Francisco Allen Gomes (2005)
«De que falamos quando falamos de amor?», perguntava Raymond Carver. O que é o Amor, o Sexo, a Paixão? Como diferenciá-los? Como são vividos na sociedade contemporânea? Serão os mesmos que o escritor americano fazia aparecer nos seus contos? Este é um mundo em mudança, como se pode ler no livro que Francisco Allen Gomes publicou recentemente. «Paixão, Amor e Sexo» condensa um conjunto de textos que o sexólogo escreveu avulsamente para várias publicações. Fala dos amores e desamores, das transformações da sexualidade ou de género, identidade e orientação.
Denis de Rougemont, que cita no seu livro, diz que «O amor feliz não tem história». A felicidade é infecunda?
O problema não é a felicidade. O problema é o grande arrebatamento, (que envolve a paixão, a atracção). Será passível de ter uma trajectória que não seja necessariamente a extinção, mesmo sabendo que, depois, essa trajectória será mais tranquila?
O que as pessoas procuram, de um modo geral, são relações estáveis? É a felicidade conjugal, a estabilidade domingueira? Ou procuram o arrebatamento, mesmo que saibam que é efémero?
Todas as pessoas que estão apaixonadas, estão convencidas de que esse amor vai dar certo. Quando as pessoas pensam na paixão, pensam sempre no amor romântico. Num amor que chega por si só, que é eterno, ideal, etc.
Esses ideais mantêm-se, são ainda destes tempos?
As pessoas acreditam nisso. Eventualmente pessoas mais velhas, que viveram várias situações, já não acreditam tanto. É interessante ver pessoas que têm ligações fortes, mas que já passaram por divórcios e que têm uma grande resistência em ir viver com o outro…
Têm horror à conjugalidade?
Exactamente. Porque viram o que aconteceu.
A conjugalidade é mortal? Há escapatória?
A conjugalidade não é mortal. A pessoa pode chegar à conclusão de que perdeu muita coisa, mas que também ganhou muito. O problema é não se poder ter tudo e as pessoas quererem tudo.
No seu livro faz uma distinção entre Paixão (ou amor romântico), Luxúria (ou amor físico) e Amor Afeição. Aponta um denominador comum: o sexo.
Para diferenciar de todas as formas de amor que as pessoas possam ter, desde o amor religioso, até ao amor pelos filhos.
Também diz que, quando se fala das relações, poucas vezes se fala de sexo. Mas a ideia que temos é a de que se está sempre a falar de sexo!
Dá a impressão que, a partir do momento em que se fala de sexo, não há afectos. Como se fosse uma coisa meramente desportiva, energética.
Mas, quanto a si, estão intrincadas?
Penso que sim. O sexo não pode ser secundarizado. Teoricamente, uma pessoa precisa de cinco minutos para ter sexo. Ora, não é isso que quer! Quer transformar este impulso, que rapidamente tende para um ponto final que é o orgasmo, em qualquer coisa que é muito mais do que isso. E o sexo assume uma dimensão erótica, uma dimensão cognitiva.
Philip Roth, de quem cita «The Dying Animal», fala da transcendência da dimensão erótica. O escritor diz que «O grande problema biológico humano é que tu és íntimo antes de conhecer seja o que for sobre a outra pessoa. No movimento inicial compreendes tudo».
Não tenho a menor dúvida de que a atracção é um pouco isto. Quando uma pessoa diz «aquele é o homem da minha vida» ou «aquela é a mulher da minha vida» e não sabe nada sobre a outra pessoa, isto é atracção. É sexo.
É química.
É. Claro que depois embrulha muito bem estas coisas. Como se tivesse necessidade de dignificar o sexo! A dificuldade está em esmiuçar a miríade de afectos e sensações que estão num fenómeno de atracção. Neste livro [«Memórias das minhas putas tristes», García Marques], o velho tem uma cena de ciúmes brutal, quando está com a miúda adormecida e desfaz o quarto. A velha patroa do bordel, entra nessa altura e diz: «Mas por que é que nunca tive um amor destes?». O tipo, a seguir, entra num sofrimento brutal. Mas não troca aquele sofrimento por nada.
Pois, e voltamos ao princípio, à felicidade ser infecunda. Aliás, sofrimento e paixão têm uma etimologia comum (pathos). São indissociáveis. A cena do livro de García Marques pode ser considerada, nos nossos dias, incivilizada. Quem é que hoje se atreve a partir o quarto para fazer uma cena de ciúmes?
Ele diz mais: o ciúme é mais importante que a verdade. Ela [a miúda] não lhe fez aquilo, mas isso não interessa. O que interessa é o ciúme. O Roth também faz páginas e páginas sobre o ciúme. Este momento do ciúme, inicial, belo, que é tolerado pelos amantes, e às vezes até apreciado, se continua, torna-se destrutivo e provoca no outro um distanciamento, quando o outro vê um olhar que prenuncia qualquer coisa desse género, não suporta aquilo.
Todas as relações se parecem? Repetem-se os erros, as escolhas? Como se escolhêssemos sempre a mesma mulher ou mesmo homem.
Há quem diga que sim. Eu até sou muito agressivo!, digo que as fotocópias, às vezes, são piores do que os originais, vão perdendo qualidade. No fundo, é a história da pessoa que casa com o inimigo: apaixona-se por aquilo que é diferente.
O discurso corrente esbate as diferenças entre homens e mulheres. Diz-se que são ambos infiéis e que o comportamento em relação à família e à conquista se aproxima.
Eu acho que há muitas diferenças! E cada vez me convenço mais de que algumas não são culturais. As pessoas amam de uma maneira diferente, têm uma visão da sexualidade, sobretudo da economia da sexualidade, completamente diferente.
Segundo «A resposta sexual», de Masters&Johnson, que cita, os homens precisam, em média, de dois minutos de coito para conseguirem um orgasmo; as mulheres precisam de oito. Esta diferença é abissal. E não destaco outros aspectos, como a importância dos preliminares, o espaço para a ternura e sedução, etc.
A certa altura, as pessoas desistem de se entenderem sexualmente. Dá muito trabalho, muito desgaste. E depois entram elementos de rejeição... E depois partem para outra porque pode ser que as coisas sejam diferentes.
O sexo pode ser um bom aferidor do estado de uma relação?
O sexo pode ser um bom aferidor da capacidade de comunicação e intimidade numa relação.
Dá muito trabalho conseguir um entendimento sexual com o outro. Mas deve-se fazer aquilo de que se não gosta só para agradar ao outro? Espera-se retribuição? A factura desse esforço, que não é gratuito, aparece quando?
Penso que muita da atracção masculina pela prostituição tem a ver com isso. Não tem que se preocupar se ela gosta ou não gosta! Está ali uma máquina que ele alugou para lhe dar prazer, para satisfazer as suas fantasias.
Crê-se que fazem com as prostitutas o que não fazem com as mulheres...
Conversa! Fazem com as prostitutas o mesmo que fazem com as mulheres. Não têm é que ter cuidado, não têm é que ter trabalho. No outro dia estava a ler uma entrevista sobre prostituição de luxo; um homem de negócios, rico, casado, diz: «Vou a um sítio onde sei que posso encontrar mulheres disponíveis, não prostitutas, que me obrigam a sair com elas, jantar com elas, obrigam-me a ser sedutor... Acabo por gastar uma pipa de massa, chegar a casa às tantas e ainda ter a mulher a chatear-me porque cheguei tarde. Vou a um bordel de luxo, marquei a minha hora, estou com uma mulher muito bonita, muito atenciosa, à meia-noite estou em casa e nem tenho que dar desculpas». É a sexualidade masculina no seu melhor. E todos temos um bocadinho disto... Não se iluda.
Vivemos um período de transformação das relações e da vivência da sexualidade?
Sim, sim.
Acabou a ideia de que o amor é para sempre e que só se ama uma pessoa? O normal é que haja vários amores, vividos de um modo faseado, uma relação de cada vez?
Não digo que seja o normal, mas é uma das possibilidades.
Uma das possibilidades é haver vários amores. Que outras coisas marcam este quadro de mudança?
Que a manutenção do amor obriga a uma negociação permanente. Aí dou razão ao Giddens: um homem e uma mulher estão em casa a ver televisão, coisa banal; mas de cinco em cinco minutos aparece qualquer coisa que gera duas posições. Ele chama a isto a experiência do quotidiano. Tudo tem de ser permanentemente negociado. O casamento é agora, muito mais, um casamento entre iguais.
Apesar das várias assimetrias.
Apesar das assimetrias. Mas há uma coisa importante: a mulher não tem nada a ver com a mulher de há 20 ou 30 anos. A maioria esmagadora das mulheres não considera que o casamento seja uma carreira. Portanto, não está disposta a fazer determinados sacrifícios. Eu já não encontro mulheres a fingir orgasmos!
É uma mudança muito sintomática.
Nos anos 70 e 80 via mulheres com 20 anos, 30 anos de casamento a dizer que fingiram sempre, sempre, sempre. Nunca tiveram um orgasmo, nunca tiveram excitação e fingiram-no sempre. E isto - elas a queixarem-se - era perfeitamente transversal, sobretudo da falta de desejo. As mulheres já não fingem. A natureza da relação alterou-se e é mais paritária.
E a falta de desejo e o aborrecimento sexual, como é que se resolvem?
Há muitas mulheres, dessas que estão aborrecidas, chateadas, a quem aquilo não dá gozo especial. Qual é a saída? A saída acaba por ser fazer, outra vez, uma grande paixão. Tenho e-mails de mulheres a dizer: «Será que deixo de gostar deles ou será que sexualmente alguma coisa me cansa e me coloca na minha situação normal, que é a de não ter desejo? No fundo, não tenho desejo. Só tenho desejo em função da paixão».
É outro lugar comum: as mulheres só desejam em função dos afectos. Não separam a luxúria da paixão.
A mensagem que dou às mulheres é a seguinte: é muito importante ter apetência, é muito importante sentir-se sexualizada, quer tenha, quer não tenha ninguém. É importante ter este sentimento: «quando eu quiser, eu tenho». Não é justo que não possam ter isto. Se eu posso ter, por que é que vocês não hão-de poder ter?
Publicado originalmente na Revista Elle em 2005