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Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Batarda

09.03.14

Numa exposição retrospectiva, um artista encontra-se com o seu discurso. A exposição de Eduardo Batarda no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, que acontece na sequência da atribuição do Grande Prémio EDP 2007, permite sistematizar o discurso, reconhecer os seus Great, Great Moments (título da exposição), seguir o curso do artista, as derivas. Batarda, na entrevista, foi igual a si próprio: frases longas e bem estruturadas, culto, provocador, arisco. Falámos na sala. As estantes revestidas de livros (em destaque, os italianos da Renascença, que estuda e venera). Depois mostrou o espaço onde pinta. Um quarto de onde tudo sai.

 

Esta não é a primeira vez que se olha para o conjunto do seu trabalho. Mas quando uma mostra tem este arco cronológico, permite identificar os Great, Great Moments da sua carreira.

Se me revejo naquilo? Diria, então, great and not so great moments. Acredito que algum do meu trabalho recente é capaz. Fiquei satisfeito com ele, seguro daquilo. Há um núcleo de aguarelas dos anos 70 que corresponde a great moments. Great moments ao meu nível, é evidente. Se as coisas do entretanto, dos anos 80, estão menos representadas, pela dificuldade de encontrar peças, ou porque os curators [João Pinharanda e João Fernandes] não gostaram muito daquilo, ou porque já se sabe que essa fase foi criticamente mal aceite, não me posso queixar. As coisas já foram mostradas.

 

O que é que o faz olhar para um trabalho e considerar que ele é “capaz”? Estou a perguntar pela sua satisfação com aquilo que faz.

A satisfação não é imensa. Refaço coisas. O bocadinho ali, uma vez mudado, faz mudar o bocadão além, e assim sucessivamente. Cada camada cria novas imagens, ou novas formas, tapando uma quantidade de coisas que estão em baixo.

 

Essa técnica, ou abordagem, seria impraticável com o óleo. O acrílico permite que se pinte eternamente, por cima de coisas já pintadas.

Os acrílicos dos anos 80 tinham uma maneira de ser feitos que muitas pessoas não entenderam. O processo de fazer, para mim, era tudo. Pintava quadros coloridos, mais ou menos expressionistas, mais ou menos figurativos, mais ou menos abstractos, emaranhados. Quando estava satisfeito, tapava tudo de branco com gel. (Não, não é gel para o cabelo. É gel acrílico, cremoso, esbranquiçado.) Tapava com uns nevoeiros pastosos, deixava secar, e só depois reconstituía. Não era uma maneira directa de actuar sobre a tela.

 

Porque é que pintava por cima?, como se rasurasse o que estava para trás.

E o reconstituísse parcialmente… De certo modo, para levar as pessoas a reconstituir esse processo. E ninguém reconstituía. Era a inversão total do que fazia com as aguarelas.

 

Como era nas aguarelas, que fez em toda a década de 70?

Eu usava papéis muitíssimo bons. Estava em Inglaterra, havia-os lá, e trouxe uma grande reserva deles. Aguentavam todas as vezes que eu apagava. Portanto, era no desenho que podia ter as ideias, os arrependimentos, as mudanças de feitio. Isto não está bem, apaga-se, volta-se a fazer. Quando estava pronto, passava a tinta e coloria a aguarela. O processo imaginativo era dirigido ao tal bem-feitinho (que me foi atirado à cara várias vezes) e acontecia no desenho. 

 

Há uma grande amostra de aguarelas na exposição. Fale-me da importância que elas tiveram para si, no período seminal que passou em Londres.

Tiveram uma grande importância. Durante muito tempo, mesmo os meus tutores, grande parte dos professores, e sobretudo os meus colegas, aceitaram-nas mal. O que estava a fazer era pintura escandalosamente pintura. E dentro da pintura, usava uma técnica que era considerada antiquada, fora de moda, própria (na melhor das hipóteses) dos hobbyistas. Usava uma técnica de desenho e uma maneira de aplicar as cores que eram próximas daquilo que se usava em banda desenhada e ilustração. Houve professores que teimaram: “Este homem tem de mudar de departamento”. O outro ponto de vista era o reaccionarismo. Eram os anos gloriosos da arte conceptual, da arte baseada na fotografia, na instalação, nas performances, etc. E eu estava a fazer “aquilo”.

 

Porque é que estava a fazer “aquilo” quando tudo à volta ia num sentido diferente? Era a sua natureza provocadora?

Era uma provocação e eu sabia que era uma provocação. Era uma coisa entre mim e o mundo da arte, e quem quisesse perceber, percebia. Não era um choque. Era uma graça. Por muito que aquilo mais tarde tenha sido revisto. Acontece muito aos músicos, aos artistas: as pessoas que não gostavam do que fazíamos nos anos 70, dizem-nos nos anos 90 que gostavam era do que fazíamos nos anos 70. A revisão que essas aguarelas tiveram foi uma coisa nessa base.

 

Continuou a provocar nos anos 80.

Tenho a ideia que nunca ninguém percebeu as coisas que andei a fazer nos anos 80. Também consideradas antiquadas e reaccionárias.

 

Era-lhe mais fácil apanhar com o rótulo de fazer coisas reaccionárias porque tinha as costas quentes de quem é erudito? Uma pessoa com a sua cultura permite-se fazer o que quer.

Eu, um erudito? Não. Sem ofensa para ninguém: no mundo das artes, e por aí em geral, é que há muita gente que é muito ignorante. Muitas vezes, com razão ou sem ela, fui julgado por pessoas que não tinham a capacidade de ter razão. Mas muita gente é vítima desse tipo de coisas. Juízos apressadíssimos. A isso é difícil fugir. Nem eu era um conhecedor de arte.

 

A informação é fundamental para o que se faz?

O que as pessoas sabem ou deixam de saber é quase sempre irrelevante. Pode dizer-se, sobre as aguarelas, que muitas daquelas coisas lidam com informação, com literatura, com bonecada, com olhares de viés. São cotoveladas que eu dou às pessoas – que esperto e sabedor que eu sou, e tal. O que era uma manifestação de saloiice.

 

Saber tudo sobre os renascentistas, ter lido o Boris Vian quando ele não estava na moda, consumir revistas estrangeiras que dificilmente chegavam a Portugal, não transparecia naquilo que fazia?

Pelos vistos, aparecia. Muita da minha pintura, era literária. Mesmo hoje, na minha pintura, que é abstracta, há escritos. O que quis dizer é que não é isso que faz da arte uma arte melhor. Desconfio que há milhares de artistas, milhares de vezes mais educados do que eu, que não são capazes.

 

O que está a dizer é que talento é diferente de educação.

Eu faço as minhas coisas. O assunto “originalidade”, “individualidade”, como se fosse um “contra tudo e contra todos”… Eu acho que sou relativamente integrado. Se querem que eu seja um artista de vanguarda, não sou. Quando era novo, até fui, ou acharam que era. Foi retrospectivamente que acharam que não tinha sido. Mas para o Portugal dos anos 60, as coisas foram muito comentadas, apreciadas, etc. Depois foram os anos da tropa, os anos de Inglaterra. Quando cheguei cá: “Olha, este ainda faz isto”. Não há ninguém, a não ser um génio, uma Louise Bourgeois, um Marcel Duchamp, que aos 68 anos esteja perto da vanguarda. Não há muitas dezenas de pessoas que tenham feito isso.

 

O que é que foi determinante na sua passagem por Londres?

Na escola aprendi relativamente poucas coisas. Na biblioteca da escola aprendi muitas. Nos seminários aprendi bastante. Com alguns professores, discuti que me fartei. Isso talvez fosse aprendizagem, mas na altura não o percebia. Aprendi bastante sobre vinho. Via obviamente mais cinema do que tinha sido possível ver em Portugal. Civilizei-me um bocado. Não aproveitei os museus tanto quanto queria. Mesmo assim, houve tardes que tirei ao College e a casa e que passava na National Gallery. Isso dava-me alguma vantagem nos seminários teóricos, porque a malta não fazia isso. Os meus colegas não frequentavam museus. Também, diga-se, apesar de aquilo ser uma pós-graduação, a escolha [dos alunos] não era grande espingarda.

 

Não diminua a escola. O Royall College of Art não era uma escola qualquer. O David Hockney tinha estudado lá.

Quando teve êxito, oCollege deu-lhe uma medalha de ouro; antes disso, tinha-o expulso. Passaram por lá pessoas estimáveis. Raros os que singraram. Um vizinho meu de zona de trabalho é um artista canadiano com certa fama no Canadá. O meu colega do outro lado era um artista galês que tem certa fama no País de Gales.

 

Como o Eduardo Batarda é um artista português e tem uma certa fama em Portugal.

Exactamente. Alguma fama. Oxalá seja assim.

 

Sente-se a envelhecer?

Com certeza. Deve aparecer no que faço... Acho que não aparece muito… As coisas são as mesmas. Mas [essa apreciação] não me compete a mim.

 

Em termos formais, as fases do seu trabalho são notoriamente diferentes. Mas em termos de conteúdo, as coisas são basicamente as mesmas? O que tem para dizer. O comentário.

Ouço muitas vezes isso. “É sempre a mesma merda”. É bem possível que seja a minha maneira de ir acompanhando.

 

Esteve cinco anos sem pintar, entre 2004 e 2009. Como foi possível?

Tenho um forte fundo de preguiça. Sou depressivo. Tive uma vida muito difícil na escola [de Belas Artes do Porto]. Fui acusado de ter tido sempre tudo de mão beijada, fui criticado pela minha origem social. A recepção ao meu trabalho de 2004 não foi aquela que eu gostaria. Afectou-me a morte do Manuel de Brito [galerista, morreu em 2005]. Tudo isto se juntou para me fornecer pretextos para não pintar.

 

Dá-lhe prazer pintar? Esta é uma pergunta do tipo: tem apetite? Mas queria saber do prazer físico e intelectual do acto de pintar.

Dá-me prazer às vezes. Quando estou na fase de quase acabar um quadro. Naquela fase em que o quadro já se explicou e eu já me expliquei com ele. Antes disso, dá um trabalhão. 

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2011