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Anabela Mota Ribeiro

Luísa Schmidt

28.03.14

Luísa Schmidt é socióloga do Instituto de Ciências Sociais. Doutorou-se em Sociologia da Comunicação e do Ambiente. Colabora no semanário Expresso, onde assina uma coluna ligada ao tema.

No jornalismo aprecia a capacidade de intervenção rápida, «É o pontapé na porta». A investigação sociológica permite-lhe perceber como é que as coisas se organizam e funcionam, «Como é que o quarto se arruma?».

Faz parte da equipa de investigadores que montaram o OBSERVA - Observatório Permanente de  Ambiente, Sociedade e Opinião Pública, onde desenvolve projectos de investigação que articulam ciências sociais e ambiente.

Neste início de 2003 vai receber das mãos de Kofi Annan um prémio «pela sua extraordinária dedicação aos assuntos ambientais em Portugal».

 

Como representaria a relação de Portugal com a questão ambiental?

O desenvolvimento que o país teve caracterizou-se pelo modelo ruralista. Enquanto a Europa se desenvolvia, mantinhamo-nos auto-centrados. Uma das compensações para o nosso atraso era a beleza das nossas paisagens. O 25 de Abril não alterou muito este modelo. Os valores que surgiram eram políticos. Isto gerou um alheamento em relação às questões ambientais. No virar da década de 80, entrámos no comboio da economia de mercado e na euforia consumista. As lojas, o rock, os produtos de vários países do mundo, a imprensa. O lixo, por exemplo, é um dos resultados mais perversos do consumismo. Cresceu exponencialmente e não se falou disso durante 20 anos. Interessou muito mais acertar o passo pela Europa do ponto de vista da economia do que ter atenção ao modelo para o qual se estava a caminhar. 

 

A temática do ambiente há 20 anos seria olhada como despicienda, havia problemas mais urgentes a resolver.

Quando as pessoas acordaram, nos anos 90... Por um lado, tínhamos algumas condições asseguradas, podíamos olhar para esta. Por outro, as condições degradaram-se muito, e isso começou a sentir-se no quotidiano.

 

É aí que começamos a ripostar, quando a factura começa a ser paga no quotidiano?

Exactamente. Afinal, temos casas porreiras, mas temos uma lixeira à porta, ou uma fábrica que nos atira com fumo para cima. As pessoas ressentem-se. No interior é o esquecimento que os revolta, político e ambiental. É interessante verificar como muitos boicotes às eleições nos anos 90 foram por questões ambientais: o saneamento básico, a água que não vinha, a lixeira que não era fechada. Nos mega subúrbios as condições de vida são desumanas. Passa-se três, quatro, cinco horas por dia nos transportes, e além disso, leva-se com fumo, com buracos na rua, com um desleixo que o país tem.

 

Mas só ao cabo de muito tempo se percebem os efeitos nocivos do fumo e do desgaste da vida urbana. Não há consciência imediata disto.

As pessoas vivem um bocadinho anestesiadas. Estamos a crescer de uma maneira muito irracional. As nossas exigências são europeias e aquilo que temos à mão para conseguir cumprir é terceiro-mundista – os transportes, as comunicações, os serviços. Toda a organização tem um modelo obsoleto. A sociedade portuguesa não conseguiu dar o salto do ponto de vista administrativo, do ponto de vista da economia sustentável.

 

O caso das vacas loucas é interessante de ser analisado. O resultado de uma má alimentação é mais rapidamente visível. As implicações da qualidade da água e do ar não são flagrantes no imediato.

O que faz mover as pessoas e mais as preocupa é a questão da saúde articulada ao ambiente. É aquilo que as faz mudar. Depois, também há o efeito do esquecimento, que é tremendo num país que não vai sendo informado. Não temos estruturas de fiscalização ao nível alimentar suficientes, não sabemos a qualidade do que entra cá. Houve o boom, abriu-se o país... Lá está, a reforma administrativa. Era importante reforçar tudo o que diz respeito à fiscalização, controlo e regulação.

 

Mas não fiscalizamos e não reclamamos porquê? São ainda resquícios do tempo em que não tínhamos nada?

Este país sofre de uma falta de estratégia grave. A única maneira de se dar um salto consistente era fazer um pacto de regime sobre algumas áreas: a reforma administrativa, a educação, o ambiente. E viesse quem viesse em termos partidários, aquilo eram objectivos, estavam definidos e acabou-se. Espanha fez isso, Irlanda fez isso, e agora vêem-se os resultados. Cá, vêm uns e mudam, e não só mudam como apagam toda a memória e o que estava feito.

 

Na cultura também. Curiosamente uma e outra são olhadas em termos políticos como secundárias. E quando é preciso poupar, é por aí que se começa.

Mas é o futuro. Não se investe em sectores que podem trazer futuro a um país que não tem recursos. O Ambiente, a Cultura, a Ciência. Este país tem sol, tem uns sítios bonitos que estão a ser estragados, e pouco mais. Portanto, é investir nas pessoas, é dar-lhes formação.

 

Os políticos têm uma relação difícil com o ambiente. As soluções, como são estruturais, não produzem resultados imediatos, são impopulares, não granjeiam votos. E mais uma vez, quem vier a seguir que apague a luz.

Falta cultura ambiental no país. Falta convicção nas medidas que se implantam. Como é que se pode proteger uma área se as pessoas não sabem o que estão a proteger?

 

É inevitavelmente tensa a relação entre ambiente e desenvolvimento? A despeito da poluição, quando se criam fábricas, criam-se postos de trabalho.

É o velho argumento, «Como há outros problemas mais importantes, como por exemplo o emprego, não vamos atacar esta questão». Isto é uma mentira! Olhe para a ria de Aveiro e para o Vale do Ave. A poluição hipotecou a possibilidade de vida daqueles cursos de água. Entretanto as fábricas não se modernizaram e fecharam, foram-se os dinheiros da CEE e as pessoas foram na mesma para o desemprego. Com a agravante de agora não terem recursos ligados ao rio.

 

Temos consciência de que a natureza funciona em rede. Como escreve no seu livro «Portugal Ambiental», «Quando Sines desregula as chaminés, morrem os laranjais de Santiago do Cacém». Todavia, esquecemos isso, tratamos os assuntos como se estivessem separados.

Não há uma visão sistémica dos problemas. Mesmo os que são tratados, são à superfície. As pessoas só vêem uma pontinha do iceberg e não percebem a implicação que está por detrás. Por exemplo, os resíduos industriais, muito falados com a co-incineração. O resíduo industrial está a poluir a água subterrânea que bebemos, a água que rega os nossos legumes. Está a entrar na nossa cadeia alimentar. Ora, esta visão sistémica nunca é dada pelas notícias, nunca é explicada por quem deve explicar _ que é o Ministério do Ambiente.

 

Há bons indicadores em relação ao que está a ser feito? Por exemplo, as campanhas que apelam à divisão dos lixos, têm funcionado?

As pessoas têm apetência para participar; não sabem é o que fazer para participar aos diversos níveis. A separação dos lixos foi uma medida importante. Mas era também importante perceber toda a sequência, não só deixar o lixo nos eco-pontos, mas explicar para que é que aquilo serve, que indústrias estão a sair dali, que empregos se criaram. É preciso mostrar a sequência para que as pessoas vejam o resultado daquilo em que se empenham. Isso é muito importante na vida cívica.

 

As nossas estruturas primam pela ineficácia. Há a ideia de que não vale a pena o trabalho, o desgaste, o tempo perdido.

Vou à Câmara?, não me atendem. Meto em tribunal?, aquilo não anda. A ineficácia das suas acções é desmobilizadora. É fundamental sentir que a justiça está a funcionar. Uma das maiores doenças do país é a impunidade. A maior poluição que temos é a impunidade. É tremenda para o funcionamento da democracia. 

 

Estes crimes ligados ao ambiente, como não têm um corpo visível, tendem a ser esquecidos. Nos outros, podemos horrorizar-nos porque lhes conhecemos o contorno.

A questão da visibilidade é muito importante. Quando morrem peixes nos rios, ou agora a maré negra, fica tudo muito indignado. E ainda bem. Mas depois, no quotidiano, esquece-se o assunto. No outro dia um investigador do Ave dizia-me: «Já nem temos o privilégio de aparecer na televisão. Já não há peixes para morrer!». Isto para dizer que é precisa atenção. Mas se o sistema de justiça funcionasse, tudo seria muito diferente.

 

Uma acção concertada é dificílima. Cada um de nós pode tomar a iniciativa?

Há a escala individual e também a escala organizada do colectivo. As pessoas, sozinhas, conseguem determinadas coisas. Mas não conseguem outras. Se quero contestar uma urbanização, tenho de me organizar em grupo.

 

Recentemente a Bastonária da Ordem dos Arquitectos, Helena Roseta, pediu que se olhasse para a construção civil, que é sabido ser um dos cancros do país.

Construção civil, financiamento aos partidos, clubes de futebol: é a alavanca mais obscura do país. O desordenamento do território é grave porque é o mais irreversível. Um rio pode-se sempre despoluir; agora, a partir do momento em que se destrói uma paisagem natural, uma praia, acabou!

 

Nesta conversa fica claro que tudo isto funciona em rede. Mas quando ouvimos as notícias, do que se fala é da co-incineração, dos aterros, de coisas conjunturais.

A questão ambiental é transversal a todas as decisões. Quando tomamos decisões sobre a agricultura, devíamos levar em conta a questão ambiental ligada à água, produtos, pesticidas, etc. As pescas, a mesma coisa. Em termos ideais, poderia existir não um Ministério do Ambiente mas uma Secção de Ambiente que remetesse directamente para a Presidência do Conselho de Ministros. É importante, de qualquer maneira, que haja um ministério, sempre tem visibilidade.

 

Focalizemos agora em questões práticas. Buraco de ozono: o que é que cada um de nós pode fazer?

O que podemos fazer é falar nisso – exigir informação, fazer o tema entrar na nossa agenda mental. Há algumas coisas concretas que a indústria já se encarregou de fazer; tais como produzir aerossóis e electrodomésticos livres de CFC’s. O que cada um deve fazer é proteger-se dos ultra-violetas, usando cremes protectores solares e procurando sombra, muita sombra...

 

Porque é tão importante poupar água? Há pequenas formas de poupança que aconselhe?

É importante porque é um recurso muito escasso. Quem vai frequentemente a países como Cabo Verde, apercebe-se bem da dimensão do problema. Em Portugal a prioridade é não sujar a água. Claro que poupá-la também é importante. Pode-se controlar a vedação das torneiras e em especial do autoclismo – quando mal vedados podem representar uma perda até 590m3 por mês. Ou não deixar correr a água enquanto se lava os dentes ou faz a barba.

 

As oscilações no clima, as grandes catástrofes naturais, são já uma amostra de qualquer coisa que está a acontecer ao planeta. A Terra parece em convulsão. O que pode ser feito?

Fazer pressão em termos de informação e acção cívica para que as causas e os causadores cessem urgentemente de agravar o problema. Tal como o buraco do ozono, esta é uma questão geo-política que apela a uma responsabilização global. Há zonas que vão ser mais depressa e mais intensamente afectadas, e devemos todos sentir-nos responsáveis. À escala pessoa, pode-se poupar energia usando lâmpadas e electrodomésticos mais eficientes, que são também mais duradouros. E fazer melhorias em casa no sentido de perder menos energia, retendo calor e protegendo do frio.

 

Haverá uma forma de produzir menos lixo numa sociedade que promove o descartável?

A primeira coisa a fazer é pressionar o comércio, é preferir uma marca que não venda mais embalagem que mercadoria! A segunda coisa é fazer a separação dos lixos de modo a que sejam reciclados.

 

As cidades continuam sujas?

Encerraram as lixeiras, mas as cidades estão um verdadeiro nojo, os cães fazem na rua... As campanhas não resultaram. Precisamos de outras muito mais fortes para o país ganhar estima.

 

Estamos com falta de brio?

Estamos descrentes em relação ao futuro do país. A auto-estima é fundamental para darmos o salto. Quem vive ao pé de rios sujos, tende a sujar os rios. É preciso romper este ciclo.

 

E o carro?

Uma das questões fundamentais é a da utilização do transporte rodoviário. Mas com uma rede de metro microscópica, uns autocarros que parecem umas sardinhas em lata a roncar, não podemos generalizar o uso dos transportes públicos! Ainda não está montada uma rede que nos permita abdicar do automóvel, mas com o problema das alterações climáticas e da poluição quotidiana que sofremos, é uma coisa que vamos ter de fazer a curto prazo.

 

Como é que despertou para esta temática?

Nesta matéria, quanto mais se sabe, mais se precisa de saber. Aqui está tudo: as questões sociais de fundo, as políticas, as económicas. Comecei por interessar-me pelo consumo. O ambiente é o reverso da medalha do consumo. Sempre fui sensível às questões da natureza e senti que o país estava a descuidar todas as questões ambientais. À medida que me fui interessando, ganhei consciência crítica em relação a todos os sectores e mais entusiasmo em relação à matéria. Ao fim e ao cabo, é a própria sociedade, é o homem, que decide ir por um caminho ou por outro, que pode inverter ou alterar os comportamentos. Há uma forma de intervenção cívica e política que é importante.

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2003

 

António Saraiva

28.03.14

Ele sabe o que é ser o parolo do bairro. Ele sabe o que é ter o futuro cerceado porque os pais são pobres. Sabe o que é trabalhar no fundo de um navio com um fato viscoso. E passar entre homens que o escarram e insultam. Ele sabe o que é ter um pai que não lhe pergunta para que quer o dinheiro, que apenas lhe diz: “De quanto é que precisas?”. Um pai com uma história de vida pungente. Sabe o que é ter nervo e namorar uma mulher mais velha. Ou dizer ao patrão: “Então compro eu”, quando não se tem dinheiro para comprar uma empresa. Sabe que é possível unir margens, fazer pontes, que o outro não é o inimigo, mas parte da solução. Dito de outra maneira: António Saraiva começou de um lado da ponte e não é nesse que está há muito.

É empresário, é presidente da CIP. Revigorada e reforçada nos seus poderes – obra dele, em meio ano de casa. Pela primeira vez, desde a sua fundação, em 1974, a CIP, não tem na sua presidência uma homem rico e bem nascido. Como é que ele chegou lá? A ser, como se costuma dizer, “patrão dos patrões”. Como é que se fez tão poderoso? Que é que nos diz esta mudança do país e do tecido empresarial português?

Tem olhos muito vivos e azuis, fala dele com grande facilidade, reconhece o orgulho e a vaidade de quem olha para trás e percebe que o caminho vai longo desde que tudo começou numa aldeia alentejana, há 56 anos.    

Aqui ficam duas horas de conversa com um homem que não é doutor nem engenheiro, mas que soube muito bem o que fazer com a vida.

 

Ervidel agora está no mapa por sua causa?

Ervidel é uma aldeia no Baixo Alentejo, no distrito de Beja. Constatei, quando fui eleito presidente da CIP, que isso constituiu para os meus conterrâneos uma surpresa agradável. Houve muita gente que me ligou e o jornal da terra fez um artigo, com fotografias minhas e dos meus pais quando tinha dois, três aninhos. Este fim-de-semana, em Ferreira do Alentejo, o presidente da câmara entregou uns prémios aos empreendedores na Feira do Regadio, eu estava lá por coincidência, e o presidente fez questão de dizer que tinha ali o presidente da CIP.

 

Isso representa um reconhecimento do poder ou é expressão do orgulho de ter um alentejano na CIP?

Sinto que é mais orgulho. É um filho da terra que acabou, segundo eles, por singrar na vida.

 

Que memórias tem de Ervidel?

Nasci em 1953, em Ervidel, e vim para Lisboa em 1959. Mas passava sempre lá as férias, voltava às origens, em casa dos meus avós maternos. Fazíamos os nossos brinquedos, cavalinhos e carrinhos com araminhos dos fardos da palha. Atirávamos pedras uns aos outros, de vez em quando havia cabeças partidas. O meu avô materno tinha uma taberna, o álcool que se usava na ferida era o bagaço. Guardo estas memórias muito vivas.

Em Lisboa, quando chego, sou o saloio. Tive uma necessidade de afirmação, de combate de rua. Vim viver para uma zona entre Alfama e o Castelo, o Miradouro de Santa Luzia. Estávamos no meio de duas guerras permanentes. Vivíamos praticamente na rua, hoje não se vêem miúdos pela rua. Fugíamos ao carro da polícia, o “creme Nívea”, como lhe chamávamos [riso], porque era pintado de branco e azul. Os meninos desse tempo reúnem-se num jantar mensal, cerca de 30, o pessoal do Miradouro.

 

O que é que existe ainda em si desse que foi na infância? Essa vida que descreve parece-lhe longínqua e desligada de si?

Não, acho que tenho algumas coisas desse tempo. Sou filho único. Eu do Alentejo, o Morais de Coimbra, outros das Beiras, éramos os irmãos que nenhum de nós tinha. Sou de partilha, sou solidário, isso vem daí.

 

Descreva-me o que era o seu quadro de vida.

Somos uma família de origem humilde. O meu pai era sapateiro e a minha mãe trabalhava no campo. Em 1959 o meu pai veio para a GNR, que era uma das saídas profissionais para os jovens do Alentejo. Passados uns seis meses chamou-nos, a mim e à minha mãe, que veio trabalhar a dias.

 

Só tiveram um filho por causa dessa limitação financeira?

Acho que sim. A minha mãe gostava de ter tido uma filha. Mas os tempos eram difíceis. Os meus pais casaram muito novos; o meu pai tinha 16 anos e a minha mãe 14. Nasci quando a minha mãe tinha 18 e o meu pai 20. O meu pai estava no serviço militar em Beja.

 

Porque é que casaram tão cedo, anormalmente cedo?

Não era anormal à época casamentos nestas idades. A minha mãe tinha ficado órfã de mãe, o meu avô, curiosamente, tinha casado com a irmã do meu pai. Quer dizer, o meu avô era simultaneamente meu avô e meu tio. A minha mãe andava entre a casa do pai e a de uma irmã mais velha em Ferreira do Alentejo; talvez por causa dessas dificuldades acabaram por se casar e ficar a viver em Ervidel, em casa da minha avó materna.

 

Porque é que o seu pai vem para Lisboa? Isso revela nele o desejo de uma vida melhor, um desejo ascensional.

É uma pessoa que admiro muito. É um autodidacta, um self made man.

 

Sabia ler?

Sabia. Andava muito bem de bicicleta. Fazia os quilómetros que separam Ferreira de Ervidel para namorar, quando a minha mãe estava em casa da irmã. Era muito magro, ginasticado. E tinha uma enorme sede de mundo. Lia muito, devorou os livros da Sociedade Recreativa, que existem nestas povoações. O meu pai é filho ilegítimo. Uma das dores dele é o pai nunca lhe ter dado o nome. É filho do senhor mais rico do Baixo Alentejo, que tinha muitas namoradas, uma delas a minha avó. Entretanto o meu avô perdeu tudo, por má gestão e roubo de alguns administrativos. Acabou por vir falecer a casa da minha avó, com o meu pai, pobre, abandonado pelos amigos. Um drama de vida.

 

Apesar de nunca ter sido reconhecido no papel, que relação é que mantinha com o pai?

Muito boa. Já em fim de vida, o meu avô gostava muito de caçar, e ele é que montava o meu avô numa mula. Levava-o às consultas, porque ficou cego, tratou do pai.

 

Chegou a conhecer o seu avô?

Morreu quando tinha dois anos, não tenho qualquer memória. É esta sede de mais mundo que traz o meu pai para Lisboa. Manteve-se cinco anos na GNR porque era muito alto, tinha 1,90m. Foi o primeiro homem do bombo na banda da GNR, aquele que faz os malabarismos com os pauzinhos, aprendeu música. Fazia as chamadas diligências, periodicamente passava um mês na prisão de Peniche ou de Monsanto, a guardar presos políticos. Aos domingos ia visitá-lo com a minha mãe. Por sorte, ou por procura dele, havia um sargento que era electricista, no quartel dos Lóios, e aprendeu a profissão. Ao fim de cinco anos largou a Guarda e foi trabalhar como electricista para um patrão com quem ficou 14 anos. Chegou a encarregado de electricidade e canalização numa pequena empresa de construção. Depois montou uma pequena empresa em nome individual. Reformou-se há cinco anos. Toda a vida foi um excelente electricista. Aprendeu à conta dele a reparar televisões e rádios.

 

Era temerário? Esse lado aventuroso e empreendedor que tem vem do seu pai?

Procurou sempre mais mundo, mas era um pouco medroso e conservador. Se tem tido mais garra, mais iniciativa, mais audácia, provavelmente teria sido um excelente empreiteiro e criado uma empresa.

 

Ou seja, o salto teria sido já na geração dele e não na sua.

O salto teria sido anterior. O meu pai tem este mundo e esta necessidade, a minha mãe tem a iniciativa. Ela é que quis sempre mais e o impeliu sempre a mais. Mas lá em casa quem mandava era ele.

 

Era? Porque muitas vezes, e sobretudo nesse tempo, os homens mandavam da boca para fora, e nas casas, verdadeiramente, mandavam as mulheres.

Não. Se a minha mãe tivesse a capacidade de o levar, provavelmente a nossa vida teria sido diferente. Uma vez, a minha mãe, apesar de não termos dinheiro, mas havia uma amigo de família que lhe emprestava, quis comprar um terreno na zona do Feijó para fazer uma casa. E o meu pai sempre com muito medo... O que um tinha de audaz, o outro tinha de receio. Sou uma mistura dos dois, o meu ADN resulta desse somatório. Às vezes faço autocrítica, introspecção, e tenho da minha mãe este querer ir ao desafio, querer ir mais longe, e do meu pai alguma criatividade, algum bom senso. Como costumo dizer, gerir é 80 por cento de razoabilidade e bom senso, e 20 por cento de conhecimentos, académicos ou da própria profissão.

 

Sentiu que era o passo à frente em relação ao sítio de onde eles provinham?

Na altura, não. O único sonho que depois percebi que ele gostaria que eu tivesse seguido era engenharia. Talvez por uma projecção dele. Voltando um pouco atrás, fiz metade da primeira classe em Ervidel e vim acabá-la a Lisboa. Depois começaram a sentir-se algumas diferenças sociais. Alguns dos meus amigos foram para o liceu Gil Vicente, e o meu pai não me pôde mandar para lá, porque era mais caro. Fui para uma escola preparatória, a Nuno Gonçalves, e a seguir para a Machado de Castro. Sou filho da escola industrial, o que foi muito bom. Esta e outras eram excelentes escolas de onde anualmente saíam fornadas de jovens industriais ou comerciais. E a indústria beneficiava muito disso. Comecei a namorar a Mariana, a minha mulher, muito cedo. Aos 15 anos já era atrevido e pedi namoro a uma rapariga de 20. E ela lá aceitou, sabe Deus porquê. [riso]

 

Porque as raparigas não resistem a rapazes atrevidos.

É provável. Mas isto para dizer que com 17 e dois de namoro, já perspectivava família. Com esta idade, olho para miúdos de 17 anos e digo: “Ou era muito precoce ou muito tonto”. Anuncio ao meu pai: “Acabei a escola industrial, vou continuar a estudar mas à noite, e vou inscrever-me na Lisnave”. Entrei para aprendiz de serralheiro mecânico.

 

A Lisnave, onde fez parte importante do seu percurso profissional, foi então o seu primeiro emprego?

Sim. Durante dois anos amarguei. Em 1970, tinham inaugurado a doca 13, a maior doca de reparação do mundo, e fui para os navios, para o fundo dos tanques, vedar válvulas. De fato de macaco, uma caixa de mecânico de 20 quilos, a descer escadas de bombeiro num tanque de um petroleiro. Era um ambiente negro e viscoso. Os fatos de macaco eram especiais para não ficarem impregnados com aquilo. A ordem era estar meia hora a reparar as válvulas e meia hora a respirar [em cima]. Era violento e nocivo para a saúde se ficássemos muito tempo em baixo.

 

O seu pai tinha sido contra. Lembrou-se então das palavras dele?

Lembrei, mas também da minha necessidade de afirmação e de mostrar que conseguia. E continuei a estudar à noite.

 

Porque é que quis isto? Que sonhos tinha dentro de si?

Não me recordo que sonhos tinha. A área industrial, talvez porque o meu pai mexia na electricidade e na canalização, fascinava-me. Gostava de perceber como é que as coisas funcionam. Isso acompanha-me ao longo da vida. O que não consciencializei é que trabalhar de dia e estudar à noite era de uma violência extrema, e ao contrário do que pensava, não tive força e capacidade.

 

Desistiu de estudar. Estava mais acomodado, nesse começo de vida, a um certo destino social?

Não tinha grande ambição. Perspectivava uma vida normal, queria constituir família, ter filhos – como tive, o João e a Andreia. Na Lisnave, surgiu uma oportunidade na direcção comercial; o Paulo Oliveira, (que era um encarregado geral muito conhecido e sabedor) iniciou a secção de planeamento de cargas, precisou de um jovem aprendiz: “Queres ir?”. Era uma oportunidade de ouro. Na segunda-feira seguinte apresentei-me no edifício onde acabei por trabalhar o resto do meu tempo na Lisnave. O planeamento de cargas consistia na visualização, com quatro meses de antecedência, da carga que o estaleiro ia ter. Se íamos ter desemprego ou sobrecarga, se os navios que íamos reparar tinham excesso de ocupação de mecânicos, ou se, pelo contrário, ocupavam todos os mecânicos.

 

Foi nesse trabalho que aprendeu a ser metódico?

Foi. Sei sempre onde tenho a minha tesoura, não posso perder meia hora a procurar um objecto que vou utilizar uns segundos, é um desperdício de tempo. A Lisnave deu-me essa organização mental.

E assim estive até ao serviço militar. A 22 de Abril de 1974 sou chamado para as Caldas da Rainha. Quando entrávamos, pensávamos que íamos para o Ultramar e que íamos morrer. Era quase certo que íamos para a Guiné ou para Angola, para um dos cenários de guerra. Quando se dá o 25 de Abril e percebemos que o mundo seria seguramente diferente, a alegria, a explosão, o sonho que isso nos permitiu, foi imenso.

 

Não tinha tido qualquer intervenção política? 

Tive um pequeno toque, porque a UDP nasce na Lisnave. Como no meu trabalho conhecia muita gente, isso levou-me à comissão de trabalhadores. Recordo-me de um episódio com o Cardoso, um colega, que pertenceu mais tarde à UDP. Tinham sobrevoado os quartéis com uma avioneta e distribuído panfletos contra a guerra colonial. A PIDE começou a apanhar um a um. Receando que chegassem até ele, pediu-me se ia Cacilhas, onde morava, buscar uns livros e se os guardava em minha casa. Um dia ao fim da tarde, saímos os dois e fui encher uma mala de livros que o Cardoso tinha, do Lenine e do Mao.

 

Subversivos.

Muito subversivos para a altura.

 

Mas a luta política ainda não era a sua.

Não, estava muito longe disso. Embora com alguma consciência, tinha amigos e família que tinham sido presos.

 

Nunca foi seduzido pelos comunistas?

Fui, quando saí da tropa. Todos os anos era convidado para integrar as listas à comissão de trabalhadores. Normalmente na Lisnave apareciam três ou quatro tendências. Eu não tinha veia, vocação, nenhum apelo ao exercício da política. Acabei por aceitar mais tarde, já estava no Técnico. No serviço militar, sou eleito delegado da minha companhia ao MFA. Desde muito novo que tive capacidade de exprimir os meus pensamentos, fluência de oratória. Não me engasgava, não me envergonhava, defenderia bem os interesses dos outros. Vi-me em reuniões com o Otelo, na Cova da Moura. Uma vez tive uma reunião de três dias para discutir o ordenado dos soldados, com o Jaime Neves, o Major Tomé.

 

Essa situação não é senão uma declinação desse processo em que representa outros, encabeça um movimento. Isso é o gérmen de tudo o que depois é a sua vida profissional. Nas lutas sindicais, nomeadamente.

Sim. Tenho sentido ao longo da vida, e digo isto sem falsa modéstia, e também sem excessiva vaidade, que tenho facilidade de agregar vontades, de convencer as pessoas e de as trazer aos projectos. Nos grupos há sempre conflitos e questiúnculas, e eu reúno e estabeleço consensos, faço pontes, concilio o inconciliável.

 

Como é que faz isso?

Tento perceber os pontos de vista de um e outro, a razão não está sempre num de nós. Há que convencer aquele que não tem razão, de que naquele aspecto não tem razão de facto; e há que demonstrar isso sem o envergonhar, sem o expor demasiado ao ridículo, respeitando as pessoas e fazendo com que percebam que o seu ponto de vista é errado.

 

A sua estratégia não é adversarial?

Aqui e ali tem sido. Tento mais por consenso.

 

Nos anos em que esteve na Lisnave, estava de um lado da barricada, e não a fazer a ponte.

Mesmo aí fiz as pontes. Mas muitas vezes é preciso dar um murro na mesa, é preciso decidir. Depois da tropa, quando volto à Lisnave, o mundo pós 25 de Abril era completamente diferente daquele que tinha deixado. Muito politizado, com greves, paralisações, reuniões de três, quatro dias. Sou eleito delegado à comissão de trabalhadores pelos trabalhadores da direcção comercial.

 

Pelo meio, casou e voltou a estudar. Como foi isso?

Casei aos 21 anos, durante a tropa, aos 22 nasceu-me a primeira filha. Tive novamente o apelo de ir estudar. Percebi que se ficasse como estava, aquilo não me daria muito em termos de saídas profissionais. Inscrevi-me na escola Marquês de Pombal, à noite, e fiz com brilhantismo os complementares. Tive média de 19, fui o melhor aluno. Como já estava com 25 anos candidatei-me ao Ad Hoc para o Técnico, entrei para engenharia mecânica, em 1980, orgulhoso, vaidoso.

 

Ia cumprir o sonho do seu pai.

Ia. Entretanto a Lisnave tinha entrado num período de salários em atraso. Ganhava cerca de 2.500 escudos, e em vez disso recebia 100, 200. O capital social da empresa eram 2 milhões de contos, e só em salários devia 2 milhões e 200 mil, fora os fornecedores. A Elisa Damião, da Lisnave, desafia-me para integrar a lista da comissão de trabalhadores dos sindicatos afectos à UGT. Acedi, candidatámo-nos, entrámos. Achei que era preciso fazer alguma coisa por aquela casa. Costumo dizer que nasci na Lisnave. O José Manuel Torres Couto chama a Elisa para o secretariado nacional da UGT e fico sozinho entregue às feras. Não quero pôr-me no lugar de herói, mas desde o momento em que assumi uma das listas, em que dei a cara por aquela lista e não por outra, entrei muitas vezes naquele estaleiro sem saber se saía de lá vivo.

 

Deveras? Ou é força de expressão?

Era muito violento, literalmente. A Elisa chegou a ser magoada fisicamente. A mim nunca me tocaram, mas cuspido, escarrado, filho deste, filho daquele – todos os dias. Faziam fila de um lado e de outro, desde a entrada até ao edifício onde trabalhava, e passava pelo meio. Não podia abrir os braços senão batia-lhes nas barrigas. Enquanto ia passando havia de tudo um pouco. Havia armas lá dentro, muitas das que desapareciam dos quartéis, outras que se faziam lá dentro.

 

Estamos a falar de 1980.

Sim. A sede da UGT foi invadida, destruída, amigos meus atirados pelas escadas. Foi uma luta político-sindical muito complicada.

 

Salvar o estaleiro, desenhar um contrato social que fosse aceite pelos trabalhadores, era o objectivo dessa altura. Foi a sua primeira grande prova de fogo?

Foi. De tal maneira que no ano seguinte o Vítor Constâncio me convida para deputado pelo Partido Socialista, pelo distrito de Setúbal. Foi no ano em que o Dr. Cavaco ganha a primeira maioria, e não entrei. O facto de me terem convidado para a lista de deputados, o facto de o Torres Couto me ter dado um gabinete no Largo do Rato para coordenar as comissões de trabalhadores ligadas à UGT e ao Partido Socialista, a nível nacional, gerou intrigas, invejas.

 

Era muito novo. Era expectável que fizesse um percurso político?

Começaram a armadilhar-me o terreno, a inventar coisas. “Não tenho ambição política, isto é vosso, no próximo ano já não me candidatarei, voltarei ao planeamento de cargas”. Assim fiz. Um ano depois perdia-se a comissão de trabalhadores para o PC e para a Intersindical. O estaleiro tinha oito mil pessoas, 99 por cento eram sindicalizados e a UGT tinha 800 e tal pessoas lá dentro. Em termos sindicais éramos esmagados. Nunca mais a comissão de trabalhadores foi afecta à UGT.

Seis meses depois, o Dr. Viegas Dias, administrador da Lisnave, chama-me: “O lugar de director comercial da Luso-Italiana ficou em aberto. Entendemos que o António é que vai ser o director”. Aquilo era a machadada final, até da Lisnave me iam retirar. E perguntei: “Isto é alguma perseguição política?”.

 

Foi assim que o sentiu, que era uma perseguição política?

A primeira reacção foi essa. Fiz um acordo com ele: “Não percebo nada de torneiras. Fico na Luso-Italiana até final do ano, se em Dezembro entender que consigo agarrar o lugar, em Janeiro nomeia-me director comercial”. Apertámos as mãos. Chego à Luso-Italiana e sou um perigoso membro de uma comissão de trabalhadores, não inspiro confiança… Não me deram gabinete, não me deram funções, tive que me afirmar. Começo a viajar com os vendedores, uma semana com cada um. Fui contactar e ouvir todos os clientes.

 

Começou a conhecer a casa.

Sim. Também pedi autorização para ir ver os concorrentes. Neste sector das torneiras, é em Itália e em Espanha que estão os grandes centros de fabrico europeu. Viajo, vou ver como é que fazem.

 

Era o começo de uma nova vida.

Era. Em Janeiro decido que tenho condições para o lugar e sou nomeado director comercial. Dois anos depois, porque a Lisnave tinha a Luso-Italiana e a Luso-Alemã no Porto, duas fábricas dispersas e duplicação de custos, sou convidado a acumular o lugar de director comercial da Luso-Alemã. Quatro anos depois, vendo ao Dr. Salvador de Mello a ideia de juntar as duas fábricas, que ele subscreve, e nomeia-me administrador. Até hoje, pelo que sei, fui o primeiro e único administrador do grupo José de Mello não licenciado – o que me deu um orgulho muito grande.

Em 1996, o Dr. Salvador anuncia-me que vai vender a empresa. Queria que preparasse a empresa para ser avaliada pelo Eng. Ludgero Marques, nosso concorrente na altura, e hoje meu grande amigo, que estava interessado em comprar. Sofro um choque. “Então também quero comprar”.

 

Quando é que isso lhe ocorreu?

Saiu-me naquele momento [riso]. Ele ficou surpreso a olhar para mim. “Trabalho para os senhores há 26 anos e nunca vos roubei, ou não me teriam deixado trabalhar tanto tempo; e apesar de não me queixar do vencimento, ele não é assim tão bom que me permita ter fortuna pessoal para vos comprar a empresa. Peço condições de pagamento”. Estou todos os anos a pagar uma fatia do valor que contratualizámos. Em 1997 transformo-me em empresário metalúrgico pela compra da Luso-Italiana.

 

Foi assim que se fez empresário. Com que espírito?

No dia em que disse que queria comprar, saí do gabinete e tremiam-me as pernas. Mas o que é que o grupo me ia fazer?, dar-me uma prateleira dourada no Banco Mello? Com 44 anos, essa não era a minha ambição de vida. Quando saí do gabinete pensei, “Como é que vou comprar a empresa?”. O desafio estava lançado. “Tenho que arranjar dinheiro para pagar as acções, que não tenho, e em 15 anos tenho de arranjar 250 mil contos, que hei-de arranjar”. Fui à lista dos nossos principais clientes, escolhi 15, pedi ajuda. “Preciso que me avance por adiantamento de compras 10 mil contos”. Dez deles adiantaram-me esse dinheiro, com o qual comprei as acções, e contratualizei os 15 anos do restante.

 

Era também o começo de um percurso que o traria à CIP. Entretanto foi convidado para a Associação dos Industriais Metalúrgicos e Metalomecânicos.

Quando me torno dono da Luso-Italiana, sou convidado para vice-presidente. Já como presidente da associação, o Eng. Francisco van Zeller convida-me no penúltimo dos seus mandatos, para director da CIP, primeiro, e depois para vice-presidente. Com a anunciada saída, pela acumulação de mandatos, os colegas, em Maio de 2009, começam a sondar-me para substituir o Eng. Francisco van Zeller. Eu não queria. Nunca pensei ser presidente da CIP.

 

Porquê?

Porque tinha consciência do enorme desafio, da exigência. Aqueles que conhecem esta casa conhecem os inúmeros dossiers, pareceres, os palcos em que temos que intervir, quer aqui, quer em Bruxelas. Vivo do meu trabalho, não sou rico. O Francisco van Zeller dizia muitas vezes: “Para ser presidente da CIP são necessárias uma de duas coisas, ou ser rico ou ser reformado”. Não sou nenhuma delas e no entanto estou presidente.

Comecei a sentir um movimento à minha volta. A direcção da CIP é composta pelas associações sectoriais ou regionais, e a certa altura, os presidentes de seis delas fizeram-me saber que, se quisesse, o seu voto seria para mim. Um dia o Eng. Francisco van Zeller diz-me: “Não permita que os seus colegas lhe façam essa maldade. Isto é muito desgastante e você está no activo, tem a sua empresa”. Respondi-lhe: “Esteja descansado que percebo o apelo, mas não estou disponível. O que tenho é de vender torneiras, é disso que vivo”.

 

Mudou de ideias. Porquê?

O movimento foi crescendo. Em Setembro tinha reunido 95 por cento de apoios dos nossos associados e entendi que não podia defraudar essa expectativa. Fiz um exame de consciência e falei com a família. O meu filho impeliu-me a avançar, a Mariana e a minha filha achavam que não, que era muito mediático, que estaria sempre na cara do touro. Resolvi aceitar. A primeira pessoa com quem falei foi com o Francisco, pedi-lhe que anunciasse que estava disponível. Por tradição, a direcção é que indica a direcção seguinte. Os colegas votaram favoravelmente. Houve depois alguns episódios caricatos, de carácter, que me magoaram. Depois de ter recebido os parabéns pela minha disponibilidade, dois desses inventaram uma lista concorrente. O Dr. Morais Cabral convidou-me para almoçar e disse-me que se tivesse que definir o presidente da CIP em dez itens, eu reunia nove. Mas havia um que não reunia.

 

Origem de classe?

Não o verbalizaram dessa forma, mas era nitidamente isso. Eu não era um figurava de reconhecido mérito nacional e internacional. Sugeriram-se ser vice-presidente de uma das pessoas que aceitaria ser presidente. Agradeci a frontalidade. Se essa conversa tivesse sido em Maio, eu hesitaria. Em Setembro, depois dos apoios que tinha recebido, depois de me ter disponibilizado, era imparável. E estava disponível a almoçar com quem quer que fosse para saber se queriam ser meus vice-presidentes.   

 

O seu perfil, por causa da origem de classe, mas também pelo seu percurso de vida, não coincide com o dos seus antecessores na presidência da CIP. Não é o chamado menino bem-nascido, ou licenciado, rico ou reformado. Na conversa com Morais Cabral, percebeu que estas suas características poderiam ser limitadoras do seu propósito?

Percebi. Em algumas conversas que fui tendo, pressenti que não seria o candidato de alguns de nós. Mas sabia que reunia o apoio de 95 por cento dos presidentes das associações. Foi isso que me motivou e fez dar este salto que inicialmente não desejei.

 

Como dizia a sua mulher, num cargo destes, está-se sempre na cara do touro…

Há uma exposição mediática muito grande, a opinião do presidente da CIP é muito requisitada, temos de pesar muito bem as nossas afirmações. Estar permanentemente a opinar sobre o PEC, sobre o OE, sobre as medidas do Governo, as declarações do PR, do PM, é muito desafiante. Temos aqui as maiores empresas nacionais, as maiores associações. Receava não estar à altura de representar esta massa da economia portuguesa. E tenho de continuar a vender torneiras, tenho de manter a minha pequena empresa no mercado.

 

Quem toma conta da sua empresa?

O meu filho, que já estava na empresa, faz a parte comercial, o financeiro é um antigo colega da Lisnave, que está comigo desde sempre, a produção está nas mãos de um homem que nasceu na metalúrgica. É uma equipa de gestão em que confio, que está madura e que me tranquiliza. Tenho alguma dificuldade em gerir os meus tempos, quer familiar, quer profissional. Pensava que conseguia uma manhã ou uma tarde na CIP e o restante dia na empresa. Estou a ir à empresa uma parte do dia, de 15 em 15 dias. Tenho 56 anos, sou um homem feliz, sou um homem realizado, tenho saúde; gostaria de não ser esmagado por este cargo. É um espírito de missão, estou aqui de alma e coração.

 

Lamenta não se ter licenciado?

Não lamento nada. Entrei para o Técnico, fiz o segundo ano de engenharia mecânica mas a voracidade daquele tempo levou a que, mais uma vez, o estudo ficasse para trás. Aqui ou ali, já senti o preconceito de não ser Dr. ou engenheiro. Sempre que dizia que era presidente da associação ou que agora sou presidente da CIP, imediatamente o Sr. António Saraiva passa a Sr. Dr., Sr. Eng. Repetidamente pedia que não me tratassem assim, até que me cansei, agora já não corrijo.

 

O seu percurso não seria atípico num país como os Estados Unidos, onde a regra base é a meritocracia, onde não se pergunta “de onde vens” mas “para onde vais”. A sua chegada à presidência da CIP marca um novo ciclo numa casa que era presidida por homens de direita, licenciados, tudo o que já dissemos. Isto agora vira à esquerda, representa um novo ciclo?

Não colocaria as coisas em termos de esquerda e de direita.

 

É um homem, desde sempre, mais próximo da esquerda do que da direita, ao contrário de todos os anteriores presidentes.

Sem dúvida que sim.

 

Nunca militou?

Não. Militei quando fui convidado a deputado pelo distrito de Setúbal, durante uns três anos, no Partido Socialista. Vivi aquela campanha por dentro, aquele cinismo, depois desisti. Não sou nem nunca fui filiado. Embora na nossa sociedade, por vezes, seja conveniente ter uma filiação, especialmente nos partidos de poder. Sou crítico da maior parte dos nossos políticos. Os melhores da classe política portuguesa foram ficando pelo caminho, por cansaço. Hoje temos na classe política, com honrosas excepções, pessoas que vêm das juventudes partidárias, têm pouco, para não dizer nenhum, conhecimento do mundo real, da economia, das dificuldades que o país tem na microeconomia. A vida é muito diferente daquilo que a maior parte dos nossos políticos pensa que é.

 

Fale-me desta guinada à esquerda, chamemos-lhe assim, num sector onde tradicionalmente os patrões são de direita.

Mas hoje, no século XXI, o que é de facto ser de esquerda ou de direita? É ter mais ou menos preocupações sociais? O que é que separa actualmente o PS do PSD? Interrogo-me muitas vezes porque é que existe um PSD e um PS. Se não existisse num mesmo tempo um Sá Carneiro e um Mário Soares, será que existia o PSD e o PS como existem hoje? A CIP era olhada como a confederação do grande patronato. Temos aqui algumas grandes empresas, mas a esmagadora maioria dos nossos associados são sectoriais e regionais, que têm como seus associados a realidade do tecido empresarial português. Estive presidente da AIMAP, e a maioria das 1.200 empresas associadas são pequenas e médias empresas. São pessoas como eu, que tiveram iniciativa, que arriscaram, que evoluíram. Foram arrojados, desenvolveram riqueza e criaram postos de trabalho. A CIP é a confederação desta gente. Sendo certo que também o é dos outros.

 

E agora mais, com esta reestruturação e aglutinação.

Ao evoluirmos de Confederação da Indústria Portuguesa para Confederação Empresarial de Portugal, felizmente, finalmente, houve o bom senso de ultrapassar quezílias, protagonismos.

 

Nem seis meses depois de aqui estar, consegue meter debaixo deste guarda-chuva todas estas confederações. Isso reverte, para si e para CIP, um imenso poder. 

Na liderança do Eng. Francisco van Zeller, tenho de fazer uma auto-crítica: cometemos alguns erros, tínhamos parado no tempo. Talvez por características pessoais, o Eng. Francisco van Zeller já não faria diferente. A minha ideia para a CIP, independentemente de quem a liderasse, [implicava] a reformulação do movimento associativo empresarial.

O paradigma de desenvolvimento alterou-se, não estamos a gerar emprego. É preciso, colectivamente, alterar isto, olhos nos olhos, sem os medos dos perigosos sindicalistas, ou ao contrário, dos patrões exploradores.

 

Conhece agora os dois lados da barricada.

Conheço. Se há algum mérito que a vida e a experiência me deram, é essa: perceber que há adamastores que têm que ser dobrados de parte a parte. O desafio que lancei aos sindicatos foi esse. Se mantivermos esta atitude, a destruir o que de bom pode vir do outro lado, só porque vem do outro lado, não vamos a lado nenhum. Precisamos dos sindicatos como parceiros das soluções, tal como os parceiros precisam das empresas e dos empresários para se criar riqueza, emprego, desenvolvimento.

 

Sente que tem muito mais poder?

Sinto que a base de representação é maior. Não sei se isso traz mais poder, admito que sim. Finalmente estão reunidas as condições para que uma única batuta faça acontecer esta ou aquela nova forma de fazer as coisas.

 

Gosta de exercer o poder?

Gosto.

 

O seu maior talento é fazer pontes?

Às vezes adjectivo-me dessa maneira: sou um arquitecto de pontes. Entre extremos, entre pessoas, entre interesses antagónicos, com diálogo, com persistência, não desistindo, indo à luta.

 

Começou por estar num lado da ponte e conseguiu chegar ao outro lado. Quando é que o outro lado da ponte deixou de ser inacessível? Quando é que as pessoas que estavam do outro lado da ponte deixaram de ser intimidatórias, o inimigo, os ricos, os que têm poder?

Nunca vi os outros assim.

 

Estas expressões que uso são as dos que têm um discurso mais enquistado num lado.

Quando regressei à Lisnave, e vi aqueles ódios, fiquei chocado. A Lisnave tinha escola de formação própria, serviços médicos, dava formação permanente, ganhávamos muito mais do que na generalidade das empresas, absorvíamos os tais jovens, como eu, das escolas industriais. Era uma empresa em que tive orgulho de ser admitido. As cuspidelas: eu era um trabalhador como eles, só porque não pensava como eles, já era fascista? Estava grato à minha empresa. Por isso aceitei o desafio de ajudar a construir uma solução. Ainda hoje, quando olho para o pórtico da Lisnave, tenho uma nostalgia, ainda amo aquela realidade.

 

Então nunca olhou para o outro como inimigo?

Nunca. Olhei para o outro com o respeito que o outro me merecia.

 

O orgulho que os seus pais têm em si aconteceu sobretudo quando se transformou num empresário e transcendeu a sua condição social e as limitações da vida deles?

Quando fui para a Lisnave, quando casei e tive os salários em atraso, tive que engolir um pouco do meu orgulho e voltar a estender a mão ao meu pai e pedir ajuda. Vivia numa casa alugada, pagava 3.600 escudos de renda, e nem a renda conseguia pagar, quanto mais a alimentação dos meus filhos, vesti-los e calçá-los. Foi uma lição de vida muito grande. O meu pai, sem me regatear ajuda, só me perguntava: “De quanto é que precisas?”. Nunca me perguntou para o que é que precisava. Durante anos ajudaram-me. O meu pai perguntava-me: “Mas tu na Lisnave não és electricista, não és canalizador, não tens uma profissão? Essa coisa do planeamento, o que é que tu sabes fazer?”

Quando sou convidado para director comercial, ficou muito orgulhoso. Depois, quando sou convidado para administrador do grupo Lisnave, ficou… Verbalizou há três semanas, pela primeira vez, numa mensagem de voz, emocionado e a chorar, o orgulho do filho.

 

Nunca lhe tinha dito até há três semanas o orgulho que tem em si?

Nunca desta forma. A minha mãe, sempre que saio nas revistas ou nos jornais, compra tudo e mostra às amigas. Mas diz-me: “Cuidado filho, estás sempre aí nos jornais, acabas por ganhar inimigos”. Às vezes as pessoas interrogam-se: “Então mudaste de campo? Eras sindicalista, agora és o patrão dos patrões?”. Sinto que nunca traí ninguém nem mudei de tabuleiro. O que fiz foi unir margens.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010