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Anabela Mota Ribeiro

Zuenir Ventura

02.03.14

Como é a inveja? “É dissimulada, subreptícia, insaciável, incontrolável, duradoura, caprichosa, sorrateira, calculista, cumulativa”. É um sentimento inconfessável.

O jornalista e escritor brasileiro Zuenir Ventura trabalhou o tema em 1998, para um livro a que chamou: “Inveja – Mal secreto”. É um dos sete livros de uma colecção dedicada aos sete pecados capitais publicada no Brasil.

O livro é relançado agora em Portugal, pela Planeta. Miguel Sousa Tavares prefacia.

Do que falámos? De inveja, claro. Desse sentimento odioso que todos conhecem e todos repudiam. “Se eu tenho inveja? Não, eu sou invejado”. Será?

Zuenir Ventura fala da sua inveja. Eu tenho cuidados para que a minha não apareça. Falámos dos preconceitos em torno da inveja, das pesquisas feitas junto de psicanalistas, terreiros de umbanda e candomblé, padres; junto das pessoas que estão por perto; de uma grande pesquisa feita no Brasil sobre o tema. As conclusões surpreendem.

E o caso português, estará tão distante deste?

Falámos também da vida de Zuenir, do que o fez sair de uma cidade do interior, no estado de Minas Gerais, e transformar-se no reputado jornalista e escritor que ele é. De momento é cronista d‘ O Globo. Do cancro e da sua enviesada relação com a inveja.

E do Brasil, do momento particular que o país atravessa. Que será, que será? Em ano de eleições.

Foi esta semana, no Chiado. Há dez anos que ele não vinha a Lisboa.

 

 

A primeira surpresa, depois de ler o seu livro, é perceber que os brasileiros também consideram a inveja uma característica nacional. Os portugueses dizem isso de si próprios e estão sempre a sublinhar que Os Lusíadas terminam com a palavra inveja.

Depois que o livro saiu, um amigo português me disse: “Você diz isso porque você não conhece a inveja dos portugueses…”. Um amigo espanhol disse o mesmo de Espanha. Isso confirmou a minha ideia de que é um pecado universal e democrático. Não respeita classe, cor, nacionalidade. Pelo visto, é muito bem distribuído. Todo o mundo sente inveja, ou já sentiu, ou vai sentir. Não há possibilidade de não ter esse sentimento. Que é um sentimento desagradável.

 

E que não se assume.

A pesquisa que foi feita no Brasil revela que a inveja é o sentimento que todo o mundo identifica entre os sete pecados capitais. Setenta e três por cento diziam que a reconheciam. Mas quando se perguntava: “Você tem inveja?”, “Eu?, não!”

 

No seu livro, onde se reproduzem os resultados dessa pesquisa, 83% diz nunca ter sentido inveja.

Há um teste que sempre faço, e que fiz agora numa escola da Póvoa do Varzim; perguntei: “Tem algum invejoso aí?”. Só um levantou o braço. Em geral, duas pessoas no máximo levantam o dedo numa sala com 100, 200 pessoas. Não há nenhuma hipocrisia nisso: é um sentimento que você não quer sentir. Faz tão mal…, ao próprio invejoso. Quando comecei a fazer o livro fazia esta pergunta ao motorista, ao dentista, aos meus amigos; a resposta era: “Eu não sinto inveja. Eu sou muito invejado”. Essa grande pesquisa confirmou os dados da minha pesquisa restrita. É um sentimento a que não se dá nome, que se esconde, inconfessável, de que se tem vergonha, e muito escamoteado. Às vezes, até de você mesmo.

 

Às vezes ou quase sempre?

Quase sempre. Nelson Rodrigues dizia o seguinte: “Há coisas que você não confessa para ninguém: nem para o seu analista, nem para o seu confessor, nem para você mesmo”. Eu completaria: como o pecado da inveja. Pesquisei em consultórios de psicanalistas, entre padres e confessores, terreiros de umbanda e candomblé. Pensei: aí vou encontrar invejosos, se não tiver aí, não existe mesmo… Tive dificuldade. “Como é que vou fazer um livro sobre inveja se não tenho o personagem do invejoso?” Ninguém quer ser invejoso. 

 

Os resultados desse estudo, e que confirmam a sua pesquisa restrita e informal, deixam perceber que é um sentimento que não tem que ver com classe social nem com género. Ora, segundo o estereótipo, as mulheres é que são as invejosas.

Essa foi, para mim, a grande revelação e a destruição de esterótipos. Os psicanalistas foram muito convincentes nessa revelação. Apesar de o Freud ter descoberto a inveja do pénis… [riso] Digamos que o complexo de castração da mulher seria pela ausência do pénis, pela inveja do pénis.

 

Acha que esse preconceito em relação às mulheres deriva daí?

Acho que não. Deriva mais do machismo, da nossa cultura, de achar sempre que a mulher é mais fingida. É o contrário. O que os psicanalistas me revelaram, com base na experiência deles, e unanimemente, é que a mulher é mais sincera. Ela revela, é mais transparente. Por isso é que parece mais invejosa. O homem esconde mais. É uma contradição com a história da ausência do pénis, da frustração [que deriva disso], de tudo isso que faz parte da literatura e do senso comum. Embarquei nesse livro carregado desses estereótipos, com o aval do Freud... Tive uma grande surpresa quando concluí que o homem é mais invejoso.

 

Nesse estudo, pergunta-se o que é que as pessoas invejam mais. A conclusão é: dinheiro, sucesso e poder. Isto são coisas que imediatamente se associam ao masculino, e não ao feminino.

Curioso, não tinha feito essa observação. É verdade. Eu mudaria a ordem: sucesso, poder e dinheiro. O sucesso é aquilo que as pessoas mais invejam. Não é o dinheiro.

 

Porque é que acha que são estas as características mais invejadas?

O sentimento da inveja é muito complexo. Ele não équimicamente puro. É carregado de vários outros sentimentos, normalmente negativos: ódio, raiva, ressentimento, complexo de inferioridade. É um composto. O que menos interessa na inveja é a posse. Seja a posse de dinheiro seja a posse de bens. No mundo moderno, na sociedade do espectáculo, da exposição, da celebridade, isso é muito mais desejado do que o dinheiro. De certa maneira, [o sucesso] já pressupõe o dinheiro (não é que o dinheiro seja desprezado ou desprezível). O êxito, estar na televisão, nos jornais, a exposição, aparentemente é mais gratificante do que a posse de bens.

 

Talvez seja o momento para definir inveja. E fazer a distinção entre inveja, cobiça e ciúme. São coisas ligadas, por vezes indestrinçáveis, no senso comum.

Eu queria uma definição didáctica porque havia muita confusão, sobretudo entre cobiça e inveja. A definição a que cheguei é que o ciúme é você não querer perder o que você tem. Uma das maneiras de distingur a inveja do ciúme é que no ciúme tem sempre uma terceira pessoa. Você tem ciúmes de uma pessoa pela ameaça de uma outra pessoa (que pode existir só na sua cabeça, mas que na verdade existe). A cobiça é querer ter o que você não tem. É um sentimento legítimo, tanto que não é pecado. A inveja é você não querer que o outro tenha. Por isso faz sentido o axioma que diz que o rico inveja o rico, o rei inveja o rei, assim como o mendigo inveja o mendigo. Independente do que ele tem. Na verdade, o que o faz infeliz é o outro. Ele é feliz com a infelicidade do outro – o objecto da sua inveja. Quando dizem que a inveja é um motor do desenvolvimento, porque promove a competição…, isso não é inveja.

 

É cobiça.

É. O invejoso não quer disputar. Ele só quer disputar quando tem a certeza de que vai ganhar. A disputa, se ele perder, aumenta o seu complexo de inferioridade. A inveja é sempre destrutiva e negativa. O motor do progresso é, sim, a cobiça, que faz, por exemplo, o mundo dos negócios girar, e que é fundamental que haja. Que se saiba essa distinção, porque a inveja não é como o colesterol, que pode ser bom e mau. 

 

As pessoas falam de “inveja boa”. Se calhar defensivamente, para não parecerem tão mal aos seus olhos e aos dos outros. Aquilo a que se chama “inveja boa” é mais próximo da cobiça?

O processo é mais subtil. A admiração é a sublimação da inveja. Não por acaso, o símbolo da inveja é a serpente. Que morde quem está próximo. Os vizinhos, os irmãos. Na história da Humanidade, a inveja entre irmãos é famosa.

 

Abel e Caim, para começar.

Isso. Dois ingredientes indispensáveis: a proximidade e a comparação. Porque é que você não tem inveja do seu ídolo? Porque ele está tão distante, psicologicamente, que não há possibilidade de comparação, nem de inveja. Aí, você transforma aquilo que seria inveja em admiração. O torcedor não inveja o Cristiano Ronaldo. O invejoso não admira. Um dos maiores desejos do invejoso é que o outro fracasse. Um colega de trabalho: não quer necessariamente que ele morra, quer que ele quebre a cara, que se dê mal. Às vezes, há até um desejo mais perverso: que o outro sofra.

 

Nas crianças vê-se isso facilmente, quando querem o brinquedo da outra e o destroem. Nenhuma delas brinca com ele.

A criança, como a mulher, finge menos. É menos hipócrita e menos cínica do que o adulto. A criança manifesta-se em toda a sua liberdade e em toda a sua crueldade. A criança destrói para a o outro não brincar com.

 

São muito poucas as pessoas que têm consciência destes seus processos, complexidade e perversidade. Os psicanalistas dizem que as pessoas relatam um quadro de inveja, mas a palavra não aparece, e elas não falam de si, taxativamente, como invejosas.

É a única maneira de se curar da inveja: admitir que é um sentimento que tem. Faço um trocadilho: se a inveja destrói tanto a nossa auto-estima, vamos então trabalhar a alter-estima. A estima do outro. O amor. E tem graus na inveja. Nem toda a inveja é a inveja do Caim. Isso também dá uma certa rejeição desse sentimento, porque você fica associado a todas essas histórias. O primeiro crime da Humanidade é um crime de inveja! No Brasil tem muito a história do mau-olhado. O olhar de seca pimenteira.

 

O que é exactamente?

Minha mãe falava: “Cuidado!, fulano tem olho de seca pimenteira”. A lenda é: há pessoas que olham para uma planta (no caso, pimenteira) e seca essa planta! Supõe-se – a ciência não provou isso – que exista uma energia muito forte no olhar capaz de fazer mal ao outro, capaz de matar uma planta. O olho, o olhar enviesado, o mau-olhado. Nos terreiros de umbanda e candomblé falam mais “olho grande” e “olho gordo” do que de inveja.

 

E que fazer? No seu livro diz-se que nada é tão eficaz como ignorar o invejoso.

Porque ele morre de raiva. Ele quer reacção. Tem também aquelas defesas: “Você está muito bem!”, “São os seus olhos”. Ou seja, devolve para o possível invejoso a carga que ele está a tentar passar para você.

 

Aqui diz-se: desejo-te em dobro o que me desejas a mim.

No livro eu digo que elogio é favor! É um pouco radical essa afirmação, mas… Tem essa história, das mais significativas da inveja: a dos dois homens no deserto. Chega o anjo, disposto a atender o pedido de ambos. Com uma condição: reserva para o segundo o dobro daquilo que o primeiro quis. O primeiro, que é um invejoso, disse: “Eu quero que você me segue um olho”. [riso] Esta fábula tem uma força de síntese… Na inveja você está interessado no que o outro perde, e não no que você tem.

 

A sua inveja ficou sob escrutínio depois de escrever este livro?

Eu me surpreendi também. Como todo o mundo, me achava acima da inveja. Eu??, invejoso?, imagina!, não! Há uma cena que descrevo no livro, absolutamente verdadeira, com o meu amigo Ziraldo. Fui a casa dele, à festa de aniversário, no dia em que descobri que estava com um cancro. Senti um mal estar, achei aquela festa desagradável, as crianças fazendo barulho, correndo de um lado para o outro, um horror. Estava querendo ir embora. Até que percebo o seguinte: eram os netos dele que me estavam incomodando.

 

Ou seja, a manifestação de vida ante o seu medo da morte.

Acrescido do seguinte: eu não tinha ainda um neto. Que era um grande sonho meu e da minha mulher. Ia morrer sem deixar um neto ou uma neta. No primeiro momento, a tentação é ocultar. Eu estava com raiva do meu amigo!, ele tinha tudo aquilo que eu não ia ter, e estava ali, feliz… Cada manifestação de felicidade dele era para mim uma derrota.

 

Também senti, eu própria, que tinha de ter cuidado com as perguntas que fazia, para não aparecer a minha inveja… De repente ficamos mais expostos. Teve a impressão, depois da publicação do livro, que as pessoas ficavam mais cuidadosas na conversa consigo?

Isso é muito engraçado! Houve aquela coisa: será que o livro vai vender? Um amigo contou-me que comprou o livro para dar de presente de Natal a uma amiga, e ela reagiu da seguinte maneira: “Você está pensando que eu sou invejosa?”. Sentiu-se ofendida! Eu disse: “Pronto, não vai vender! Se confirma a minha impressão”. O estigma do livro, esconder o livro… Felizmente, vendeu bem. As pessoas reagem com humor. Que é também um modo de disfarçar. “Olhe aí, não sou como aquele personagem do seu livro”. É curioso o mecanismo de defesa que usamos. Mas respondendo directamente à sua pergunta: sim, as pessoas têm cuidado, para eu não diagnosticar sintomas de inveja. No olho, na maneira de falar, de fazer um elogio, no tom. Há elogios aboslutamente falsos!, que se fazem para escamotear a inveja.

 

Se pensar nos homens de negócios, que têm poder e dinheiro, duas das coisas que as pessoas mais invejam, o que é que diriam que eles invejam uns nos outros?

O sucesso. Elementos do sucesso, como o status. Na competição empresarial está muito em jogo o seu status, para o público interno e externo; o estádio em que está, o grau de êxito que conseguiu. Tenho a impressão que a ocorrência disto é muito mais frequente do que querer saber quanto é que o outro ganha.

 

Entram aí disputas que mexem directamente com o narcisismo? Como o carro que se tem, a juventude, a beleza da mulher ou da amante, o berço e o nome de família.

Entram. Fazem parte dessa composição complexa da inveja. Tudo isso está associado ao status. Dinheiro é outra coisa. Você pode ser rica e não ter prestígio nem sucesso. Os bens materiais são sinais disso – mais do que a posse em si, “aquilo” significa que eu tenho sucesso.

 

Quando, em 1998, estava a trabalhar neste livro, teve um cancro. Como nota, “câncer” é a palavra que os brasileiros usam para cancro e para o caranguejo do zodíaco. O caranguejo é aquele que esconde. Como a inveja. E é um bicho com uma reputação tremenda.

E anda para trás. E morde traiçoeiramente. Foi a coisa mais grave que me aconteceu na vida. Meu pai morreu com 97 anos, inteiro, sem sofrimento, sem doença. Como eu gostaria de morrer. Eu tinha essa omnipotência... Sou muito saudável. Quando veio essa revelação, foi para mim um choque. “Comigo?, porquê eu, com milhões de pessoas…”. É um sentimento de injustiça. É a proximidade da morte. Não há como não pensar na morte, a cada exame, a cada palavra do médico. Decidi integrar isso no livro. Mas demorou. A primeira reacção foi: “Não quero saber do livro!”. O livro foi largado. Mas tinha a minha musa inspiradora… O adiantamento. A primeira coisa que você faz é gastar o dinheiro do adiantamento que os editores te dão. E então, tem de fazer de qualquer maneira… Quando comecei a fazer a pesquisa, me dei conta de que os dois eram inomináveis.

 

Muitas pessoas que têm cancro não conseguem dizer que têm cancro. Chamam-lhe “aquilo” “a doença”, “o problema”.

É. As pessoas não dizem: “Tou com câncer”. Como não dizem: “Sou invejoso”. Ainda hoje há pessoas que me dizem assim: “E aquela doença, como é que está?”. “Ah, o câncer?, está óptimo!”. Mas é porque está superado, e bato sempre na madeira, e não sou supersticioso. [riso] Também percebi que isto podia ter alguma importância social. E teve. Recebi muitas cartas de pessoas que estiveram numa situação parecida e que se sentiram ajudadas pela minha revelação. O cancro provoca um sentimento de inferioridade, você fica derrotado; um dos melhores recursos para o combater é não se deixar abater moralmente. Uma outra coisa que me marcou: o valor que passei a dar a coisas, situações, pessoas, momentos, e a que não dava.

 

Por exemplo.

Moro num apartamento em Ipanema com vista para o mar, e nunca me tinha dado conta de que tinha ali uma vista incrível. Passou a ser: “Que bom viver para ter o prazer de ver isto”. Valorizar o presente. Em geral, você diz: “Puxa, foi legal, há dez anos atrás…”. Em geral, você não pára para dizer: “Este momento é importante, carpe diem”. A ponto de ter ficado um pouco piegas… Contemplar a paisagem, “ai meu deus, que dia lindo!”. A gente sofre por coisa sem significado, sem expressão. Não tenho do que me arrepender no passado. Não dei nenhum mau passo. Não tenho nostalgia. A minha juventude foi muito mais sofrida do que hoje. Tenho 78 anos. Estava à espera que você dissesse que não parece...

 

Já sabia que tem 78 anos.

Sempre digo isso nas palestras. Antigamente, havia alguém a dizer: “Não parece!”. Hoje é esse silêncio, que se sente cada vez mais. Para dizer que fui muito mais infeliz na juventude.

 

A superação da doença implica alter-estima. Pela própria vida. É o contrário da inveja e da doença, que tudo minam, tudo secam.

Exactamente. Alter-estima na vida e nos amigos. Nada melhor do que – já dizia o Vinícius [de Moraes] – os encontros. Sou muito gregário. Acho a amizade mais importante do que o amor. A amizade é o amor sem cláusula de exclusividade.

 

Porque é que durante a juventude a sua vida não foi feliz?

Tive uma vida dura. A minha família era pobre, muito pobre. Para ter uma ideia, comecei como pintor de parede. Meu pai era pintor de parede e eu, aos 11 anos, comecei a trabalhar com ele. Trabalhei depois como office boy num banco, office boy num bar, entregando e limpando o bar. Trabalhei numa camisaria, era balconista. Não era infeliz por isso. (Na camisaria, sim, que era um emprego que detestava. Era melhor limpar o chão do bar, um bar alemão, do que estar na camisaria vendendo. Não era de aturar comprador, ter de agradar para vender). Eu era muito feio, muito magro.

 

Agora é que vou dizer: não parece!

Ainda bem! Os meus amigos eram lindos e tinham o maior sucesso com as meninas. Socialmente eu era um empregadinho de qualquer coisa… Então, não é que tivesse razões de infelicidade profunda, mas para um adolescente, para quem é importante ter sucesso com as meninas… Por isso digo que agora tenho razões para a felicidade: tenho uma família incrível, amigos.

 

O que é que o fez dar o salto? O que é que o fez transcender a sua condição social?

Tenho de falar com cuidado para não parecer cabotino. “Ah, sabe, saí do nada…” Não foi assim. Tive adversidades, mas… Sair de uma cidade do interior para ir estudar na capital, foi difícil. Meu pai não tinha dinheiro para me sustentar no Rio. Fiquei na casa de uma tia, de favor, e fui ajudado por colegas e primos. Acabei fazendo o que queria: Letras. Caí numa escola onde fui aluno, por exemplo, do [poeta] Manuel Bandeira. Só isso já foi um prémio da lotaria! Tinha uma janela, uma porta aberta para esse mundo encantado da literatura.

 

Porque é que as letras eram o seu sonho?

Esqueci de dizer: tive um emprego fundamental. Estudava à noite num colégio e trabalhava de dia. Um dia o director perguntou-me se eu não queria leccionar o curso primário. Alfabetizar. Em troca, não precisaria de pagar. Adorei ensinar, quis ser professor. Fui para a universidade para ser professor.

 

Como é que foi jornalista?

Aconteceu meio por acaso, tudo o que aconteceu comigo foi meio por acaso. Um dos professores gostava muito de mim, e sabia que eu estava em dificuldade de dinheiro. Ele dirigia um arquivo num jornal e tinha um lugar vago entre as seis da tarde e a meia-noite. Era tudo o que eu queria! Foi fundamental na minha vida, estimulava-me muito, apostava em mim. “Aproveita que está aí e escreve para o jornal. A escrita jornalística é muito importante para disciplinar o estilo”. Ele tinha toda a razão, mas eu dizia: “Para quê? Não vou ser jornalista”. Um dia encontrei na redacção do jornal o Carlos Lacerda. Era um político desastrado, mas muito bom jornalista. Estava procurando alguém para escrever o obituário do Albert Camus. Era um dos meus autores preferidos, e candidatei-me a escrever o artigo. Era um artigo razoável. Mas na redacção, os repórteres acharam que aquele moleque que estava lá em cima era o contínuo... E quando descobriram que aquele artigo era do cara que entregava as pastas, correu a lenda de que o contínuo do arquivo era um génio! [riso] Eu não era nem contínuo, nem génio. Para resumir: me ofereceram um emprego na redacção ganhando três vezes o que eu ganhava.

 

A grande musa inspiradora…

Não tinha como negar. Nunca mais saí da redacção. O que coloca em cheque esta coisa da vocação. Tinha 28, 29 anos. A minha vida foi melhorando. Tive uma bolsa do governo francês, em 1960. Foi a descoberta de Paris, na época a capital do mundo. Foi talvez o ano mais importante da minha vida, de uma intensidade... A bolsa era pobrezinha, mas o jornal pagava-me para ser correspondente. Isso permitiu-me ir atrás e relatar tudo o que estava acontecendo. Voltei de lá mudado. De cabeça. Foi um salto de qualidade.

 

De volta ao Rio, o que é que fez de si um jornalista de excepção?

Tem um lance engraçado. Volto para o jornal, vou na cantina, e tinha uma moça lá no canto, bonita. Mary Akiersztein. Foi há 47 anos. Nunca mais nos separámos. Grande companheira, grande paixão, grande tudo. As pessoas perguntam-me: “Porque é que escreveu o livro “1968 – O ano que não terminou”?”, “Porque minha mulher mandou”.

 

Desconfio dessas declarações.

Mas é verdade. Ela manda completamente em mim.

 

Está a dizer que foi ela que dirigiu a sua carreira? Que não seria o jornalista de excepção que é se não fosse ela?

Ah, sim. Fiz o livro, o livro fez um relativo sucesso, e aí vieram as encomendas. Nunca teria escrito um livro. Acho escrever uma chatice.

 

Do que é que gosta?

De ler. E de ter escrito. Encontrar o adjectivo certo é penoso.

 

Esse processo é minado pela insegurança? “Será que vou encontrar o adjectivo certo?”

Por um perfeccionismo. Que pode substituir por insegurança. As duas coisas. Um grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, dizia que escrever é cortar palavra. É amputar um pouco de você, é cortar na própria carne.

 

Falemos por fim do Brasil. Tem 78 anos, assistiu a várias fases da vida do país. A última década é uma fase particular. Em ano de eleições presidenciais, estamos perante uma grande incógnita? Tudo pode acontecer, ainda, ao Brasil?

Uma das razões da minha felicidade é ser brasileiro. Tenho com o meu país o que sempre há na paixão: amor e ódio. A gente vive reclamando. Isso não é novidade: os meus amigos portugueses também vivem reclamando de Portugal. Mas vejo aqui mais pessimismo do que lá. Mais fado do que samba. Apesar dos governantes, a gente tem um povo que tem uma energia vital e uma alegria única. Isto para dizer que eu gosto e acredito no Brasil. É bem possível que eu não vá ver o país dos meus sonhos, mas a minha neta, Alice, pode ver. Estamos vivendo um momento especial e o mundo está reconhecendo isso.

 

Deve-se a Lula, fundamentalmente?

Sou muito crítico em relação a Lula. Acabei de escrever uma crónica que fala do meu constrangimento por ver a foto de Lula entre Fidel e Raul [Castro] na semana em que um dissidente morre devido a greve de fome. Como não sou político, a nossa ética é sempre mais rigorosa do que a dos políticos. Mas na verdade, se botar na balança uma coisa e outra, a administração dele (até a história dele mesmo) tem coisas muito positivas. Lula fez um processo de inclusão muito grande, dos miseráveis.

 

São 30 milhões os brasileiros que ascenderam à classe média. Não é pouco. Isto segundo um estudo recentemente feito e apresentado pelo sociólogo que o dirigiu numa entrevista à revista Veja. São pessoas que podem comprar um carro porque têm acesso ao crédito.

O motorista da minha mulher vive numa favela. O computador dele é melhor do que o meu. A casa dele tem ar refrigerado em todos os cômodos. Tem carro. E não é uma excepção. Isso era impensável há uns anos. O Brasil saiu dessa crise quase como um exemplo. Estados Unidos, França, Inglaterra rendem homenagem ao Brasil, porque conseguiu atravessar essa crise sem grandes prejuízos. É preciso considerar isso. Além do que o país tem de potencial. Potencial energético, de biodiversidade. Sem tufões, sem ciclones. É um país que não tem fundamentalismo religioso, não tem nenhuma questão explosiva do ponto de vista racial. Os candidatos a presidente, qualquer que seja o eleito, não vão fazer feio. Não tenho nenhuma preocupação. A eleição deste fulano vai ser um desastre? Não tem essa perspectiva.

 

Porque os alicerces fixados são bons?

São. E os que estavam antes também, não é possível esquecer Fernando Henrique [Cardoso]. A felicidade de sair de uma ditadura e ter esses dois presidentes… Um sociólogo como Fernando Henrique e um operário como Lula… Lula continua a política económica do Fernando Henrique.

 

Com o apoio de Lula, Dilma Rousseff apresentou formalmente a sua candidatura. O governador de S. Paulo, José Serra, não é formalmente candidato, mas tudo indica que a disputa será entre os dois.

A grande questão será saber até que ponto Lula vai transmitir a popularidade dele. Até que ponto 80% das pessoas que gostam do Lula votam em quem o Lula mandar. Não é automático. O Serra é também um político sério. Outra possibilidade: Aécio Neves, que também é um excelente quadro político.

 

Não há como regredir, em relação às conquistas da última década?

Acho que não. A sociedade já não depende mais dos políticos. Não abre mão do que conquistou. É uma sociedade globalizada. Ninguém permitiria uma ditadura militar como a que tivemos, por exemplo. Claro que é um país com problemas graves, com 190 milhões de habitantes, 190 milhões de problemas. O problema da desigualdade social é grave. A única coisa que pode ameaçar a democracia no Brasil é a desigualdade social.

 

Que foi minimizado, mas não resolvido?

Exactamente. Mas eu sou optimista, e não é babaquice – palavra feia. Se usa aqui, babaca? Olho então com um optimismo realista para o Brasil. O nosso futuro imediato é alvissareiro – palavra meio besta. Promissor.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010