha família, a minha mulher, os meus pais, as minhas filhas.

 

Isso pode não querer dizer nada.

Bom, mas é aquilo que se diz nestas alturas.

 

Eu queria a resposta verdadeira.

É essa.

 

Falou das suas filhas duas vezes. É para si importante a imagem que têm do pai?

Não penso muito nisso. Ou seja, se implica fazer um esforço para que elas pensem que sou assim e não assado, não faço qualquer esforço.

 

Estava a pensar em si enquanto menino e na percepção que teria dos seus pais, da casa, daquela realidade. E estava a fazer um exercício de extrapolação: o que é que elas pensarão dos pais, da casa, da realidade que já foi completamente construída por si?

Se eu estivesse no lugar delas, gostaria.

 

O que é que acha que elas valorizam? O ter dinheiro? O ter acesso? Um “status”?

Elas têm uma vida normal, um colégio normal. Aquilo que têm melhor do que o normal é poderem viajar um bocadinho mais, ir para hotéis um bocadinho melhores, ir a restaurantes um bocadinho melhores. Vivem numa casa mais bonita que a média. Não gostam desta minha mania de coleccionar coisas boas, porque acham que as coisas são velhas. Ainda não têm o gosto devidamente afinado.

 

Isso não lhes dá um propósito para a vida.

Não.

 

É importante para si que sejam pessoas interessantes, com uma identidade vincada, e não “as filhas do Miguel Pais do Amaral”?

Seria bom. Ia dizer uma coisa politicamente incorrecta...: não é habitual as mulheres serem assim. Era uma coisa de homens, há 20, 30 anos. Espero que sejam independentes e que se afirmem por si. Se fossem filhos, isso seria natural.


A pressão seria diferente?

Os homens, do ponto de vista profissional, têm que se afirmar por si mesmos. Há mulheres que se afirmam por si mesmas, são profissionais como você, e mulheres cuja vida é serem casadas com os homens. São, basicamente, as mulheres dos homens. Gostava que as minhas filhas tivessem mais. Como não tenho filhos, gostava que herdassem um pouco da minha ambição e da minha vontade de fazer coisas. Mas isso é com elas.

 

[intervalo de duas horas]

Estava a dizer-me que não tem medo de morrer?

Não, não tenho. Preocupa-me mais ter um problema físico, ficar sem pernas.


Pensa nisso quando se excede em velocidade?
Não. Se uma pessoa pensa que pode estar em perigo, vai mais lento. Tem que se abstrair dessa realidade, quando está a competir.

 

Em que é que se pensa, se se pensa?

Não se pensa em nada. Não é possível pensar em nada.

 

Nunca teve nenhum desastre?

Tive um ou dois em Velocidade, mas nada de grave. Faz parte. Hoje em dia os circuitos são muito seguros. Tive mais desastres em Todo o Terreno, aí é mais perigoso.

 

Qual é o grande desafio quando se guia? O domínio?

O desafio é fazer bem. O “challenge” é uma pessoa que gosta de carros dar o seu melhor e aproximar-se o mais possível dos profissionais – que é impossível. Mas com treino, persistência e tempo, a pessoa vai-se aproximando. Qual é a sua pergunta?

 

O “thrill”, se consegue explicar qual é o “thrill”.

O “thrill” tem a ver com o domínio em condições extremas, em velocidade extrema, em travagem extrema.

 

Para muita gente, o “hobby” é qualquer coisa onde existe uma dissolução absoluta de quem se é, e faz contraste com as suas vidas cá fora. No seu caso, é como se o “hobby” fosse mais um exercício de controlo sobre a máquina, ou seja, a sua vida.

Um, faço aquilo para me divertir. E dois, os “hobbies” têm também a função de, no tempo em que não estou a fazê-los, pensar que vou fazê-los. Preenche o tempo pensar que no próximo fim-de-semana tenho uma corrida, em Junho outra. O “hobby” tem esse duplo efeito: [serve] para me divertir e para me entreter.

 

Deve enfadar-se de morte com imensas coisas. Aquelas que tem que fazer para manter o estilo de vida que quis para si.

O que me maça muito é a rotina. Ligando isso à minha vida profissional, encerrei um capítulo da minha vida profissional quando vendi a minha posição na Media Capital. Sinto-me mais vocacionado para fazer coisas novas do que propriamente para gerir uma organização. Divirto-me mais a fazer o que estou a fazer agora, que é começar novos projectos.

 

Olha para si como um financeiro? É isso que é?

Olho para mim como um “financeer”. Os americanos usam o termo “financeer”: são as pessoas que investem em negócios com uma perspectiva financeira, que apostam em equipas de gestão, em sectores. No caso da Media Capital, fui também operador, geri, defini estratégias. Ser um financeiro é o perfil que gostaria de ter, mas até agora tenho sido mais do que isso.

 

A propósito da TVI, interveio ao nível dos conteúdos? Participou na escolha do Big Brother, (que acabou por ser uma pedra essencial no sucesso da estação)?

Na Media Capital, fui tudo menos um financeiro. Fui mais industrial do que muitos portugueses que são considerados industriais, ou mesmo estrangeiros, e que depois revelam menos iniciativa. Comportei-me como um estratega. A decisão do Big Brother: era um investimento muito grande, era importante a opinião de várias áreas. Uma são quatro componentes: programas, marketing, vendas e finanças.

 

Ter que meter a mão nas coisas de todos os dias, no que pode ser o “trash”, gosta de fazer?

Tive que o fazer e acho que o fiz menos mal. Os resultados foram muito bons. Mas prefiro não ter que o fazer.


Diz-se que tem uma grande capacidade para manter relações afáveis com pessoas de quem não gosta. É fácil porque os afectos ficam à porta? O que interessa é que a pessoa cumpra uma função?

Tenho dificuldade em não gostar de pessoas. Também tenho dificuldade em gostar. Há muito poucas pessoas de que não gosto. Para não gostar de alguém é preciso que esse alguém me tenha prejudicado ou feito alguma coisa contra mim. Não sei quem lhe disse isso, mas nunca trabalhei com ninguém de quem não gostasse.

 

A notícia que li era relativa ao José Eduardo Moniz. 

É uma pessoa com quem tenho a melhor relação, trabalhei com ele durante sete anos. Se não gostasse dele, não trabalharia com ele.

 

Ele é competente.

Há muita gente competente. Nunca considerei que havia pessoas insubstituíveis. E começava por aplicar esse princípio a mim.

 

Era difícil para si, no segundo período da sua vida, ser mandado? Haver outros que em última instância decidiam sobre a sua vida?

Nunca tive nenhum problema em lidar com a autoridade, em lidar com os meus chefes. Toda a minha vida foi, e vai continuar a ser, a tentar ser cada vez mais independente. Se agora consideraria ser número dois de uma organização? Realmente não me apetece muito. Sou aquilo a que os americanos chamam “entrepreneur”. Gosto de ser eu a definir a minha agenda e as minhas prioridades. Se é outra pessoa a fazê-lo, já não sou tão independente, não é?


Pode ser refém de quê? O que é que ameaça a sua liberdade, a sua vontade, a sua independência?

Não sei... Dê-me lá um exemplo, não estou a ver mesmo nada que ameace a minha liberdade.


Normalmente é qualquer coisa do domínio dos afectos.

Não tenho nada que ameace ou limite a minha liberdade. A liberdade de tomar as iniciativas que quero tomar. Na minha vida há um conjunto de questões que são limite e que têm a ver com a família.

 

Ainda não percebi que espaço é que ela ocupa. Sabe que parece muitíssimo solitário...

Esse é um tema de que não gostaria de falar. Tenho uma família normal, pais, mulher, filhas, que ocupam o seu lugar. Depois tenho os meus “hobbies” e a minha vida profissional. Tenho uma vida normal, como qualquer pessoa.

 

Posta nesses termos, não parece ter grande graça. Eu acho que inventa objectivos para que ela tenha graça.

Sim. Já falámos sobre isso.


Não acredito que saiba tão pouco das suas zonas sensíveis. Enfim, daquelas que são tremendamente humanas e que nos ocupam a todos.

Tento não pensar muito nessas coisas. São coisas um pouco estranhas para mim, essas que me pergunta.


Pode evitá-las, arranjar maneira de as contornar. Mas um homem tão estratégico tem que saber onde estão essas partes para as poder domar.

E então?

 

Diga-me quais são os seus medos? Por exemplo, tem medo de ficar sozinho? Tem medo de morrer sozinho?

É uma coisa em que não penso. Fui filho único, vivi muito tempo sozinho. Vivia muito tempo sozinho em Lisboa quando os meus pais iam para a quinta. Vivi sozinho quando vivi fora de Portugal. Estou habituado a estar sozinho.


Vamos pensar que se dá um cataclismo e que fica sem a maior parte dos brinquedos de que dispõe. Quais seriam os essenciais para sabermos quem é? O que é que tem mesmo valor e importância para si?

Uma coisa de que gosto muito é a minha quinta. Se acontecesse uma catástrofe, e ficasse sem nada, tenho a minha quinta. Seria capaz de estar lá, sem problemas. E para estar lá, não preciso de nada.

 

Precisaria outra vez de se entreter e de ganhar dinheiro?

Precisaria de me entreter. Comecei por viver na nossa quinta em Mangualde, vivi lá até aos oito anos. Dá-me segurança, a minha casa, a minha quinta. Mas não tem nada a ver com a vida que desenvolvi depois. Se me pergunta, das coisas que tenho agora, o que é que podia largar? Tudo.

 

Com essa facilidade? Depois de ter suado tanto para as ter?

Não é uma coisa que me faça confusão. Ter as coisas de que gosto, não o faço porque seja indispensável para ser feliz; faço-o porque me entretém.

 

É um desporto como outro, ganhar dinheiro?

Ganhar dinheiro é apenas um meio para ter o que quero. Enquanto tiver objectivos para atingir, vou vivendo. Desafios muito grandes ou mais pequenos, ou desafios diversos.

 

De Wall Street, tenho a imagem frenética dos filmes. A sua ambição, o gosto pelo desafio, foram fomentados em Wall Street?

O desafio foi algo que se desenvolveu em mim, não sei bem qual foi a origem. A ambição, sem dúvida que foi a exposição ao mundo do INSEAD e de Wall Street que fez com que se construísse de determinada forma. No fundo, esta trajectória também tem a ver com... Eu vivia com os meus avós e vivia num meio que era derrotado. Nós fazíamos parte de um grupo de “losers”. Incomodava-me o destino de fazer parte de uma comunidade de “losers”. A ambição que desenvolvi foi o desejo não querer fazer parte desse grupo de “losers”. Não queria sentir-me um “loser”. Bom, não eram propriamente “losers”, mas achavam-se “losers”, porque os pais já tinham sido “losers”, os avós tinham sido “losers”, estavam do lado dos “losers”.

 

Eles têm uma grande admiração por si? Esse lado da família, que ainda é vivo?

Alguns têm. Outros, menos.

 

Outros têm inveja?

Não me interessa. Em Portugal há aquele sentimento católico em que ser ambicioso, querer ser melhor do que os outros, ganhar dinheiro, etc., não é aquilo que deve ser.

 

A sua mãe tem orgulho em si?

É natural que tenha algum, mas está entre aqueles que acham que sou muito materialista e que ligo pouco à família, e que ligo pouco à religião, e àquilo a que devia ligar.

 

Pensei que fosse importante para si merecer a admiração dela.

Eu não vivo a minha vida para merecer a admiração de quem quer que seja. Também não da minha mãe.

 

Precisamos sempre de plateia. E há alguns que queremos sentados na primeira fila.

Não me preocupa a plateia.

 

Essa invulnerabilidade que ostenta... Lembra-se da última vez que chorou?

Isso são temas a que um inglês não responderia. Não me lembro, francamente.


Quando fez 50 anos, foi uma data pesada para si? Agora tem 51?

52. Não festejei. Não gostei de fazer 50 anos.

 

Tem medo de envelhecer?

Preocupa-me já não ter muito tempo para fazer algumas das coisas. O tempo é um inimigo terrível. Por exemplo, não tenho muitos mais anos para fazer o Le Mans. Três ou quatro, quatro ou cinco, dois ou três. Tenho 52 anos, já não tenho idade para começar a fazer coisas. É nessa perspectiva que isso me preocupa.

 

O envelhecimento físico incomoda-o? Não parece nada ter 52 anos. Não estou a ser galante, é verdade.

Obrigado. Só me preocupa na perspectiva de performance física. A questão da aparência não me preocupa especialmente.

 

Esse fato, foi encomendado num alfaiate em Londres ou em Lisboa?

Agora tenho um alfaiate em Milão, agora faço os meus fatos em Milão. Mas isso não se deve dizer em entrevista.

 

Porquê?

Porque é um pouco cagão dizer essas coisas.

 

É engraçado que diga “cagão” referindo-se a si mesmo.

É o que se diz, não é? Eu não sou, e não gosto que se seja, por isso é um pouco ridículo dizer [que se faz os fatos em Milão].

 

Para terminar: há várias fotografias de pessoas ilustres que frequentam este hotel. Quem é que lhe interessava conhecer?
As fotografias que vi eram da Rainha [de Inglaterra], do Churchill, da Jackie Kennedy. Nenhum desses me interessava conhecer. Churchill não foi mau Primeiro-Ministro, mas não tinha grande interesse em conhecê-lo. Tinha interesse em conhecer a Mrs. Thatcher, um interesse relativo. Conhecer Einstein interessava-me mais. Ou Picasso. Gostava de conhecer Fangio! Políticos, reis, não são especialmente interessantes, não acrescentam muito. Às vezes fazem bem aquilo que é suposto fazerem.


Quem foram as pessoas que marcaram a sua vida? Com quem aprendeu, que admirou.

Na primeira fase, até aos meus 15 anos, foram os meus pais. Quando deixaram de ser os pais, deixou de haver alguém importante, do ponto de vista da referência.

 

Isso é incrível. Não houve um professor, um chefe...

Não. Para lhe dizer a verdade, não.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

 

Retratos da Vanity Fair

05.02.14

Primeiro não se estranha, depois já estamos entranhados. Vislumbramos ao fundo Hollywood em 2001 (a esfíngica Kidman, a voluptuosa Loren, a eterna Deneuve, a subversiva Chloë Sevigny…). Reconhecemos Demi Moore, numa nudez orgulhosa, a segurar a barriga de sete meses. Uma madonna de Botticelli. A actriz diria: “Neste país, as pessoas não conjugam a maternidade e a sexualidade. Durante a gravidez, não é suposto ser bonita ou sexualmente apelativa. Ou se é sexy, ou se é mãe”. Estava-se em 1991 e Annie Leibovitz, fotógrafa de celebridades, criadora de mitos, legava uma imagem para a posteridade.

Noutra parede, Madonna encarna Evita Péron. Um fundo verde do qual ela emerge, envolva em peles. Uma leve comiseração no olhar, uma mão no peito pelos pobres e descamisados. Fotografada pelo amigo Mario Testino. A material girl detém um recorde de capas da Vanity Fair: nove. Testino registou também a desenvoltura de Diana, a outra mulher mais famosa do mundo, a par de Madonna, meses antes do acidente de carro que vitimou a princesa. Ele pediu-lhe que imaginasse que chegava a casa depois de uma festa; e mostrou-a como nunca. Confiante, sexy, moderna.

Diana consta desta galeria de famosos. Entramos na sala de exposições e é como se folheássemos um álbum de família. Não se estranha, já estamos entranhados. A haver um apelido para esta família, é Celebridade.

“Vanity Fair Portraits” é a exposição que celebra os 95 anos da publicação, e o quarto de século desde a sua reedição – o interregno foi de quase 50 anos. Cento e cinquenta retratos a partir dos quais se conta a história do último século. Os protagonistas estão lá todos. Gloria Swanson, felina, pupilas dilatadas, por detrás de uma rede de flores delicadas. Jean Harlow, carnuda, apoiada sobre a fera no chão da sala – a bela e o monstro. James Joyce com a pala sob os óculos. Virginia Woolf com um vestido da mãe. Isadora Duncan no Partenon. Chaplin sem bigode. Picasso por Man Ray, Jean Cocteau por Cecil Beaton. Também Einstein, também Monet, também Jesse Owens.  

Em 1914, Frank Crowninshield, o primeiro director da revista, apresentou-a da seguinte maneira: “Peguem numa dúzia de homens e mulheres cultos, vistam-nos convenientemente, sentem-nos a jantar. O que dizem essas pessoas? A Vanity Fair é esse jantar”. A crónica do jantar não dispensaria a sátira, a ironia, a elegância. O estilo. A Vanity Fair seria a revista de figuras de romances de Fitzgerald. Condé Nast, o fundador, visionário, queria uma revista que acompanhasse um mundo em convulsão. Que cortasse com uma tradição edwardiana. Como diria mais tarde o poeta W. H. Auden, no advento da Segunda Guerra, “as luzes nunca se podem desligar, a música tem de continuar a tocar”. Show must go on.

Viviam-se os anos do Jazz, dançava-se até ao amanhecer, o borbulhar do champanhe confundia-se com a espuma dos dias. Celebrava-se o individual sobre o colectivo, a beleza, a pujança, a promessa da juventude. Viajar passou a ser um tema, ganhar dinheiro deixou de ser imoral. Em Paris ouvia-se a “Sagração da Primavera” de Stravinsky. A arte moderna era introduzida na América. A prosa era assinada por gente como Aldous Huxley, Gertrude Stein, e.e. cummings. A divisa era cruzar os reconhecidos e as promessas, o chique e a sofisticação.

Mas foi na imagem que a Vanity Fair se afirmou como publicação ímpar. Foram os anos em que Baron de Meyer, Hoppé ou Steichen seguiram à linha o que lhes tinham pedido: que fossem audazes e modernos. Que no retrato revelassem mais do que a pessoa retratada. Que nele se adivinhasse um tempo, uma teia de relações, um mundo.

Quando a fenix renasceu das cinzas, em 1983, a originalidade da Vanity Fair passava ainda por combinar “os talentosos, os ricos e os belos das esferas da literatura, das artes, desporto, política, cinema e high society” (lê-se no catálogo da exposição). Como nos primórdios do século XX, o mundo estava também em mutação. Os 80 foram os anos de Silicon Valley e de Wall Street, da explosão do mercado da arte, da ameaça da Sida. Foram os anos dos consultores de imagem – políticos ou empresários não passam sem eles desde então. “Os consumidores de jornais passaram a viver mais e mais fascinados com as narrativas privadas das figuras que ocupavam os seus dias” – de Robert De Niro a García Márquez (escreve-se ainda no catálogo). Tina Brown, a primeira grande directora desta segunda vida (o outro é o canadiano Graydon Carter, o actual) deu a cartada decisiva quando pôs o casal Reagan a dançar na capa da edição de Junho de 85. Estava inaugurada uma nova era.

É-se célebre quando se aparece na Vanity Fair, fica-se celebre quando se aparece na Vanity Fair. Aquela a quem chamam a maior fotógrafa do mundo, Annie Leibovitz, imortalizou os membros desta família, produziu as grandes peças desta iconografia. Assinou um total de 130 capas! A cultura popular dos últimos 30 anos não se traça sem as suas imagens. Uma esteta.

Os seus retratos são mais do que retratos. São performances, são encenações. Mais alguém se lembraria de fotografar Scarlett Johansson e Keira Knightley nuas, recriando um quadro de Manet? Ou Jack Nicholson de roupão a jogar golf no telhado? Ou Schwarzenegger a esquiar na sua Áustria natal?

O mundo que conhecemos, está naquela sala. Uma grande sala da National Portrait Gallery, em Londres. A exposição fica até 26 de Maio.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

 

 

Para o Chico Grave

05.02.14

O Ricardo Grave, sobrinho do Chico, leu agora este post que escrevi sobre o tio dele e meu querido amigo, que morreu no dia 13 de Maio do ano passado, e quis partilhá-lo com a família e outros amigos do Chico.

Como nem todas as pessoas estão no Facebook, e eu quero que a memória do Chico toque muitas pessoas, deixo aqui o que escrevi no dia 31 de Dezembro:

 

"O pior de 2013, como sempre, e para todos, foi perder quem se ama. Para mim (e não só), foi ter perdido o meu amigo Chico Grave. O Chico almoçava comigo aos domingos, levava e devolvia os livros que lhe emprestava, e dizia sem hesitação: isto presta, isto não presta. Não conheço ninguém que leia tanto. Foram também os livros e o cinema - e o amor da Mãe - que o fizeram sair da pobreza da Quinta da Calçada. (Sentido amplo para palavra pobreza). Na vida dele não havia espaço para armar ao pingarelho nem disfarces. Era tudo cru e tão bom. Tão raro. Ai Chico, Chico (os que o conheceram lerão aqui: ai Sara, Sara), fazes-nos tanta falta. (Sei que se ele lesse isto diria o de sempre, em tom trocista: "Raparigas novas, não pensam".) Sentem."

 

 

Vítor Bento

02.02.14

Primeiro, fala a uma velocidade estonteante. Segundo, viveu uma vida regrada. Uma coisa parece não bater com a outra. Há uma aceleração, uma urgência, que não combinam com o homem que Vítor Bento é. O tipo bem comportado. O que faz um percurso de excepção.

E ao mesmo tempo, sem essa aceleração e essa urgência, ele não teria sido a pessoa que publicamente conhecemos. Presidente da SIBS e da SEDES.

Pertence à categoria dos homens que partiram do nada e que construíram uma carreira a pulso. E nisso, contou apenas com ele, com o seu talento, com a sua capacidade de trabalho. É um homem suficientemente equilibrado para dizer, quando o convidaram para Secretário de Estado e Ministro das Finanças, não. Suficientemente orgulhoso para saber, quando o escolhem, que merecia. É um homem suficientemente reconhecido para não usar fato e gravata e ter a certeza de que não vem mal ao mundo por isso. Lá está a calça bege, no tom clássico das calças beges, o sapato que, se não tem berloques, podia ter. O acerto está lá, os códigos estão lá. E o conforto de há anos ser one of them.

É discreto, amável, straight to the point. Mas gosta de argumentar, discorrer, articular, de verbos nos quais se afirmou. Diz que é um estóico. Não é um emocional, mas é capaz de demonstrar comoção em público.

Editou recentemente um livro, “Perceber a crise”.

 

Começamos pela alopécia? As pessoas não sabem se rapou a cabeça ou se está com um cancro. Que impacto tem esta doença na sua vida?

Ao princípio, dizia às pessoas: “Não é nenhuma doença grave nem é a crise da meia-idade!”. Aconteceu de repente, no espaço de um mês e meio.

 

Que é que aconteceu?

Não tinha sinais de calvície. O que me surpreendeu. O meu pai ficou calvo cedo. Comecei a dar-me conta, sobretudo no banho, de que caía muito cabelo. Se fizesse assim, [gesto de puxar o cabelo], vinham tufos de cabelo. Costuma estar associado a choques de stress. Bom, o primeiro stress é a minha vida…

 

Li que as motivações da alopecia são psicossomáticas.

Está ligado a um choque emocional. Em boa verdade, ninguém sabe muito bem como é que isto funciona. É um problema do sistema imunitário. É provável que haja uma componente genética, porque o meu pai já está assim – embora com ele tenha sucedido mais tarde. O lidar com isto: foi traumático. Primeiro, há o aspecto da degradação.

 

Degradação da imagem que tem de si mesmo.

Sentir o cabelo a cair àquela velocidade…, e não tendo um conhecimento científico para lidar com isso. É um sinal de perda. Há uma imagem que nos habituámos a ver durante 50 anos e que, de um momento para o outro, muda. No meio disto tudo aconteceu uma coisa engraçada: quando o cabelo começou a ficar ralo decidi cortá-lo rente. Fui a um cabeleireiro e fui atendido por uma miúda cabo-verdiana, muito simpática e bonita. Ela ia cortando… “Corte todo. Eu quero mesmo todo rapado”. Quando fiquei com o crânio vazio, ela pôs-me as mãos na cabeça e disse: “Mas sabe, tem um crânio tão bonitinho, fica-lhe tão bem!”. Conseguiu fazer-me despontar um sorriso.

 

Foi doloroso?

Não exactamente. Sou muito estóico. O que tem que ser, tem que ser. Mas ia triste.

 

Isso aconteceu há um ano e meio.

Fui ao médico, fiz os testes todos, estava tudo normal. O resultado foi alopecia. À volta, os amigos e a família foram todos apoiantes, ajudaram-me a enfrentar a situação. Normalizei. Nunca me derrotou.

 

Ainda olha para o espelho, de manhã, e pensa nisso, ou já está habituado à sua nova imagem?

Já estou habituado. Quando vejo fotografias é que reparo na diferença – “afinal eu tinha cabelo”.

 

Que grandes escolhas foram as suas, quando outros homens têm crises de meia-idade?

Que objectivos tenho? Continuar a ter possibilidades de realização profissional. É importante ter uma actividade gratificante. Sempre fui uma pessoa ambiciosa. Mas hoje tenho a ambição mais comedida. Há coisas que saem do horizonte. Cheguei a um ponto em que o número de oportunidades começa a ser mais reduzido.

 

Mais reduzido, mas mais interessante.

Quando tem 20 ou 30 anos, é um júnior num lugar qualquer e tem o universo todo para percorrer.

 

Mas aos 20 anos não se pode ser Ministro das Finanças. Aos 54, pode.

Já tive essa ambição. E já tive a oportunidade de ter sido.

 

Porque é que recusou?

Nestas coisas, é preciso ser-se realista. Há duas formas dessa ambição: uma é ter o título e outra é fazer obra. O título: ter isso no currículo ter-me-ia satisfeito. Na altura em que se concretizou, [a possibilidade] de ter apenas o título já não era o objectivo. Era necessário concretizar obra. No fundo, fazer a diferença. Achei que não tinha condições para isso. Tenho a ideia, e cada vez mais, de que a política não é para técnicos. E sobretudo, alguns cargos importantes têm de ser desempenhados por pessoas que têm poder político. O lugar de Ministro das Finanças é um daqueles em que é importante ter peso político. Um técnico é facilmente descartável se não tiver peso político, nem conseguirá que as suas ideias vão avante.

 

Foi um fito da sua vida: fazer a diferença?

Não. Há uma norma ética que é muito esquecida: fazer bem aquilo que se faz. Se quiser, fazer bem o Bem. E fazer bem, não é fazer mais ou menos; é ser excelente. Se este princípio fosse seguido por toda a gente, o mundo seria muito melhor. Portanto, não é fazer a diferença no sentido de deixar uma marca na História. É no sentido de ter utilidade. Não tenho nada contra quem faz outras opções. Achei que ocupar o lugar por ocupar, não me seria útil nem a mim nem a ninguém.

 

No lançamento do seu livro: se não fosse quem é, se não ocupasse o lugar que ocupa na SIBS e na SEDES, apareceriam as mesmas pessoas, ou nem todas?

Todos sabemos que os relacionamentos são importantes. A capacidade que as pessoas têm de se fazer ouvir depende da posição que ocupam no estrado. Admito que a voz possa conseguir mais audiência pelo facto de ter ganho notoriedade. Fico satisfeito. É muito importante em Portugal o fortalecimento da actividade cívica. A vida política depende essencialmente dos partidos. Os partidos são fundamentais para o exercício do poder e para a mobilização de projectos. Mas é fundamental que haja uma vida cívica envolvente, e que, ela própria, “condicione” a actividade dos partidos. Um dos problemas em Portugal é a pobreza da sociedade civil.

 

Donde é que lhe isto lhe vem? Isto de ser tão argumentativo, de se afirmar pela inteligência, pelo que sabe.

A minha família é humilde, não tem estudos. Fui educado, quer pela família próxima quer pelo meio, a procurar a excelência. Exactamente por ter uma origem humilde, percebi, a minha família percebeu/intuiu muito cedo, que só através da educação e do mérito conseguiria sair daquela situação e progredir socialmente. Habituei-me a tentar ser o melhor aluno.

 

Era preciso ser o melhor.

Sim. Naquilo onde entrava, tentava ser o melhor. Se conseguia ou não, dependia de mim e dos meus oponentes. Por acaso fui sempre o melhor na concorrência directa.

 

Precisava dessa concorrência para se estimular, ou era uma coisa de si para si?

Ah, a concorrência favorece. Vemos isso nos desportistas. Se não tiverem concorrência, estiolam as suas capacidades.

 

Estiolar é uma palavra inesperada num economista. É poética.

[riso] É uma coisa que acontece: as pessoas estiolam as suas capacidades. Vem-me daí essa procura.

 

A figura fundamental, nessa procura, era o seu pai?

Seria o meu pai porque na organização familiar tradicional, o pai era o chefe da família. Mas as mães tiveram sempre uma influência muito grande. As supporting role eram muitas vezes mais actuantes, penetrantes e eficazes do que quem tinha o papel principal.   

 

Como foi a sua vida? Vamos à net e temos páginas com o seu currículo. Nem uma linha sobre quem é.

Nasci em Estremoz. Tenho uma irmã. A minha vida não tem interesse nenhum. Ser de uma família de poucos recursos condicionou uma série de opções, que outros tiveram. Não fiz a viagem pela Europa no inter-rail, essas coisas. Comecei a trabalhar aos 17 anos. Quando vim para Lisboa, vim como empregado bancário, de balcão. Fiz o sexto e sétimo ano num ano, a estudar à noite, [e a trabalhar durante o dia]. Aliás: fiz o curso comercial e não o liceu precisamente para assegurar empregabilidade. Enquanto alguns colegas viveram os 18 anos de forma mais activa, eu fiz um investimento no futuro. Fiz o curso de Economia todo à noite. Desde os 18 anos que tomo conta de mim, que sou independente.

 

A sua ambição vem daí: do desejo de ter uma vida melhor?

Sim. E por outro lado, de realizar as potencialidades. Sempre senti como natural subir.

 

Quem primeiro acreditou em si e chamou a atenção para as suas potencialidades?

Não sei. Até aos 30 anos, e até ter um percurso consolidado, entrei em tudo por concurso. O emprego na banca – Montepio Geral – foi por concurso. Quando entrei para o Banco de Portugal, foi por concurso. Até quando fui assistente em Económicas, entrei por concurso. Se não tivesse sido esse sistema de concursos nacionais – que tratam toda a gente em igualdade de circunstâncias – não sei se teria tido as oportunidades que tive. Se eu tivesse estudado no sistema de ensino actual, não sei se teria conseguido o que consegui. O sistema de ensino que tem sido construído é menos facultador de progressão social do que o sistema em que estudei. Hoje, reproduzem-se mais as condições sociais de partida porque é-se mais contemporizador com o fracasso.

 

Qual foi o seu percurso?

Vivi em Évora, em Tomar, em Moçambique, em Lisboa. Vivi quatro anos em Moçambique na adolescência, com os meus pais; deixou marcas. Era um mundo diferente, alarga os horizontes. Estive em Quelimane, uma cidadezinha pequena, simpática, capital da Zambézia. A vida lá era mais aberta e mais pura. Ao regressar, notei que havia, no relacionamento entre sexos, mais reserva e segunda intencionalidade. Havia diferenciação, claro; mais social do que rácica. Um dos meus melhores amigos da altura foi vice-presidente da Assembleia da República em Moçambique; era indiano e muçulmano.

 

Estava a lembrar-me da menina que lhe rapou a cabeça, de cor. Comoveu-se quando falou dela, ao relatar esse episódio. Além da ternura, era a nostalgia de um tempo, que passou maioritariamente entre negros, em que foi feliz?

Não sei se há essa memória. A ternura, é sempre comovente. 

 

Licenciou-se em 78. O seu mestrado é de 2000/2001. Sendo um aluno de excepção, não seguiu a carreira académica porque precisava de ganhar dinheiro?

Precisava de ganhar dinheiro. Já trabalhava quando fui estudar; era natural continuar essa carreira, dar os passos seguintes. Para seguir uma carreira académica, precisaria de ter tido uma liberdade que não tive.

 

Respondeu a anúncios. Verdadeiramente é no Banco de Portugal que tudo começa a mudar na sua vida.

O BdeP era o grande think tank do país na área da Economia. Entrar no gabinete de estudos do BdeP era pertencer a uma elite.

 

O que é que sentiu quando foi admitido?

Fiquei satisfeito. E achei que merecia. Que merecia, por direito próprio. Felizmente que os processos de selecção eram cegos, isentos. Um anónimo conseguiu ter acesso àquele lugar.

 

Mérito e reconhecimento são palavras essenciais do seu vocabulário.

Ah, sim, sim.

 

Cruzou-se com Cavaco Silva no BdeP? Que relação tiveram?

Quando cheguei, era Ministro das Finanças – tinha o lugar suspenso [no BdeP]. Mas era uma referência, muito apreciado. Regressou e foi director do gabinete de estudos, durante todo o tempo em que lá estive. Era uma pessoa muito austera, reservada. O contacto com ele não era frequente; havia alguma distância. Desse tempo, a pessoa que mais em marcou e com quem mais aprendi foi a Teodora Cardoso. Tudo gente excelente. Miguel Beleza, com quem também aprendi muito. Manuela Ferreira Leite era coordenadora de uma das áreas.

 

Porque é que a relação com Teodora Cardoso foi fundante?

Talvez tenha visto em mim alguém que tinha disponibilidade para trabalhar em coisas com menos glamour. Trabalhar os números, fazer contas. Terá encontrado alguma afinidade.

 

Teodora Cardoso é também uma leitora de Jane Austen… Falavam de romances?

Não. Vamos lá ver: descrevi-lhe o meu percurso. Não tive grande tempo para fazer as leituras que os outros fizeram. Não se pode andar a trabalhar e a fazer o sétimo ano à noite e a ler os romances que é suposto ler aos 17 anos. Essas leituras fi-las, todas ou algumas, mais tarde. Mas a relação era só na Economia. Mais tarde, aprendi outras coisas com ela, fui despertado para outras coisas por ela.

 

Em que circunstâncias foi para Macau em 1985?

Tinha acabado de fazer um curso no Fundo Monetário Internacional. Estive quatro meses em Washington.

 

Como é que aprendeu inglês?

Tive o inglês escolar, que não foi suficiente; no Banco de Portugal tive aulas de inglês; e segui uma recomendação da Teodora: a melhor maneira de aprender uma língua é ler livros policiais. Li toda a Agatha Christie em inglês. E depois, foi pela prática. Regressei e teria gostado de voltar ao Fundo Monetário, e tive essa oportunidade. Mas o Fundo não admitiria as pessoas se as instituições de origem, no seguimento de um curso, não deixassem. Pedi no Banco de Portugal – se não estou em erro ao Professor Cavaco – e não me deixaram. Compreendo: se calhar, fazia falta. Ainda estava em Washington quando me telefonaram de Macau a convidar para ir para lá. Cá, coincidiu com a crise. Na minha casa era só eu que trabalhava, a situação financeira era muito apertada.

 

Foi ganhar dinheiro.

Sim. E era uma oportunidade de abrir horizontes. Já tinha sido exposto a África, fiquei a conhecer também a Ásia. Foi uma experiência útil, que valorizo muito. Habituei-me a conviver com um mercado completamente liberalizado – Hong Kong – e a ver como é que as coisas funcionavam na prática. Quando regressei, fui para o departamento de estrangeiro [do BdeP], como director adjunto; participei no processo de liberalização do mercado cambial. Com um à vontade que não teria se tivesse estado apenas cá. 

 

Quais foram as relações essenciais que teve em Macau, e que hoje perduram?

Macau, do ponto de vista político, era importante e perigosa. Havia muita gente que aqui ocupava posições menores e que ia para Macau e ficava deslumbrada. De repente, passar a ter carro com motorista…

 

Passou a ter essas coisas lá?

Sim. Havia muita gente deslumbrada. E havia interesses deliberados, agendas de interesses. Eu, basicamente, fiquei confinado à minha actividade profissional. Não tinha ligações. E tinha a noção clara que, quando voltasse, voltaria a ser a mesma pessoa que de cá saiu.

 

Ia?

Era o ponto de partida. Se fosse ou não, dependeria do mérito.

 

Não é coerente com a sua ambição. Não quer voltar para o ponto de partida.

Está bem. Voltando para cá, não ia ter, no imediato, carro com motorista. Vivia com mais conhecimentos e esperava uma colocação [compatível]. Mas tinha que ser pelo mérito. Protegi-me de alguma forma.

 

Foi por isso que não se deslumbrou? Porque não se permitiu deslumbrar.

Sim. Quando voltasse para cá, voltava a andar de comboio. O primeiro carro que tive foi em segunda mão e tive-o sete anos; vendi-o porque fui para Macau. Foi em 79, salvo erro. Vivia na linha de Sintra e usava o carro uma vez por semana.

 

Nunca teve um acesso estroina? De ter um Porsche, um carro assim.

[risos] Não. Nunca tive esse fascínio pelos carros. Talvez porque fui educado com o sentido da escassez. Ter um Porsche por quê?

 

Porque é um brinquedo.

Em Macau surpreendia-me o fascínio de ter carros potentes. Para quê ter carros tão bons se raramente se podia meter a quarta?

 

Ainda nesses anos, não sonhou mudar-se para os Estados Unidos e fazer a sua vida lá? Toda a sua vida é em função do mérito. E não há sociedade mais meritocrática do que a americana.

Sim. Voltei a ter essa oportunidade. Mas já tinha a vida arrumada de outra maneira. Também achava que não era suficientemente novo para começar uma carreira como júnior. Poderá perguntar-me porque não fiz um mestrado na área da Economia. Foi por uma razão errada e presunçosa. Eu achava que o mestrado era para ser feito por pessoas de 20 e tal anos, e não de 30 e tal. E que eu já era bom demais para ir fazer um mestrado. Já valia mais do que um aluno de mestrado.

 

O tema do mestrado, que fez na Universidade Católica, é Filosofia da Acção. Estava a tentar demonstrar que era inteligente e sabedor? Era preciso deslocar da Economia para a Filosofia.

Porquê a Filosofia? Porque a Economia não dava resposta a tudo. Precisava de encontrar respostas noutro campo. Filosofia da Acção era o que havia. E não tinha tempo para mergulhar na filosofia pura e estudar ontologia… Requeria outro tipo de imersão. Pelas leituras que me induziu e pelos conceitos adicionais que me deu, melhorou a minha compreensão do mundo. Hoje vejo a Economia de maneira diferente; como aquilo que ela originalmente foi: uma extensão da Política e da Ética.  

 

Mais do que presunçoso, parece um homem orgulhoso.

Não me considero presunçoso, ainda que possa ter actos presunçosos.

 

Orgulhoso: vê-se assim?

É muito importante para cada um de nós ter consciência da nossa dignidade. Implica ter orgulho naquilo que somos. Não vejo isso no sentido vão da vaidade, da vanitas. Vejo isso no sentido de ter respeito por mim próprio, e ter satisfação por ser quem sou. Tenho a preocupação de nunca deixar cristalizar nada, nem um entendimento sobre mim. Habituei-me a disputar-me e a disputar algumas verdades e conceitos que tenho por adquiridos. Pode parecer relativismo; não é. Tenho uma compreensão da vida que é esta: vivemos com um modelo mental de certezas provisoriamente definitivas. O que vamos aprendendo, vai-nos fazer rever essas certezas. É assim que vamos funcionando.

 

Um homem precisa de ter confiança em si mesmo para se questionar tão repetidamente.

Se não o fizer, corre o risco de quedas grandes. 

 

Fracturas, quedas, fracassos: alguma coisa significativa?

De que me consiga recordar, não. E se não consigo recordar-me, não foi importante. Terei tido seguramente coisas que ficaram pelo caminho. Há coisas que recusei e que, se tivesse aceitado, a vida teria sido outra. Mas naquelas circunstâncias foi a decisão que achei que devia tomar.

 

Foi para o Tesouro em 1994. Pela mão de quem?

Dr. Valter Marques, que era o Secretário de Estado do Tesouro. História interessante. Ele convidou-me. Melhor: havia uma certa formalidade. Primeiro sondou-me, para depois fazer o convite. Disse que não. “Não está interessado? Este é um lugar para o qual basta levantar um dedo e tenho não sei quantos [interessados] e você diz-me que não está interessado?”. “Gosto do que estou a fazer. Aquilo tem muito espaço para crescer. Estou a renovar o departamento. Não tenho atractivo para ir para essa área”. Ele foi insistindo. Reencontrámo-nos em Madrid, numa reunião do FMI. “Falei com o Ministro Catroga, que disse: “Ponha-lhe a bandeira na mão e mande-o avançar!” Foi assim que acabei por ir. Esta parte soará pretensiosa, mas foi com espírito de missão. Acabei por gostar.

 

Não era atraente porque era menos do que ambicionava? Se pensarmos numa razão mais funda, do domínio da vaidade…

Se o convite tivesse sido para Secretário de Estado do Tesouro, como depois aconteceu, teria aceite de caras. Hoje acharia que não devia ter aceite.

 

No fundo é isso: era menos do que aquilo que achava que podia ambicionar.

Percebo o seu ponto e é coerente. Mas o juízo não foi esse. Uma [coisa] fazia parte da minha linha de ambição – ser Secretário de Estado do Tesouro e Ministro das Finanças. Mas isso não fazia, era lateral. Enquanto lateral, eu gostava mais do que estava a fazer. Tinha uma componente de administração pública, burocrática, que não desvalorizo. As minhas aptidões seriam mais para outra coisa.

 

Quando é que começou a ambicionar ser Ministro das Finanças?

Isso faz parte do percurso.

 

Não se sai da universidade a pensar nisso…

Se calhar, sim. Faz parte da tal ética de mérito e crescimento ir até ao topo da carreira. Hoje já não vejo isso assim. Na altura via isso como uma progressão de um economista público-social. Mas gostei imenso da experiência do Tesouro. Tive a oportunidade de renovar a gestão da dívida pública. Foi um projecto que me deu imensa satisfação. Tenho orgulho em ter criado uma equipa que se tornou rapidamente uma referência internacional. É provavelmente, das realizações profissionais, a que mais orgulho me dá. Fui substituído por Manuel Pinho. A meio do processo tive um convite para presidir a uma das maiores empresas portuguesas – não lhe vou dizer qual foi, mas era de órbita pública – e recusei.

 

Porquê?

Duas razões. Achava que não tinha competência para esse lugar. Segundo, estava envolvido num projecto, tinha mobilizado pessoas que tinham confiado em mim, e onde alguém tinha confiado em mim para concretizar esse projecto. Essa pessoa era o Prof. Sousa Franco. Achava que seria trair os dois lados deixar o projecto a meio para satisfazer uma ambição pessoal. Se tivesse aceite, a minha vida teria sido diferente. É o único convite cuja recusa me faz interrogar se agi da melhor maneira a meu favor.

 

Ouvindo isso, é lícito pensar que talvez o dinheiro não seja a forma de gratificação que mais lhe interessa. Ainda que seja muito importante e as origens humildes. Procura uma gratificação em função daquilo que sabe ou pode fazer. É assim?

Sim e não. Seria fantasioso dizer que o dinheiro me é indiferente. Posso não ter a ambição de enriquecer, mas tenho a ambição de ter conforto, e sobretudo de assegurar o futuro. A determinada altura da minha vida reparei que tinha dedicado muito tempo à causa pública e que não tinha assegurado coisas fundamentais da minha vida e da família. Mas o factor material nunca foi o determinante nas escolhas.

 

Podia ter procurado o privado, pôr-se a jeito. Mas a linha de ascensão foi a dos concursos públicos. É sintomático.

De facto, essa parte da satisfação pesou sobre tudo. Só quando vim para a SIBS a componente material teve um peso importante na decisão.

 

Satisfação própria, reconhecimento público…

Sim. Partilho da visão do Hegel: o que move o homem é o reconhecimento. A procura do conhecimento, que é a procura da glória, é a procura da imortalidade. O homem procura imortalidade através da glória. Não conseguindo imortalidade física, procura assegurar a imortalidade na memória dos outros homens.

 

Fale-me mais da relação com o dinheiro.

Vir para a SIBS foi um shift importante na carreira.

 

E tudo isto, muito jovem. Tinha, quê, 45 anos?

Como o tempo voa! Quando vim para a SIBS, podia ter ido para um banco. Se tivesse ido para um banco, tinha-me privatizado por completo. Houve nessa escolha, ainda, a trajectória do serviço público. 

 

A relação com Jardim Gonçalves, foi importante na sua vida?

Nunca tive uma relação muito próxima com o engenheiro Jardim Gonçalves. É uma pessoa que respeito muito e admiro. É um exemplo importante. Conhecia-o circunstancialmente. Sempre me tratou muito bem. Enquanto presidente do banco e eu enquanto Director Geral do Tesouro ou presidente do Instituto [de Gestão de Crédito Público], tivemos algumas interacções. Um dia, surpreendentemente, pediu para falar comigo. Simpaticamente foi ao meu gabinete, quando o normal seria pedir-me para ir ter com ele. E fez-me o convite para vir para a SIBS. (O conjunto de bancos tinha decidido encontrar uma presidência executiva e independente para a SIBS. O BCP, como principal accionista, ficou incumbido de fazer esse convite.)

 

Aceitou em que condições?

Uma das condições que pus foi ter o apoio dos bancos todos. Todos subscreveram. Vim.

 

Como leu esse gesto de Jardim Gonçalves, de ir até ao seu território?

É uma questão de feitio dele.

 

É desde logo um sinal de reconhecimento.

O simples facto de me convidar envolve um juízo de reconhecimento. Tanto quanto sei, ele não atira moeda ao ar… Apesar da imagem e da importância que teve, tinha gestos de grande humildade. Tinha uma deferência muito grande no tratamento das pessoas, independentemente da posição das pessoas. Nunca o vi ter uma posição mais arrogante – o que seria compreensível. Tinha o estatuto que tinha, era o presidente do maior banco privado português, banco que cresceu pelo trabalho dele.

 

Era quem mandava.

Sim. Mas é uma questão de feitio. Sempre tentou mostrar que as pessoas eram importantes.

 

Ele cobiçou-o para a Opus Dei?

Não. Aliás, nem houve contacto pessoal mais próximo do que isto que lhe descrevi. Fui uma ou duas vezes jantar a casa dele.

 

A Opus Dei consagra tudo aquilo que é hereditário. O que vem no pacote. Ora isso contraria o seu percurso, e quem é.

Nunca tivemos nenhuma conversa que tocasse sequer a religião. Ele terá uma ideia de quais são os meus valores. A matriz básica será coincidente.

 

Há outro católico no seu percurso, Sousa Franco. É um homem em quem os católicos confiam.

Não atribuo nenhuma expressão especial a isso. Primeiro, este país é católico. A cultura dominante tem uma raiz católica. É natural que muitas pessoas que ocupavam lugares de destaque fossem católicas. O que não quer dizer que usassem a religião na sua actividade. 

 

Fale-me da relação com a sua filha Ana a quem dedica o livro.

[sorriso] O livro é-lhe dedicado por razões afectivas, como é óbvio, e também porque, como diz a dedicatória, o futuro me preocupa. A geração a que ela pertence vai herdar um mundo difícil. Em melhores condições, mas com menos perspectivas do que aquele que a minha geração herdou. Ela tem 28 anos. Temos uma relação normal. Nem tenho qualificação para ela… É filha única, é central na minha vida. Esta hesitação toda é para lhe dizer que o peixe não vê a água. Não vê, vive dentro dela. Aqui, tudo me é natural. Procurei transmitir-lhe um quadro de valores.

 

Facilitou-lhe a vida?

Teve uma vida mais fácil do que eu. Terá criado uma percepção de que a vida é mais fácil do que aquela que eu criei. Mas isso resulta das circunstâncias. Procurei instigar o princípio da responsabilidade e o de que as escolhas são sempre dela. Posso ajudar a formular a escolha, mas procurei nunca a condicionar. E tentei habituá-la a lidar com as dificuldades. Uma história interessante: há tempos foi com umas amigas ao Brasil e viveram uma situação complicada. Estavam numa ilhota, a maré começou a subir e ficaram isoladas. Ela dizia-me (confesso isto com orgulho…): “Apliquei o princípio que sempre me ensinaste. Em qualquer situação difícil há três princípios fundamentais a seguir. Primeiro é manter a calma, o segundo é manter a calma e o terceiro é manter a calma”. É rewarding perceber isso. 

 

Conseguiu sempre manter a calma?

Acho que sim. Quando ela fez 16, ou 18, ou 20 anos ofereci-lhe um poema. “A teia ao lado”. A metáfora era a de ela estar a construir uma teia ao lado; sendo ao lado, percebe-se que muitos dos fios da teia estão interligados.

 

Belo presente.

Acho que ela ficou sensibilizada. É o meu entendimento. Os filhos têm uma vida separada, mas vemos na teia como os fios estão interligados.

 

Começou por dizer que teve uma vida comum. Às vezes lamenta não ter tido uma vida de romance?

Não necessariamente. Não tenho angústias com a minha vida. Foi o que foi. Utilizo o passado não como demissão mas como facto. Não tenho “regrettes” como a Edith Piaf ou como o Frank Sinatra – “Regrets, I had a few”. Comigo é mais Edith Piaf do que Frank Sinatra. Não sei se tenho algum “regrette”. Seguramente terei tido muitas decepções. Mas estão incorporadas. As coisas só são o que foram. Não adiante discutir o que poderiam ter sido. Admiro pessoas que tiveram vidas mais exóticas. Não sei se são mais felizes ou menos felizes. Percebo que será satisfatório ter essa marca, essa diferença. E depois, o que fica na História, não são os comportamentos regrados.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

 

 

As entrevistas que mais leio

01.02.14

A minha lista das entrevistas mais lidas do blog (não forçosamente postadas em Janeiro): ou seja, aquelas de que gosto mais (nesta fase):

1º Ângelo de Sousa
http://anabelamotaribeiro.pt/69888.html

2º Manuel António Pina
http://anabelamotaribeiro.pt/20326.html

3º João Luís Barreto Guimarães e Jorge Sousa Braga
http://anabelamotaribeiro.pt/70395.html

4º Beatriz da Conceição
http://anabelamotaribeiro.pt/62078.html

5º Isabel Soares (sobre Mário Soares)
http://anabelamotaribeiro.pt/73596.html

Convém dizer que as leio como se não tivesse sido eu a fazê-las... Estranho, mas é.

 

 

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