Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Os mais lidos em Março

31.03.14

A lista dos conteúdos mais visitados do meu blog, em Março:

5º Michelle sabe cantar a Grândola:
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/michelle-sabe-cantar-a-grandola-106759

4º José Medeiros Ferreira (sobre Portugal):
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/jose-medeiros-ferreira-sobre-portugal-111420

3º Leonor Silveira:
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/leonor-silveira-100618

2º No Chile, o passado já passou?
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/no-chile-o-passado-ja-passou-107022

1º Mário Crespo: 
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/mario-crespo-120079

Obrigada pelas vossas leituras.

 

 

Luísa Schmidt

28.03.14

Luísa Schmidt é socióloga do Instituto de Ciências Sociais. Doutorou-se em Sociologia da Comunicação e do Ambiente. Colabora no semanário Expresso, onde assina uma coluna ligada ao tema.

No jornalismo aprecia a capacidade de intervenção rápida, «É o pontapé na porta». A investigação sociológica permite-lhe perceber como é que as coisas se organizam e funcionam, «Como é que o quarto se arruma?».

Faz parte da equipa de investigadores que montaram o OBSERVA - Observatório Permanente de  Ambiente, Sociedade e Opinião Pública, onde desenvolve projectos de investigação que articulam ciências sociais e ambiente.

Neste início de 2003 vai receber das mãos de Kofi Annan um prémio «pela sua extraordinária dedicação aos assuntos ambientais em Portugal».

 

Como representaria a relação de Portugal com a questão ambiental?

O desenvolvimento que o país teve caracterizou-se pelo modelo ruralista. Enquanto a Europa se desenvolvia, mantinhamo-nos auto-centrados. Uma das compensações para o nosso atraso era a beleza das nossas paisagens. O 25 de Abril não alterou muito este modelo. Os valores que surgiram eram políticos. Isto gerou um alheamento em relação às questões ambientais. No virar da década de 80, entrámos no comboio da economia de mercado e na euforia consumista. As lojas, o rock, os produtos de vários países do mundo, a imprensa. O lixo, por exemplo, é um dos resultados mais perversos do consumismo. Cresceu exponencialmente e não se falou disso durante 20 anos. Interessou muito mais acertar o passo pela Europa do ponto de vista da economia do que ter atenção ao modelo para o qual se estava a caminhar. 

 

A temática do ambiente há 20 anos seria olhada como despicienda, havia problemas mais urgentes a resolver.

Quando as pessoas acordaram, nos anos 90... Por um lado, tínhamos algumas condições asseguradas, podíamos olhar para esta. Por outro, as condições degradaram-se muito, e isso começou a sentir-se no quotidiano.

 

É aí que começamos a ripostar, quando a factura começa a ser paga no quotidiano?

Exactamente. Afinal, temos casas porreiras, mas temos uma lixeira à porta, ou uma fábrica que nos atira com fumo para cima. As pessoas ressentem-se. No interior é o esquecimento que os revolta, político e ambiental. É interessante verificar como muitos boicotes às eleições nos anos 90 foram por questões ambientais: o saneamento básico, a água que não vinha, a lixeira que não era fechada. Nos mega subúrbios as condições de vida são desumanas. Passa-se três, quatro, cinco horas por dia nos transportes, e além disso, leva-se com fumo, com buracos na rua, com um desleixo que o país tem.

 

Mas só ao cabo de muito tempo se percebem os efeitos nocivos do fumo e do desgaste da vida urbana. Não há consciência imediata disto.

As pessoas vivem um bocadinho anestesiadas. Estamos a crescer de uma maneira muito irracional. As nossas exigências são europeias e aquilo que temos à mão para conseguir cumprir é terceiro-mundista – os transportes, as comunicações, os serviços. Toda a organização tem um modelo obsoleto. A sociedade portuguesa não conseguiu dar o salto do ponto de vista administrativo, do ponto de vista da economia sustentável.

 

O caso das vacas loucas é interessante de ser analisado. O resultado de uma má alimentação é mais rapidamente visível. As implicações da qualidade da água e do ar não são flagrantes no imediato.

O que faz mover as pessoas e mais as preocupa é a questão da saúde articulada ao ambiente. É aquilo que as faz mudar. Depois, também há o efeito do esquecimento, que é tremendo num país que não vai sendo informado. Não temos estruturas de fiscalização ao nível alimentar suficientes, não sabemos a qualidade do que entra cá. Houve o boom, abriu-se o país... Lá está, a reforma administrativa. Era importante reforçar tudo o que diz respeito à fiscalização, controlo e regulação.

 

Mas não fiscalizamos e não reclamamos porquê? São ainda resquícios do tempo em que não tínhamos nada?

Este país sofre de uma falta de estratégia grave. A única maneira de se dar um salto consistente era fazer um pacto de regime sobre algumas áreas: a reforma administrativa, a educação, o ambiente. E viesse quem viesse em termos partidários, aquilo eram objectivos, estavam definidos e acabou-se. Espanha fez isso, Irlanda fez isso, e agora vêem-se os resultados. Cá, vêm uns e mudam, e não só mudam como apagam toda a memória e o que estava feito.

 

Na cultura também. Curiosamente uma e outra são olhadas em termos políticos como secundárias. E quando é preciso poupar, é por aí que se começa.

Mas é o futuro. Não se investe em sectores que podem trazer futuro a um país que não tem recursos. O Ambiente, a Cultura, a Ciência. Este país tem sol, tem uns sítios bonitos que estão a ser estragados, e pouco mais. Portanto, é investir nas pessoas, é dar-lhes formação.

 

Os políticos têm uma relação difícil com o ambiente. As soluções, como são estruturais, não produzem resultados imediatos, são impopulares, não granjeiam votos. E mais uma vez, quem vier a seguir que apague a luz.

Falta cultura ambiental no país. Falta convicção nas medidas que se implantam. Como é que se pode proteger uma área se as pessoas não sabem o que estão a proteger?

 

É inevitavelmente tensa a relação entre ambiente e desenvolvimento? A despeito da poluição, quando se criam fábricas, criam-se postos de trabalho.

É o velho argumento, «Como há outros problemas mais importantes, como por exemplo o emprego, não vamos atacar esta questão». Isto é uma mentira! Olhe para a ria de Aveiro e para o Vale do Ave. A poluição hipotecou a possibilidade de vida daqueles cursos de água. Entretanto as fábricas não se modernizaram e fecharam, foram-se os dinheiros da CEE e as pessoas foram na mesma para o desemprego. Com a agravante de agora não terem recursos ligados ao rio.

 

Temos consciência de que a natureza funciona em rede. Como escreve no seu livro «Portugal Ambiental», «Quando Sines desregula as chaminés, morrem os laranjais de Santiago do Cacém». Todavia, esquecemos isso, tratamos os assuntos como se estivessem separados.

Não há uma visão sistémica dos problemas. Mesmo os que são tratados, são à superfície. As pessoas só vêem uma pontinha do iceberg e não percebem a implicação que está por detrás. Por exemplo, os resíduos industriais, muito falados com a co-incineração. O resíduo industrial está a poluir a água subterrânea que bebemos, a água que rega os nossos legumes. Está a entrar na nossa cadeia alimentar. Ora, esta visão sistémica nunca é dada pelas notícias, nunca é explicada por quem deve explicar _ que é o Ministério do Ambiente.

 

Há bons indicadores em relação ao que está a ser feito? Por exemplo, as campanhas que apelam à divisão dos lixos, têm funcionado?

As pessoas têm apetência para participar; não sabem é o que fazer para participar aos diversos níveis. A separação dos lixos foi uma medida importante. Mas era também importante perceber toda a sequência, não só deixar o lixo nos eco-pontos, mas explicar para que é que aquilo serve, que indústrias estão a sair dali, que empregos se criaram. É preciso mostrar a sequência para que as pessoas vejam o resultado daquilo em que se empenham. Isso é muito importante na vida cívica.

 

As nossas estruturas primam pela ineficácia. Há a ideia de que não vale a pena o trabalho, o desgaste, o tempo perdido.

Vou à Câmara?, não me atendem. Meto em tribunal?, aquilo não anda. A ineficácia das suas acções é desmobilizadora. É fundamental sentir que a justiça está a funcionar. Uma das maiores doenças do país é a impunidade. A maior poluição que temos é a impunidade. É tremenda para o funcionamento da democracia. 

 

Estes crimes ligados ao ambiente, como não têm um corpo visível, tendem a ser esquecidos. Nos outros, podemos horrorizar-nos porque lhes conhecemos o contorno.

A questão da visibilidade é muito importante. Quando morrem peixes nos rios, ou agora a maré negra, fica tudo muito indignado. E ainda bem. Mas depois, no quotidiano, esquece-se o assunto. No outro dia um investigador do Ave dizia-me: «Já nem temos o privilégio de aparecer na televisão. Já não há peixes para morrer!». Isto para dizer que é precisa atenção. Mas se o sistema de justiça funcionasse, tudo seria muito diferente.

 

Uma acção concertada é dificílima. Cada um de nós pode tomar a iniciativa?

Há a escala individual e também a escala organizada do colectivo. As pessoas, sozinhas, conseguem determinadas coisas. Mas não conseguem outras. Se quero contestar uma urbanização, tenho de me organizar em grupo.

 

Recentemente a Bastonária da Ordem dos Arquitectos, Helena Roseta, pediu que se olhasse para a construção civil, que é sabido ser um dos cancros do país.

Construção civil, financiamento aos partidos, clubes de futebol: é a alavanca mais obscura do país. O desordenamento do território é grave porque é o mais irreversível. Um rio pode-se sempre despoluir; agora, a partir do momento em que se destrói uma paisagem natural, uma praia, acabou!

 

Nesta conversa fica claro que tudo isto funciona em rede. Mas quando ouvimos as notícias, do que se fala é da co-incineração, dos aterros, de coisas conjunturais.

A questão ambiental é transversal a todas as decisões. Quando tomamos decisões sobre a agricultura, devíamos levar em conta a questão ambiental ligada à água, produtos, pesticidas, etc. As pescas, a mesma coisa. Em termos ideais, poderia existir não um Ministério do Ambiente mas uma Secção de Ambiente que remetesse directamente para a Presidência do Conselho de Ministros. É importante, de qualquer maneira, que haja um ministério, sempre tem visibilidade.

 

Focalizemos agora em questões práticas. Buraco de ozono: o que é que cada um de nós pode fazer?

O que podemos fazer é falar nisso – exigir informação, fazer o tema entrar na nossa agenda mental. Há algumas coisas concretas que a indústria já se encarregou de fazer; tais como produzir aerossóis e electrodomésticos livres de CFC’s. O que cada um deve fazer é proteger-se dos ultra-violetas, usando cremes protectores solares e procurando sombra, muita sombra...

 

Porque é tão importante poupar água? Há pequenas formas de poupança que aconselhe?

É importante porque é um recurso muito escasso. Quem vai frequentemente a países como Cabo Verde, apercebe-se bem da dimensão do problema. Em Portugal a prioridade é não sujar a água. Claro que poupá-la também é importante. Pode-se controlar a vedação das torneiras e em especial do autoclismo – quando mal vedados podem representar uma perda até 590m3 por mês. Ou não deixar correr a água enquanto se lava os dentes ou faz a barba.

 

As oscilações no clima, as grandes catástrofes naturais, são já uma amostra de qualquer coisa que está a acontecer ao planeta. A Terra parece em convulsão. O que pode ser feito?

Fazer pressão em termos de informação e acção cívica para que as causas e os causadores cessem urgentemente de agravar o problema. Tal como o buraco do ozono, esta é uma questão geo-política que apela a uma responsabilização global. Há zonas que vão ser mais depressa e mais intensamente afectadas, e devemos todos sentir-nos responsáveis. À escala pessoa, pode-se poupar energia usando lâmpadas e electrodomésticos mais eficientes, que são também mais duradouros. E fazer melhorias em casa no sentido de perder menos energia, retendo calor e protegendo do frio.

 

Haverá uma forma de produzir menos lixo numa sociedade que promove o descartável?

A primeira coisa a fazer é pressionar o comércio, é preferir uma marca que não venda mais embalagem que mercadoria! A segunda coisa é fazer a separação dos lixos de modo a que sejam reciclados.

 

As cidades continuam sujas?

Encerraram as lixeiras, mas as cidades estão um verdadeiro nojo, os cães fazem na rua... As campanhas não resultaram. Precisamos de outras muito mais fortes para o país ganhar estima.

 

Estamos com falta de brio?

Estamos descrentes em relação ao futuro do país. A auto-estima é fundamental para darmos o salto. Quem vive ao pé de rios sujos, tende a sujar os rios. É preciso romper este ciclo.

 

E o carro?

Uma das questões fundamentais é a da utilização do transporte rodoviário. Mas com uma rede de metro microscópica, uns autocarros que parecem umas sardinhas em lata a roncar, não podemos generalizar o uso dos transportes públicos! Ainda não está montada uma rede que nos permita abdicar do automóvel, mas com o problema das alterações climáticas e da poluição quotidiana que sofremos, é uma coisa que vamos ter de fazer a curto prazo.

 

Como é que despertou para esta temática?

Nesta matéria, quanto mais se sabe, mais se precisa de saber. Aqui está tudo: as questões sociais de fundo, as políticas, as económicas. Comecei por interessar-me pelo consumo. O ambiente é o reverso da medalha do consumo. Sempre fui sensível às questões da natureza e senti que o país estava a descuidar todas as questões ambientais. À medida que me fui interessando, ganhei consciência crítica em relação a todos os sectores e mais entusiasmo em relação à matéria. Ao fim e ao cabo, é a própria sociedade, é o homem, que decide ir por um caminho ou por outro, que pode inverter ou alterar os comportamentos. Há uma forma de intervenção cívica e política que é importante.

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2003

 

António Saraiva

28.03.14

Ele sabe o que é ser o parolo do bairro. Ele sabe o que é ter o futuro cerceado porque os pais são pobres. Sabe o que é trabalhar no fundo de um navio com um fato viscoso. E passar entre homens que o escarram e insultam. Ele sabe o que é ter um pai que não lhe pergunta para que quer o dinheiro, que apenas lhe diz: “De quanto é que precisas?”. Um pai com uma história de vida pungente. Sabe o que é ter nervo e namorar uma mulher mais velha. Ou dizer ao patrão: “Então compro eu”, quando não se tem dinheiro para comprar uma empresa. Sabe que é possível unir margens, fazer pontes, que o outro não é o inimigo, mas parte da solução. Dito de outra maneira: António Saraiva começou de um lado da ponte e não é nesse que está há muito.

É empresário, é presidente da CIP. Revigorada e reforçada nos seus poderes – obra dele, em meio ano de casa. Pela primeira vez, desde a sua fundação, em 1974, a CIP, não tem na sua presidência uma homem rico e bem nascido. Como é que ele chegou lá? A ser, como se costuma dizer, “patrão dos patrões”. Como é que se fez tão poderoso? Que é que nos diz esta mudança do país e do tecido empresarial português?

Tem olhos muito vivos e azuis, fala dele com grande facilidade, reconhece o orgulho e a vaidade de quem olha para trás e percebe que o caminho vai longo desde que tudo começou numa aldeia alentejana, há 56 anos.    

Aqui ficam duas horas de conversa com um homem que não é doutor nem engenheiro, mas que soube muito bem o que fazer com a vida.

 

Ervidel agora está no mapa por sua causa?

Ervidel é uma aldeia no Baixo Alentejo, no distrito de Beja. Constatei, quando fui eleito presidente da CIP, que isso constituiu para os meus conterrâneos uma surpresa agradável. Houve muita gente que me ligou e o jornal da terra fez um artigo, com fotografias minhas e dos meus pais quando tinha dois, três aninhos. Este fim-de-semana, em Ferreira do Alentejo, o presidente da câmara entregou uns prémios aos empreendedores na Feira do Regadio, eu estava lá por coincidência, e o presidente fez questão de dizer que tinha ali o presidente da CIP.

 

Isso representa um reconhecimento do poder ou é expressão do orgulho de ter um alentejano na CIP?

Sinto que é mais orgulho. É um filho da terra que acabou, segundo eles, por singrar na vida.

 

Que memórias tem de Ervidel?

Nasci em 1953, em Ervidel, e vim para Lisboa em 1959. Mas passava sempre lá as férias, voltava às origens, em casa dos meus avós maternos. Fazíamos os nossos brinquedos, cavalinhos e carrinhos com araminhos dos fardos da palha. Atirávamos pedras uns aos outros, de vez em quando havia cabeças partidas. O meu avô materno tinha uma taberna, o álcool que se usava na ferida era o bagaço. Guardo estas memórias muito vivas.

Em Lisboa, quando chego, sou o saloio. Tive uma necessidade de afirmação, de combate de rua. Vim viver para uma zona entre Alfama e o Castelo, o Miradouro de Santa Luzia. Estávamos no meio de duas guerras permanentes. Vivíamos praticamente na rua, hoje não se vêem miúdos pela rua. Fugíamos ao carro da polícia, o “creme Nívea”, como lhe chamávamos [riso], porque era pintado de branco e azul. Os meninos desse tempo reúnem-se num jantar mensal, cerca de 30, o pessoal do Miradouro.

 

O que é que existe ainda em si desse que foi na infância? Essa vida que descreve parece-lhe longínqua e desligada de si?

Não, acho que tenho algumas coisas desse tempo. Sou filho único. Eu do Alentejo, o Morais de Coimbra, outros das Beiras, éramos os irmãos que nenhum de nós tinha. Sou de partilha, sou solidário, isso vem daí.

 

Descreva-me o que era o seu quadro de vida.

Somos uma família de origem humilde. O meu pai era sapateiro e a minha mãe trabalhava no campo. Em 1959 o meu pai veio para a GNR, que era uma das saídas profissionais para os jovens do Alentejo. Passados uns seis meses chamou-nos, a mim e à minha mãe, que veio trabalhar a dias.

 

Só tiveram um filho por causa dessa limitação financeira?

Acho que sim. A minha mãe gostava de ter tido uma filha. Mas os tempos eram difíceis. Os meus pais casaram muito novos; o meu pai tinha 16 anos e a minha mãe 14. Nasci quando a minha mãe tinha 18 e o meu pai 20. O meu pai estava no serviço militar em Beja.

 

Porque é que casaram tão cedo, anormalmente cedo?

Não era anormal à época casamentos nestas idades. A minha mãe tinha ficado órfã de mãe, o meu avô, curiosamente, tinha casado com a irmã do meu pai. Quer dizer, o meu avô era simultaneamente meu avô e meu tio. A minha mãe andava entre a casa do pai e a de uma irmã mais velha em Ferreira do Alentejo; talvez por causa dessas dificuldades acabaram por se casar e ficar a viver em Ervidel, em casa da minha avó materna.

 

Porque é que o seu pai vem para Lisboa? Isso revela nele o desejo de uma vida melhor, um desejo ascensional.

É uma pessoa que admiro muito. É um autodidacta, um self made man.

 

Sabia ler?

Sabia. Andava muito bem de bicicleta. Fazia os quilómetros que separam Ferreira de Ervidel para namorar, quando a minha mãe estava em casa da irmã. Era muito magro, ginasticado. E tinha uma enorme sede de mundo. Lia muito, devorou os livros da Sociedade Recreativa, que existem nestas povoações. O meu pai é filho ilegítimo. Uma das dores dele é o pai nunca lhe ter dado o nome. É filho do senhor mais rico do Baixo Alentejo, que tinha muitas namoradas, uma delas a minha avó. Entretanto o meu avô perdeu tudo, por má gestão e roubo de alguns administrativos. Acabou por vir falecer a casa da minha avó, com o meu pai, pobre, abandonado pelos amigos. Um drama de vida.

 

Apesar de nunca ter sido reconhecido no papel, que relação é que mantinha com o pai?

Muito boa. Já em fim de vida, o meu avô gostava muito de caçar, e ele é que montava o meu avô numa mula. Levava-o às consultas, porque ficou cego, tratou do pai.

 

Chegou a conhecer o seu avô?

Morreu quando tinha dois anos, não tenho qualquer memória. É esta sede de mais mundo que traz o meu pai para Lisboa. Manteve-se cinco anos na GNR porque era muito alto, tinha 1,90m. Foi o primeiro homem do bombo na banda da GNR, aquele que faz os malabarismos com os pauzinhos, aprendeu música. Fazia as chamadas diligências, periodicamente passava um mês na prisão de Peniche ou de Monsanto, a guardar presos políticos. Aos domingos ia visitá-lo com a minha mãe. Por sorte, ou por procura dele, havia um sargento que era electricista, no quartel dos Lóios, e aprendeu a profissão. Ao fim de cinco anos largou a Guarda e foi trabalhar como electricista para um patrão com quem ficou 14 anos. Chegou a encarregado de electricidade e canalização numa pequena empresa de construção. Depois montou uma pequena empresa em nome individual. Reformou-se há cinco anos. Toda a vida foi um excelente electricista. Aprendeu à conta dele a reparar televisões e rádios.

 

Era temerário? Esse lado aventuroso e empreendedor que tem vem do seu pai?

Procurou sempre mais mundo, mas era um pouco medroso e conservador. Se tem tido mais garra, mais iniciativa, mais audácia, provavelmente teria sido um excelente empreiteiro e criado uma empresa.

 

Ou seja, o salto teria sido já na geração dele e não na sua.

O salto teria sido anterior. O meu pai tem este mundo e esta necessidade, a minha mãe tem a iniciativa. Ela é que quis sempre mais e o impeliu sempre a mais. Mas lá em casa quem mandava era ele.

 

Era? Porque muitas vezes, e sobretudo nesse tempo, os homens mandavam da boca para fora, e nas casas, verdadeiramente, mandavam as mulheres.

Não. Se a minha mãe tivesse a capacidade de o levar, provavelmente a nossa vida teria sido diferente. Uma vez, a minha mãe, apesar de não termos dinheiro, mas havia uma amigo de família que lhe emprestava, quis comprar um terreno na zona do Feijó para fazer uma casa. E o meu pai sempre com muito medo... O que um tinha de audaz, o outro tinha de receio. Sou uma mistura dos dois, o meu ADN resulta desse somatório. Às vezes faço autocrítica, introspecção, e tenho da minha mãe este querer ir ao desafio, querer ir mais longe, e do meu pai alguma criatividade, algum bom senso. Como costumo dizer, gerir é 80 por cento de razoabilidade e bom senso, e 20 por cento de conhecimentos, académicos ou da própria profissão.

 

Sentiu que era o passo à frente em relação ao sítio de onde eles provinham?

Na altura, não. O único sonho que depois percebi que ele gostaria que eu tivesse seguido era engenharia. Talvez por uma projecção dele. Voltando um pouco atrás, fiz metade da primeira classe em Ervidel e vim acabá-la a Lisboa. Depois começaram a sentir-se algumas diferenças sociais. Alguns dos meus amigos foram para o liceu Gil Vicente, e o meu pai não me pôde mandar para lá, porque era mais caro. Fui para uma escola preparatória, a Nuno Gonçalves, e a seguir para a Machado de Castro. Sou filho da escola industrial, o que foi muito bom. Esta e outras eram excelentes escolas de onde anualmente saíam fornadas de jovens industriais ou comerciais. E a indústria beneficiava muito disso. Comecei a namorar a Mariana, a minha mulher, muito cedo. Aos 15 anos já era atrevido e pedi namoro a uma rapariga de 20. E ela lá aceitou, sabe Deus porquê. [riso]

 

Porque as raparigas não resistem a rapazes atrevidos.

É provável. Mas isto para dizer que com 17 e dois de namoro, já perspectivava família. Com esta idade, olho para miúdos de 17 anos e digo: “Ou era muito precoce ou muito tonto”. Anuncio ao meu pai: “Acabei a escola industrial, vou continuar a estudar mas à noite, e vou inscrever-me na Lisnave”. Entrei para aprendiz de serralheiro mecânico.

 

A Lisnave, onde fez parte importante do seu percurso profissional, foi então o seu primeiro emprego?

Sim. Durante dois anos amarguei. Em 1970, tinham inaugurado a doca 13, a maior doca de reparação do mundo, e fui para os navios, para o fundo dos tanques, vedar válvulas. De fato de macaco, uma caixa de mecânico de 20 quilos, a descer escadas de bombeiro num tanque de um petroleiro. Era um ambiente negro e viscoso. Os fatos de macaco eram especiais para não ficarem impregnados com aquilo. A ordem era estar meia hora a reparar as válvulas e meia hora a respirar [em cima]. Era violento e nocivo para a saúde se ficássemos muito tempo em baixo.

 

O seu pai tinha sido contra. Lembrou-se então das palavras dele?

Lembrei, mas também da minha necessidade de afirmação e de mostrar que conseguia. E continuei a estudar à noite.

 

Porque é que quis isto? Que sonhos tinha dentro de si?

Não me recordo que sonhos tinha. A área industrial, talvez porque o meu pai mexia na electricidade e na canalização, fascinava-me. Gostava de perceber como é que as coisas funcionam. Isso acompanha-me ao longo da vida. O que não consciencializei é que trabalhar de dia e estudar à noite era de uma violência extrema, e ao contrário do que pensava, não tive força e capacidade.

 

Desistiu de estudar. Estava mais acomodado, nesse começo de vida, a um certo destino social?

Não tinha grande ambição. Perspectivava uma vida normal, queria constituir família, ter filhos – como tive, o João e a Andreia. Na Lisnave, surgiu uma oportunidade na direcção comercial; o Paulo Oliveira, (que era um encarregado geral muito conhecido e sabedor) iniciou a secção de planeamento de cargas, precisou de um jovem aprendiz: “Queres ir?”. Era uma oportunidade de ouro. Na segunda-feira seguinte apresentei-me no edifício onde acabei por trabalhar o resto do meu tempo na Lisnave. O planeamento de cargas consistia na visualização, com quatro meses de antecedência, da carga que o estaleiro ia ter. Se íamos ter desemprego ou sobrecarga, se os navios que íamos reparar tinham excesso de ocupação de mecânicos, ou se, pelo contrário, ocupavam todos os mecânicos.

 

Foi nesse trabalho que aprendeu a ser metódico?

Foi. Sei sempre onde tenho a minha tesoura, não posso perder meia hora a procurar um objecto que vou utilizar uns segundos, é um desperdício de tempo. A Lisnave deu-me essa organização mental.

E assim estive até ao serviço militar. A 22 de Abril de 1974 sou chamado para as Caldas da Rainha. Quando entrávamos, pensávamos que íamos para o Ultramar e que íamos morrer. Era quase certo que íamos para a Guiné ou para Angola, para um dos cenários de guerra. Quando se dá o 25 de Abril e percebemos que o mundo seria seguramente diferente, a alegria, a explosão, o sonho que isso nos permitiu, foi imenso.

 

Não tinha tido qualquer intervenção política? 

Tive um pequeno toque, porque a UDP nasce na Lisnave. Como no meu trabalho conhecia muita gente, isso levou-me à comissão de trabalhadores. Recordo-me de um episódio com o Cardoso, um colega, que pertenceu mais tarde à UDP. Tinham sobrevoado os quartéis com uma avioneta e distribuído panfletos contra a guerra colonial. A PIDE começou a apanhar um a um. Receando que chegassem até ele, pediu-me se ia Cacilhas, onde morava, buscar uns livros e se os guardava em minha casa. Um dia ao fim da tarde, saímos os dois e fui encher uma mala de livros que o Cardoso tinha, do Lenine e do Mao.

 

Subversivos.

Muito subversivos para a altura.

 

Mas a luta política ainda não era a sua.

Não, estava muito longe disso. Embora com alguma consciência, tinha amigos e família que tinham sido presos.

 

Nunca foi seduzido pelos comunistas?

Fui, quando saí da tropa. Todos os anos era convidado para integrar as listas à comissão de trabalhadores. Normalmente na Lisnave apareciam três ou quatro tendências. Eu não tinha veia, vocação, nenhum apelo ao exercício da política. Acabei por aceitar mais tarde, já estava no Técnico. No serviço militar, sou eleito delegado da minha companhia ao MFA. Desde muito novo que tive capacidade de exprimir os meus pensamentos, fluência de oratória. Não me engasgava, não me envergonhava, defenderia bem os interesses dos outros. Vi-me em reuniões com o Otelo, na Cova da Moura. Uma vez tive uma reunião de três dias para discutir o ordenado dos soldados, com o Jaime Neves, o Major Tomé.

 

Essa situação não é senão uma declinação desse processo em que representa outros, encabeça um movimento. Isso é o gérmen de tudo o que depois é a sua vida profissional. Nas lutas sindicais, nomeadamente.

Sim. Tenho sentido ao longo da vida, e digo isto sem falsa modéstia, e também sem excessiva vaidade, que tenho facilidade de agregar vontades, de convencer as pessoas e de as trazer aos projectos. Nos grupos há sempre conflitos e questiúnculas, e eu reúno e estabeleço consensos, faço pontes, concilio o inconciliável.

 

Como é que faz isso?

Tento perceber os pontos de vista de um e outro, a razão não está sempre num de nós. Há que convencer aquele que não tem razão, de que naquele aspecto não tem razão de facto; e há que demonstrar isso sem o envergonhar, sem o expor demasiado ao ridículo, respeitando as pessoas e fazendo com que percebam que o seu ponto de vista é errado.

 

A sua estratégia não é adversarial?

Aqui e ali tem sido. Tento mais por consenso.

 

Nos anos em que esteve na Lisnave, estava de um lado da barricada, e não a fazer a ponte.

Mesmo aí fiz as pontes. Mas muitas vezes é preciso dar um murro na mesa, é preciso decidir. Depois da tropa, quando volto à Lisnave, o mundo pós 25 de Abril era completamente diferente daquele que tinha deixado. Muito politizado, com greves, paralisações, reuniões de três, quatro dias. Sou eleito delegado à comissão de trabalhadores pelos trabalhadores da direcção comercial.

 

Pelo meio, casou e voltou a estudar. Como foi isso?

Casei aos 21 anos, durante a tropa, aos 22 nasceu-me a primeira filha. Tive novamente o apelo de ir estudar. Percebi que se ficasse como estava, aquilo não me daria muito em termos de saídas profissionais. Inscrevi-me na escola Marquês de Pombal, à noite, e fiz com brilhantismo os complementares. Tive média de 19, fui o melhor aluno. Como já estava com 25 anos candidatei-me ao Ad Hoc para o Técnico, entrei para engenharia mecânica, em 1980, orgulhoso, vaidoso.

 

Ia cumprir o sonho do seu pai.

Ia. Entretanto a Lisnave tinha entrado num período de salários em atraso. Ganhava cerca de 2.500 escudos, e em vez disso recebia 100, 200. O capital social da empresa eram 2 milhões de contos, e só em salários devia 2 milhões e 200 mil, fora os fornecedores. A Elisa Damião, da Lisnave, desafia-me para integrar a lista da comissão de trabalhadores dos sindicatos afectos à UGT. Acedi, candidatámo-nos, entrámos. Achei que era preciso fazer alguma coisa por aquela casa. Costumo dizer que nasci na Lisnave. O José Manuel Torres Couto chama a Elisa para o secretariado nacional da UGT e fico sozinho entregue às feras. Não quero pôr-me no lugar de herói, mas desde o momento em que assumi uma das listas, em que dei a cara por aquela lista e não por outra, entrei muitas vezes naquele estaleiro sem saber se saía de lá vivo.

 

Deveras? Ou é força de expressão?

Era muito violento, literalmente. A Elisa chegou a ser magoada fisicamente. A mim nunca me tocaram, mas cuspido, escarrado, filho deste, filho daquele – todos os dias. Faziam fila de um lado e de outro, desde a entrada até ao edifício onde trabalhava, e passava pelo meio. Não podia abrir os braços senão batia-lhes nas barrigas. Enquanto ia passando havia de tudo um pouco. Havia armas lá dentro, muitas das que desapareciam dos quartéis, outras que se faziam lá dentro.

 

Estamos a falar de 1980.

Sim. A sede da UGT foi invadida, destruída, amigos meus atirados pelas escadas. Foi uma luta político-sindical muito complicada.

 

Salvar o estaleiro, desenhar um contrato social que fosse aceite pelos trabalhadores, era o objectivo dessa altura. Foi a sua primeira grande prova de fogo?

Foi. De tal maneira que no ano seguinte o Vítor Constâncio me convida para deputado pelo Partido Socialista, pelo distrito de Setúbal. Foi no ano em que o Dr. Cavaco ganha a primeira maioria, e não entrei. O facto de me terem convidado para a lista de deputados, o facto de o Torres Couto me ter dado um gabinete no Largo do Rato para coordenar as comissões de trabalhadores ligadas à UGT e ao Partido Socialista, a nível nacional, gerou intrigas, invejas.

 

Era muito novo. Era expectável que fizesse um percurso político?

Começaram a armadilhar-me o terreno, a inventar coisas. “Não tenho ambição política, isto é vosso, no próximo ano já não me candidatarei, voltarei ao planeamento de cargas”. Assim fiz. Um ano depois perdia-se a comissão de trabalhadores para o PC e para a Intersindical. O estaleiro tinha oito mil pessoas, 99 por cento eram sindicalizados e a UGT tinha 800 e tal pessoas lá dentro. Em termos sindicais éramos esmagados. Nunca mais a comissão de trabalhadores foi afecta à UGT.

Seis meses depois, o Dr. Viegas Dias, administrador da Lisnave, chama-me: “O lugar de director comercial da Luso-Italiana ficou em aberto. Entendemos que o António é que vai ser o director”. Aquilo era a machadada final, até da Lisnave me iam retirar. E perguntei: “Isto é alguma perseguição política?”.

 

Foi assim que o sentiu, que era uma perseguição política?

A primeira reacção foi essa. Fiz um acordo com ele: “Não percebo nada de torneiras. Fico na Luso-Italiana até final do ano, se em Dezembro entender que consigo agarrar o lugar, em Janeiro nomeia-me director comercial”. Apertámos as mãos. Chego à Luso-Italiana e sou um perigoso membro de uma comissão de trabalhadores, não inspiro confiança… Não me deram gabinete, não me deram funções, tive que me afirmar. Começo a viajar com os vendedores, uma semana com cada um. Fui contactar e ouvir todos os clientes.

 

Começou a conhecer a casa.

Sim. Também pedi autorização para ir ver os concorrentes. Neste sector das torneiras, é em Itália e em Espanha que estão os grandes centros de fabrico europeu. Viajo, vou ver como é que fazem.

 

Era o começo de uma nova vida.

Era. Em Janeiro decido que tenho condições para o lugar e sou nomeado director comercial. Dois anos depois, porque a Lisnave tinha a Luso-Italiana e a Luso-Alemã no Porto, duas fábricas dispersas e duplicação de custos, sou convidado a acumular o lugar de director comercial da Luso-Alemã. Quatro anos depois, vendo ao Dr. Salvador de Mello a ideia de juntar as duas fábricas, que ele subscreve, e nomeia-me administrador. Até hoje, pelo que sei, fui o primeiro e único administrador do grupo José de Mello não licenciado – o que me deu um orgulho muito grande.

Em 1996, o Dr. Salvador anuncia-me que vai vender a empresa. Queria que preparasse a empresa para ser avaliada pelo Eng. Ludgero Marques, nosso concorrente na altura, e hoje meu grande amigo, que estava interessado em comprar. Sofro um choque. “Então também quero comprar”.

 

Quando é que isso lhe ocorreu?

Saiu-me naquele momento [riso]. Ele ficou surpreso a olhar para mim. “Trabalho para os senhores há 26 anos e nunca vos roubei, ou não me teriam deixado trabalhar tanto tempo; e apesar de não me queixar do vencimento, ele não é assim tão bom que me permita ter fortuna pessoal para vos comprar a empresa. Peço condições de pagamento”. Estou todos os anos a pagar uma fatia do valor que contratualizámos. Em 1997 transformo-me em empresário metalúrgico pela compra da Luso-Italiana.

 

Foi assim que se fez empresário. Com que espírito?

No dia em que disse que queria comprar, saí do gabinete e tremiam-me as pernas. Mas o que é que o grupo me ia fazer?, dar-me uma prateleira dourada no Banco Mello? Com 44 anos, essa não era a minha ambição de vida. Quando saí do gabinete pensei, “Como é que vou comprar a empresa?”. O desafio estava lançado. “Tenho que arranjar dinheiro para pagar as acções, que não tenho, e em 15 anos tenho de arranjar 250 mil contos, que hei-de arranjar”. Fui à lista dos nossos principais clientes, escolhi 15, pedi ajuda. “Preciso que me avance por adiantamento de compras 10 mil contos”. Dez deles adiantaram-me esse dinheiro, com o qual comprei as acções, e contratualizei os 15 anos do restante.

 

Era também o começo de um percurso que o traria à CIP. Entretanto foi convidado para a Associação dos Industriais Metalúrgicos e Metalomecânicos.

Quando me torno dono da Luso-Italiana, sou convidado para vice-presidente. Já como presidente da associação, o Eng. Francisco van Zeller convida-me no penúltimo dos seus mandatos, para director da CIP, primeiro, e depois para vice-presidente. Com a anunciada saída, pela acumulação de mandatos, os colegas, em Maio de 2009, começam a sondar-me para substituir o Eng. Francisco van Zeller. Eu não queria. Nunca pensei ser presidente da CIP.

 

Porquê?

Porque tinha consciência do enorme desafio, da exigência. Aqueles que conhecem esta casa conhecem os inúmeros dossiers, pareceres, os palcos em que temos que intervir, quer aqui, quer em Bruxelas. Vivo do meu trabalho, não sou rico. O Francisco van Zeller dizia muitas vezes: “Para ser presidente da CIP são necessárias uma de duas coisas, ou ser rico ou ser reformado”. Não sou nenhuma delas e no entanto estou presidente.

Comecei a sentir um movimento à minha volta. A direcção da CIP é composta pelas associações sectoriais ou regionais, e a certa altura, os presidentes de seis delas fizeram-me saber que, se quisesse, o seu voto seria para mim. Um dia o Eng. Francisco van Zeller diz-me: “Não permita que os seus colegas lhe façam essa maldade. Isto é muito desgastante e você está no activo, tem a sua empresa”. Respondi-lhe: “Esteja descansado que percebo o apelo, mas não estou disponível. O que tenho é de vender torneiras, é disso que vivo”.

 

Mudou de ideias. Porquê?

O movimento foi crescendo. Em Setembro tinha reunido 95 por cento de apoios dos nossos associados e entendi que não podia defraudar essa expectativa. Fiz um exame de consciência e falei com a família. O meu filho impeliu-me a avançar, a Mariana e a minha filha achavam que não, que era muito mediático, que estaria sempre na cara do touro. Resolvi aceitar. A primeira pessoa com quem falei foi com o Francisco, pedi-lhe que anunciasse que estava disponível. Por tradição, a direcção é que indica a direcção seguinte. Os colegas votaram favoravelmente. Houve depois alguns episódios caricatos, de carácter, que me magoaram. Depois de ter recebido os parabéns pela minha disponibilidade, dois desses inventaram uma lista concorrente. O Dr. Morais Cabral convidou-me para almoçar e disse-me que se tivesse que definir o presidente da CIP em dez itens, eu reunia nove. Mas havia um que não reunia.

 

Origem de classe?

Não o verbalizaram dessa forma, mas era nitidamente isso. Eu não era um figurava de reconhecido mérito nacional e internacional. Sugeriram-se ser vice-presidente de uma das pessoas que aceitaria ser presidente. Agradeci a frontalidade. Se essa conversa tivesse sido em Maio, eu hesitaria. Em Setembro, depois dos apoios que tinha recebido, depois de me ter disponibilizado, era imparável. E estava disponível a almoçar com quem quer que fosse para saber se queriam ser meus vice-presidentes.   

 

O seu perfil, por causa da origem de classe, mas também pelo seu percurso de vida, não coincide com o dos seus antecessores na presidência da CIP. Não é o chamado menino bem-nascido, ou licenciado, rico ou reformado. Na conversa com Morais Cabral, percebeu que estas suas características poderiam ser limitadoras do seu propósito?

Percebi. Em algumas conversas que fui tendo, pressenti que não seria o candidato de alguns de nós. Mas sabia que reunia o apoio de 95 por cento dos presidentes das associações. Foi isso que me motivou e fez dar este salto que inicialmente não desejei.

 

Como dizia a sua mulher, num cargo destes, está-se sempre na cara do touro…

Há uma exposição mediática muito grande, a opinião do presidente da CIP é muito requisitada, temos de pesar muito bem as nossas afirmações. Estar permanentemente a opinar sobre o PEC, sobre o OE, sobre as medidas do Governo, as declarações do PR, do PM, é muito desafiante. Temos aqui as maiores empresas nacionais, as maiores associações. Receava não estar à altura de representar esta massa da economia portuguesa. E tenho de continuar a vender torneiras, tenho de manter a minha pequena empresa no mercado.

 

Quem toma conta da sua empresa?

O meu filho, que já estava na empresa, faz a parte comercial, o financeiro é um antigo colega da Lisnave, que está comigo desde sempre, a produção está nas mãos de um homem que nasceu na metalúrgica. É uma equipa de gestão em que confio, que está madura e que me tranquiliza. Tenho alguma dificuldade em gerir os meus tempos, quer familiar, quer profissional. Pensava que conseguia uma manhã ou uma tarde na CIP e o restante dia na empresa. Estou a ir à empresa uma parte do dia, de 15 em 15 dias. Tenho 56 anos, sou um homem feliz, sou um homem realizado, tenho saúde; gostaria de não ser esmagado por este cargo. É um espírito de missão, estou aqui de alma e coração.

 

Lamenta não se ter licenciado?

Não lamento nada. Entrei para o Técnico, fiz o segundo ano de engenharia mecânica mas a voracidade daquele tempo levou a que, mais uma vez, o estudo ficasse para trás. Aqui ou ali, já senti o preconceito de não ser Dr. ou engenheiro. Sempre que dizia que era presidente da associação ou que agora sou presidente da CIP, imediatamente o Sr. António Saraiva passa a Sr. Dr., Sr. Eng. Repetidamente pedia que não me tratassem assim, até que me cansei, agora já não corrijo.

 

O seu percurso não seria atípico num país como os Estados Unidos, onde a regra base é a meritocracia, onde não se pergunta “de onde vens” mas “para onde vais”. A sua chegada à presidência da CIP marca um novo ciclo numa casa que era presidida por homens de direita, licenciados, tudo o que já dissemos. Isto agora vira à esquerda, representa um novo ciclo?

Não colocaria as coisas em termos de esquerda e de direita.

 

É um homem, desde sempre, mais próximo da esquerda do que da direita, ao contrário de todos os anteriores presidentes.

Sem dúvida que sim.

 

Nunca militou?

Não. Militei quando fui convidado a deputado pelo distrito de Setúbal, durante uns três anos, no Partido Socialista. Vivi aquela campanha por dentro, aquele cinismo, depois desisti. Não sou nem nunca fui filiado. Embora na nossa sociedade, por vezes, seja conveniente ter uma filiação, especialmente nos partidos de poder. Sou crítico da maior parte dos nossos políticos. Os melhores da classe política portuguesa foram ficando pelo caminho, por cansaço. Hoje temos na classe política, com honrosas excepções, pessoas que vêm das juventudes partidárias, têm pouco, para não dizer nenhum, conhecimento do mundo real, da economia, das dificuldades que o país tem na microeconomia. A vida é muito diferente daquilo que a maior parte dos nossos políticos pensa que é.

 

Fale-me desta guinada à esquerda, chamemos-lhe assim, num sector onde tradicionalmente os patrões são de direita.

Mas hoje, no século XXI, o que é de facto ser de esquerda ou de direita? É ter mais ou menos preocupações sociais? O que é que separa actualmente o PS do PSD? Interrogo-me muitas vezes porque é que existe um PSD e um PS. Se não existisse num mesmo tempo um Sá Carneiro e um Mário Soares, será que existia o PSD e o PS como existem hoje? A CIP era olhada como a confederação do grande patronato. Temos aqui algumas grandes empresas, mas a esmagadora maioria dos nossos associados são sectoriais e regionais, que têm como seus associados a realidade do tecido empresarial português. Estive presidente da AIMAP, e a maioria das 1.200 empresas associadas são pequenas e médias empresas. São pessoas como eu, que tiveram iniciativa, que arriscaram, que evoluíram. Foram arrojados, desenvolveram riqueza e criaram postos de trabalho. A CIP é a confederação desta gente. Sendo certo que também o é dos outros.

 

E agora mais, com esta reestruturação e aglutinação.

Ao evoluirmos de Confederação da Indústria Portuguesa para Confederação Empresarial de Portugal, felizmente, finalmente, houve o bom senso de ultrapassar quezílias, protagonismos.

 

Nem seis meses depois de aqui estar, consegue meter debaixo deste guarda-chuva todas estas confederações. Isso reverte, para si e para CIP, um imenso poder. 

Na liderança do Eng. Francisco van Zeller, tenho de fazer uma auto-crítica: cometemos alguns erros, tínhamos parado no tempo. Talvez por características pessoais, o Eng. Francisco van Zeller já não faria diferente. A minha ideia para a CIP, independentemente de quem a liderasse, [implicava] a reformulação do movimento associativo empresarial.

O paradigma de desenvolvimento alterou-se, não estamos a gerar emprego. É preciso, colectivamente, alterar isto, olhos nos olhos, sem os medos dos perigosos sindicalistas, ou ao contrário, dos patrões exploradores.

 

Conhece agora os dois lados da barricada.

Conheço. Se há algum mérito que a vida e a experiência me deram, é essa: perceber que há adamastores que têm que ser dobrados de parte a parte. O desafio que lancei aos sindicatos foi esse. Se mantivermos esta atitude, a destruir o que de bom pode vir do outro lado, só porque vem do outro lado, não vamos a lado nenhum. Precisamos dos sindicatos como parceiros das soluções, tal como os parceiros precisam das empresas e dos empresários para se criar riqueza, emprego, desenvolvimento.

 

Sente que tem muito mais poder?

Sinto que a base de representação é maior. Não sei se isso traz mais poder, admito que sim. Finalmente estão reunidas as condições para que uma única batuta faça acontecer esta ou aquela nova forma de fazer as coisas.

 

Gosta de exercer o poder?

Gosto.

 

O seu maior talento é fazer pontes?

Às vezes adjectivo-me dessa maneira: sou um arquitecto de pontes. Entre extremos, entre pessoas, entre interesses antagónicos, com diálogo, com persistência, não desistindo, indo à luta.

 

Começou por estar num lado da ponte e conseguiu chegar ao outro lado. Quando é que o outro lado da ponte deixou de ser inacessível? Quando é que as pessoas que estavam do outro lado da ponte deixaram de ser intimidatórias, o inimigo, os ricos, os que têm poder?

Nunca vi os outros assim.

 

Estas expressões que uso são as dos que têm um discurso mais enquistado num lado.

Quando regressei à Lisnave, e vi aqueles ódios, fiquei chocado. A Lisnave tinha escola de formação própria, serviços médicos, dava formação permanente, ganhávamos muito mais do que na generalidade das empresas, absorvíamos os tais jovens, como eu, das escolas industriais. Era uma empresa em que tive orgulho de ser admitido. As cuspidelas: eu era um trabalhador como eles, só porque não pensava como eles, já era fascista? Estava grato à minha empresa. Por isso aceitei o desafio de ajudar a construir uma solução. Ainda hoje, quando olho para o pórtico da Lisnave, tenho uma nostalgia, ainda amo aquela realidade.

 

Então nunca olhou para o outro como inimigo?

Nunca. Olhei para o outro com o respeito que o outro me merecia.

 

O orgulho que os seus pais têm em si aconteceu sobretudo quando se transformou num empresário e transcendeu a sua condição social e as limitações da vida deles?

Quando fui para a Lisnave, quando casei e tive os salários em atraso, tive que engolir um pouco do meu orgulho e voltar a estender a mão ao meu pai e pedir ajuda. Vivia numa casa alugada, pagava 3.600 escudos de renda, e nem a renda conseguia pagar, quanto mais a alimentação dos meus filhos, vesti-los e calçá-los. Foi uma lição de vida muito grande. O meu pai, sem me regatear ajuda, só me perguntava: “De quanto é que precisas?”. Nunca me perguntou para o que é que precisava. Durante anos ajudaram-me. O meu pai perguntava-me: “Mas tu na Lisnave não és electricista, não és canalizador, não tens uma profissão? Essa coisa do planeamento, o que é que tu sabes fazer?”

Quando sou convidado para director comercial, ficou muito orgulhoso. Depois, quando sou convidado para administrador do grupo Lisnave, ficou… Verbalizou há três semanas, pela primeira vez, numa mensagem de voz, emocionado e a chorar, o orgulho do filho.

 

Nunca lhe tinha dito até há três semanas o orgulho que tem em si?

Nunca desta forma. A minha mãe, sempre que saio nas revistas ou nos jornais, compra tudo e mostra às amigas. Mas diz-me: “Cuidado filho, estás sempre aí nos jornais, acabas por ganhar inimigos”. Às vezes as pessoas interrogam-se: “Então mudaste de campo? Eras sindicalista, agora és o patrão dos patrões?”. Sinto que nunca traí ninguém nem mudei de tabuleiro. O que fiz foi unir margens.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

Daniela Ruah

27.03.14

Ela agora vive numa cidade que nunca dorme. É uma entre milhões de actrizes. É uma entre milhões de judeus. É uma entre milhões de emigrantes. Daniela Ruah tem 24 anos. Estuda no Lee Strasberg Institute, estudou na London Metropolitan University. Fez toda a formação, em Portugal, no colégio inglês St. Julians. Nasceu nos Estados Unidos, não tem sangue português. Sente-se portuguesa, mais que tudo, porque aprendeu a amar em português.

Tem uma beleza exótica. É uma entre milhões que acreditam que podem chegar longe. E se ela for a próxima Angelina Jolie?

 

Vamos assumir que esta entrevista se faz em véspera de partir para Nova Iorque, onde vive há cerca de um ano. O que é que separa a vida de Lisboa da vida de NY?

Sou a mesma em Lisboa ou em NY. Pode haver diferenças no estilo de vida. Cá, as pessoas reconhecem-me na rua e tenho em consideração o que digo, ou faço, ou mostro. Nos Estados Unidos não sou uma cara conhecida e por isso levo uma vida mais relaxada. Mas eu sou eu, não mudo. Fico contente quando me dizem que não fiquei arrogante depois de começar a trabalhar em televisão. Não fiquei com manias de starlett.

 

Em Lisboa tem um quadro social, familiar e religioso de uma menina burguesa. Em NY, é uma emigrante. Judia.

Há quem chamam àquilo Jew York. São tantos os judeus nas ruas, tantas as pessoas que andam com kipá, (os chapeuzinhos que os homens usam). Aqui em Portugal, quase não se vêem. Em termos religiosos são mais abertos. Mas há tantas nacionalidades, é uma misturada de pessoas…

 

Esse aspecto foi importante para se sentir em casa?

Ajudou, mas não foi essencial. Eu cresci habituada a ter a vida religiosa só em casa ou na comunidade judaica, e não nos outros ambientes que frequento. Mais do que o judaísmo, foram as pessoas de culturas completamente diferentes que me fizeram sentir em casa. Lá na escola, no Lee Strasberg [Theatre and Film Institute], a maior parte das pessoas são europeias, mas há muitos israelitas e árabes. E cada pessoa também é uma misturada. Eu sou meia portuguesa, meia americana. Tenho uma amiga que é da Bósnia, cresceu na Argélia, a família vive no Canadá.

 

Em Portugal, sempre se sentiu meia estrangeira?

Não. Nasci em Boston, no Massachussetts, a norte de NY, onde vivi até aos dois anos. Depois os meus pais mudaram-se para o Minnesota. No ano em que ia fazer seis anos voltámos para Portugal. 

 

Aprendeu a falar as duas línguas ao mesmo tempo?

Sim. No infantário falava-se em inglês e em casa em português. A minha mãe conta que me recusava a falar português. Ela dizia: “Vai perguntar ao pai o que é que ele quer para o pequeno-almoço”. E eu dizia: “Daddy, what do you want for breakfast?”. Ele respondia em português e eu traduzia.

 

Isso potencia, emocionalmente e culturalmente, uma identidade mista. A língua na qual aprendeu a amar foi o português. Os afectos, do pai e da mãe eram transmitidos em português.

Por algum motivo me sinto portuguesa... Aprendi a amar em português – a família, para começar. Mas os amigos ou um namorado não foi forçosamente em português. Os meus amigos do coração vêm do [colégio] St. Julians, conheci-os com cinco anos. Nós começávamos uma frase em português e terminávamos em inglês. “What time tu disseste que me vinhas buscar?”. Penso que a razão porque me sinto portuguesa é também porque Portugal foi um refúgio para a minha família. Para os meus bisavós. Houve qualquer coisa que a minha família encontrou em Portugal para ter ficado. Não tenho sangue português sequer.

 

Qual é a história da sua família?

Do lado da minha mãe, o meu avô nasceu no que é agora a Polónia. A minha avó tem ascendência russa. O pai da minha avó, que era engenheiro, vivia na Alemanha e foi convocado para trabalhar nas vias ferroviárias do Porto. Gostou tanto de aqui estar que mandou vir a família. Do lado do meu pai, o pai da minha avó era inglês, a mãe argentina. O avô do meu avô morreu com 117 anos e tinha ascendência marroquina. Parece que temos raízes fenícias.

 

Parece mergulhada numa imensa torre de Babel. Como se ser estrangeira já estivesse no seu código genético.

É isso. Há momentos em que sinto que não pertenço a lado nenhum. Como se no meu código genético, de facto, tivesse um estrangeirismo. Não importa onde estou, tenho sempre vontade de estar noutro lugar.

 

A par do estrangeirismo, o facto de ter a religião judaica, que é minoritária em Portugal, tem a mesma força no seu código genético?

Somos cerca de 1000 judeus, em Portugal. Somos pouquíssimos. Da família do meu avô só sobreviveu ele e uma prima, que vive agora em Israel. Ela viveu o Holocausto, os horrores que lemos nos diários de pessoas como a Anne Frank, mas não fala disso.

 

Como é que o judaísmo marcou a sua vida?

Uma vez fiz um summer camp judaico. Temos seminários, palestras, actividades, conhecemos judeus europeus da nossa geração – em Portugal conhecemo-nos todos, temos sempre uma relação ou através do sangue ou do casamento. Uma coisa tínhamos em comum: aquilo a que se chama identidade judaica.

 

Que pode traduzir-se como?

É um sentimento de grupo, de união, que não tem que ver com quem come porco ou marisco, quem faz as rezas da manhã ou não. Fomos um povo perseguido. Apesar de as pessoas da minha geração não terem sofrido isso [perseguição], conheço um judeu e fico toda contente! É uma forma de vida, de educação.

 

Está sempre implícita a ideia de protecção e entreajuda?

Não é tanto a entreajuda. É mais uma sensação de nos sentirmos em casa. Temos formas de pensar similares, maneiras de ver a vida similares. No primeiro instante há uma atracção.

 

O que é que é similar?

Estou a generalizar muito… Mas posso falar da componente internacional. Quase todos os judeus que conheço vêm de todo o lado, e podem sentir-se sempre estrangeiros. O meu avô, que é mais tradicionalista em relação ao casamento, sempre me disse que gostava que eu casasse com um judeu. A minha resposta começou por ser: vou casar por quem me sentir apaixonada, a religião não entra no assunto, quero é ser feliz e ter filhos com uma pessoa saudável, que seja um bom pai. Mas ao mesmo tempo percebo-o. Há um conforto diferente [se casar com um judeu]. É um reconhecimento de coisas que se fizeram em casa e que quero que os meus filhos façam. Mesmo que não seja muito religiosa, eu sei o que é o sabbath

 

Mas é verdade que se estivesse apaixonada por um palestiniano e disputassem a educação dos filhos, não seria fácil chegar a um consenso…

Nesse caso, e em qualquer outro com uma pessoa que não fosse da religião judaica, tinha de falar sobre a educação dos filhos antes mesmo de pensar em ter filhos. O que ensinarei aos meus filhos, basicamente, é a ter respeito por toda a gente. Uma das minhas melhores amigas em NY é muçulmana. Não sou contra as outras religiões.

 

O seu pai e avô são médicos famosos, a sua mãe é médica também. Esta tradição de Ruahs médicos caiu sobre si como uma pressão?

Nunca tive pressão nenhuma. Os meus pais sempre me disseram: faz o que quiseres desde que sejas a melhor ou uma das melhores.

 

O que já representa, também, uma forma de pressão.

Só comecei a sentir essa pressão na universidade. Foi um investimento muito grande que fizeram – por estar longe e em termos financeiros – e o mínimo que eu podia fazer era regressar com um diploma a dizer que fui a melhor ou uma das melhores. Foi o que fiz. Fui a primeira do meu ano.

 

Como é que, no seu meio, o espectáculo aparece como uma coisa tão atraente?

Eu, aos três, já dizia: “Mãe, olha esta dança, avó, olha esta música”. Sempre tive paixão pelo espectáculo. A minha mãe pôs-me no sapateado, depois no ballet; numa escola de dança, já em Portugal, comecei a ter aulas de teatro. As minhas avós e os meus pais são pessoas extremamente artísticas. A minha avó Vera: um realizador americano quis levá-la para Hollywood; a minha bisavó é que disse: “Nem pensar nisso”. Os meus pais sempre fizeram teatro na comunidade judaica. O meu pai toca acordeão, o meu tio toca órgão.

 

Não passou pelas fases de querer ser professora, hospedeira, veterinária – que é o que todas as meninas sonham ser?

De todo. Desde pequena que dizia: quero estar em palco.

 

Aos 16 anos, estreou-se numa novela. Como é que aconteceu?

Cheguei a casa e vi um anúncio a dizer: casting para a Teresa de “Jardins Proibidos”. Fui no dia seguinte, de comboio. Passei à segunda fase, depois à terceira, etc; não fiquei com o papel da Teresa, mas com o da melhor amiga, a Sara. Antes disso, tinha 14 ou 15 anos, uma amiga mostrou-me um prospecto do Actors Sudio. E, “Mãe, Pai”, anunciei que ia para NY! Quando acabei o liceu aconselharam-me a ir para Londres, onde a educação era igualmente boa, e ficaria mais perto de casa. Fiz o bacharelato na London Metropolitan University.

 

O que é que foi irresistível no prospecto do Actors Studio?

Não foi a parte da fama, nem o glamour do cinema – era um prospecto a preto e branco. Foi talvez um brilho no olhar dos que estavam lá… Não sei se posso falar em chamamento…

 

A verdade é que NY “chamava” por si. E passados uns anos foi, não para essa escola, mas para outra igualmente reputada.

A minha mãe disse-me uma vez: “Tiveste uma educação tão internacional que é um desperdício ficar só num sítio”. Não é em Portugal, especificamente; é um desperdício ficar num sítio apenas. Posso trabalhar aqui, posso trabalhar nos Estados Unidos. Ainda por cima, nasci lá, tenho passaporte americano, não tenho problemas com visto, não tenho sotaque a falar inglês. Já que a família e a sorte me deram tantas vantagens, porque não tentar?

 

Os seus planos são ficar em NY?

Se correr mal, tenho 50 anos, estou em Portugal, tenho uma vida estável, faço novelas ou filmes ou teatro, olho para trás e digo: “Tentei”. O pior que podiam fazer-me era cortar-me as asas. Estou a viver a minha vida de um modo aventureiro, mas responsável, e estou a investir numa coisa que, sinto, tenho possibilidades de fazer. Se não acreditasse em mim própria, não poderia fazê-lo. Mas acho que tenho alguma chance de fazer uma carreira internacional. Estou à procura de um agente e de um manager.

 

Descreva a sua vida lá.

Não posso ficar em casa à espera que me liguem… Durante o dia, ou noite, estou nas aulas, vou conhecendo pessoas, faço peças que podem ser vistas por agentes, mando head shots – é o nosso cartão de visita, com a fotografia de um lado e do outro, agrafado, o currículo. A palavra de ordem é construção. E devagarinho. Não gosto de quem aparece de um dia para o outro. É como um castelo de areia: se pusermos areia, palparmos, mais um bocadinho de areia, fica mais sólido. Podemos construir qualquer coisa sobre isso.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2008

 

Ler no Chiado 40 anos depois do 25 de Abril

27.03.14
No próximo Ler no Chiado vamos olhar para quem somos 40 anos depois do 25 de Abril.

Com olhares diferentes e partindo de livros diferentes e recentemente editados. Com a deputada Isabel Moreira ("Apátrida"), a escritora Lídia Jorge ("Os Memoráveis") e a historiadora Raquel Varela ("História do Povo na Revolução Portuguesa, 74-75")

Dia 3 de Abril às 18.30 na Bertrand do Chiado.

Eu modero.

Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand, na primeira quinta feira de cada mês.

Mário Crespo

27.03.14

Mário Crespo é jornalista sénior, mas sente as inseguranças de quem teme perder o pé. Não é marinheiro, mas é junto ao mar que mais intimamente se encontra consigo. É o pivot da SIC Notícias que todas as noites, às nove, interpela os protagonistas e as histórias do dia.

Nasceu africano, tem alma nómada. Regressou a Portugal há cerca de dez anos, depois de uma temporada marcante na América de todos os sonhos e contradições. Uma tarde, no bar da SIC, conversámos sobre a sua geografia. E não demorou muito a estarmos em velocidade cruzeiro...

 

 

Começamos pela América? Foi uma experiência que mudou a sua vida?

A América foi escolhida. Havia a hipótese de abrir uma delegação [da RTP]. Eu conhecia mal a zona de Washington, mas sentia uma grande identificação de cada vez que ia lá. É uma cidade cheia de espiritualidade, por incrível que pareça – as pessoas imaginam a América de uma superficialidade imensa, e não é de todo a impressão que tenho.

 

Dê-me uma imagem, uma história que ilustre a visão que tem da América. Recentemente, impressionou-me esta história: um congressista muçulmano foi eleito para o congresso; claro que para formalizar o juramento não ia usar a bíblia, como é tradicional, porque não era da sua fé. De modo que a comissão reuniu-se e foi buscar o corão que estava na biblioteca que pertenceu a Thomas Jefferson [presidente dos EUA, autor da declaração da independência americana]. Jurou sobre o corão do Jefferson! O corão esteve 240 e tal anos à espera de ter uma utilidade prática. Isto é a América, para mim.

 

É o espírito de tolerância?

Não se pode falar de espírito tolerância num país de 300 milhões de pessoas, onde haverá, seguramente, uns milhões de intolerantes. Nós também não quantificamos isso entre nós, mas haverá certamente umas centenas de milhar de pessoas intratáveis. Quando leio os grandes tradutores do espírito americano, do Hemingway ao John dos Passos, entendo-os como um povo inspirado. Houve um período da vida americana em que, o que foi para lá, foi o melhor da Europa.

 

Mas depois, importa saber o que conseguiram fazer com isso.

O dos Passos escreveu: “A América tem de ser admirada pelo que podia ter sido”. Ou seja, o que é que eles fizeram com este imenso capital humanista? Fizeram, afinal, o paradoxo de Jefferson, que era um homem de uma grande clarividência de espírito e que tinha um batalhão de escravos numa plantação da Virgínia. Como é um regime muito aberto, o paradoxo salta sempre. Não é possível esconder nada. 

 

Como é que isso moldou o homem feito que era quando foi para lá?

Influenciou-me muito. Entre os privilégios que tive foi o de ir, já ungido da credencial, juntar-me a um grupo de elite. Até agora fui o primeiro e único português acreditado na Casa Branca. Tinha cartão para participar nos briefings, questionar presidentes, idêntico a qualquer cidadão americano. A haver um PhD em jornalismo, seria esse período.

 

Obter a credencial demorou cerca de um ano e meio. Que tipo de preparação teve de fazer?

Antes da obtenção da credencial, por exemplo, não podia faltar aos briefings, três vezes por semana, no departamento de Estado e na Casa Branca.

 

Sentiu que fazia parte de uma cúpula?

É como dizer que ouvimos a Cecilia Bartoli [alusão a conversa prévia, em que comentávamos, Mário e eu, o concerto da diva italiana na Gulbenkian]! Foi o que senti, digo-o com um despudor quase arrogante, durante aqueles sete anos: que estava a fazer qualquer coisa que não era banal. Eu questionei o pai Bush, o Clinton, o [Gerald] Ford, e com questões sobre o meu país, logo a seguir ao massacre em Timor. Tive de soletrar o nome de Xanana Gusmão. Nunca tinham ouvido falar dele.

 

O trabalho é a única senha de entrada nesse grupo de elite? As regras de admissão são diferentes das que conhecemos em Portugal?

Completamente. Gosto de pensar que na minha escolha para ir para Washington havia alguma razão de mérito... Com o meu antecedente sul-africano, o inglês é um idioma onde estou à vontade.

 

Com “antecedente” refere-se ao facto de ter crescido em Moçambique e trabalhado na África do Sul?

Também estudei por períodos na Suazilândia. Trabalhei em Joanesburgo na SABC (uma daquelas estruturas coloniais que a BBC foi deixando). Foi o primeiro trabalho depois da tropa. As pessoas que me fizeram alguma marca são de lá, mantenho contacto com algumas delas, como o Alexandre Quintanilha [cientista]. Esse grupo com quem me dava contrastava com a sociedade colonial de onde eu vinha – que era muito ligeira. Esta gente, ao contrário, era muito intensa.

 

Fale-me das suas raízes.

São banais, e confusas. Crescer numa sociedade colonial, em termos formativos, não é fácil. Aquelas cápsulas de bem-estar... Levei tempo a compreendê-las. Compreendi-as na África do Sul, [depois de deixar Moçambique]. Compreendi-as agora, quando li as “Quase Memórias” do Almeida Santos. Sou filho único e perdi pai cedo. Seria sempre cedo..., mas foi naquela parte dos 18, 19 anos. Eram funcionários: o meu pai de um banco e a minha mãe professora da escola comercial.

 

Em Maputo, então Lourenço Marques, dava-se com brancos, com privilegiados. Era uma sociedade bastante estratificada.

Bastante não chega: era totalmente estratificada.

 

O que sentia, por via desses privilégios, é que tinha uma visão parcelar do mundo onde vivia?

Essa é a síntese. Recentemente conheci o Malangatana. E disse-lhe: o aspecto formativo que a sua estética me deu, durante a adolescência, foi de tal modo forte que olho para si e sinto uma quase paternidade.

 

Havia uma “culpa” pelo privilégio, por viver numa redoma protegida?

Sim, mas não estava consciente da necessidade de acção. Não me sentia confortável. Na África do Sul insisti em não ter empregados, enjeitei essa tradição colonial que nos viria naturalmente. No entanto, coexisti pacificamente durante duas décadas com um sistema para o qual devia ter despertado por alturas do liceu. Devia ter lido livros que não li, (porque não me chegaram), devia ter ouvido gente que não ouvi, devia ter falado com o Malangatana lá. Mas se calhar, ele não era o mesmo homem que é hoje, nem eu o mesmo homem que sou hoje. 

 

O que é que desencadeou a revolução, em si?

A revolução está a acontecer. Na África do Sul, onde estive desde 74 até 81, fui contactando com gente que tinha essa consciência em pleno apartheid. Ainda fui colega do Carlos Cardoso, que foi morto em Joanesburgo. Senti alguma claustrofobia, quando houve uma ou duas edições da Newsweek censuradas. Senti que tinha de vir embora. Foi um acto deliberado. Vim a Lisboa e consegui emprego na RTP.

 

Como é que se deu em Portugal, que, sendo o seu país – tem nacionalidade portuguesa –, era desconhecido para si?

Lembro-me perfeitamente do dia da chegada. Tinha 32 ou 34 anos, não sei bem, é questão de fazer as contas. Tinha mãe, não estava casado. Acabei por casar com alguém de África! Era preciso ser africano para continuar lá. Só entendemos aquela zona quando a deixamos. Hoje leio muito o Coetzee: o «Boyhood» é a África do Sul. E esta visão é a da África colonial.

 

Fale-me da inserção na realidade portuguesa.

Foi muito complexa. Interrogo-me se ela está concretizada, depois destes anos todos. Senti-me mais confortável em Washington do que aqui.

 

O que é que é tão estranho aqui?

A RTP era um mundo estranho, e psicótico, quando cheguei. Politizadíssimo. Com alternâncias políticas disparatadas, com gente com mandatos e agendas nas quais me era impossível rever. A RTP durante muitos anos foi um modo de vida, mais nada. Havia credenciais de clubismo político que eu não tinha nem quero ter. Isso separou-me e levou-me a muita nomadização solitária.

 

Parece muito solitário, por acaso, apesar da amabilidade.

Gosto do acto social contido. Não o provoco. Aceito-o. De um modo geral gosto de pessoas. Quando digo “de um modo geral”, sou selectivo... Mas há gente que me diz muito.

 

Nos seus vários percursos, parece sempre um outsider. Mesmo aqui, na SIC Notícias, distingue-se dos outros pivots. Seja porque é mais velho do que eles, seja porque tem uma história e um estilo diferentes. Esta qualidade de outsider é já aquela que lhe é mais confortável?

Neste momento, é. Às vezes tenho dificuldade em pertencer a um grupo. Tenho a impressão que isso é consequência desta nomadização toda, que a vida, por fortúnio ou infortúnio, me pôs.

 

Gostava de perceber que relação existe entre os vários blocos da sua vida: o bloco África, o bloco RTP/Lisboa, o bloco americano, e agora o bloco SIC Notícias. São comunicantes?

Sim. Logo que comecei a ter alguma preponderância na RTP e a poder escolher os trabalhos que fazia, regressei a África. Comecei a cobrir África do Sul com um fascínio, uma intensidade... O processo de libertação do Mandela foi uma coisa magnífica. A minha génese estava ali também. Lembro-me do que escrevi na altura sobre a primeira refeição que ele tomou, na sua casa no Soweto: que vi o fumo a sair da panela, que aquele extraordinário dia estava a chegar ao fim. Também me senti compelido a acompanhar o processo de independência da Namíbia.

 

Mas é um regresso numa outra condição, com outro estatuto.

Absolutamente. Esse era o conforto. Ter um estatuto crítico e poder manifestá-lo.

 

Havia uma espécie de culpa por não ter tido “consciência” disso mais cedo, não o ter expressado mais cedo?

Não havia: há uma culpa.

 

Voltando à América: o que é que o liberalismo americano fez a este homem esquerdista?

É um esquerdismo espiritual. Não o formalizo em nenhum código ou ideário. A América: é ver [o teatro de] Tenessee Williams e entender. Há episódios, há mosaicos com que me identifico. É a minha ponte para o entendimento actual.

 

A América ajudou-o a integrar a contradição, o paradoxo que existe em si?

Ajudou-me a viver com ele, o que é diferente. A minha grande busca não é por certezas. Tenho as minhas buscas espirituais, como toda a gente. Essa ausência de certezas, quando ela acabar, eu morri.

 

O seu mote é mais o procurar do que o encontrar?

É. Mas há uma ética. Hoje consigo claramente distinguir o que é bom e o que é mau. Implica, por exemplo, tomar a decisão de dizer no Jornal das Nove que não vou mostrar a imagem do Saddam a ser executado. Não partilho execuções públicas. A partir do momento em que a mostro, “forço” pessoas a vê-la.

 

Eu não vi.

Fez esse exercício de disciplina? Eu também. O momento em que o laço é posto e se vê a cara do homem... Não vi mais, não consegui. Esse género de escolhas, que fez, que fiz, são muito importantes.

 

Porque é que regressou a Portugal, depois da América? Uma vez cá, o que se diz é que telefonou ao Emídio Rangel a pedir emprego, a dizer que tinha vontade de trabalhar.

Pedi, pedi. [Da RTP], mandaram-me vir, interromperam o processo, subitamente. Houve algum conflito editorial, houve um desentendimento administrativo. Eu ainda disse: «Olhem que tenho filhos na escola, olhem que são muito pequeninos e isto é traumático para eles...». E pronto. Viemos mesmo. Não me deram nada que fazer. O que foi muito castrador. Reduziram-me o ordenado, os meus subsídios desaparecem todos e fiquei com um base idêntica a de qualquer estagiário. Uma coisa insuficiente. Senti que tinha de fazer qualquer coisa.

 

Tinha cinquenta anos e estava à procura de emprego.

É. Pedi para falar com o Rangel, que não conhecia pessoalmente. Ele veio logo ao telefone. Disse-lhe: «Se houver trabalho aí, estou disponível». Almoçámos na semana a seguir. Ele era o monarca da estação com 50% de share.

 

Foi uma nova vida.

Foi. Tive imenso medo. A diferença de idades era muito grande com o meio onde fui integrado, na SIC Notícias. Tive inseguranças. Depois, as coisas correram muito bem. Gosto de trabalhar em redacções. Até gosto de redacções com máquinas de escrever.

 

As suas inseguranças tinham que ver, sobretudo, com a sua integração no meio?

Com tudo. O que é que eu vou escrever? Há que tempo que não escrevo notícias... Sabe aquele excesso de auto-censura que vai exercendo no que escreve? É difícil romper. Fui muito bem recebido aqui. Na última “Egoísta” escreve-se: “A vida é o prémio. A morte é o preço. A herança são as memórias”. Para já, a memória da exultação que tive quando o Rangel me ofereceu emprego...

 

Como é que define o seu estilo? Aquilo que vemos todos os dias às nove, é o resultado de quem é e da sua vida em bolandas?

Não sei. A partir da altura em que observa um fenómeno, ele altera-se. A partir da altura em que falo consigo, há uma espécie de teatro que não sei onde está nem onde começa. A partir da altura em que a câmara abre, ao fim de uns milhares de edições (de Jornais das Nove que vêm desde a RTP), não sei o que é que enceno. Nem o que é que sou eu. A minha mulher talvez saiba isso. Sempre disse que a maneira que tenho de não errar muito, ali, é não fazer nenhum número que não seja genuíno. 

 

Há na sua postura uma segurança e um estilo que me faz pensar nos pivots das cadeias americanas.

Deve haver muito disso... O que vi lá teve influências, claro. O modelo que fazemos às nove, aqui, é parasitado de uma coisa que já acabou (Night Line, na ABC): com duas, três histórias de fundo e um ou dois convidados.

 

Sabe que parece mais novo do que é? Não sei se é por estar numa “nova” vida, empolgante.

É capaz de ser. Não tenho preocupações com a idade.

 

Porque é que a vela é o seu hobby?

A vela não é solitária. Mas há um acto de intimidade que me agrada. Se calhar também há um acto de controlo sobre o que se passa à minha volta, de que gosto.

 

Intimidade de si para si? Intimidade com o mar?

Diria que é mais de mim para mim. O meu barco é pequeno, tenho-o desde que cheguei da África do Sul, tem 22 pés, seis metros e tal. Chama-se Take Five.

 

Também faz miniaturas de barcos, réplicas. É como fazer um puzzle, é um jogo de minúcia.

É. Gosto de objectos, de coisas associadas ao mar. Comecei a fazer réplicas em Washington. Comecei por fazer uma do Take Five. Devia estar com saudades do mar. Hoje tenho várias. Até já consegui fazer uma dentro de uma garrafa!

 

Uma palavra de eleição: intimidade ou mar?

Intimidade. Era isto que estava à espera? Mas é. Não se pode mudar nomes de barcos, mas se eu pusesse um nome a um barco, agora, chamava-lhe Nora Nora, o nome da minha mulher (Leonor). Outro muito bom é Querência. Li sobre um iate chamado Querência. Querência é o sítio na arena onde o touro se sente seguro. Os grandes matadores, (o Hemingway descreve isso), procuram descobrir onde é a querência do touro.

 

Esse lugar onde se sente seguro é na intimidade, aconteça ser no mar ou com a sua mulher?

É. São as minhas seguranças.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007

 

 

Mariza

24.03.14

«Eu era nomeada, mas ao meu lado estavam nomes conceituadíssimos, gente que está no meio da música há muitos anos. Pensei que podia ganhar um prémio revelação... Mas foi. Aconteceu. Agora, o que eu não gostava era que isto me trouxesse grandes responsabilidades. Eu já tenho as minhas responsabilidades: mostrar a cultura do meu povo, respeitar as pessoas que vão aos meus concertos e que tentam compreender a minha maneira de estar no fado».

Mariza, 28 anos, a nova diva do fado, a nova sensação da world music. Ela que não se considera senão um instrumento. Lotações esgotadas em digressões intermináveis. Referências elogiosas nas páginas exigentes do New York Times. O novo álbum, "Fado Curvo", tem edição nos próximos dias. O anterior, "Fado em Mim", continua a vender-se aos milhares no mundo inteiro. Prémio World Music (atribuído pela Radio 3 da BBC) para melhor artista europeia.

Os caminhos desta música do mundo começam num continente distante. Antes do mítico bairro da Mouraria, as raízes pertencem a uma terra de cor vermelha.

 

Nasceu em Moçambique, onde viveu os primeiros anos. De que modo sente essa presença africana na sua vida?

Infelizmente não tenho nenhuma recordação de Moçambique. Nem longínqua. Voltei a Moçambique quando fiz 18 anos. A guerra tinha acabado há pouco tempo e era um país em transição; não gostei nada. Gostaria muito de poder voltar a Moçambique, conhecer algumas das minhas raízes.

 

Perceber onde é que radicam as suas coisas.

Gostava muito de ver a casa onde a minha mãe nasceu. A minha mãe ainda nasceu em casa, apesar de ser nova: tem 52 anos. Eu nasci no hospital de Lourenço Marques [como Maputo então se chamava].

 

Em Moçambique o quotidiano está ainda muito impregnado da presença do fantástico. Há rituais extraordinários à volta do nascimento. O que é que a sua mãe lhe conta?

Há tradições de família, do lado da minha mãe. Quando nasce a primeira neta, durante os primeiros três meses, a avó é que cuida. A mãe fica a aprender. Eu fui a primeira neta e comigo aconteceu isso mesmo. Por isso tenho uma grande ligação com a minha avó Marta. Para ela, o que eu digo, é lei. Ela não se senta à mesa antes de eu me sentar, por exemplo.

 

Marta é um nome europeu, não é nada africano.

Mas ela estudou num colégio jesuíta, apesar de ser negra. Sabe escrever, sabe ler, é uma mulher bastante evoluída para a idade. (Tem quase 70 anos). Vive lá, mas vem visitar-me sempre que pode, no Verão. 

 

A sua avó cantava para si?

Não. Mas fazia-me todos os miminhos. Carregava-me da maneira tradicional, às costas, com um lenço amarrado. O meu avô tinha uma herdade com café, chá, tabaco, tinha pântano, ia à caça. E a minha avó, enquanto dava ordens e fazia a lida de casa, carregava-me assim, às costas. 

 

Como é que ela assiste ao seu sucesso? Que tipo de orgulho é que tem em si?

Primeiro, porque sou a sua neta. Depois, porque canto fado, e o meu avô costumava cantarolar fado. «O teu avô cantava “A Casa da Mariquinhas” e fados de Coimbra». (O meu avô estudou em Coimbra). Sente-se orgulhosa porque canto uma cultura que ela conhece, da qual sente que faz parte. Mas essas coisas dos prémios, não são muito relevantes.

 

E para si, são?

Para mim é um adjectivo interessante. Faz-me sentir muito bem, mas não me posso esquecer do caminho que estou a traçar e do que quero fazer. Às vezes estas coisas fazem com que a gente se perca...

 

É fácil perder o pé?

É. Muito fácil. Voa-se com uma facilidade... Por exemplo, quando se lê no jornal que a minha voz faz lembrar a Ella Fitzgerald nos seus melhores momentos... É fantástico saber que o Gerard Depardieu é grande fã e aparece nos meus concertos e compra os meus discos. Como saber que o Sting sabe da minha existência e responde a um convite meu.

 

Como é que se lê uma coisa dessas quando ela é escrita a nosso respeito? Como é que se fica a seguir?

Tento lembrar-me do sítio de onde venho. Venho de uma família que, depois de uma guerra e de uma revolução, teve de voltar [à metrópole] com uma mão à frente e outra atrás. Os meus pais praticamente não tinham meio de sustento. E lutaram, batalharam muito para que eu crescesse e fosse a pessoa que sou. Tenho grande orgulho nisso, no que me puderam oferecer. Fui morar para um bairro pobre, de gente pobre, mas muito orgulhosa, muito trabalhadora.

 

Os seus pais instalaram-se na Mouraria, que tem uma forte tradição popular e de ligação ao fado.

Para poderem sobreviver, os meus pais ocuparam-se de um restaurante na Mouraria. Nos anos 80, se quisesse ouvir fado, só o podia fazer nos bairros típicos. Alfama, Mouraria. O fado estava muito ligado ao regime anterior. E eu, com 5 anos, comecei a cantar no restaurante! O Parque Mayer ainda estava vivo e os actores iam lá cear e ouvir fado. Jornalistas, poetas, boémios, a gente do bairro. Mandam-se bocas, bebe-se um copo de vinho, canta-se, é um ambiente muito vivo.

 

Descreva-me uma casa de fado.

Uma casa de fado, neste momento, é um local turístico. Perde-se um pouco o ambiente fadista genuíno... Quando se vai a um local, que os estrangeiros dificilmente conseguem encontrar, e se ouve amadores a cantar, o ambiente é completamente diferente. Mandam-se bocas uns aos outros...

 

O que é isso de mandar bocas?

Como é que hei-de explicar? O que tem a dizer-se, diz-se naquele momento, e ninguém fica chateado, ninguém leva a mal. Às vezes dizem-se coisas só por dizer, só para picar. Bebe-se muito vinho, come-se muito caldo verde, fala-se muito de pouco e de nada. Constroem-se poemas nessas noites.

 

Escritos nas toalhas de papel que estão sobre as mesas?

Sim. Aparece gente que canta maravilhosamente. Que canta porque gosta e não está minimamente interessada em ser conhecido. Canta porque a música lhe diz algo. Fazem-se tertúlias só com guitarra portuguesa, com a guitarra a chorar. 

 

E foi nesse ambiente que cresceu. Era a menina que assistia deliciada a este mundo dos adultos?

A minha mãe não me deixava ficar!, mandava-me subir (o apartamento era em cima e o restaurante em baixo). Mas havia umas cortinas e eu espreitava. Acontece que não via nada..., o ambiente é sempre muito escuro. Só ouvia. A primeira paixão começa com a guitarra portuguesa, com o som da guitarra portuguesa.

 

Que é um lamento, sobretudo.

É um choro, aquilo é um choro. A minha curiosidade era: o que é que a guitarra vai fazer a seguir à voz. Porque a voz chama e a guitarra responde. Ficava sempre à espera da resposta.

 

No seu canto, há um ondular permanente. Os versos não são ditos de forma oblíqua, sem ligação entre si. A passagem, a resposta, de um a outro momento, não é nunca descontínua. Essa cadência caracteriza-a enquanto cantora.

Eu acho que não sou uma cantora. Nem uma fadista. Eu sou um instrumento. Faço parte da música. E ela leva-me. Não sei ler uma nota, nunca tive aulas. Tenho agora, há muito pouco tempo. O ano anterior foi esgotante; foi preciso aprender a descansar e a potenciar o instrumento. A voz é um aparelho que se gasta com muita facilidade, que se cansa. Numa guitarra, parte-se a corda, põe-se uma corda nova, resolve-se o problema. Aqui, quando há um problema, é muito sério. E eu sou muito frágil. Mesmo fisicamente.

 

Tem perto de 1,80.

Pois é, mas sou muito frágil. Qualquer coisa e fico atacada e desritmada. Talvez tenha a ver com o ter nascido prematura, com seis meses e meio. (Agora que vou aos Estados Unidos, vou tentar perceber isso, tenho consulta marcada com um nutricionista). Com este número de espectáculos e salas esgotadas não posso dar-me ao luxo de dizer que estou doente, que estou de cama. As pessoas não têm nada a ver com isto! Então decidi aprender a proteger-me. Mas disse à minha professora que não queria aprender a colocar a voz. Coloco a voz de forma natural.

 

É como andar? Cada um tem a sua forma de andar?

É verdade. Ou respirar. Cada pessoa respira de forma diferente. Cada um sente da sua maneira, cada um coloca a voz da sua maneira. E eu aprendi a cantar na rua. Dava concertos para as vizinhas.

 

Elas ouviam-na à janela enquanto punham a roupa a secar?

Eu era pequenina, cantava e as vizinhas apareciam à janela, nas portas... E colava caricas nos sapatos com fita-cola e fazia números de sapateado ao mesmo tempo que cantava o fado!

 

Onde é que aprendia o sapateado, e as músicas?

Na televisão e na rádio. A rádio era uma grande companhia. O meu pai tinha o hábito, ainda tem, de desligar a televisão à hora da refeição. Ouvíamos fado – Fernando Farinha, Fernando Maurício, Carlos do Carmo, Max, Toni de Matos – e ouvíamos rádio. Aprendia as músicas pela rádio, sabia as letras todas.

 

Até quando é que viveu nesse mundo próprio que é a Mouraria? Qual é o ambiente de um bairro típico? É como se fosse uma família alargada, com as tensões e alegrias equivalentes?

É uma família com tudo o que as famílias têm. Quando se zangam, zangam!, e passados 3 dias já estão a assar sardinhas e bifanas na rua. Quando alguém está doente vão à farmácia, vão ao hospital. A minha mãe é abordada quase todos os dias «Então a nossa menina?». Sentem-se orgulhosos. A vivência de bairro é muito isso, vivem ali todos os dias uns com os outros.

 

E a cusquice?

Também. Sabe-se tudo.

 

O bairro deixou-lhe essa marca, além do cantar?

Não tenho muito o vício da cusquice. Não me interessa muito o que os outros fazem, só atrapalha... Quando estamos muito preocupados com o rabo do vizinho não olhamos para o nosso. Houve uma altura em que queria saber o que as pessoas pensavam, o que diziam. Hoje não me interessa. Se escrevem bem, se escrevem mal, se dizem bem, se dizem mal.

 

Diz-se que o fado é um estilo de música próprio de Portugal, um lamento, a saudade. Também se diz que o fado é a vida. A sua descrição do bairro é passível de ser identificada com o que é o fado, o que é a vida. 

É a minha vida. Quando se fala de fado tradicional, sei exactamente do que se fala. Quando se fala de raízes, sei do que se fala. Quando estou num ambiente fadista, sei como se comportam as pessoas, como me devo comportar. Se não tivesse crescido ali, não poderia entender. Talvez cantasse, porque é uma música que me apaixona, mas seria completamente diferente.

 

Como é que apresenta o fado aos estrangeiros? Como é que os faz entender o que aquilo é?

Lá fora, quando vão assistir a um concerto de fado é como se fossem assistir a um concerto de música clássica. Vão muito bem vestidos, com uma disposição para gostar. O que tento fazer é explicar-lhes os poemas. O meu inglês não é nada de especial..., mas vamo-nos entendendo. E tento fazer com que sejam muito participativos. Não consigo fazer um espectáculo parada, quieta. Tem que se dar, mas também tem que se receber.

 

No fundo, é como se os implicasse. Tal como acontece num ambiente de fado tradicional, em que as pessoas estão todas comprometidas umas com as outras e com aquele ambiente.

Exactamente. Tem de estar tudo com a mesma carga, na mesma linha. Assim tem acontecido em todos os espectáculos. Eu ensino-as e as pessoas cantam, batem palmas, riem. Como se estivessemos numa taberna, mas muito, muito maior. Como se estivesse a receber os meus amigos. Porque as pessoas que vão ver os meus concertos são meus amigos, estão interessadas naquilo que estou a fazer.

 

Entrega-se, e essa é a sua dádiva.

Dou-me completamente. Dou o que tenho e o que não tenho.

 

Sempre soube que ia ser cantora? No seu currículo consta que aprendeu a cantar antes mesmo de aprender a ler.

Sempre disse que ia ser cantora. Sempre. A paixão começou pela guitarra portuguesa e depois disse ao meu pai que queria cantar. O meu pai é um bocado um artista frustrado; em casa ouvimos muita música, havia sempre teatrices, fazíamos jogos cómicos, jogos de mímica. Como não sabia ler, o meu pai inventou um método: de dia ensinava-me o poema, com bonecos [desenhados] no papel que ilustravam os versos; à noite deitava-me com headphones e adormecia a ouvir a música. Então, aprendia a música a dormir e os poemas de dia, com os bonecos.

 

Quando saiu da Mouraria?

Há pouco tempo, há 6 anos. Foi para quebrar um bocadinho o laço. Como quando se nasce: é preciso cortar o cordão umbilical.

 

E como foi quebrar esse laço? Não é só o laço com os pais, é com toda uma vida.

Foi muito estranho, muito difícil. Já tinha a minha casa e ia dormir muitas noites a casa dos meus pais. Sentia falta dos amigos, sentia falta de me sentar à porta a conversar com a vizinha da frente... Já me habituei. Mas quando chego à Mouraria, ainda vou a subir a rua e já estou a gritar pela minha mãe! Há vícios que não se perdem...

 

Emociona-se quando está a voltar, quando sobe a rua?

Não é uma questão de emoção. Sinto que estou em casa. Ainda hoje vou lá. Quando tenho tempo passo lá a tarde, falo com a avó do António, que é um dos meus músicos, a quem chamo avó: «Há aqui café de cevada, queres? E pão com manteiga».

 

E sabe-lhe bem, esse café?

Sabe muito bem. É isso que faz com que eu não voe. Com que eu não ande com o nariz no ar. As minhas raízes são pobres. 

 

Quando era mais pequena, era como? Sempre a conhecemos com esse visual exótico, esse cabelo...

Tinha o cabelo comprido aos caracóis. A minha mãe é adepta de meninas com cabelo comprido. E um dia, com 12 anos, apareci em casa com o cabelo cortado assim!

 

Como agora usa?

Não loiro, mas cortado à rapaz, sim. A minha mãe ia morrendo.

 

Deu-lhe uma tareia?

Bateu-me e foi ao cabeleireiro buscar a trança! Quis o cabelo e ainda hoje o tem guardado. Quando o voltei a cortar, agora, também o fiz às escondidas!

 

Aos 12 anos já cantava nas colectividades. Foi cantando sempre. Tinha a noção de que estava a iniciar um percurso?

Nunca tive essa noção, nem nunca quis.

 

Ganhava dinheiro?

Comecei a ganhar dinheiro mais tarde, quando fiz bandas de funk e de rock e comecei a cantar nos bares, com os meus 15 anos.

 

Deixou de estudar com 18 anos. Nunca quis ir para a faculdade?

Não. A minha mãe queria. Acabei o 11º e a minha mãe começou a dizer que só faltava um ano... Comecei a sentir-me muito triste. Sou uma pessoa que não pode viver triste. Não consigo fazer coisas de que não gosto. Por exemplo, se não gostar de si, não consigo falar consigo. E tenho de ser verdadeira comigo própria, não consigo cantar uma coisa de que não gosto.

 

Um fado é um coração aberto?

Não. O fado é uma alma despida. E às vezes é muito difícil mostrar. Porque a alma chora, tem feridas, tem mazelas, e dói.

 

Quais são as suas dores? São sobretudo as que resultam da saudade? No início da nossa conversa dizia-me que nem queria olhar para a lista infindável de concertos, para o tempo que ia estar fora.

Não quero. Não quero imaginar trabalho. Quero imaginar prazer. Uma digressão deixa-me sempre com saudades de casa. Hoje tive um sonho agitadíssimo. Acordei várias vezes para me tentar situar. Não me lembrava em que casa estava. Mas a minha forma de cantar não tem a ver com saudades de casa. Eu sou um transporte para as palavras. Quando leio um poema e me identifico com ele, é muito fácil cantá-lo. Porque as palavras têm um significado. Ainda não escrevo. Talvez um dia o faça. Ainda não me sinto com bagagem suficiente. Bagagem de vida. Têm de me acontecer mais coisas. Boas e más.

 

Têm-lhe acontecido muitas coisas na vida?

Significantes, só têm acontecido boas. O que me vai fazer crescer como fadista são coisas más.

 

Há essa marca da dor no fado. Nem que seja a dor amorosa.

Que ainda não tive.

 

Não sei se é casada.

Sou.

 

O seu marido acompanha-a?

Sim. É o meu manager. É um grande profissional e antes destas coisas acontecerem já trabalhávamos juntos. Isto tudo parte da cabeça dele.

 

«Isto tudo» significa a internacionalização?

Sim. Ele imaginava isto tudo. Eu nunca imaginei. Vai fazendo as coisas, sem me dizer..., e depois aparecem feitas. São pequenos presentes.

 

É uma forma de a cortejar.

É. Acho que fica ainda mais feliz do que eu.

 

Todas as pessoas à sua volta sentem orgulho em si: o seu marido, o seu pai, a sua mãe, o bairro, o país...

O país, será?

 

Ao contrário de outras fadistas da nova geração, o seu sucesso acontece também em Portugal. Tem orgulho em si?

Tenho. Mas não é orgulho em mim pelas coisas que me acontecem. É orgulho na pessoa que sou. E tento todos os dias orgulhar-me.

 

De que é que se orgulha mais? O que é que pode ser motivo de orgulho?

Tenho orgulho em ser verdadeira. Muito orgulho no meu bairro. Muito, muito orgulho em ser portuguesa. Não sabe a sensação que é, no final de um concerto, estar toda a gente de pé e eu sentir-me orgulhosa por transmitir a cultura do meu país, por poder dizer que sou portuguesa.

 

Agora que o fado ocupa a totalidade da sua vida, ainda sente o prazer furtivo de espreitar, de participar na boémia do bairro?

Oh, sim. Cheguei ontem e fui logo para a fadistina!

 

 

Publicado originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest em 2003

 

Pág. 1/4