Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Daniela Ruah

27.03.14

Ela agora vive numa cidade que nunca dorme. É uma entre milhões de actrizes. É uma entre milhões de judeus. É uma entre milhões de emigrantes. Daniela Ruah tem 24 anos. Estuda no Lee Strasberg Institute, estudou na London Metropolitan University. Fez toda a formação, em Portugal, no colégio inglês St. Julians. Nasceu nos Estados Unidos, não tem sangue português. Sente-se portuguesa, mais que tudo, porque aprendeu a amar em português.

Tem uma beleza exótica. É uma entre milhões que acreditam que podem chegar longe. E se ela for a próxima Angelina Jolie?

 

Vamos assumir que esta entrevista se faz em véspera de partir para Nova Iorque, onde vive há cerca de um ano. O que é que separa a vida de Lisboa da vida de NY?

Sou a mesma em Lisboa ou em NY. Pode haver diferenças no estilo de vida. Cá, as pessoas reconhecem-me na rua e tenho em consideração o que digo, ou faço, ou mostro. Nos Estados Unidos não sou uma cara conhecida e por isso levo uma vida mais relaxada. Mas eu sou eu, não mudo. Fico contente quando me dizem que não fiquei arrogante depois de começar a trabalhar em televisão. Não fiquei com manias de starlett.

 

Em Lisboa tem um quadro social, familiar e religioso de uma menina burguesa. Em NY, é uma emigrante. Judia.

Há quem chamam àquilo Jew York. São tantos os judeus nas ruas, tantas as pessoas que andam com kipá, (os chapeuzinhos que os homens usam). Aqui em Portugal, quase não se vêem. Em termos religiosos são mais abertos. Mas há tantas nacionalidades, é uma misturada de pessoas…

 

Esse aspecto foi importante para se sentir em casa?

Ajudou, mas não foi essencial. Eu cresci habituada a ter a vida religiosa só em casa ou na comunidade judaica, e não nos outros ambientes que frequento. Mais do que o judaísmo, foram as pessoas de culturas completamente diferentes que me fizeram sentir em casa. Lá na escola, no Lee Strasberg [Theatre and Film Institute], a maior parte das pessoas são europeias, mas há muitos israelitas e árabes. E cada pessoa também é uma misturada. Eu sou meia portuguesa, meia americana. Tenho uma amiga que é da Bósnia, cresceu na Argélia, a família vive no Canadá.

 

Em Portugal, sempre se sentiu meia estrangeira?

Não. Nasci em Boston, no Massachussetts, a norte de NY, onde vivi até aos dois anos. Depois os meus pais mudaram-se para o Minnesota. No ano em que ia fazer seis anos voltámos para Portugal. 

 

Aprendeu a falar as duas línguas ao mesmo tempo?

Sim. No infantário falava-se em inglês e em casa em português. A minha mãe conta que me recusava a falar português. Ela dizia: “Vai perguntar ao pai o que é que ele quer para o pequeno-almoço”. E eu dizia: “Daddy, what do you want for breakfast?”. Ele respondia em português e eu traduzia.

 

Isso potencia, emocionalmente e culturalmente, uma identidade mista. A língua na qual aprendeu a amar foi o português. Os afectos, do pai e da mãe eram transmitidos em português.

Por algum motivo me sinto portuguesa... Aprendi a amar em português – a família, para começar. Mas os amigos ou um namorado não foi forçosamente em português. Os meus amigos do coração vêm do [colégio] St. Julians, conheci-os com cinco anos. Nós começávamos uma frase em português e terminávamos em inglês. “What time tu disseste que me vinhas buscar?”. Penso que a razão porque me sinto portuguesa é também porque Portugal foi um refúgio para a minha família. Para os meus bisavós. Houve qualquer coisa que a minha família encontrou em Portugal para ter ficado. Não tenho sangue português sequer.

 

Qual é a história da sua família?

Do lado da minha mãe, o meu avô nasceu no que é agora a Polónia. A minha avó tem ascendência russa. O pai da minha avó, que era engenheiro, vivia na Alemanha e foi convocado para trabalhar nas vias ferroviárias do Porto. Gostou tanto de aqui estar que mandou vir a família. Do lado do meu pai, o pai da minha avó era inglês, a mãe argentina. O avô do meu avô morreu com 117 anos e tinha ascendência marroquina. Parece que temos raízes fenícias.

 

Parece mergulhada numa imensa torre de Babel. Como se ser estrangeira já estivesse no seu código genético.

É isso. Há momentos em que sinto que não pertenço a lado nenhum. Como se no meu código genético, de facto, tivesse um estrangeirismo. Não importa onde estou, tenho sempre vontade de estar noutro lugar.

 

A par do estrangeirismo, o facto de ter a religião judaica, que é minoritária em Portugal, tem a mesma força no seu código genético?

Somos cerca de 1000 judeus, em Portugal. Somos pouquíssimos. Da família do meu avô só sobreviveu ele e uma prima, que vive agora em Israel. Ela viveu o Holocausto, os horrores que lemos nos diários de pessoas como a Anne Frank, mas não fala disso.

 

Como é que o judaísmo marcou a sua vida?

Uma vez fiz um summer camp judaico. Temos seminários, palestras, actividades, conhecemos judeus europeus da nossa geração – em Portugal conhecemo-nos todos, temos sempre uma relação ou através do sangue ou do casamento. Uma coisa tínhamos em comum: aquilo a que se chama identidade judaica.

 

Que pode traduzir-se como?

É um sentimento de grupo, de união, que não tem que ver com quem come porco ou marisco, quem faz as rezas da manhã ou não. Fomos um povo perseguido. Apesar de as pessoas da minha geração não terem sofrido isso [perseguição], conheço um judeu e fico toda contente! É uma forma de vida, de educação.

 

Está sempre implícita a ideia de protecção e entreajuda?

Não é tanto a entreajuda. É mais uma sensação de nos sentirmos em casa. Temos formas de pensar similares, maneiras de ver a vida similares. No primeiro instante há uma atracção.

 

O que é que é similar?

Estou a generalizar muito… Mas posso falar da componente internacional. Quase todos os judeus que conheço vêm de todo o lado, e podem sentir-se sempre estrangeiros. O meu avô, que é mais tradicionalista em relação ao casamento, sempre me disse que gostava que eu casasse com um judeu. A minha resposta começou por ser: vou casar por quem me sentir apaixonada, a religião não entra no assunto, quero é ser feliz e ter filhos com uma pessoa saudável, que seja um bom pai. Mas ao mesmo tempo percebo-o. Há um conforto diferente [se casar com um judeu]. É um reconhecimento de coisas que se fizeram em casa e que quero que os meus filhos façam. Mesmo que não seja muito religiosa, eu sei o que é o sabbath

 

Mas é verdade que se estivesse apaixonada por um palestiniano e disputassem a educação dos filhos, não seria fácil chegar a um consenso…

Nesse caso, e em qualquer outro com uma pessoa que não fosse da religião judaica, tinha de falar sobre a educação dos filhos antes mesmo de pensar em ter filhos. O que ensinarei aos meus filhos, basicamente, é a ter respeito por toda a gente. Uma das minhas melhores amigas em NY é muçulmana. Não sou contra as outras religiões.

 

O seu pai e avô são médicos famosos, a sua mãe é médica também. Esta tradição de Ruahs médicos caiu sobre si como uma pressão?

Nunca tive pressão nenhuma. Os meus pais sempre me disseram: faz o que quiseres desde que sejas a melhor ou uma das melhores.

 

O que já representa, também, uma forma de pressão.

Só comecei a sentir essa pressão na universidade. Foi um investimento muito grande que fizeram – por estar longe e em termos financeiros – e o mínimo que eu podia fazer era regressar com um diploma a dizer que fui a melhor ou uma das melhores. Foi o que fiz. Fui a primeira do meu ano.

 

Como é que, no seu meio, o espectáculo aparece como uma coisa tão atraente?

Eu, aos três, já dizia: “Mãe, olha esta dança, avó, olha esta música”. Sempre tive paixão pelo espectáculo. A minha mãe pôs-me no sapateado, depois no ballet; numa escola de dança, já em Portugal, comecei a ter aulas de teatro. As minhas avós e os meus pais são pessoas extremamente artísticas. A minha avó Vera: um realizador americano quis levá-la para Hollywood; a minha bisavó é que disse: “Nem pensar nisso”. Os meus pais sempre fizeram teatro na comunidade judaica. O meu pai toca acordeão, o meu tio toca órgão.

 

Não passou pelas fases de querer ser professora, hospedeira, veterinária – que é o que todas as meninas sonham ser?

De todo. Desde pequena que dizia: quero estar em palco.

 

Aos 16 anos, estreou-se numa novela. Como é que aconteceu?

Cheguei a casa e vi um anúncio a dizer: casting para a Teresa de “Jardins Proibidos”. Fui no dia seguinte, de comboio. Passei à segunda fase, depois à terceira, etc; não fiquei com o papel da Teresa, mas com o da melhor amiga, a Sara. Antes disso, tinha 14 ou 15 anos, uma amiga mostrou-me um prospecto do Actors Sudio. E, “Mãe, Pai”, anunciei que ia para NY! Quando acabei o liceu aconselharam-me a ir para Londres, onde a educação era igualmente boa, e ficaria mais perto de casa. Fiz o bacharelato na London Metropolitan University.

 

O que é que foi irresistível no prospecto do Actors Studio?

Não foi a parte da fama, nem o glamour do cinema – era um prospecto a preto e branco. Foi talvez um brilho no olhar dos que estavam lá… Não sei se posso falar em chamamento…

 

A verdade é que NY “chamava” por si. E passados uns anos foi, não para essa escola, mas para outra igualmente reputada.

A minha mãe disse-me uma vez: “Tiveste uma educação tão internacional que é um desperdício ficar só num sítio”. Não é em Portugal, especificamente; é um desperdício ficar num sítio apenas. Posso trabalhar aqui, posso trabalhar nos Estados Unidos. Ainda por cima, nasci lá, tenho passaporte americano, não tenho problemas com visto, não tenho sotaque a falar inglês. Já que a família e a sorte me deram tantas vantagens, porque não tentar?

 

Os seus planos são ficar em NY?

Se correr mal, tenho 50 anos, estou em Portugal, tenho uma vida estável, faço novelas ou filmes ou teatro, olho para trás e digo: “Tentei”. O pior que podiam fazer-me era cortar-me as asas. Estou a viver a minha vida de um modo aventureiro, mas responsável, e estou a investir numa coisa que, sinto, tenho possibilidades de fazer. Se não acreditasse em mim própria, não poderia fazê-lo. Mas acho que tenho alguma chance de fazer uma carreira internacional. Estou à procura de um agente e de um manager.

 

Descreva a sua vida lá.

Não posso ficar em casa à espera que me liguem… Durante o dia, ou noite, estou nas aulas, vou conhecendo pessoas, faço peças que podem ser vistas por agentes, mando head shots – é o nosso cartão de visita, com a fotografia de um lado e do outro, agrafado, o currículo. A palavra de ordem é construção. E devagarinho. Não gosto de quem aparece de um dia para o outro. É como um castelo de areia: se pusermos areia, palparmos, mais um bocadinho de areia, fica mais sólido. Podemos construir qualquer coisa sobre isso.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2008

 

Ler no Chiado 40 anos depois do 25 de Abril

27.03.14
No próximo Ler no Chiado vamos olhar para quem somos 40 anos depois do 25 de Abril.

Com olhares diferentes e partindo de livros diferentes e recentemente editados. Com a deputada Isabel Moreira ("Apátrida"), a escritora Lídia Jorge ("Os Memoráveis") e a historiadora Raquel Varela ("História do Povo na Revolução Portuguesa, 74-75")

Dia 3 de Abril às 18.30 na Bertrand do Chiado.

Eu modero.

Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand, na primeira quinta feira de cada mês.

Mário Crespo

27.03.14

Mário Crespo é jornalista sénior, mas sente as inseguranças de quem teme perder o pé. Não é marinheiro, mas é junto ao mar que mais intimamente se encontra consigo. É o pivot da SIC Notícias que todas as noites, às nove, interpela os protagonistas e as histórias do dia.

Nasceu africano, tem alma nómada. Regressou a Portugal há cerca de dez anos, depois de uma temporada marcante na América de todos os sonhos e contradições. Uma tarde, no bar da SIC, conversámos sobre a sua geografia. E não demorou muito a estarmos em velocidade cruzeiro...

 

 

Começamos pela América? Foi uma experiência que mudou a sua vida?

A América foi escolhida. Havia a hipótese de abrir uma delegação [da RTP]. Eu conhecia mal a zona de Washington, mas sentia uma grande identificação de cada vez que ia lá. É uma cidade cheia de espiritualidade, por incrível que pareça – as pessoas imaginam a América de uma superficialidade imensa, e não é de todo a impressão que tenho.

 

Dê-me uma imagem, uma história que ilustre a visão que tem da América. Recentemente, impressionou-me esta história: um congressista muçulmano foi eleito para o congresso; claro que para formalizar o juramento não ia usar a bíblia, como é tradicional, porque não era da sua fé. De modo que a comissão reuniu-se e foi buscar o corão que estava na biblioteca que pertenceu a Thomas Jefferson [presidente dos EUA, autor da declaração da independência americana]. Jurou sobre o corão do Jefferson! O corão esteve 240 e tal anos à espera de ter uma utilidade prática. Isto é a América, para mim.

 

É o espírito de tolerância?

Não se pode falar de espírito tolerância num país de 300 milhões de pessoas, onde haverá, seguramente, uns milhões de intolerantes. Nós também não quantificamos isso entre nós, mas haverá certamente umas centenas de milhar de pessoas intratáveis. Quando leio os grandes tradutores do espírito americano, do Hemingway ao John dos Passos, entendo-os como um povo inspirado. Houve um período da vida americana em que, o que foi para lá, foi o melhor da Europa.

 

Mas depois, importa saber o que conseguiram fazer com isso.

O dos Passos escreveu: “A América tem de ser admirada pelo que podia ter sido”. Ou seja, o que é que eles fizeram com este imenso capital humanista? Fizeram, afinal, o paradoxo de Jefferson, que era um homem de uma grande clarividência de espírito e que tinha um batalhão de escravos numa plantação da Virgínia. Como é um regime muito aberto, o paradoxo salta sempre. Não é possível esconder nada. 

 

Como é que isso moldou o homem feito que era quando foi para lá?

Influenciou-me muito. Entre os privilégios que tive foi o de ir, já ungido da credencial, juntar-me a um grupo de elite. Até agora fui o primeiro e único português acreditado na Casa Branca. Tinha cartão para participar nos briefings, questionar presidentes, idêntico a qualquer cidadão americano. A haver um PhD em jornalismo, seria esse período.

 

Obter a credencial demorou cerca de um ano e meio. Que tipo de preparação teve de fazer?

Antes da obtenção da credencial, por exemplo, não podia faltar aos briefings, três vezes por semana, no departamento de Estado e na Casa Branca.

 

Sentiu que fazia parte de uma cúpula?

É como dizer que ouvimos a Cecilia Bartoli [alusão a conversa prévia, em que comentávamos, Mário e eu, o concerto da diva italiana na Gulbenkian]! Foi o que senti, digo-o com um despudor quase arrogante, durante aqueles sete anos: que estava a fazer qualquer coisa que não era banal. Eu questionei o pai Bush, o Clinton, o [Gerald] Ford, e com questões sobre o meu país, logo a seguir ao massacre em Timor. Tive de soletrar o nome de Xanana Gusmão. Nunca tinham ouvido falar dele.

 

O trabalho é a única senha de entrada nesse grupo de elite? As regras de admissão são diferentes das que conhecemos em Portugal?

Completamente. Gosto de pensar que na minha escolha para ir para Washington havia alguma razão de mérito... Com o meu antecedente sul-africano, o inglês é um idioma onde estou à vontade.

 

Com “antecedente” refere-se ao facto de ter crescido em Moçambique e trabalhado na África do Sul?

Também estudei por períodos na Suazilândia. Trabalhei em Joanesburgo na SABC (uma daquelas estruturas coloniais que a BBC foi deixando). Foi o primeiro trabalho depois da tropa. As pessoas que me fizeram alguma marca são de lá, mantenho contacto com algumas delas, como o Alexandre Quintanilha [cientista]. Esse grupo com quem me dava contrastava com a sociedade colonial de onde eu vinha – que era muito ligeira. Esta gente, ao contrário, era muito intensa.

 

Fale-me das suas raízes.

São banais, e confusas. Crescer numa sociedade colonial, em termos formativos, não é fácil. Aquelas cápsulas de bem-estar... Levei tempo a compreendê-las. Compreendi-as na África do Sul, [depois de deixar Moçambique]. Compreendi-as agora, quando li as “Quase Memórias” do Almeida Santos. Sou filho único e perdi pai cedo. Seria sempre cedo..., mas foi naquela parte dos 18, 19 anos. Eram funcionários: o meu pai de um banco e a minha mãe professora da escola comercial.

 

Em Maputo, então Lourenço Marques, dava-se com brancos, com privilegiados. Era uma sociedade bastante estratificada.

Bastante não chega: era totalmente estratificada.

 

O que sentia, por via desses privilégios, é que tinha uma visão parcelar do mundo onde vivia?

Essa é a síntese. Recentemente conheci o Malangatana. E disse-lhe: o aspecto formativo que a sua estética me deu, durante a adolescência, foi de tal modo forte que olho para si e sinto uma quase paternidade.

 

Havia uma “culpa” pelo privilégio, por viver numa redoma protegida?

Sim, mas não estava consciente da necessidade de acção. Não me sentia confortável. Na África do Sul insisti em não ter empregados, enjeitei essa tradição colonial que nos viria naturalmente. No entanto, coexisti pacificamente durante duas décadas com um sistema para o qual devia ter despertado por alturas do liceu. Devia ter lido livros que não li, (porque não me chegaram), devia ter ouvido gente que não ouvi, devia ter falado com o Malangatana lá. Mas se calhar, ele não era o mesmo homem que é hoje, nem eu o mesmo homem que sou hoje. 

 

O que é que desencadeou a revolução, em si?

A revolução está a acontecer. Na África do Sul, onde estive desde 74 até 81, fui contactando com gente que tinha essa consciência em pleno apartheid. Ainda fui colega do Carlos Cardoso, que foi morto em Joanesburgo. Senti alguma claustrofobia, quando houve uma ou duas edições da Newsweek censuradas. Senti que tinha de vir embora. Foi um acto deliberado. Vim a Lisboa e consegui emprego na RTP.

 

Como é que se deu em Portugal, que, sendo o seu país – tem nacionalidade portuguesa –, era desconhecido para si?

Lembro-me perfeitamente do dia da chegada. Tinha 32 ou 34 anos, não sei bem, é questão de fazer as contas. Tinha mãe, não estava casado. Acabei por casar com alguém de África! Era preciso ser africano para continuar lá. Só entendemos aquela zona quando a deixamos. Hoje leio muito o Coetzee: o «Boyhood» é a África do Sul. E esta visão é a da África colonial.

 

Fale-me da inserção na realidade portuguesa.

Foi muito complexa. Interrogo-me se ela está concretizada, depois destes anos todos. Senti-me mais confortável em Washington do que aqui.

 

O que é que é tão estranho aqui?

A RTP era um mundo estranho, e psicótico, quando cheguei. Politizadíssimo. Com alternâncias políticas disparatadas, com gente com mandatos e agendas nas quais me era impossível rever. A RTP durante muitos anos foi um modo de vida, mais nada. Havia credenciais de clubismo político que eu não tinha nem quero ter. Isso separou-me e levou-me a muita nomadização solitária.

 

Parece muito solitário, por acaso, apesar da amabilidade.

Gosto do acto social contido. Não o provoco. Aceito-o. De um modo geral gosto de pessoas. Quando digo “de um modo geral”, sou selectivo... Mas há gente que me diz muito.

 

Nos seus vários percursos, parece sempre um outsider. Mesmo aqui, na SIC Notícias, distingue-se dos outros pivots. Seja porque é mais velho do que eles, seja porque tem uma história e um estilo diferentes. Esta qualidade de outsider é já aquela que lhe é mais confortável?

Neste momento, é. Às vezes tenho dificuldade em pertencer a um grupo. Tenho a impressão que isso é consequência desta nomadização toda, que a vida, por fortúnio ou infortúnio, me pôs.

 

Gostava de perceber que relação existe entre os vários blocos da sua vida: o bloco África, o bloco RTP/Lisboa, o bloco americano, e agora o bloco SIC Notícias. São comunicantes?

Sim. Logo que comecei a ter alguma preponderância na RTP e a poder escolher os trabalhos que fazia, regressei a África. Comecei a cobrir África do Sul com um fascínio, uma intensidade... O processo de libertação do Mandela foi uma coisa magnífica. A minha génese estava ali também. Lembro-me do que escrevi na altura sobre a primeira refeição que ele tomou, na sua casa no Soweto: que vi o fumo a sair da panela, que aquele extraordinário dia estava a chegar ao fim. Também me senti compelido a acompanhar o processo de independência da Namíbia.

 

Mas é um regresso numa outra condição, com outro estatuto.

Absolutamente. Esse era o conforto. Ter um estatuto crítico e poder manifestá-lo.

 

Havia uma espécie de culpa por não ter tido “consciência” disso mais cedo, não o ter expressado mais cedo?

Não havia: há uma culpa.

 

Voltando à América: o que é que o liberalismo americano fez a este homem esquerdista?

É um esquerdismo espiritual. Não o formalizo em nenhum código ou ideário. A América: é ver [o teatro de] Tenessee Williams e entender. Há episódios, há mosaicos com que me identifico. É a minha ponte para o entendimento actual.

 

A América ajudou-o a integrar a contradição, o paradoxo que existe em si?

Ajudou-me a viver com ele, o que é diferente. A minha grande busca não é por certezas. Tenho as minhas buscas espirituais, como toda a gente. Essa ausência de certezas, quando ela acabar, eu morri.

 

O seu mote é mais o procurar do que o encontrar?

É. Mas há uma ética. Hoje consigo claramente distinguir o que é bom e o que é mau. Implica, por exemplo, tomar a decisão de dizer no Jornal das Nove que não vou mostrar a imagem do Saddam a ser executado. Não partilho execuções públicas. A partir do momento em que a mostro, “forço” pessoas a vê-la.

 

Eu não vi.

Fez esse exercício de disciplina? Eu também. O momento em que o laço é posto e se vê a cara do homem... Não vi mais, não consegui. Esse género de escolhas, que fez, que fiz, são muito importantes.

 

Porque é que regressou a Portugal, depois da América? Uma vez cá, o que se diz é que telefonou ao Emídio Rangel a pedir emprego, a dizer que tinha vontade de trabalhar.

Pedi, pedi. [Da RTP], mandaram-me vir, interromperam o processo, subitamente. Houve algum conflito editorial, houve um desentendimento administrativo. Eu ainda disse: «Olhem que tenho filhos na escola, olhem que são muito pequeninos e isto é traumático para eles...». E pronto. Viemos mesmo. Não me deram nada que fazer. O que foi muito castrador. Reduziram-me o ordenado, os meus subsídios desaparecem todos e fiquei com um base idêntica a de qualquer estagiário. Uma coisa insuficiente. Senti que tinha de fazer qualquer coisa.

 

Tinha cinquenta anos e estava à procura de emprego.

É. Pedi para falar com o Rangel, que não conhecia pessoalmente. Ele veio logo ao telefone. Disse-lhe: «Se houver trabalho aí, estou disponível». Almoçámos na semana a seguir. Ele era o monarca da estação com 50% de share.

 

Foi uma nova vida.

Foi. Tive imenso medo. A diferença de idades era muito grande com o meio onde fui integrado, na SIC Notícias. Tive inseguranças. Depois, as coisas correram muito bem. Gosto de trabalhar em redacções. Até gosto de redacções com máquinas de escrever.

 

As suas inseguranças tinham que ver, sobretudo, com a sua integração no meio?

Com tudo. O que é que eu vou escrever? Há que tempo que não escrevo notícias... Sabe aquele excesso de auto-censura que vai exercendo no que escreve? É difícil romper. Fui muito bem recebido aqui. Na última “Egoísta” escreve-se: “A vida é o prémio. A morte é o preço. A herança são as memórias”. Para já, a memória da exultação que tive quando o Rangel me ofereceu emprego...

 

Como é que define o seu estilo? Aquilo que vemos todos os dias às nove, é o resultado de quem é e da sua vida em bolandas?

Não sei. A partir da altura em que observa um fenómeno, ele altera-se. A partir da altura em que falo consigo, há uma espécie de teatro que não sei onde está nem onde começa. A partir da altura em que a câmara abre, ao fim de uns milhares de edições (de Jornais das Nove que vêm desde a RTP), não sei o que é que enceno. Nem o que é que sou eu. A minha mulher talvez saiba isso. Sempre disse que a maneira que tenho de não errar muito, ali, é não fazer nenhum número que não seja genuíno. 

 

Há na sua postura uma segurança e um estilo que me faz pensar nos pivots das cadeias americanas.

Deve haver muito disso... O que vi lá teve influências, claro. O modelo que fazemos às nove, aqui, é parasitado de uma coisa que já acabou (Night Line, na ABC): com duas, três histórias de fundo e um ou dois convidados.

 

Sabe que parece mais novo do que é? Não sei se é por estar numa “nova” vida, empolgante.

É capaz de ser. Não tenho preocupações com a idade.

 

Porque é que a vela é o seu hobby?

A vela não é solitária. Mas há um acto de intimidade que me agrada. Se calhar também há um acto de controlo sobre o que se passa à minha volta, de que gosto.

 

Intimidade de si para si? Intimidade com o mar?

Diria que é mais de mim para mim. O meu barco é pequeno, tenho-o desde que cheguei da África do Sul, tem 22 pés, seis metros e tal. Chama-se Take Five.

 

Também faz miniaturas de barcos, réplicas. É como fazer um puzzle, é um jogo de minúcia.

É. Gosto de objectos, de coisas associadas ao mar. Comecei a fazer réplicas em Washington. Comecei por fazer uma do Take Five. Devia estar com saudades do mar. Hoje tenho várias. Até já consegui fazer uma dentro de uma garrafa!

 

Uma palavra de eleição: intimidade ou mar?

Intimidade. Era isto que estava à espera? Mas é. Não se pode mudar nomes de barcos, mas se eu pusesse um nome a um barco, agora, chamava-lhe Nora Nora, o nome da minha mulher (Leonor). Outro muito bom é Querência. Li sobre um iate chamado Querência. Querência é o sítio na arena onde o touro se sente seguro. Os grandes matadores, (o Hemingway descreve isso), procuram descobrir onde é a querência do touro.

 

Esse lugar onde se sente seguro é na intimidade, aconteça ser no mar ou com a sua mulher?

É. São as minhas seguranças.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007