Holístico é uma palavra que vai bem com Maria João Rodrigues. Concatenação também. “Tenho uma amiga chinesa que me diz: “Nós, chineses, temos uma forma de abordar os problemas: primeiro o todo, depois os pontos nevrálgicos, depois a sequência, e depois o timing”. E à portuguesa como é que é? “Os portugueses têm imensas qualidades que os outros não têm, mas não são estas”. Não é uma portuguesa convencional, e a sua maneira de abordar os problemas não é a esperada num português.
É a única portuguesa com a função de conselheira especial da Comissão Europeia. Alguns pontos a sublinhar de um currículo de muitas páginas: “Além da presidência da União Europeia, em 2000, voltei a fazer outra em 2005, com o governo do Luxemburgo, a convite do primeiro-ministro Juncker, e depois voltei a fazer outra presidência em 2007, a convite do primeiro-ministro Sócrates.”
Há 15 anos que trabalha com a Europa como pano de fundo. O que é que representa um Conselho Europeu ou uma Presidência da União Europeia? “O primeiro envolve qualquer coisa como 40 reuniões preparatórias e com todos os Estados membros em Bruxelas. Poderia contar as histórias dos 50 Conselhos europeus em que estive envolvida nos últimos 12 anos… Quando a Constituição Europeia foi chumbada, quando o Pacto de Estabilidade foi reformado, quando o orçamento comunitário foi acordado, após várias batalhas campais. Conduzir uma Presidência da UE, envolvendo 2000 reuniões e lidando com centenas de assuntos, é como construir uma torre de Babel capaz de se mover a 300 km/hora. Só para ilustrar: na última que fiz em 2007, num só dia tinha que lidar com temas tão díspares como a negociação do Tratado de Lisboa, a Cimeira com a China, a negociação sobre as alterações climáticas e a iniciativa “New skills for new jobs”. Porque é que Maria João Rodrigues é mais reputada “lá fora” que “cá dentro”?
Antes disso foram os 15 anos em que se preparou – sem se preparar especificamente para isso – para ser ministra do Trabalho de Guterres. E antes disso foram os anos de formação, de viagens com o pai, de militância política na universidade.
A entrevista aconteceu em Lisboa, onde continua a vir regularmente. Bebeu chá Earl Grey. Tem um tom de voz assertivo. Veste como uma executiva de Bruxelas. Cumprimenta com um aperto de mão. E por fim, despede-se à portuguesa.
Quem é que lhe deu os conselhos mais sábios, os mais determinantes para a sua vida? Estou a fazer um cruzamento com aquilo que tem sido a sua actividade mais consistente nos últimos anos – ser conselheira.
Pessoas com quem convivi. Pessoas com quem não pude conviver, mas com quem tentei aprender lendo biografias. Ocorre-me o meu director de tese de doutoramento, que era uma boa definição do que é um humanista, embora fosse um economista.
Explique-me a diferença.
Fazia questão de ter um contacto com os alunos na base das pessoas que eles eram, e não apenas dos alunos que eram. E nesse contacto transmitia o que era como pessoa, com um background cultural muito vasto, que ia desde a Filosofia, à História, à Religião.
O que é que a levou a Paris?
Foi um Erasmus avant la lettre. Paris tinha sobre outras cidades a vantagem de podermos aceder a todas as fontes de conhecimento. Não havia o requisito de se estar inscrito num curso para se poder ouvir o mestre. O que fiz em Paris, durante três anos, onde estive supostamente para redigir uma tese, (não foi nada…), foi aproveitar ao máximo. No início de cada ano percorria várias universidades, compunha o meu próprio menu, daqueles que queria ouvir. Depois, com o metro de Paris, conseguia estar às seis no Collége de France, às oito em Paris Dauphine, numa aula de informática na Escola de Altos Estudos.
Este director de tese concretizava aquilo que tentei perseguir desde o ensino secundário: uma espécie de síntese entre a criatividade científica, a criatividade artística e a acção política, cívica.
É interessante que desde o liceu perseguisse isso.
Essa síntese ficou-me muito marcada, como uma coisa que era difícil de conseguir mas que era possível. Quando acabei o ensino secundário, fiz testes psicológicos, davam coisas muito díspares. Acabei por ir para as Belas Artes.
Quantos anos fez de Belas Artes?
Dois anos, enquanto esperava que se clarificasse a minha opção. Depois fui para Sociologia, que na altura ainda não o era – não era permitida em Portugal. Foi antes de 1974. Quando terminei, queria algo mais profissional mas também mais voltado para a intervenção política. Escolhi Economia.
Essa pulsão política veio de onde? Se calhar estou a perguntar por mais um, ou uma, conselheira, neste sentido amplo que estamos a usar.
Vem muito de trás, vem do meu pai, que foi activista político antes do 25 de Abril. Esteve preso com o Mário Soares, duas vezes.
Comunista?
Estava entre o Partido Comunista e o Partido Socialista. Teve problemas durante a tropa, foi perseguido em várias circunstâncias. Quando começou a ser afastado de uma grande empresa pública, por razões políticas, conseguiu criar uma empresa de consultoria em engenharia. O meu pai marcou-me imenso, tanto por essa consciência cívica, como por ser alguém aberto ao mundo. Ia com ele e com o meu irmão mais velho para missões que fazia enquanto engenheiro. Para o Brasil, para África.
Isso tudo antes do 25 de Abril. Uma abertura ao mundo inesperada para miúdos portugueses de então.
Levava-nos com ele, e como estava muito ocupado com a sua actividade, metia-nos em programas. Ainda me lembro, no Rio de Janeiro fazíamos cursos de inglês e de ginástica. E depois passeávamos com ele. Não era o arquétipo do activista político, que só pensa na política; tinha muito outros interesses.
Fazendo o paralelo entre o meu pai e este director de tese, Henri Bartoli, o que tinham em comum é que eram grandes profissionais das suas áreas, com uma preocupação de intervenção política e um grande fundo humanista.
O seu pai educou-a para ser o que é hoje? Ministra, socialmente interventora, leitora da realidade. O que faz, enquanto conselheira, não é senão isso: traduzir de uma certa maneira a sua leitura do mundo, e promover diálogos, consensos. Não é tão diferente daquilo que disse sobre o seu pai e o seu orientador
Há toda uma série de marcas que trago deles. A civilização europeia é riquíssima, tenho orgulho dessa civilização, mas temos de estar abertos a outras, igualmente ricas.
Muito tempo depois, estava a coordenar a preparação do programa-quadro da União Europeia para as Ciências Sociais e Humanas, lidava com investigadores de toda a Europa, e dissemos: “Temos de acabar com esta fortaleza Europa, temos de ir para fora, ouvir outros”. Exigimos da Comissão Europeia que nos desse meios para fazermos missões de contacto científico com todos os outros continentes. Apesar das nossas diferenças, temos uma base comum extraordinária, que é possível descobrir.
O seu trabalho consiste nessa leitura dos outros e do que pode resultar dessa intermediação. É interessante perceber como é que aprendeu a fazer essas pontes. Gostava de insistir no facto de ter estudado pintura antes de Sociologia. Não se permitiu a pintura e as artes porque isso não lhe servia de ferramenta para intervir no mundo?
Ainda hoje tenho uma enorme vontade de voltar a pintar. Nunca mais pintei por falta de tempo. Ainda hoje, tudo o que faço, decorre de uma abordagem arquitectónica.
Como assim?
A síntese entre a arte, a ciência e a política esteve sempre mobilizada pelo objectivo de construiu abordagens abrangentes.Antes de me pôr a pensar em qualquer coisa, seja do ramo científico, seja do ramo político, penso primeiro em qual é o método que me permite ir mais longe. Quando estou nos aviões, tenho um bloco pequenino, e começo por escrever qual é o algoritmo que vou usar para pensar num determinado problema. A coreografia interessa. Antes de me pôr a pensar escolho onde me quero sentar e para onde quero estar a olhar.
Qual é o seu foco.
Qual é o contexto físico em que vou estar antes de pensar.
Vou fazer uma pergunta-cliché, que a deve irritar um pouco: acha que isso acontece, também, por ser mulher? Conhece muitos colegas homens que tenham essa sensibilidade?
Ainda hoje não se sabe a resposta a essa questão. Prefiro partir do princípio que há vários tipos de inteligência, e que neste tipo que estou a descrever a componente racional está muito imbricada com a estética e com a intervenção. Admito que se calhar há mais mulheres mais sensíveis à componente estética, mas não excluo que haja homens que também tenham essa forma de pensar.
Vamos até 1974, tinha 19 anos. Uma altura em que se acredita que o mundo está nas nossas mãos, e com uma revolução a acontecer. Que vida era a sua no 25 de Abril?
Estava aqui em Lisboa, doida para ir para a rua, e o meu pai a dizer: “Não vais, isto pode dar grande violência”. O meu pai não queria que eu fosse, mas ele próprio estava morto por ir. [riso]
Era muito protector?
Era. A certa altura não resistimos e cada um foi para o seu mergulho na multidão. Fui para a Avenida da Liberdade. “Não te metas na zona de tiro, não vás para o Largo do Carmo”. Mas andei nas manifestações aqueles dias todos. É óptima a sensação de que de repente tudo é possível. Com uma grande dose de irrealismo. As coisas mais estapafúrdias aconteceram.
Como por exemplo.
No ISCTE, os alunos transformaram-se em professores. Tínhamos os professores à nossa frente, sentados no anfiteatro, muito bem comportados, enquanto nós fazíamos variações em torno do que era a dialéctica. Demografia foi transformada numa cadeira sobre a revolução cultural chinesa. O seminário obrigatório para toda a gente, qualquer que fosse o curso, era o controlo operário nas fábricas.
Quem é que eram os seus companheiros?
Era um grupo chamado MES, Movimento de Esquerda Socialista. Aderi logo a seguir a 1974, para ter alguma actuação. No ISCTE só havia MES e PCP, o MRPP apareceu mais tarde.
Fez a deriva para o MRPP?
Fiz, como muita gente, por uma razão muito simples: o MRPP falava não só em alterar a escola, mas também em alterar o país. O MES tinha um discurso muito infantilizante dos estudantes. O que propunha era alterar os métodos pedagógicos e os conteúdos de ensino. Isso para nós já não dava. Não sabíamos nada do que era mudar um país, sabíamos lá o que era um Governo…
Mas queriam participar dessa mudança.
Queríamos. O PS não tinha presença nas universidades. Entretanto tinha lido a literatura disponível, crítica, soviética, e já não conseguia aderir ao modelo soviético. O meu pai não tinha a mesma crítica soviética que eu e os meus amigos tínhamos.
Essa distância em relação à posição política do seu pai é de 1974 ou anterior à revolução?
É daí, de 1974.
Vai do MES para o MRPP.
Nunca fui do MRPP. O MRPP era um partido para adultos e para uma acção muito dura. Mas tinha aquele atractivo sobre a juventude: era o único que vinha com a agenda que nos abria a porta do país, não era só das escolas.
Sempre esteve na fila da frente? Sempre olhou para si como parte actuante, que decidia, que participava na liderança, ou alguém que fica nos bastidores e vai no rebanho?
Estava na fila da frente. No liceu ainda meti uns comunicados. Pequenos riscos. Clandestinos. Metia onde podia, debaixo das carteiras. Ainda havia PIDE.
Quem é que lhe passava esses comunicados?
Era um contacto meu que vinha do Técnico. Um colega mais velho.
Já passaram estes anos todos e não diz quem é o colega. Continua a ser “um contacto meu”.
Francamente já não me lembro do nome dele.
Só por curiosidade, se se lembrasse do nome, dizia?
Se calhar não. Compete-lhe a ele querer falar desse passado. Eu não tenho nenhum problema de falar deste passado. Foram feitos enormes disparates. Quando olho para trás rio de mim própria e de nós todos. Mas ao mesmo tempo não me arrependo nada. Fica uma coisa que é ousadia – para outros pode parecer uma ponta de loucura. A coisa mais importante é agarrar o momento – carpe diem. Captar tudo o que é possível acontecer. Porque é que é tão importante que as pessoas se lembrem do que sonharam durante a noite? O que o sonho permite é identificar o campo dos possíveis.
Quase sempre nos sonhos tudo parece excessivo, irrealizável.
Exactamente. Mas se reflectirmos no sonho, se soubermos interpretar esses sinais, vamos descobrir possíveis que não nos tinham ocorrido numa abordagem racional da realidade. Um dos meus amigos na fase de Paris era um psicanalista, (outra vantagem: conhecíamos gente de todas as disciplinas) e ele dizia-me isso: “Procura sempre lembrar-te dos teus sonhos”.
Um MRPP acharia a psicanálise um insuportável vício burguês.
[riso] Embora tenha passado por lá, nunca deixei de pensar pela minha própria cabeça, e tentei cultivar as várias dimensões. Hoje acho que havia ali coisas insuportáveis, era uma experiência a roçar o totalitarismo.
Quando é que cortou com esse grupo?
Quando acabei a licenciatura. Foi uma experiência de uns três anos. A licenciatura: não havia notas, havia umas menções qualitativas. Tínhamos muito pouco tempo para aprender.
Passava o dia a conspirar.
Não era bem conspiração, era mesmo acção. Eram manifestações todos os dias. A minha tese era em Sociologia Agrária; fui fazer o balanço da experiência das cooperativas agrícolas, com filme. Também fazia um bocado de cinema amador. Ainda faço, é a única coisa que faço quando tenho tempo.
A inspiração eram os cineastas russos?
Víamos o Eisenstein, sim.
Foi convidada para assistente quando acabou o curso. Era boa aluna?
Era. Acho que não aprendi nada de especial. Não me estou a ver, com tudo o que estava a acontecer no país, metida num quarto. Embora tenha tido a fortuna de ter sido convidada para assistente, pensei: “Isto agora é a sério, vou começar com funções docentes, vou fazer um doutoramento no exterior”.
Fez o doutoramento em Economia.
Antes do doutoramento optei por fazer três mestrados de Economia. Tudo em Paris. Quando cheguei, em 1980, estava sequiosa de aprender. Ainda me lembro do sociólogo mais marcante da altura, o Sedas Nunes, criador do Instituto de Ciências Sociais, presidente do Conselho Científico. Pensei: “Não me vai dar esta oportunidade de ter esta bolsa”. Antes disso até pensei que não me iam dar a oportunidade de ser assistente, porque tinha sido activista política. Mas os membros do Conselho Científico tiveram o sentido deontológico de distinguir o que era uma pessoa com algum potencial académico de uma pessoa que podia ter tido posições com as quais não concordavam.
Enquanto pessoa como é que se fez, como é que se sedimentou? Uma coisa é o percurso académico e político, outra coisa é a pessoa.
Tenho de ir mais atrás. Voltando ao meu pai, tenho dois irmãos e uma irmã, sou a mais velha. Os nossos pais sempre nos educaram, acima de tudo, como pessoas. Não nos deram aquela educação que distingue de forma precisa os meninos e as meninas. A menina vai brincar com bonecas – como brinquei –, mas se a menina quiser jogar à bola, também pode. A menina também tem que exercitar-se fisicamente – fiz muitos desportos. A menina tem que ir tão longe como o menino. Foi neste ambiente que fui criada. No verão juntavam-se os primos, e era eu que contava as histórias para os outros ouvirem até adormecerem. Ou ensaiava peças de teatro. No liceu havia as comissões de finalistas – era a presidente. Ensaiámos peças do Ionesco.
Representava, também, ou era da organização?
Era a realizadora. Se não fosse isto que tenho andado a fazer, aquilo que me dava mais gozo fazer era ser realizadora de cinema.
É pensar um edifício de raiz e fazer a síntese entre as várias linguagens. Qual é que é a narrativa do seu filme?
Se me vir agora em retrospectiva, aquilo que estou a procurar fazer é trabalhar para outra ordem mundial. Na convicção profunda de que, mesmo que estejamos num mundo ultra-diversificado, há uma base comum imensa. Se for mobilizada, é possível dotarmos este planeta de uma ordem mais equilibrada. A minha aposta na Europa (agora estou bastante desiludida) foi porque estava convencida de que a Europa era o actor chave para, trabalhando com os outros, puxar o mundo numa boa direcção. Hoje a Europa está abaixo desse potencial que lhe dava há uns anos atrás.
Porquê?
Temos um mundo mais multi-polar. A Europa está a perder influência, prestígio, embora ainda a considere a melhor síntese de um desenvolvimento equilibrado. O meu trabalho tem sido criar um diálogo entre as agendas de desenvolvimento dos vários pólos, transmitir aos outros o que é a agenda de desenvolvimento da Europa.
Os principais pólos são, os BRIC por um lado, Europa por outro, Estados unidos, Japão?
Sim. Sabemos que vem aí outra vaga de potências emergentes. Apesar das diferenças, há uma convergência entre eles. Se há uma convergência, é possível ter uma base de trabalho comum. Para responder às alterações climáticas, para reduzir a pobreza, para promover o papel da educação.
Quando é que acha que o declínio da influência da Europa começou?
Foi com a crise da Zona Euro. Não foi tanto com a crise financeira, que bateu em todos por inteiro. Mas quando se percebeu que a Europa, que à partida parecia mais protegida, porque tem um modelo social, apesar de tudo mais organizado, porque tinha orçamentos equilibrados, de repente se destaca doconjunto por ter uma crise muito própria, que só ela é que tem.
O que é que desencadeou este seu interesse?
Sempre tentei avançar com duas pernas, a europeia e a internacional. Houve uma fase em que estive muito concentrada no caso português, anos 90. Quando regressei de Paris fiz aquilo que todo o académico doutorado gosta de fazer. Lançar o seu mestrado, criar um centro de investigação, ter actividade de gestão para transformar a sua escola. Criei um centro que ainda hoje existe, de estudos interdisciplinares. Criei um mestrado na minha especialidade (problemas de emprego e recursos humanos), e estive na direcção do ISCTE durante muito tempo.
Mas abdicou da carreira académica.
A tese que fiz era ousada, teoricamente. Propunha uma arquitectura diferente para a ciência económica, era heterodoxa. Isso foi apoiado, tanto na universidade em Paris, como aqui (recebi o Prémio Ciência, da Gulbenkian). Mas se quisesse que aquela heterodoxia fosse aceite por mais economistas tinha que singrar na carreira de investigação mais pura, ir para o circuito normal dos congressos internacionais, criar a minha rede de colegas. Ao mesmo tempo convidaram-me – e isto não é uma anedota – para ir à Marinha Grande falar com as empresas locais sobre como é que se aumentava a produtividade e se melhorava a inovação naquela área. E escolhi a segunda. Era suposto ir a uma grande conferência internacional apresentar o meu quadro teórico, e em vez disso, porque era no mesmo dia, escolhi a Marinha Grande.
Isso é brincar com os dados? Jogar com inesperado?
Não é mais do que uma consciência da síntese que referi há pouco. Quando a pessoa quer fazer uma síntese entre inovação científica, a intervenção política, e a dimensão artística, há escolhas terríveis de fazer.
Ficou disponível para a política, como não ficaria se tivesse persistido na carreira académica mais afunilada.
Fiz uma escolha pelo lado da intervenção. Essa década, a dos 90, foi a da minha entrada na política, a sério. Fui convidada pelo António Guterres para os Estados Gerais.
Tudo isso antes dos 40 anos. Foi convidada para ministra aos 39. Foi uma surpresa que a tivesse convidado?
Na altura em que convidou, já não. Nos Estados Gerais havia reuniões preparatórias por temas, e naquele tema era-me dado um lugar proeminente, pediam-me para fazer as intervenções de fundo. Comecei a perceber que ia ser chamada para alguma coisa.
A quantidade de sociólogos do ISCTE que nos últimos anos foram ministros… Maria de Lurdes Rodrigues, Ferro Rodrigues, Paulo Pedroso, Vieira da Silva. Qual era o seu grupo?
Não pertencia a um grupo. Talvez tenha sido referida ao Guterres por alguém que já não é vivo, o Afonso de Barros, presidente do conselho científico do ISCTE. O ISCTE é uma grande base de recrutamento para governos PS, e não só.
Gostou de ser ministra?
Gostei. Mas não foi uma experiência fácil. Foi uma oportunidade de pôr em prática ideias que tinha acumulado. A minha tese de doutoramento chamava-se “O sistema de emprego em Portugal”. Foi lançar uma nova geração de políticas activas de emprego, trabalhar na experiência da concertação social para se chegar a um acordo que preparasse Portugal para a entrada no Euro. Atirei-me para um acordo abrangente, que cobria muitas áreas e exigia a coordenação com vários ministérios. Uma conclusão muito clara a que cheguei: uma pessoa pode chamar-se ministra do Emprego, mas o ministro do Emprego, sozinho, não pode resolver a questão do emprego. Ou tem a colaboração de outros ministérios-chave, ou não resolve.
Quais são os ministérios-chave?
Economia, Finanças, Educação, Desenvolvimento Regional e Planeamento. Pelo menos estes. E a colaboração estreita com o primeiro-ministro. Há sempre um presente envenenado em cada pasta ministerial.
Qual foi o seu?
Foi pôr o Fundo Social Europeu na ordem. Foi a tarefa mais difícil. Havia casos muito complicados na altura, de má utilização, ou mesmo de corrupção, e o sistema de justiça não funcionava. Foi-me comunicado por Bruxelas que, ou alterava todo o quadro de gestão do Fundo Social Europeu, ou Bruxelas suspendia o financiamento de Portugal pelo Fundo Social Europeu. Isso seria uma catástrofe. A quase totalidade do sistema formativo dependia desse financiamento, e uma grande parte do sistema educativo também. Tive de me atirar de cabeça a essa tarefa, com uma equipa de colaboradores. Revemos de fio a pavio toda a legislação do Fundo Social Europeu, e debaixo do bombardeio dos lobbies. Bombardeio sem quartel.
Tudo teria sido diferente, até no Portugal que temos hoje, se nesses anos se tivesse feito a reforma da Justiça?
Com certeza. Parte das dificuldades que tive teriam sido reduzidas.
Significa que estava a responder a Bruxelas, por um lado, e a fazer política num país chamado Portugal, cujo funcionamento não coincidia com aquilo que exigiam lá fora.
Pois. O Fundo Social Europeu teve boas utilizações e transformou muita coisa em Portugal, mas tinha problemas. Havia casos de corrupção, casos de ineficácia, de falta de profissionalismo na gestão. Mas não era tudo corrupto.
Havia falta de fiscalização – daí o problema da Justiça.
Exactamente. Tentei corrigir esses dois casos porque não podia estar à espera que o sistema de justiça funcionasse.
Porque é que acha que Guterres a penalizou, fazendo a remodelação e escolhendo outra pessoa, ao cabo de dois anos?
Porque esta reforma que estou a descrever não foi fácil. Tive bastantes centros de influência em Portugal contra mim.
Reconciliou-se com ele?
No mesmo dia em que me transmitiu que ia haver uma remodelação, disse-me: “Gosto muito da sua colaboração, vou propor-lhe de imediato outra coisa, vou pedir que pondere se aceita esta transição de funções”. No próprio dia.
Não foi uma decisão nada fácil de tomar. Achava que Portugal precisava de mobilizar o máximo da competência que pudesse na área de recurso humanos. Achava que tinha competência por aproveitar nessa área. Estava a dar provas em várias áreas da minha pasta ministerial, tinha muito trabalho em curso. Foi problemático sair. Tinha receio, não tanto por mim, de que todo um trabalho, que envolvia centenas de pessoas na mesma direcção, e que a meu ver iam na boa direcção, pudesse ser interrompido. Tinha-me preparado para aquilo 15 anos, sabia o que estava a fazer.
Qual foi a outra coisa que Guterres lhe propôs? Estava também dentro das suas competências? Sentiu que era um convite por cortesia?
Aceitei a outra proposta. Ser conselheira dele, no gabinete de primeiro-ministro, para tudo o que fosse a presidência da União Europeia. Estávamos a aproximar-nos de uma presidência, que seria a primeira a ser feita por um governo de Guterres.
E nesse caso não sentiu isso como uma despromoção? O que, em termos públicos, é um aspecto sensível.
Para muita gente foi visto como uma despromoção. Quando a pessoa se acha objecto de uma decisão com a qual não concorda, não é fácil. Sobretudo por sentir que aquilo que era mesmo importante para Portugal estava a ser interrompido, por razões marginais, que não tinham a ver com a natureza do trabalho que estava a fazer. Aí a pessoa tem que ir ao fundo de si própria. “Esquece o teu amor-próprio. O que é que podes fazer de melhor a seguir?”. Há pessoas que ficam toda a vida a amargar. Não sou nada assim. Se acontece uma coisa com a qual não concordo, o que faço é: pedra em cima. Foi o que fiz.
Pensei que tivesse ficado zangada com ele.
A vida é só uma. Mesmo que a pessoa se ache vítima de uma injustiça, temos de ser superiores a isso. Aquilo que interessa, tudo somado, é a minha relação com o mundo. Não vou ficar presa a um incidente. Passei logo para a frente europeia. Na realidade, antes de iniciarmos a presidência, tivemos um outro grande desafio: a negociação do novo Orçamento Comunitário e dos Fundos Estruturais para Portugal. Fiquei a coordenar essa negociação no gabinete do primeiro-ministro. Isso tomou-me um ano e meio. Comecei, não só a seguir esse tema, mas a seguir a agenda europeia no seu conjunto.
São outros 15 anos para chegar ao sítio onde está agora.
Foi uma viragem. Avançámos com toda a maquinaria de preparação da presidência da União Europeia (que é uma grande maquinaria, é suposto presidir a duas mil reuniões em seis meses). A Europa tinha as condições para lançar a moeda única, e o que se perguntava nos meios europeus era: “E agora, o que é que vamos fazer, qual é a fase que se segue?”.
Há uma história importante na relação com a Alemanha. Estávamos a preparar o que Portugal devia pedir em termos de fundos estruturais, e fomos a Berlim. O Chanceler Shroeder estava vermelho de raiva porque tinha tido uma reunião duríssima com o Aznar, que é um negociador duro, e que tinha dito: “A Espanha quer isto, não aceita abaixo disto”. O Shroeder pensou que íamos lá com a mesma postura. O chefe da delegação era o Guterres: “Não vimos aqui pedir mais dinheiro. Vimos aqui com uma proposta geral de como é que deve ser o Orçamento Comunitário, para os europeus, para o problema de Portugal, da Alemanha, da Itália”.
Essa proposta era sua?
Sempre ideias de quadro abrangente. O Guterres é um negociador muito hábil na cena internacional, o Shroeder ficou seduzido. O Shroeder, como outros líderes, sondou-o para ser o novo presidente da Comissão Europeia.
Muito antes de Durão Barroso.
Antes de 2000, antes da nossa presidência. No gabinete do primeiro-ministro recebi muitos telefonemas de líderes e das suas equipas a insistirem que Guterres devia ser o novo presidente da Comissão Europeia. Foi com pena que vi que não aceitou. Entretanto foi posto sob grande pressão aqui em Portugal para voltar a candidatar-se. O presidente que acabou por ser escolhido foi o Prodi. Há oportunidades na história que vemos a dez centímetros da nossa mão, e que nos escapam. Já na altura Portugal teve uma oportunidade real de presidir à Comissão.
Que sina é a nossa, de estarmos a dez centímetros de conseguir, e depois ficar aquém?
Foi opção do Guterres. A verdade é que passado um ano não estávamos a dirigir a Comissão Europeia, mas estávamos na presidência da União Europeia. Eu e outras pessoas tínhamos a ideia de propor aos europeus, na mudança do século, com toda a carga simbólica, uma estratégia de desenvolvimento para a Europa, de longo prazo. Resolvi procurar o Jacques Delors, minha inspiração central, para o ouvir sobre isto. “Vá em frente, você está num lugar muito mais importante do que ser ministra”. Ele tinha razão. Aqui em Portugal não é percepcionado, mas uma pessoa que esteja numa presidência da União Europeia tem uma base de influência imensa.
Essa é a palavra-chave para falar de si – influência? Nos últimos anos, sobretudo. Existe uma diferença entre ter poder e ter influência.
Para lhe responder, vou contar-lhe uma história. Quando era ministra só podia contactar as pessoas do meu nível, de acordo com as regras institucionais; ou contactava ministros de outros estados membros ou o comissário europeu. Se fizer uma coisa diferente, sou mal entendida, criticada, hostilizada. Quando fui colocada nessa função, tentei inventar um novo tipo de actor político: um actor que consegue contactar a todos os níveis. Comecei a contactar primeiros-ministros, Presidente da Comissão Europeia, comissários de todas as áreas, directores-gerais, o funcionário de base, da Comissão ou do ministério, um embaixador. O meu raio de acção multiplicou-se por mil.
E aí tem, não só influência, mas poder.
Isto dá uma capacidade de alterar a realidade muito superior. Desde que descobri que era possível, ainda hoje é assim que actuo. Procuro sempre posicionar-me como europeia. Quando há conflitos tento transmitir os pontos de vista de Portugal, mas também tento compreender os pontos de vista da Alemanha ou da França. A Europa precisa desses actores capazes de compreender os diferentes pontos de vista, senão vai-se fragmentar.
O seu percurso profissional só é possível porque não assumiu um percurso convencional? Por não ter filhos, por não ter uma casa que é preciso manter a funcionar, com o elemento masculino a ter a dianteira.
Era praticamente impossível, a não ser que fosse daquelas pessoas privilegiadas que só precisam de dormir quatro horas por dia (preciso de sete). Não é tanto ter uma relação com um parceiro, isso tenho. Ter filhos: educá-los, como tem que ser, não estou a ver como é que isso seria possível. Tenho 100 viagens por ano.
E aí tanto faz ser homem como mulher? O que foi determinante foi a escolha do tipo de vida, ou tem influência o género?
Volto a dizer, fui educada como pessoa, e é sempre assim que procuro ver-me. Nós, mulheres, temos a sorte de estar a viver numa fase em que, se bem que ainda haja estigmas de desigualdade, sobretudo em certos grupos sociais, também há mulheres plenamente emancipadas. Não me sinto um caso muito diferente.
Aponte um filme, ou realizador, de que goste especialmente, para poder lê-la a partir desse filme.
Há um filme, até significativo desta conversa que tivemos, de um realizador polaco, o Kieslowski. É uma trilogia. Gosto do Blue.
Com Juliette Binoche, que interpreta a viúva de um pianista. É muito melancólico.
Fiquei com a ideia de que quem escrevia a sinfonia era ela.
Quem está na sombra?
Há cenas finais do filme em que ela vai para um piano, e fiquei com essa dúvida.
Que parte dela existiria na genialidade dele – é a pergunta subjacente.
Não se sabe. É uma ambiguidade pretendida pelo realizador. Mas a sinfonia tinha a ver com a Europa.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011