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Anabela Mota Ribeiro

Nelson Motta

05.03.14

‘Cê quer ficar a vida inteira sendo chamado de Seu Nelsinho?”, perguntou-lhe a mãe. Nelsinho não foi doutor. Foi escritor que aprendeu a escrever com quem sabia escrever, produtor musical cuja vida foi mudada por João Gilberto. Uma palavra para ele: versátil.

Nelson Motta, você é o quê? Letrista de Como uma Onda, autor de mais de 300 músicas. Produtor de Marisa Monte e Elis Regina. Proprietário da discoteca Dancing Days. Comentador do Manhattan Connection. Escritor que acertou a mão com Ao Som do Mar e à Luz do Céu Profundo. Biógrafo de Tim Maia e Glauber Rocha. Amigo de todo o mundo.

Quando se olha para o Brasil na segunda metade do século XX, ele está lá.

Esteve em Portugal para apresentar o novo programa, que passa na Rede Globo. Tomou café, não tirou os óculos azuis, falou como quem folheia um álbum de retratos.

Nasceu em 1944. Tem três filhas. Foi fazendo tudo. O que conseguiu na vida foi ali no sorriso e na simpatia.  

 

 

Há alguém que não o trate por Nelsinho?

Nas gerações mais novas muitos me chamam de Nelsão. Os jovens com quem trabalho, que admiram. Mas todo mundo pode me chamar de Nelsinho. Minha mãe, quando eu queria sair da faculdade de design, e não queria fazer faculdade nenhuma, me falou: “Você tem que se formar, menino, assim não vai ser doutor. ‘Cê quer ficar a vida inteira sendo chamado de Seu Nelsinho?”.

 

Nas novelas, quando alguém ascendia socialmente, passava a ser chamado de “doutor”. Ainda é assim?

No Brasil, qualquer cara, pode ser bicheiro, é chamado de “doutor”. Graças a Deus nunca fui doutor.

 

Nunca quis esse status? Uma das suas divisas, exposta na sua sala de estar, pertence a Hélio Oiticica: “Seja marginal, seja herói”. O que é que queria ser?

Esse quadro é uma bandeira do Oiticica. Fui muito amigo dele. No ano de 1969 vários artistas plásticos fizeram bandeiras que venderam a preços populares, para levantar dinheiro. Meu tio comprou uma dessas e me deu. Essa bandeira me acompanha até hoje. Morei em Roma, em Nova Iorque, ela esteve sempre na minha sala. Existem pouquíssimas cópias, todas esfarinhando.

 

Oiticica transformou-se num dos mais relevantes artistas brasileiros do século XX. Em 2007 teve uma retrospectiva na Tate Modern. Qual é a história da peça?

Foi feita de uma foto de um bandido, que chamava Cara de Cavalo, morto, prostrado no chão, com os braços em cruz, e essa legenda. Hoje o Cara de Cavalo seria recebido nos melhores salões do Rio, tranquilamente. Era um bandidinho.O Hélio frequentava muito o morro da Mangueira. É uma favela, mas é o tradicional berço do samba. E de vagabundos. Na época era uma bobagem, um assaltozinho aqui e ali. O mais interessante no Hélio é que ele convivia ao mesmo tempo com esses personagens do morro e com os intelectuais da época. Caetano, Augusto de Campos, os irmãos Campos da Poesia Concreta.

Em relação a esse quadro: eu amo marginais. Sou fã de Jean Genet, de Bukowski, da beat generation em geral.

 

Esses artistas malditos de que está a falar são transgressores. É isso que admira neles?

É um dos traços que me atraem. Eles viajam pela transgressão e me contam.

 

Quis ser um herói?

Herói, não digo. Sempre fui baixinho, pequenininho, tinha uma carinha de garoto. Era difícil impor mais respeito. E também é do meu temperamento ser uma pessoa mais leve. O que consegui na minha vida foi ali na simpatia, no sorriso. Podia ser um bom político profissional, [riso] honesto e tudo. Brinco que quando vou fazer lançamentos de livros, em tour pelo Brasil, é campanha política.

 

O marketing tomou conta.

É. Tem que dar entrevista, tem noite de autógrafos, tem que falar com as pessoas. Brinco assim: “Se levantarem uma criancinha, eu beijo”. E às vezes fico meio “deprê”, porque isso é a coisa mais parecida com uma coisa que desprezo e que gosto de sacanear no jornal: político em campanha. É para não fazer julgamentos muito críticos e definitivos sobre nada.

 

Deixe-me perguntar pelos sonhos de um jovem, numa altura em que o país estava em erupção, e em que se quer ser tudo.

Adolescente, descobri a música. Lia muito livro de aventura, tinha surf no Rio de Janeiro, praia, Copacabana. Final dos anos 50. Um paraíso pacífico. Uma grande classe média. Tudo era muito longe, Baía era outro continente. Me apaixonei pela música quando ouvi o João Gilberto cantando Chega de Saudade. Nem ligava p’ra música, gostava mais de esporte, de Nelson Rodrigues, que lia todo o dia no jornal.

 

Lia A vida como ela é?, uma série de contos, quase sempre sobre adultério e morte.

Lia. E lia o Stanislaw Ponte Preta, um cronista muito carioca. Todo o dia botava uma foto duma gostosona. Havia garotos da minha idade, 14 anos, que nunca tinham visto mulher nua. Nem em fotografia.

 

Nem no Brasil?

Nem no Brasil. Às vezes chegavam umas revistas suecas de naturismo, uns coroas pelados. A coisa mais anti-sexy que podia haver. Tinha quadrinhos pornô, muito mal desenhados mas que eram a salvação dos adolescentes. Esse cara dos quadrinhos ficou famoso, tinha o pseudónimo de Carlos Zéfiro.

 

A sua educação sexual foi feita nos quadrinhos?

Chamava-se Os Catecismos do Carlos Zéfiro. Desenhou os sonhos de várias gerações.

 

Nelson Rodrigues tinha sexo por todo o lado, mas não explícito. Era outra maneira de lidar com a questão.

Tinha que se imaginar tudo! Em 58 fiquei louco com a Gabriela, Cravo e Canela. Lia e relia várias cenas. Transpirava sensualidade, calor, paixão. Fico puto se tentam diminuir ou banalizar a importância de Jorge Amado.

 

E de repente, João Gilberto.

Que é o contrário disso. Tanto Jorge Amado como Glauber Rocha, outro baiano, são personagens importantíssimos na minha vida. Fui muito amigo do Glauber. E convivi muito com João Gilberto. São completamente opostos e complementares. João Gilberto é a delicadeza, a economia, a elegância. O Glauber e o Jorge Amado são a explosão de emoções.

 

O desregramento.

Rebentando todos os limites. O Brasil pode ser bastante explicado só através desses Apolos e Dionísios. É a tragédia brasileira.

O João Gilberto mudou o rumo da minha vida, deu um rumo à minha vida. Me apaixonei primeiro pela Bossa Nova e depois pela música em geral. Não ligava para Dorival Caymmi, Ary Barroso. Achava chata, a música dos meus pais. O João Gilberto fez essa ponte. Inventou algo totalmente novo.

 

No seu trabalho, é depurado como João, exuberante como Glauber e Amado?

Em tudo o que faço tem um pouco dos dois. Mas o Nelson Rodrigues está presente todo o dia na minha vida. Fui formado pel’ A Vida Como Ela É. Vi todas as peças, fui ao futebol com o Nelson, fiz programas de televisão com o Nelson.

 

Como é que era o Nelson Rodrigues na redacção?

Juntava gente em volta. Ele sentado naquelas velhas máquinas de escrever, com cigarro no canto da boca, tomando cafezinho em copinhos de papel. E aqueles repórteres provocando o Nelson. Os comentários do último jogo do Fluminense, a selecção brasileira. Ele pedia sugestões: “Me dá um nome para um padeiro corno.”

 

Na biografia de Nelson, escrita por Ruy Castro, o nome que lhe sugerem para corno é Gusmão. A resposta: “Gusmão é batata”, querendo dizer que era boa escolha. “Batata” deixou de se usar.

O Nelson falava: “Todo marido acha que tem direito a cunhada” [riso]. “O Palhares”, personagem clássico, era um mau carácter vocacional que não respeitava nem as cunhadas. O que era interessante nas peças do Nelson era o choque, o incesto, o diabo. Mas não tinha um palavrão.

 

À sua maneira era um puritano.

É. O Ruy Castro defende que as pessoas assistiam às peças e saíam dizendo: “Não aguento tanto palavrão”. Não tinha um palavrão, mas a sensação era de ter ouvido 300. O jeito que as pessoas falavam, os adjectivos, eram mais contundentes que qualquer palavrão. “O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes”, dizia. Para garotos de 14 anos, água da torneira é afrodisíaco.

 

Isso só em tempo de seca. Em que fase se cruzou com Nelson Rodrigues na redacção? Antes disso: como foi dar às redacções?

Fiz a faculdade de design até ao último ano. Quando estava para terminar, Zuenir Ventura  foi meu professor. As aulas eram tão maravilhosas que eu, que tinha sido reprovado duas vezes em Língua Portuguesa, acabei fazendo um estágio no Jornal do Brasil. Três meses depois fui contratado e larguei a faculdade. Nunca pensei em ser jornalista.

 

Com quem é que aprendeu a escrever?

Aprendi a escrever lendo quem sabia escrever. Li todos os livros de Monteiro Lobato, li A Ilha do Tesouro [Stevenson], Robinson Crusoe [Daniel Defoe]. Não tinha televisão, ainda. E continuei lendo quando descobri os primeiros livros adultos. Os Capitães da Areia [Amado], O Encontro Marcado de Fernando Sabino, que saiu em 1956. O Nelson fui encontrar no O Globo, em 69, por aí.

 

Tinha 25 anos. Estava entre a música e o jornalismo?

O que queria mesmo era a música. Mas o jornal estava muito interessante. Fui logo para os cadernos de cultura. Também era meu DNA. Meu pai foi jornalista, depois virou advogado. Meu avô foi jornalista, depois foi político, ministro do Supremo Tribunal, virou juiz. Do lado da minha mãe, meu avô teve jornal junto com Oswald de Andrade, no Modernismo. Amo e odeio a política, mas não consigo me desligar.

 

Há pouco ficou pendurado esse momento inaugural, detonador, em que ouve João Gilberto e encontra um rumo para a vida. Como explicar a um português o impacto de um movimento como a Bossa Nova?

O Brasil estava se desenvolvendo, começando a se descobrir, Brasília sendo construída. Foi campeão mundial de futebol. Tudo nesse ano mágico, 1958. A trilha sonora desse mundo ainda era antiga. O Getúlio [Vargas], a Rádio Nacional, o nacionalismo exacerbado. Tinha um género musical que se chamava Samba-Exaltação, samba de puxa-saco do governo Vargas. A Bossa Nova deu certo porque era a trilha sonora perfeita para o que a gente estava vivendo, naquele lugar, naquelas circunstâncias. Eram coisas leves, historinhas amorosas, brincadeira lobo-bobo. Ao contrário da exuberância rítmica do sambão, era uma coisa minimalista. Sofisticada, melodiosa, moderna. As velhas gerações reagiram muito à Bossa Nova. Que aquilo não era música, que era cópia do jazz americano, que o João Gilberto era desafinado.

 

Por que é que não tentou, mais do que tudo, ser músico? Tentei ser músico, mas sem grandes pretensões. Nessa época, jovens de classe média, como Chico Buarque, Edu Lobo, Francis Hime, Dori Caymmi, Toquinho, estudavam violão e não faziam ideia que poderiam viver daquilo. Era mal visto. Música era coisa de boémio. “Música não dá camisa a ninguém”, era uma frase clássica. Foi o Vinicius de Moraes que resgatou p’ra gente isso.

 

Um diplomata. O poeta que estudou em Oxford.

Era um moço de família, um poeta respeitado. Foi o nosso grande álibi. O Tom Jobim também. Eu estudava muito, mas não tenho um talento musical. Achei que podia compensar aquilo com esforço e paixão. A minha paixão pela música não era retribuída.

 

Isso doeu?

Um pouco. Via o Toquinho tocando, o Edu Lobo, o Dori Caymmi. “Nunca vou tocar igual a esses caras, por mais que tente”. Se é que tinha algum dom ou facilidade, foi para o desenho, para me exprimir com o traço e com a palavra. Cheguei a terum conjunto com o Francis Hime. Chamava Seis em Ponto. O Francis tinha outro talento, óptimas músicas, nada gravado. O mérito que tem o Seis em Ponto é a gravação das primeiras músicas do Francis, algumas já em parceria com o Vinicius.

 

Vinicius era um farol?

A gente circulava em volta de Vinicius. Comecei a fazer letras de música. O Chico Buarque, graças a Deus, morava em São Paulo, ia ao Rio de vez em quando.

 

Graças a Deus, porque deu espaço para si.

Deu espaço para mim [riso]. Ali no Rio quase ninguém fazia letra. O Paulo Sérgio Valle, irmão do Marcos Valle, fazia as letras do Marcos.

 

Era Paulo Sérgio Valle que era piloto de avião? E músico, e surfista.

Era. Eram dois surfistas seminais do Rio de Janeiro. Louros, bonitíssimos, atléticos, de Ipanema. Vivam numa linda casa com piscina, em frente ao Tom Jobim. Aí comecei a fazer letras pró Dori Caymmi e para a Wanda Sá. Uma das nossas primeiras músicas chamava-se Saveiros.

 

Saveiros?

Barcos da Baía. Influência de Jorge Amado, em todos os seus livros tem esses barcos de pesca. Uma “falua” [diz com sotaque português], quase. Ganhámos o primeiro Festival Internacional da Canção, em 1966, (eu tinha 22 anos), com essa música, cantada por Nana Caymmi. Fui lançado como compositor de festivais. Tinha imensa importância, era igual ao cara que ganhou na lotaria.

 

O Festival da Canção era como um baile de debutantes. Toda a gente se apresentava nestes festivais, de Chico a Elis.

No dia seguinte [ao festival] saiu no jornal, com foto, eu com a Nana Caymmi, primeira página, no Maracanãzinho lotado. Chico Buarque foi jurado. Duas repórteres do Jornal do Brasil estavam procurando, loucas, o garoto que tinha ganho o festival junto com o Dori Caymmi. E eu estava ali na redacção. Não sabiam que aquele estagiáriozinho era o mesmo da canção.

 

Foi sendo tudo. Produtor musical, jornalista, letrista, escritor, cronista... Você é mais o quê?

Já não sei mais. A vida me surpreende tanto. Talvez seja um pouco fatalista, fui levado pela vida. A porta abriu, você entra. Não fica batendo na porta que está fechada.

 

Vai sendo mais isto, vai fazendo mais aquilo. É isso?

É. Por exemplo, adorava a noite, por causa da música. Os barzinhos de 50 lugares de Copacabana que tocavam Bossa Nova, onde apareceram todos. Wilson Simonal, Sérgio Mendes, Elis Regina. Depois curtia uma boîtes para galinhar um pouco. Em 76 fiz um festival de rock, um dos primeiros no Brasil. Teve Rita Lee, Raul Seixas. Era perigosíssimo durante a ditadura. Praticamente fiquei falido com aquilo. E aí apareceu a oportunidade de fazer um espaço, um clube, uma discoteca, para divulgar um shopping na Gávea. Ninguém sabia o que era shopping.

 

Foi assim que surgiu o Dancing Days? Mais tarde, uma novela da Globo levou esse nome.

Foi. Fiz uma cooperativa com todos os amigos que trabalharam no festival de Rock, e em quatro meses paguei as minhas dívidas. De jornalista virei empresário nocturno. Adorei isso. Tinha 32 anos.

 

As Frenéticas, que cantavam o tema de abertura da novela, vieram a Portugal. Coincidiu com o arranque da televisão a cores.

Foi no final do Festival da Canção, no Teatro São Luiz. Me lembro que elas estavam com figurinos absurdos. Uma delas tinha uma malha..., estava praticamente nua. Um escândalo. Depois teve as Doce.

 

Como é que era ter uma discoteca num país que vivia sob ditadura?

Era um clima muito difícil, mas no início da abertura política as pessoas adoravam ter um lugar para ir dançar. Dançava tudo, velhos comunistas, surfistas, modelos, galãs da TV Globo. O Rio era muito menor nesse tempo, não existia nada. Cabia 700 pessoas. Imagina Maria Bethânia numa discoteca, dançando, já famosíssima. Milton Nascimento, o pessoal do Cinema Novo, todo o mundo lá.

 

É possível entender esse mundo e esse tempo sem falarmos de sex, drugs and rock and roll? Neste caso, disco sound.

Gostava dos três nessa época. Até aos 40 anos ia dormir às sete da manhã. Dos 40 em diante passei a acordar às sete da manhã.

Tive o Dancing Days, que foi um sucesso. Depois tive uma discoteca muito maior, no alto do Pão de Açúcar. Depois refiz essa, com nome de Noites Cariocas, que funcionou até ao final dos anos 80. Era a discoteca mais linda do mundo com o Rio de Janeiro aceso ali em baixo. Ia-se num bondinho, numa colina a 300 metros de altura. No meio de uma floresta, não tinha polícia, vizinho. Lá tocaram as maiores estrelas do rock brasileiro dos anos 80. Titãs, Paralamas [do Sucesso], Cazuza, Kid Abelha. Solteiro, dono desse night club, eu desatinei. Fiquei anos ali me entupindo de cocaína. Nessa época as pessoas falavam: “’Tá nevando no Rio de Janeiro”. Era a cocaína cobrindo a cidade.

 

Por isso perguntei se é possível falar dessa fase sem falar de sex, drugs and rock and roll.

O drugs realmente foi um marco na minha vida. Marca os meus 40 anos. No Rio era difícil largar. E os amigos todos na droga, também. Cada festa que a gente ia, filas no banheiro. Aí teve um festival de música brasileira, Baía de Todos os Sambas, em Roma. Fui para Roma com esse festival. Teve Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Moraes Moreira. Até o velho Dorival Caymmi, já com 80 anos. E João Gilberto. Dez dias em Roma. Estava tão feliz, sem nada. Falei: “Vou ficar aqui”.

 

E dinheiro?

Tinha dinheiro, a discoteca continuava, trabalhava para a Globo. Em seis meses nem me lembrava o que era cocaína. Me salvei. Quando voltei definitivamente ao Brasil, quatro anos depois, aquilo já era um passado remoto.

 

Tornou-se um descobridor de talentos e produtor musical. Dois casos famosos: Elis Regina e Marisa Monte. Como é que se descobre um talento, e como é que se potencia um talento?

São dois casos diferentes. Qualquer produtor do mundo se orgulharia de ter feito discos da Elis e da Marisa. Com a Marisa comecei do zero. Uma garota de 20 anos, um produtor experimentadíssimo. Já tinha produzido Elis Regina, trilhas sonoras das novelas da Globo. Marisa foi um ano de trabalho, foi uma tese de mestrado. Vamos fazer comme il faut.

 

Era possível fazê-lo porque Marisa não tinha pressa?

A Marisa Monte é inteligentíssima. Isso é um dado que tem que ser considerado no sucesso dela, nas escolhas, no estilo. Já tinha uma base teórica. Era uma garota de classe média que morava com a mãe na Urca, não tinha problema de sobrevivência. Não tinha que fazer show vagabundo, cantar em churrascaria. A Marisa não queria nem falar em disco: “Nelson, quero ser uma cantora de palco”.

 

Tinha estudado canto lírico em Itália.

E no Brasil também. Com show pronto, começámos numa sala de 200 lugares, no Rio. Não tinha disco gravado, não tocava na rádio, não aparecia na televisão, nada. Só no boca a boca. A definição do João Gilberto para publicidade era: “Informar correctamente as pessoas interessadas”. Foi o anti-marketing, na verdade. Não exaltamos ela, não expusemos ela, não dava entrevista. E isso foi fulminante. A Marisa nunca teve um show que não estivesse super lotado. No final, quando finalmente gravou ao vivo o show, estava cantando em teatros de mil lugares.

 

Coisa raríssima, um disco de estreia ser a gravação de um espectáculo.

É. Eu tinha montado o show todo com ela, e chamei para dirigir comigo a parte plástica o Walter Salles, que virou um director de cinema internacional fabuloso. Depois de um ano todas as gravadoras queriam a Marisa. Esse show especial foi exibido na televisão aberta, no horário nobre. Uma garota de 20 anos que ninguém nunca tinha visto. Essa foi a estreia.

 

Precisou desses anos para aprender a fazer assim? E a ganhar o estatuto para poder impor isso?

Aí sim, com a Marisa me realizei plenamente nessa coisa do disco. Acabei fazendo vários discos, de Gal Costa, de Djavan, Simone, Elba Ramalho. Com a Marisa não foi feita a menor concessão. Resultado, um milhão de discos vendidos.

 

Namorou com ela nesse ano de preparação do show.

Logo que saiu o disco acabou o namoro. Somos muito amigos até hoje. A Marisa é uma pessoa tão discreta... A gente não tocava nesse assunto. Ia parecer o velho produtor raposão que fez um teste no sofá com uma garota que queria ser cantora. Como se a Marisa precisasse disso. E, modestamente, como se eu precisasse disso. Um dia ela disse: “O que nos tivemos foi muito melhor que namoro”. Faça minhas as palavras da Marisa.

 

Perguntei isto do namoro porque com a Elis namorou também. Há uma altura em que é difícil separar as coisas?

Não. Trabalhei com muitas pessoas com quem não me envolvi. Na Elis era mais a circunstância. Nunca fui amigo de Elis, tinha medo dela, um pouco.

 

Medo?

Era bravíssima, imprevisível, grossa. Eu era amigo do Ronaldo Bôscoli, que estava casado com ela. No começo ela detestava os amigos de Ronaldo. Tinham brigas antológicas na frente de todo o mundo. Era Virginia Woolf.

Nesse tempo, estava me revelando um bom produtor. E a Elis precisava mudar. Estava muito parada na MPB. Estamos em 69, já ocorreu o AI-5, que foi a ditadura dentro da ditadura, Caetano e Gil já tinham sido presos, estavam exilados em Londres, Chico Buarque em Roma. A Elis não podia ficar naquele esquerdismo metafórico. E me chamou para ser produtor dela porque eu era um cara mais moderninho. Sempre fui curioso e novidadeiro. Gostava de rock, mas não podia.

 

Porquê?

Quem gostava de rock era lacaio do capitalismo americano. Eu gostava de MPB mas me julgava no direito de outras coisas. Elis chegou a participar de uma passeata contra a guitarra eléctrica que houve em 66. Me ofereci a ela como um samurai. Estava ali para servi-la. Traria músicas novas, coisas que ela nem imaginava que existiam. E assim ela gravou Golden Slumbers, dos Beatles, em inglês!

 

Também em inglês, cantou These are the Songs, com Tim Maia. Dedo seu, que lhe mostrou a música.

Pela primeira vez, o Brasil soube quem era Tim Maia. Elis foi muito generosa. Ela é que tomou a iniciativa de fazer um dueto. Nesse disco tem também Roberto Carlos, As Curvas da Estrada de Santos. E intermediei com Caetano e Gil, que fizeram as pazes com Elis e mandaram músicas inéditas. Fui o agente da mudança artística. Mas ela queria mudar, na verdade, a vida dela, também.

Foi uma coisa traumática. Eu tinha sido padrinho de casamento dela, Elis tinha sido minha madrinha de casamento. Eu idolatrava o marido dela que me tratava como um filho. Eu rio agora, mas foi duro. Foi uma coisa de Fedra [tragédia grega de Eurípides]!   

 

Tim Maia: pode ser usada sobre ele uma expressão que se usava em Ipanema sobre Tom Jobim: é hors concours.

O Tim Maia era hors tudo. Um grande marginal. Se não fosse um génio da música popular, seria um bandido, líder de quadrilha do Morro do Alemão. Coisa engraçada: ao mesmo tempo que acontecia a Bossa Nova em Copacabana, eu, Chico, Edu, estudantes de Arquitectura, Direito, Design, na Tijuca, bairro da zona norte, de classe média, se reuniam Tim Maia, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Jorge Ben Jor. Gostavam de rock and roll, faziam bailes, tentavam se infiltrar na turma da Bossa Nova. Foram rejeitados. Porque era a turma da zona norte. Cafonas, suburbanos.

 

Razões de classe. Era um sistema muito classista? Você, simpaticamente, refere-se ao grupo da zona sul como sendo de classe média. Era na verdade uma classe média alta.

A gente não levava vida de opulência. Mesmo o Paulo Sérgio Valle, que morava em casa com piscina, vivia que nem a gente. Não tinha carro, não tinha nada. Todo o mundo duro. Mas morava com pai, mãe, tinha casa, comida e roupa lavada. Mesada. A turma da zona norte batalhava. Roberto Carlos estava na escola de dactilografia. Jorge Ben Jor queria ser jogador de futebol. Era uma luta de classes na música brasileira [riso]. Mas feliz a geração que tem duas turmas dessas.

 

Porque é que decidiu escrever a biografia de Tim Maia?

Adorava ele. Ouvi Tim Maia em 1969. Aquele vozeirão, de soul, parecia coisa de Motown. Roberto Carlos tinha gravado uma música dele, muito boa. Era gordão, fumava maconha feito um doido, falava barbaridades. Esculhambava todo o mundo. E comigo manteve o maior respeito e gratidão.

 

Porque lhe abriu a porta, apresentando-o a Elis?

Isso. Ele me dedicava discos assim: “Para o Nelson Motta, com respeito, do Tim Maia!” Era uma consagração! Esse cara não respeita ninguém.

 

Não escreveu uma biografia sobre João Gilberto, ou Caetano, ou Elis, ou outras pessoas com quem se deu de perto. Insisto: porquê Tim Maia?

Sobre Elis, vou fazer. Um musical de teatro. Está quase certo. No Tim Maia era sobretudo o personagem que me interessava. O humor, a trajectória, a audácia, a liberdade. Era o ser humano mais livre que conheci. Só fazia o que queria, sem medir consequências. Um talento monstruoso, além de tudo. O Hélio Pellegrino, escritor e psiquiatra famoso, amigo do Nelson [Rodrigues], quando queria falar mal de uma pessoa, dizia: “Fulano é um Rimbaud sem o talento!”. Tim Maia era um Rimbaud com o talento.

 

O ano passado, o livro-biografia foi convertido em peça de teatro, Vale Tudo.

Nunca imaginei que fosse escrever teatro. Mas acabei fazendo isso na forma de um musical, de que me orgulho muito. Tem a potência de um musical da Broadway, mas um despojamento, uma linguagem tão brasileira... Como ele foi preso, na Flórida, e depois no Rio, quase um ano, pegou aquela linguagem marginal, gíria de cadeia. Usava isso para falar com o presidente da República.

 

“Seja marginal, seja herói”. Tim Maia era…

O rei dos marginais!  

 

Tem plateias esgotadas até hoje. Qual o segredo?

Virou um fenómeno. Está uma febre de musicais no Brasil. Cats, Miss Saigon, Evita. Acho chato à beça. O garoto que faz o Tim Maia, Tiago Abravanel, tinha feito oito, nove musicais, papéis secundários. Gordão. Canta, dança, representa. Não tinha um cara desses há dez anos no Brasil. O livro foi um sucesso enorme, também. Quase 200 mil livros vendidos. Transgressor, drogado, grosso, mas as pessoas adoravam o Tim.

 

Escreveu também a biografia do Glauber Rocha.

Glauber tinha a delicadeza dos brutos. Era barroco, delirante, agressivo. Aprendi muito com ele. Um artista de vanguarda, fulgurante. Fiz uma biografia da juventude do Glauber. Só o conheci com 24 anos, quando termina o livro. Fiz uma pesquisa para perceber como se formou aquele Glauber Rocha, que teve um fim tão trágico. Como foram os anos alegres, irresponsáveis.

 

Uma polémica rodeia o livro. O de conter imprecisões em relação a alguns nomes. Coisa que assumiu e corrigiu na edição seguinte.  

Foi uma polémica tão provinciana. [Foi provocada] por caras da Baía que conviveram com Glauber dois, três anos. Personagens ressentidos que ficaram secundários na história. Ficaram furiosos e tentaram desqualificar o livro. Um cara tinha o apelido trocado. Uma coisa idiota. Se não houvesse menção a isso no livro nem faria diferença. O livro são 450 páginas, uma torrente de informação, dada sobretudo por João Ubaldo Ribeiro, pela mãe do Glauber, por dezenas de entrevistas. Inclusive entrevistei esses dois, em 89, quando resolvi fazer o livro. Tenho coisas gravadas. Me aborreci muito com isso. Detesto polémica.   

 

Deu-se com toda a gente. Mas a quem é que chama amigo? A quem ligaria às duas da manhã a dizer que está na fossa?

Hoje em dia? Tenho três filhas. São as minhas pessoas mais próximas. Têm 30, 35 e 40 anos. Tenho pai e mãe vivos, com 92 anos. Tenho muitos amigos, pessoas com quem convivi muito e que a vida foi levando para outro lado. Tipo o Lulu Santos. Com o Lulu Santos fiz mais de 30, 40 músicas, convivemos diariamente. De vez em quando vou a um show dele, passo na casa dele. Mas não é o mesmo.

 

Deixou de andar em bando. Também porque está a envelhecer?

Certamente. Respeito muito o corpo, os sinais. Imagine a loucura que seria abrir uma casa nocturna agora, aos 67 anos... A coisa que mais gosto de fazer é escrever. Mais do que ouvir música. Me divirto mais quando saio dos meus problemas lendo um livro. Ou quando vejo novela.

 

Oh, isso é uma boutade.

Não é, não. Reconheço a novela brasileira que deu certo como comparável ao grande cinema de entretenimento. Como Gabriela, Roque Santeiro, Vale Tudo. Produzi trilhas sonoras de novelas. No começo foi difícil convencer os compositores. Ninguém queria. Mas aí era um turning point de novelas, quando o Daniel Filho assumiu [a direcção de Dancing Days].

 

Hoje, qualquer músico brasileiro concede que as suas músicas apareçam nas novelas? Estamos a falar de Caetanos e Chicos?

Depois da primeira novela, todo o mundo começou a implorar. E de lá para cá quase não mudou. As novelas: quando escrevo um livro, escrevo o dia inteiro. Vou dar uma caminhada na praia de manhã. Tomo banho. Oito horas já estou escrevendo. Escrevo directo até quando dá, seis, sete da noite. E o que me tira de mim, é a novela. Quando é uma boa novela. Fico louco quando não gosto da novela. Minha vida fica sem eixo às nove da noite. Quando gosto, é um calmante. Acaba e estou com soninho.

 

É um programa de pantufas... Como na canção de Elis Regina, Como nossos Pais, acabamos por reproduzir o comportamento a que assistimos em casa.

Totalmente. Sou Como nossos Pais com internet. Vivo desde 92 com internet. Vivi em Nova Iorque no boom tecnológico. Aproveitei muito.

 

Foi por causa do Collor de Mello que foi para Nova Iorque?

Foi por causa daquele momento brasileiro. A pior crise política, económica, ética, artística (era o domínio do sertanejo) de que me lembrava. Não tinha mais o que fazer ali. Fui vender a música brasileira em lugares onde gostavam de música brasileira. Minha primeira ideia era ir para Madrid.   

 

Porquê Madrid?

Em 1992 estava dirigindo os espectáculos brasileiros na Expo de Sevilha. Tom Jobim, Bethânia, Marisa Monte. Eu era director artístico da Warner e não havia dinheiro para nada. Tinha quase 50 anos. Meu pai me disse: “Vai fazer o quê para Madrid? Não conhece ninguém lá. Vai para Nova Iorque, onde conhece todo o mundo”. E era muito mais barato morar em Nova Iorque do que em Madrid. A minha intenção era fazer um pequeno selo de música independente brasileira.

 

Curiosamente, foi também nos EUA que a turma da Bossa Nova se refugiou, no começo dos anos 60, quando no Brasil deixou de se consumir Bossa Nova.

Sim. A Bossa Nova quase tinha acabado no Brasil quando começou em 62, nos EUA. Muitos artistas brasileiros foram para lá. Sérgio Mendes, João Gilberto...

 

Roma e Nova Iorque foram cidades de auto-exílio. O que é que aprendeu?

As duas foram muito importantes. Em certo sentido, complementares. Em Roma me encharcava de arte, de beleza, foi uma experiência refinada. Meu maior prazer era andar pela rua o dia inteiro. Quando fui para Nova Iorque, Paulo Francis [jornalista], ídolo da minha geração, vivia lá. Me disse [imitando a voz cavernosa de Francis]: “Agora você vai perder suas últimas ilusões!”

 

Rendeu-se ao capitalismo?

Rendi-me às evidências! Francis não brigava com os factos. Nelson Rodrigues, brigava. (“Nelson, isso não aconteceu. Não é facto!” “Então, pior para os factos!”) Morando lá, você vê a lógica que tem tudo aquilo. Lógica perversa, que seja. Mas você vê. No pensamento, nos valores, no gosto americano, na ética do trabalho. Aprendi a trabalhar mesmo. Um outro sentido de profissionalismo. Perdi aquele jeitinho brasileiro. “Não dá para fazer isso assim...?” “Não dá, cara. Vamo’ logo, não perde tempo”. Passei a trabalhar ao domingo, folgar à terça.      

Aí veio o Manhattan Connection na televisão. O Paulo Francis e o Lucas Mendes me chamaram para participar. Sem notar, virei jornalista de novo. Virei comentarista internacional, cultural, que é o que faço hoje na TV Globo. O Francis era um grande comentarista. Eu faço um Francis pop!

 

Nelson Rodrigues ficou como o anjo pornográfico, o menino que espeita pelo buraco da fechadura. Que é que vai aparecer no seu caso, na primeira linha, em jeito de epitáfio?

[pequena pausa] Não penso sobre esse assunto. Não sei se por pavor ou modéstia. Agora, mais velho, especialmente quando dou entrevistas sou obrigado a olhar para tudo. Evito qualquer nostalgia. Acho que me atrapalha. Vivi tão intensamente o 68 político como vivi os anos disco. Sou católico. Sou do candomblé, também. Mas a minha base é a de um menino que foi educado por jesuítas. Sabe que você pode sair dos jesuítas, mas eles não saem de dentro de você... Dou graças a Deus, literalmente, pelas oportunidades que tive. Tem uma parte de bênção divina e uma parte de mérito meu. De esforço, de determinação. Tenho uma sincera modéstia. Talvez porque fui amigo do Nelson Rodrigues, do Glauber Rocha, do Vinicius de Moraes, eu conheço o meu lugar. Não tenho vergonha. Cada um faz o que pode. Sou meio como a música brasileira: a grande qualidade da música brasileira é a sua diversidade.

 

A versatilidade é a sua grande qualidade?

É. Tenho várias músicas de grande sucesso. O Cantador, com Dori Caymmi. Como uma Onda, com o Lulu Santos. Bem que se Quis, com Marisa Monte, que é uma música do Pino Daniele. Sei o valor dessas músicas, me orgulho delas. É uma alegria imensa ver milhares de pessoas no Carnaval cantando sua música, felizes da vida. Ou no teatro, no meio de uma plateia de mil pessoas, ver pessoas chorando e rindo com o que você escreveu.

 

Está a falar de tocar os outros.

Sempre que vou trabalhar, rezo. Para que meu trabalho possa divertir as pessoas, emocionar, esclarecer. Se conseguir isso, é tudo o que quero. Não ambiciono escrever uma obra-prima. Não posso me colocar no primeiro “time” dos letristas brasileiros em conjunto com o Chico Buarque, com Caetano Veloso. Fala sério, né? [riso] Eles também não tiveram discotecas como a minha, não dirigiram programas como o Chico & Caetano, não escreveram Armação Ilimitada, que foi um grande sucesso na televisão [1985].

 

Porque é que estivemos este tempo todo sem dizer um palavrão? No Brasil, o palavrão está vulgarizado.

Não sei. Falo muito palavrão habitualmente. Minhas filhas me pegam por causa disso. Uma das coisas que mais falo: “Caralho!, meu Deus do céu”. “Pô, o cara é um fodão.” Com naturalidade. Aqui, não. Como dizia o Nelson, o palavrão empobrece.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013