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Anabela Mota Ribeiro

Francisco Allen Gomes (2005)

23.03.14

«De que falamos quando falamos de amor?», perguntava Raymond Carver. O que é o Amor, o Sexo, a Paixão? Como diferenciá-los? Como são vividos na sociedade contemporânea? Serão os mesmos que o escritor americano fazia aparecer nos seus contos? Este é um mundo em mudança, como se pode ler no livro que Francisco Allen Gomes publicou recentemente. «Paixão, Amor e Sexo» condensa um conjunto de textos que o sexólogo escreveu avulsamente para várias publicações. Fala dos amores e desamores, das transformações da sexualidade ou de género, identidade e orientação.  

 

Denis de Rougemont, que cita no seu livro, diz que «O amor feliz não tem história». A felicidade é infecunda?

O problema não é a felicidade. O problema é o grande arrebatamento, (que envolve a paixão, a atracção). Será passível de ter uma trajectória que não seja necessariamente a extinção, mesmo sabendo que, depois, essa trajectória será mais tranquila?  

 

O que as pessoas procuram, de um modo geral, são relações estáveis? É a felicidade conjugal, a estabilidade domingueira? Ou procuram o arrebatamento, mesmo que saibam que é efémero?

Todas as pessoas que estão apaixonadas, estão convencidas de que esse amor vai dar certo. Quando as pessoas pensam na paixão, pensam sempre no amor romântico. Num amor que chega por si só, que é eterno, ideal, etc.

 

Esses ideais mantêm-se, são ainda destes tempos?

As pessoas acreditam nisso. Eventualmente pessoas mais velhas, que viveram várias situações, já não acreditam tanto. É interessante ver pessoas que têm ligações fortes, mas que já passaram por divórcios e que têm uma grande resistência em ir viver com o outro…

 

Têm horror à conjugalidade?

Exactamente. Porque viram o que aconteceu.

 

A conjugalidade é mortal? Há escapatória?

A conjugalidade não é mortal. A pessoa pode chegar à conclusão de que perdeu muita coisa, mas que também ganhou muito. O problema é não se poder ter tudo e as pessoas quererem tudo.

 

No seu livro faz uma distinção entre Paixão (ou amor romântico), Luxúria (ou amor físico) e Amor Afeição. Aponta um denominador comum: o sexo.

Para diferenciar de todas as formas de amor que as pessoas possam ter, desde o amor religioso, até ao amor pelos filhos.

 

Também diz que, quando se fala das relações, poucas vezes se fala de sexo. Mas a ideia que temos é a de que se está sempre a falar de sexo!

Dá a impressão que, a partir do momento em que se fala de sexo, não há afectos. Como se fosse uma coisa meramente desportiva, energética.

 

Mas, quanto a si, estão intrincadas?

Penso que sim. O sexo não pode ser secundarizado. Teoricamente, uma pessoa precisa de cinco minutos para ter sexo. Ora, não é isso que quer! Quer transformar este impulso, que rapidamente tende para um ponto final que é o orgasmo, em qualquer coisa que é muito mais do que isso. E o sexo assume uma dimensão erótica, uma dimensão cognitiva.

 

Philip Roth, de quem cita «The Dying Animal», fala da transcendência da dimensão erótica. O escritor diz que «O grande problema biológico humano é que tu és íntimo antes de conhecer seja o que for sobre a outra pessoa. No movimento inicial compreendes tudo».

Não tenho a menor dúvida de que a atracção é um pouco isto. Quando uma pessoa diz «aquele é o homem da minha vida» ou «aquela é a mulher da minha vida» e não sabe nada sobre a outra pessoa, isto é atracção. É sexo.

 

É química.

É. Claro que depois embrulha muito bem estas coisas. Como se tivesse necessidade de dignificar o sexo! A dificuldade está em esmiuçar a miríade de afectos e sensações que estão num fenómeno de atracção. Neste livro [«Memórias das minhas putas tristes», García Marques], o velho tem uma cena de ciúmes brutal, quando está com a miúda adormecida e desfaz o quarto. A velha patroa do bordel, entra nessa altura e diz: «Mas por que é que nunca tive um amor destes?». O tipo, a seguir, entra num sofrimento brutal. Mas não troca aquele sofrimento por nada.

 

Pois, e voltamos ao princípio, à felicidade ser infecunda. Aliás, sofrimento e paixão têm uma etimologia comum (pathos). São indissociáveis. A cena do livro de García Marques pode ser considerada, nos nossos dias, incivilizada. Quem é que hoje se atreve a partir o quarto para fazer uma cena de ciúmes?  

Ele diz mais: o ciúme é mais importante que a verdade. Ela [a miúda] não lhe fez aquilo, mas isso não interessa. O que interessa é o ciúme. O Roth também faz páginas e páginas sobre o ciúme. Este momento do ciúme, inicial, belo, que é tolerado pelos amantes, e às vezes até apreciado, se continua, torna-se destrutivo e provoca no outro um distanciamento, quando o outro vê um olhar que prenuncia qualquer coisa desse género, não suporta aquilo.

 

Todas as relações se parecem? Repetem-se os erros, as escolhas? Como se escolhêssemos sempre a mesma mulher ou mesmo homem.

Há quem diga que sim. Eu até sou muito agressivo!, digo que as fotocópias, às vezes, são piores do que os originais, vão perdendo qualidade. No fundo, é a história da pessoa que casa com o inimigo: apaixona-se por aquilo que é diferente.

 

O discurso corrente esbate as diferenças entre homens e mulheres. Diz-se que são ambos infiéis e que o comportamento em relação à família e à conquista se aproxima.  

Eu acho que há muitas diferenças! E cada vez me convenço mais de que algumas não são culturais. As pessoas amam de uma maneira diferente, têm uma visão da sexualidade, sobretudo da economia da sexualidade, completamente diferente.

 

Segundo «A resposta sexual», de Masters&Johnson, que cita, os homens precisam, em média, de dois minutos de coito para conseguirem um orgasmo; as mulheres precisam de oito. Esta diferença é abissal. E não destaco outros aspectos, como a importância dos preliminares, o espaço para a ternura e sedução, etc.

A certa altura, as pessoas desistem de se entenderem sexualmente. Dá muito trabalho, muito desgaste. E depois entram elementos de rejeição... E depois partem para outra porque pode ser que as coisas sejam diferentes.

 

O sexo pode ser um bom aferidor do estado de uma relação?

O sexo pode ser um bom aferidor da capacidade de comunicação e intimidade numa relação.

 

Dá muito trabalho conseguir um entendimento sexual com o outro. Mas deve-se fazer aquilo de que se não gosta só para agradar ao outro? Espera-se retribuição? A factura desse esforço, que não é gratuito, aparece quando?

Penso que muita da atracção masculina pela prostituição tem a ver com isso. Não tem que se preocupar se ela gosta ou não gosta! Está ali uma máquina que ele alugou para lhe dar prazer, para satisfazer as suas fantasias.

 

Crê-se que fazem com as prostitutas o que não fazem com as mulheres...

Conversa! Fazem com as prostitutas o mesmo que fazem com as mulheres. Não têm é que ter cuidado, não têm é que ter trabalho. No outro dia estava a ler uma entrevista sobre prostituição de luxo; um homem de negócios, rico, casado, diz: «Vou a um sítio onde sei que posso encontrar mulheres disponíveis, não prostitutas, que me obrigam a sair com elas, jantar com elas, obrigam-me a ser sedutor... Acabo por gastar uma pipa de massa, chegar a casa às tantas e ainda ter a mulher a chatear-me porque cheguei tarde. Vou a um bordel de luxo, marquei a minha hora, estou com uma mulher muito bonita, muito atenciosa, à meia-noite estou em casa e nem tenho que dar desculpas». É a sexualidade masculina no seu melhor. E todos temos um bocadinho disto... Não se iluda.

 

Vivemos um período de transformação das relações e da vivência da sexualidade?

Sim, sim.

 

Acabou a ideia de que o amor é para sempre e que só se ama uma pessoa? O normal é que haja vários amores, vividos de um modo faseado, uma relação de cada vez?

Não digo que seja o normal, mas é uma das possibilidades.

 

Uma das possibilidades é haver vários amores. Que outras coisas marcam este quadro de mudança?

Que a manutenção do amor obriga a uma negociação permanente. Aí dou razão ao Giddens: um homem e uma mulher estão em casa a ver televisão, coisa banal; mas de cinco em cinco minutos aparece qualquer coisa que gera duas posições. Ele chama a isto a experiência do quotidiano. Tudo tem de ser permanentemente negociado. O casamento é agora, muito mais, um casamento entre iguais.

 

Apesar das várias assimetrias.

Apesar das assimetrias. Mas há uma coisa importante: a mulher não tem nada a ver com a mulher de há 20 ou 30 anos. A maioria esmagadora das mulheres não considera que o casamento seja uma carreira. Portanto, não está disposta a fazer determinados sacrifícios. Eu já não encontro mulheres a fingir orgasmos!

 

É uma mudança muito sintomática.

Nos anos 70 e 80 via mulheres com 20 anos, 30 anos de casamento a dizer que fingiram sempre, sempre, sempre. Nunca tiveram um orgasmo, nunca tiveram excitação e fingiram-no sempre. E isto - elas a queixarem-se - era perfeitamente transversal, sobretudo da falta de desejo. As mulheres já não fingem. A natureza da relação alterou-se e é mais paritária.

 

E a falta de desejo e o aborrecimento sexual, como é que se resolvem?

­Há muitas mulheres, dessas que estão aborrecidas, chateadas, a quem aquilo não dá gozo especial. Qual é a saída? A saída acaba por ser fazer, outra vez, uma grande paixão. Tenho e-mails de mulheres a dizer: «Será que deixo de gostar deles ou será que sexualmente alguma coisa me cansa e me coloca na minha situação normal, que é a de não ter desejo? No fundo, não tenho desejo. Só tenho desejo em função da paixão».

 

É outro lugar comum: as mulheres só desejam em função dos afectos. Não separam a luxúria da paixão.

A mensagem que dou às mulheres é a seguinte: é muito importante ter apetência, é muito importante sentir-se sexualizada, quer tenha, quer não tenha ninguém. É importante ter este sentimento: «quando eu quiser, eu tenho». Não é justo que não possam ter isto. Se eu posso ter, por que é que vocês não hão-de poder ter?

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2005

 

Dama Bete

22.03.14

Tomámos um capuccino num hotel fino de Lisboa. Ela está sentada à minha frente e tem um corpo franzino, uma voz frágil, uma atitude quase dócil. Custa a identificar aquela como sendo a Dama Bete desafiadora, segura, afirmativa, que está, por exemplo, na capa do disco “De igual para igual”. Ou a Elizabet que não baixou os braços e que não quis desistir. (As suas colegas, como diz, foram mães adolescentes). Talvez tudo fosse diferente se não fosse o rap. “Quando começo a rappar, eu transformo-me!”, esclarece.

O disco tem dois temas que rolam nas rádios e televisões: “Cala-te” e “Definição de amor”. Mas há mais. A atitude, o universo, uma estética americanizada que se abre ao R&B e à cultura europeia. O seu flow (ou seja, a forma de rimar, de brincar com as palavras) é importante, mas não é o mais importante. Dama Bete tem coisas para dizer, e di-las.

 

Comecemos por palavras suas. “Já percorri caminhos em que me perdi/ já tive sonhos que nunca foram cumpridos”. “Destino: tenho que aceitar?”. Quando é que percebeu que o seu destino estava nas suas mãos?

Quando era criança, ia à catequese, ia à missa. Achava que tudo estava nas mãos de Deus, que já havia um destino e que nós só tínhamos que obedecer. Ao mesmo tempo, uma parte de mim era contra isso. Aos 16, 17, quis tomar as minhas próprias decisões. Escolher o curso que queria, impor-me contra os meus pais. Percebi que comandamos o nosso destino. Se lutarmos, conseguimos. Apesar de haver coisas que não escolhemos, como o sítio onde nascemos, a família, a raça.

 

Há um momento em que acredita que os sonhos se podem cumprir. Fale-me de como é que percebeu o que queria, acreditou que era possível, e foi por aí.

Sempre fui uma pessoa muito criativa. E impulsiva… No momento apetece-me fazer uma coisa?, acabo por fazer. Desta forma fui-me encontrando. Fui encontrando aquilo que queria ser. Muita gente dizia que estava perdida. O meu irmão: “Tu nunca sabes o que queres”. A minha mãe: “Hoje queres isto, amanhã queres aquilo”. Mas foi esse poder, de experimentar, que me levou ao meu caminho.

 

Que percurso está para trás, até encontrar o seu caminho?

Aos 10 anos, tive uma professora que nos incentivava a escrever poesia. A minha escola ia mudar de nome e passar a chamar-se Matilde Rosa Araújo. Ganhei o concurso, conheci a Matilde Rosa Araújo, pensei que se calhar tinha talento para escrever poesia. Eu tinha boas notas. Até ao sétimo ano tinha cinco a tudo. A partir do sétimo, deixei de me identificar com as minhas colegas. Passei a dar-me com pessoas que viviam em bairros sociais (bairro das Marianas e bairro de Matarraque) que ficam perto da minha casa, na Parede. Percebi que havia outras realidades, comecei a ouvir rap e música negra. Quis falar na minha poesia – que já não era sobre as árvores, o céu – dos problemas da sociedade, de coisas que eu via e que não achava justas. As notas baixaram.

 

Até aí, quis ser médica.

A minha média era 16,7. O meu pai: “Disseste sempre que querias ser médica e agora já não queres?”. Quis cinema, vídeo e comunicação multimédia. Algo em mim chamava-me para um curso ligado às artes. Fui, estudei um ano e desisti. Já começava a fazer música e levava-a a sério. Desisti da Universidade Lusófona, onde a propina era cara… Fui para uma universidade pública estudar Gestão do Lazer e da Animação Turística. Com o intuito de estar ligada aos eventos. Neste momento estou na Restart para aprofundar os meus conhecimentos.

 

Nasceu em Moçambique, veio aos dois anos para Portugal. Como é que descreveria e situaria a sua família, e como é que isso determinou o seu percurso?

Em 1986, quando vim para Portugal, em Moçambique havia uma guerra civil. E havia fome. O meu pai é português, a minha mãe é moçambicana. O meu pai queria que viéssemos para Portugal. Poderíamos estudar e ter uma melhor vida do que aquela que tínhamos lá. Somos três filhos do meu pai e a minha mãe tem mais três filhas. O meu pai continuou a trabalhar lá, na exportação de madeiras para a África do Sul. Sempre vivi só com a minha mãe, a minha irmã e o meu irmão. O meu pai, o contacto que tive, foi: pagou os estudos, foi o sustento da família. Acompanhava a nossa vida e as nossas decisões. Sempre disse aos amigos: “Esta vai ser médica”. O meu pai, que tem família espanhola, ainda quis que eu pensasse estudar medicina numa universidade espanhola. Não queria desistir da ideia de eu ser médica.

 

O desejo de ser médica passava também por uma afirmação social?

Acho que sim. Mas um lado de mim gosta mesmo de ajudar os outros, da intervenção social. Fiz um estágio no [Centro] Porta Amiga, da AMI.

 

De onde vem o desejo de intervenção social, que está muito presente nas suas letras?

Tem a ver com o facto de a minha mãe ser moçambicana, negra. O meu pai parece indiano, o pai dele era mulato e a mãe branca. A minha mãe nunca teve os mesmos direitos dos portugueses. Sempre que eu queria fazer alguma coisa, a minha mãe não tinha dinheiro para isso, ou não tinha forma de tratar disso. Não tivemos direito a subsídios para livros ou transportes, abonos familiares. O meu pai, não estando presente, não havia quem tratasse. Trato dos meus documentos desde os 14, 15 anos, sozinha. Revia-me nas pessoas dos bairros sociais porque eles tinham os mesmos problemas.

 

A vossa condição era: não viviam num bairro social, mas tinham uma vida material próxima daqueles que viviam num bairro social.

Sim, muito próxima. Eu não me indentificava com os meus colegas cujos pais iam buscá-los à porta da escola. Nunca pude fazer nada. A nossa viagem de finalistas do nono ano era aos Açores e eu não tinha dinheiro para ir. No último dia, a professora ofereceu-me o bilhete. São realidades que quem está de fora não percebe. Por exemplo, acabei a faculdade e só um ano e tal depois pude pagar a propina e ter o diploma. Porque é que não pedi bolsa? Porque nunca foi aprovada. Faltava sempre um documento, qualquer coisa.

 

O que se passa nestas letras é bastante autobiográfico?

É denúncia. Quando escrevo, também penso na situação de pessoas que observo. Na Porta Amiga da AMI, de dia estava com crianças, à noite com idosos. Olhava para as crianças e pensava: que futuro é que vão ter?

 

A pobreza determinou a sua vida?

Sim. Não conseguir ter coisas que queria… Está na letra do “Já”: “Já quis ser tanto e nunca consegui”. Havia pessoas na minha turma que jogavam ténis; “Mãe, quero jogar ténis”, “Onde é que está o dinheiro?”. Nunca joguei. Ou ballet. Só pratiquei os desportos escolares. Outra coisa: a minha mãe nunca teve carro. Era preciso vir das compras com os sacos carregados, ajudar. Mas isso também me deu força.

 

Alimentou a sua vontade de vencer?

Eu não queria aceitar que aquele fosse o meu destino. Na minha música “Destino”, o “Carlos” conhece o seu “irmão gémeo”; o irmão tinha-se tornado em tudo aquilo que ele queria ser. Ele, “Carlos”, desistiu de lutar, aceitou o que era. Eu nunca quis aceitar. As pessoas sempre me disseram: “A música não dá dinheiro”. Quero provar que estão erradas. Ainda não consegui provar [risos]. Mas se é aquilo de que verdadeiramente gostamos, podemos vencer.

 

Houve alguém que tivesse aparecido na sua vida e que tivesse o efeito que o “irmão gémeo” teve na vida de “Carlos”?

Acho que isso aconteceu no primeiro ano da faculdade. Fiz um estágio no Santiago Alquimista (tinha enviado o meu currículo e feito entrevistas, fui aceite). Participei no Festival Musidanças. Foi nesse festival que realmente quis ser artista. Conheci músicos. A Sara Tavares, os Terrakota, o Firmino Pascoal. O Firmino foi a pessoa que mais acreditou em mim. “Tu cantas, vais ter que cantar”. Eu estava apenas na produção do Festival. Saiu uma crítica na revista Blitz, positiva, apontando-me como a artista revelação do festival.

 

Dama Bete é um personagem. A maneira como está e como olha é diferente da da Elizabet que está à minha frente.

Quando tive oportunidade de gravar o álbum, quando a Universal quis assinar comigo, queriam a rapper. Tenho uma grande preocupação com a estética. Não gosto de fotos em que não esteja bem… Tem a ver com o meu lado feminino. Queria que o título do álbum, “De Igual para Igual” me representasse. Que fosse ao encontro dos outros homens que fazem rap. Também estou aqui, também aqui cheguei, também consigo.

 

Há muito menos mulheres a fazerem rap.

Era muito Maria-Rapaz. Daquelas que estão sempre com feridas e que sabem sacar com a bicicleta [fazer cavalinho], dar toques na bola. Não ter o meu pai presente, fez-me ouvir o que o meu irmão dizia. A dada altura, o meu irmão criou um grupo de rap. Comecei a imitá-lo. Levava as minhas letras super-infantis, em que falava da floresta e dos problemas da Natureza. Tentava rimar como ele rimava. O meu irmão criou uma comunidade na internet e não havia raparigas. “Tu não queres fazer uma das tuas musiquinhas?”. Eu era a B.Boss – influência dos Estados Unidos. Já não consegui parar.

 

Na sua página do MySpace, fala da disciplina do hip hop: com pouco fazer muito. E tem outra divisa: do it yourself.

Nós próprios, com o pouco que temos, temos de conseguir fazer. Por exemplo, não tínhamos mais bugdet para fazer um vídeo, e eu queria fazer um vídeo de uma música que dissesse quem sou, que não fosse a música que passa nas rádios e televisão. Então, o meu irmão e eu fizemos o vídeo do “Já”. Eu filmei-me com uma máquina fotográfica e o meu irmão fez a parte 3D. E pronto, fizemos aos poucos.

 

Nunca baixou os braços. O que seria previsível.

Não. A minha mãe diz que sempre fui muito orgulhosa e com a mania que sabe tudo. Também é verdade que dentro de casa sempre fomos muito competitivos, uns com os outros. A jogar computador ou playstation ou megadrive. O que é que queria ganhar? Queria provar que conseguia.

 

Esteve perdida? Fala disso na letra do “Já”. “Já andei perdida sem saber como voltar”.

Quando comecei a perceber e a sentir a injustiça – porque é que uns faziam isto e outros não podiam? –, revoltei-me. Andei com más companhias. Tinha daqueles amigos que as mães não querem que entrem em nossa casa. Não diria que os meus amigos fossem todos assim, mas muitos eram. Tinha um namorado que com 16 anos foi preso. Há uma fase em que as raparigas gostam dos mauzões. [risos] Tinha cabelo rapado de lado, rabo de cavalo, ténis da Nike, fato de treino. Eu conseguia ver o outro lado. Viam-no como um ladrão, que roubava telemóveis, que andava sempre à porrada. Eu via o lado da injustiça que ele estava a viver; o pai que faleceu cedo, a mãe que não ligava, não estar na escola aos 14 ou 15 anos. No fundo, é bom rapaz.

 

O que é que não a fez resvalar para o outro lado?

Eu sempre quis continuar a estudar. Sempre tive o sonho de ser alguém. Às vezes não sabia o quê, mas tinha o tal sonho de vencer, vencer pelo meu esforço. Os meus amigos dessa altura: as raparigas, quase todas, tiveram filhos aos 16, 17 anos. O meu ex-namorado foi preso mais duas vezes. O meu irmão também já esteve perdido. Desistiu dos estudos no 12º ano, passava a vida a dormir. Um dia decidiu voltar e com 23 anos inscreveu-se em engenharia multimédia.

 

O que é que os seus pais dizem do seu disco?

A minha mãe gosta. Apesar de não dizer, sei que tem orgulho, e fica feliz quando perguntam: “A sua filha é a Dama Bete?”. O meu pai não tem noção do que se passa cá. Sempre que liga, pergunta: “Então, já arranjaste emprego?”.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2008

 

Francisco van Zeller

20.03.14

Francisco van Zeller, o terceiro de 11 irmãos, o pai de quatro filhos muito diferentes entre si. Casado com a jornalista Maria João Avillez. Empresário, engenheiro químico. Ex-presidente da CIP. Um homem influente. Em tempos foi rico.

Mas não gostaria que ficasse dele esse retrato: o de homem de sociedade, o de menino com infância privilegiada.

Mesmo que tenha sido tudo isso.

Conversámos quase duas horas. Nas quais, como num filme de Visconti, num longo travelling, nos detemos no brilho dos cristais, no conteúdo das gavetas, nos gestos elegantes, na angústia, na dilaceração, na intensidade do protagonista. Há em Francisco van Zeller qualquer coisa do seu pai, que pensava que com os homens se fala de assuntos sérios e que as mulheres são para mimar. E há nele qualquer coisa da mãe e da avó (das mulheres da família), que com graça enchiam um salão e descreviam a cena como num romance.

Também falámos de coisas do dia a dia, como fazer contas. Ou de quando se “opôs”, como então se disse, ao aumento do salário mínimo. Ou da localização do novo aeroporto de Lisboa. Ou da relação com Vieira da Silva e com os socialistas. Do que é ser de direita e dar-se “com a maior das facilidades” com a esquerda.

Há palavras que marcam, palavras de código, um vocabulário que define de que lado de está. “Pessoal”. “Pouquíssimo”. “De todo”. Só para dar três exemplos.

Que podem não querer dizer nada. Ou que dizem.

Tem uma postura física algo hirta, e depois percebe-se que essa é só uma expressão do seu modo de ser. É extraordinariamente amável e bem educado. Com a voz, o mesmo: dura, sem dissimulação, e clara.

É também, surpreendentemente, um homem inseguro. E um homem capaz de confessar as suas inseguranças.

A entrevista aconteceu na sua nova casa, no AICEP. As fotografias aconteceram na sua casa de família.  

 

 

Nasceu em 1938. Tem memórias de infância relacionadas com a Segunda Guerra Mundial?

Tenho imensas. A primeira recordação é a das restrições, principalmente da manteiga, açúcar, ovos e arroz. Só começo a ter memória no fim da Guerra, em 1943/44. Lembro-me de haver discussões na nossa família entre os pró-germânicos e os pró-britânicos. Tios a gritar muito uns com os outros. Toda a sociedade portuguesa foi atravessada – já ninguém se lembra, mas foi. Lembro-me de ver as janelas com os adesivos, por causa dos estilhaços. E de aviões britânicos a aterrarem.

 

Onde?

Hidroaviões a aterrar no Tejo, mesmo à nossa frente, no Verão de 1944. Mas era uma coisa solta. Para nós era um divertimento, era inglês e era da Guerra. Só muito mais tarde é que as coisas se começam a ligar. Aterraram em Portugal, entre ingleses e alemães, centenas de aviões que se perdiam das suas formações e que aterravam em Portugal porque era um país neutro, não constituía perigo, não eram presos. A mais severa de todas as memórias tem a ver com um vizinho de origem alemã. Eram dois irmãos gémeos, um naturalizou-se português, o outro não, e foi chamado para a Guerra com 16 anos. Depois lembro-me de uma grande choradeira quando apareceu lá em casa um envelope da Alemanha que ninguém queria abrir, pensando que era o anúncio da morte dele; mas tinha sido apenas ferido.

 

Nas discussões pró-germanófilas, pró-Aliados, como é que os seus pais, e núcleo familiar mais restrito, se posicionavam?

Penso que eram pró-Aliados. No nosso caso, era pró-Inglaterra. Nunca se falava em Aliados. Os americanos eram uma coisa estranha. Mas a minha avó, mãe do meu pai, tinha tido uma educação alemã, e era pró-Alemanha. Até saber o que se estava a passar. Até 1943, 1944 pouco se sabia do que se lá passava, não havia informação suficiente para se tomar partido.

 

A família van Zeller tem uma matriz judaica?

Não. Holandeses e católicos. E por serem católicos, foram expulsos da sua cidade de origem. Começaram a fazer negócios internacionais e acabaram por se estabelecer em Portugal. O primeiro estabeleceu-se em 1720.

 

A genealogia da família: pesquisa-se, qual é a sua importância? No fundo, o que é que significa ser um van Zeller?

Já não tem grande significado, perdeu-se ao longo dos anos. Houve muitas misturas. Sou o oitavo descendente desse senhor, Arnaldo João. Mais próximo estou da família belga, do meu bisavô. Fiz uma festa da família em 1988, com outro primo do norte, e enviámos mais de 800 convites a toda a família espalhada pelo mundo. Vieram 300 ou 400, muitos dos quais não conhecia.

 

Tem dez irmãos.

É menos aventuroso do que se pensa. Era uma casa muito grande onde viviam também tios, a minha avó, o pessoal… havia gente que nunca mais acabava. Tudo aquilo funcionava com muita disciplina. Só depois de fazermos a 4ª classe é que almoçávamos e jantávamos com os nossos pais.

 

Era o prémio?

Ganhávamos uma bicicleta e jantávamos à mesa com os pais. Antes disso era na copa. Arranjávamo-nos para ir à mesa falar aos pais antes de ir para a cama. Mãos fora das algibeiras, muito direitos, formados por altura, davam-nos um beijinho na testa e andor para a cama.

 

Código estrito. Tem memória dos seus pais a fazerem um gesto de carinho?

Os meus pais eram muito meigos connosco, não tinha nada a ver com afastamento. Eram pais e mães verdadeiros. Lembro-me de contarem, em relação aos pais deles, do afastamento, esses sim. A minha mãe foi educada pela avó, não pela mãe. O meu pai foi educado por uma senhora inglesa, porque a minha avó tomava conta do meu avô, que era muito doente. O meu pai tinha formação inglesa severíssima. Nunca se encostou numa cadeira, nunca teve frio nem calor, a comida nunca esteve salgada nem deixou de estar, até à morte viveu direito, e nunca se queixou de nada. Desporto, muito desporto, desde pequeno. Rezava e contava e inglês, sonhava em inglês. Até à morte do irmão, sempre que se zangavam, discutiam em inglês. Era a maneira de ser dele.

 

O senhor é assim?

Não. Saímos todos à nossa mãe. Às vezes penso nisso e tenho pena. Ele adormecia e acordava como um relógio, com uma vida completamente regular. Muita energia, trabalhava 12 horas por dia. Até aos 75 ia à caça de salto, a pé, nunca fez “caça dos ricos”, como ele dizia.

 

Na vossa educação, falavam em que língua?

Simultaneamente francês e inglês. Desde que me conheço.

 

Tinham uma mademoiselle que falava em francês e o pai em inglês?

Tínhamos lições. E depois o piano. Fazia parte.  

 

Curioso, isso de todos saírem à mãe.

Ou não termos saído ao pai [risos]. Havia uma influência muito forte do lado da minha mãe, que era a minha avó. Era neta de Ramalho Ortigão e todos nos lembramos disso por causa do humor dela e da capacidade descritiva. Tinha a capacidade de encher uma sala com graça. Passávamos três meses por ano em casa dela, no Verão. Pode ter tido influência na rejeição daquela maneira de ser do meu pai, tão disciplinada. Esses três meses por ano mostravam-nos que havia uma vida diferente.

 

Espirituosa.

Muito mais espirituosa, alegre, de salão, literária. O pai tinha o vício, a religião do trabalho. Isso herdámos. Com a minha idade continuo a trabalhar, de graça, por amor ao trabalho. O trabalho justifica-se em si próprio.

 

Porque realiza, faz sentido?

Sim, e porque é quase uma obrigação: se as pessoas podem trabalhar, têm que trabalhar. Os meus irmãos são assim também.

 

A sua mãe nunca trabalhou, imagino.

Não, ficou a tomar conta de nós todos, coitada.

 

O seu pai trabalhava na empresa da família, a Metal Portuguesa?

Dele. Ele é que fez tudo, de raiz, imediatamente antes da Guerra. Pode ter sido a Guerra que a fez prosperar. Era um negócio que durante a guerra dava muito (a recuperação de baterias velhas para fazer chumbo, que fazia imensa falta para as balas). Depois construiu muitas outras empresas ao longo da vida. Nenhum de nós tem essa capacidade de iniciativa.

 

Trabalhou na empresa.

Aos 26, 27 anos, trabalhei com um sócio dele, e o meu cunhado trabalhou com o meu pai. Os dois herdámos o trabalho dele e do sócio. Eram dois e dois ficámos até ao fim, quando o meu cunhado morreu em 1992. Saí da empresa em 2002. Desde muito cedo, 10, 12 anos, ia para o laboratório da fábrica. O meu pai deixava-me com uma senhora fantástica, a Dona Lúcia, que me entretinha a fazer químicas. Um dia disse-me que se gostava de química, ia para engenheiro químico. Aquilo ficou-me na cabeça. O meu pai é engenheiro, os irmãos e a família toda da minha mãe eram engenheiros: não havia dúvida nenhuma.

 

Não sai ao pai no resto, mas a escolha do seu destino profissional…

Foi um bocadinho dele, mas influenciado pelo tal sócio. Desde os 12 anos que o ouvia dizer que estava à minha espera. E assim foi, quando acabei a tropa fui para lá.

 

Ao mesmo tempo, podia ser altamente castrador.

De todo. Era natural nos filhos dos grandes industriais. Ainda hoje na Alemanha e em grande parte da Europa é assim: os filhos herdam os negócios dos pais e desde muito cedo mergulham nesse ambiente. Nunca senti nenhuma prisão nem vontade de fazer diferente. Fiz muitíssimo diferente do meu pai lá dentro. Entre mim e o meu cunhado transformámos a empresa. Só ficou o nome. Quando saí, no último dia, olhei e pensei que tudo o que ali estava tinha sido eu a fazer. Não era nada que tivesse herdado do meu pai, nada. Não havia um parafuso, uma telha, uma cor, um interruptor, uma secretária, nada da empresa que recebi. O meu cunhado, idem. Fechámos todos os negócios que o meu pai nos deixou e começámos negócios novos. O meu pai tinha imensa admiração pelo nosso trabalho.

 

Essa admiração era expressa?

O mais possível. Convidava-nos para contar o que estávamos a fazer e encorajava-nos, dizia-nos que era a nossa hora. O espanhol, [o sócio], um bocadinho menos; por ser mais velho teve dificuldade em adaptar-se a tanta modernidade.

 

Nesse tempo, olhava para si como sendo o sucessor?

Sem dúvida. O meu irmão foi para Agronomia. Sentia a responsabilidade, embora partilhada com o meu cunhado. Quando o meu pai saiu fez-se um acordo para sermos presidentes em rotação, e nunca quis. Até ele morrer, foi sempre o presidente.

 

Porquê?

Porque era um tipo fantástico. Tinha muita iniciativa. Regrado, ambicioso, bom de contas, a vender e em contactos com clientes. Talvez não tivesse tanta imaginação como eu; as novidades e as inovações eram para mim. Era uma combinação perfeita. Até em família, o meu pai tratava-o como se fosse filho. Uma curiosidade do meu pai: admirava os filhos imenso, as filhas eram para mimar.

 

Como assim?

Havia uma distinção na cabeça dele: negócios, trabalho, esforço, caça, fábricas: os homens. Tudo quanto era divertimento, ir ao cinema, viagens, compras, vestidos: as raparigas. Para ele era simplicíssimo. [risos]

 

Emocionalmente, como é que foi ser o herdeiro do seu pai?

Não tive emoção nenhuma. Nunca o assumi como um fardo ou como uma herança especial. Tinha a obrigação de que a empresa funcionasse e desse dinheiro (era daí que o meu pai vivia depois de se reformar). Felizmente sempre foi uma empresa muito rentável. Comparo os valores de crescimento daquele tempo, de 30 e 40 por cento durante 10 anos seguidos; hoje é impensável. O meu irmão número sete também trabalhou lá – brilhante; depois saiu e abriu um negócio relacionado com este. E depois estiveram os mais novos, e o mais velho, todos trabalharam. Tive um lugar de topo por ter chegado primeiro e por ter tido este curso.

 

Estudou no São João de Brito, mas depois foi para o liceu Gil Vicente. O liceu fica na Graça, que é um bairro popular.

Era uma regra. A nossa casa era ali em Santa Apolónia. E quanto a ir para o liceu, era por essa razão: por ser popular. O meu pai não nos queria metidos num casulo. Mesmo assim só fui ao cinema pela primeira vez quando tinha 12 ou 13 anos.

 

A casa era o mundo?

Era. Vivíamos todos lá dentro. Os irmãos, os primos, 18 ao todo. Eram andares e tinha o jardim comum onde nos encontrávamos.

 

Como é que foi chegar ao Gil Vicente vindo da sociedade?

Não me lembro de nenhum choque.

 

Foi a primeira vez que se deu com pobres?

Não. Para já, não eram pobres. Quem entrava para o liceu já não era pobre. O colégio São João de Brito, que se pensava que era uma grande elite, não era. Os jesuítas admitem muita gente que não paga. Sabia que havia alguns com dificuldades, havia ao pé de nós um lar dos filhos de professores primários (não era gente com muito dinheiro), e era com esses que ia para o liceu. Nunca tinha visto dinheiro. Só comecei a ter dinheiro quando fui para o liceu.

 

Não se falava de dinheiro?

Não.

 

Quando não há dinheiro, fala-se. Grande diferença.

Talvez. Nunca precisei a não ser para ir para o cinema. Quando fui para o Técnico, aí sim, fazia falta. Tinha a Vespa, tinha que meter gasolina, comer fora. No dia em que acabei o curso, o meu pai deu-me um envelope e disse que aquele era o último, acabou-se.

 

Como é que aprendeu a gerir e a dar valor ao dinheiro?

Nunca tivemos muito dinheiro. Talvez o meu pai tivesse, e bom proveito para ele, mas nunca foi generoso connosco a dar-nos dinheiro. Tínhamos roupas, comida; agora, dinheiro na mão, pouquíssimo. Nunca tive dinheiro a mais, a não ser com os primeiros ordenados, já com 24 anos.

 

Não lhe ocorria, se precisava, pedir ao pai?

Se fosse, era à mãe.[risos]. O pai tinha a religião da escassez, da poupança. Dinheiro para uma festa, para comprar bebidas, para ir a Cascais de Vespa? Nem pensar! “Vá de comboio”, dizia-me ele. Lembro-me de herdar as roupas e o calçado do meu irmão mais velho, e as minhas irmãs também partilhavam. Não havia esbanjamento. Na relação com o dinheiro, uma vez que a base estava satisfeita, não tínhamos mais necessidade nenhuma, a não ser para brincar. O meu pai era muito severo e não queria dinheiro a mais para brincar.

 

Como é que percebeu que havia pessoas que não tinham sequer essa base adquirida?

Naquele bairro onde vivíamos, que era muito pobre. Nas idas para o Alentejo, para as herdades da família alargada, também convivíamos com a gente do campo.

 

Mas era claro que uns eram filhos do pessoal e outros filhos dos senhores.

Sim. Como é hoje e será sempre – é histórico. Nesse tempo havia mais uma distinção, até da própria roupa. Agora não, tudo se veste da mesma maneira. Devo insistir que nunca vivi em função dessas diferenças. Elas existiam, mas não me afectaram muito.

 

Verdadeiramente nunca pensou como seria se estivesse do outro lado?

Só quando comecei a trabalhar e a ter responsabilidades sobre o pessoal, já com 26 anos. Ter que mandar, tomar medidas incómodas, aumentar ou não ordenados, ter que despedir – isso é que me marcou. Tinha autoridade para despedir uma pessoa que tinha mulher e filhos. Tinha de refazer, reformar as empresas, e muitas vezes tive de reduzir pessoal. Mas até ao fim penso que nunca abusei. Dei-me sempre bem com o pessoal. Havia muito patronalismo quando comecei a trabalhar, um respeito muito grande por quem mandava.

 

Respeito ou subserviência?

Respeito. Sei que era respeito porque eles traziam os filhos para os obrigar a estudar e me zangar com eles quando tinham más notas. Durante as férias: ocupá-los ali para não andarem na vadiagem (como diziam). E quando precisavam de dinheiro também vinham pedir, ou empregos para os filhos. Sinto que havia respeito da maioria. Talvez despeito também, dos que ficavam mais para trás.

 

Em nenhum momento, nem no 25 de Abril, pensou como seria se perdesse tudo, se tivesse de começar do zero, se deixasse de ser um privilegiado?

Tinha uma bóia de segurança, que nessa altura tinha mais valor do que agora: um curso. Não havia engenheiros desempregados. Quando foi o 25 de Abril, na nossa empresa, que já era metade americana, poderia haver qualquer problema, e arranjei um emprego no Brasil. Depois as coisas compuseram-se aqui e não foi preciso ir.  

 

Isso chegou a ser cogitado tão firmemente?

Sim. No 25 de Abril perdi todo o dinheiro que tinha. Achei que havia qualquer coisa no ar; peguei no dinheiro todo e, tal como o meu pai dizia, comprei pedra e cal. Comprei uma casa no Algarve, muito boa. A revolução passava e a casa ficava. Só que a empresa que era dona dessa casa faliu, ficou com o dinheiro e nunca mais a vi. Perdi tudo. Comecei desde o princípio, alegremente.

 

Alegremente?

Tinha os filhos, que era o mais importante, a mulher, a família, a casa. Tinha um emprego e um ordenado. E com isso recomecei.Às vezes falo aos meus filhos do tempo em que era rico. Nos anos 60, tinha conseguido juntar bastante dinheiro. Nunca mais voltei a ter o dinheiro que tinha antes do 25 de Abril.

 

O que é que perdeu verdadeiramente? Que diferença fez na sua vida não ter o mesmo dinheiro?

Viajava de toda a maneira e feitio. Não sabe o que é comprar um carro ao telefone? Em 1970 comprei, em três meses, dois carros, uma para a minha mulher e outro para mim, ao telefone. Via numa revista, gostava, “venha cá, leve-me o velho e traga-me um novo”. Esses luxos de passar um cheque e já está acabaram com o 25 de Abril. Agora tenho que pensar, fazer contas, como toda a gente. Falo disso sem ressentimento, foi bom enquanto durou. Guardo as recordações boas. Ainda não disse nada de mau porque se calhar não me lembro das coisas más.

 

Quais foram as grandes dores da sua vida?

Isso não lhe vou dizer, porque é muito mau. Mas o maior medo que tive na minha vida foram os primeiros três anos do Técnico. Um sofrimento pavoroso. Os professores humilhavam os alunos de propósito, para os rebaixar. Passei os exames do liceu e a entrada para o Técnico com notas gigantescas e mal cheguei lá percebi que era uma formiga.

 

Era humilhado por ser um menino de família e conservador?

Não, não. Era humilhado porque tinha notas boas e queriam humilhar-nos. Não havia maneira de conseguir vencer aquilo que não fosse o trabalho e o esforço lá dentro. O esforço passado não contava. Estar sempre à beira de chumbar…, e na nossa casa chumbar era impensável, o meu pai nunca acreditaria.

 

Foi doloroso porque foi tratado como um igual?

Não. Havia alguns proeminentes por valor próprio. Em todas as classes há sempre uns que são excepcionais.

 

Incomodava-o não fazer parte desse grupo dos excepcionais?

Não. Tinha uma enorme admiração por eles, sabia que não tinha a inteligência deles.

 

Sabia? E era fácil lidar com isso?

Era, pedia-lhes explicações quando precisava, e eles davam. Foi a primeira vez que pensei que eles eram não só inteligentes como muito cultos; falavam de música, de arte, iam a exposições. Fiquei amigo de alguns. Orgulhava-me muito de ler literatura mais complicada, alemã, sueca, os prémios Nobel raros, os russos, achava-me intelectualíssimo. Comparado com eles, não era nada.

 

Aquilo fez bem ao seu narcisismo?

Nunca fui narciso. Nunca tive nenhuma admiração por mim. A minha mulher queixa-se disso. Nunca me achei o melhor, sempre admirei pessoas acima de mim. Talvez seja um defeito não reconhecer algumas qualidades que tenho. Acho sempre insuficiente tudo quanto tenho.

 

É inseguro?

Acho que sim, nesse aspecto. Muitas vezes tive responsabilidades grandes e tive a noção de que não estava à altura delas. Quando cheguei à tropa, o comandante mandou-me para uma secção com 80 ou 90 empregados para chefiar; estive lá quatro anos com grande dificuldade até me adaptar. E aí estava eu a admirar outros que já tinham conseguido, que estavam uns anos à minha frente, que invejava.

 

Perseguiu-o sempre este fantasma de não ser capaz?

Sempre. Quando fui nomeado para a CIP lembro-me de chegar a casa e pensar em como é que ia fazer! O Pedro Ferraz da Costa tinha feito um trabalho fabuloso. Como é que eu ia estar à altura? Tenho sempre essa noção de não ser capaz. Não sei de onde é que provem. Talvez do meu pai, que para mim era um deus. O meu pai era muito seco em adjectivos, embora percebesse que tinha admiração por mim (pelas perguntas, pelas conversas), sempre a encorajar-me para fazer mais.

 

Foi por via do trabalho e do estudo que se convenceu que podia levar as tarefas a bom porto?

Exacto, vou conseguindo mas nunca tenho a noção de ter chegado ao fim. Na CIP, depois de me despedir, pensei no que é que podia ter feito mais.

 

Quando é que morreu o seu pai?

Em 2002.

 

No ano em que foi para a CIP.

Foi por essa altura, morreu uns meses depois de ter entrado.

 

Alguma coisa que fez mereceu um especial louvor da parte dele?

Ele não era de louvores, dava-nos um abraço e um beijo, apertava-nos muito, e era o sinal. As as palavras não lhe saíam. Isso era mais a minha mãe, muito expansiva.

 

Soube passar aos seus filhos essa confirmação, esse reconhecimento? Foi mais como o seu pai ou como a sua mãe?

Tenho muitas coisas do meu pai, mas talvez a minha mãe me tenha marcado mais. Os meus filhos são todos diferentes. A mais velha, que seria a mais parecida comigo, até quis ser engenheira química, tirou o curso de Ciência Política e depois, aos 28 anos, em Bruxelas, resolveu ir para freira. É carmelita.

 

Foi uma enorme surpresa? Podia ter sido a sucessora.

Podia, pela maneira de ser. Tinha a normal admiração pelo pai, mas quando começou a estudar outra coisa, divergiu. Sempre me dei maravilhosamente com ela.

 

Foi um grande desgosto para si?

Foi, enorme. É muito difícil adaptarmo-nos a isso. No fundo, acabou-se, deixei de ter uma filha. Ela está muito bem, interna, com tudo o que há de melhor, feliz como mais ninguém é, mas para nós, que estamos cá fora, é uma perda.

 

Não tem nenhum contacto com ela?

Uma vez por mês podemos visitá-la. Conversamos sobre tudo, estão muito bem informadas. Actualmente até já podem receber chamadas – era proibidíssimo. Às vezes estou lá e fala com a avó, a mãe, o irmão. Depois tenho um filho arquitecto que se foi embora de Portugal em 1992 quando tinha 20 anos, recomeçou o curso em Barcelona e ficou lá. O terceiro vive muito bem, foi para Singapura e daí para a Coreia, onde vive agora. O quarto é o único que vive cá, tem o seu emprego, os interesses dele são a electrónica, os computadores.

 

Quando falamos da sua vida anterior à revolução, do tempo em que era rico, parece que estamos a falar de um tempo longínquo.

As coisas mudaram muitíssimo. No meu caso particular, tinha bastante dinheiro porque se vendeu parcialmente a empresa aos americanos. Era rico por isso. Posteriormente tive de viver a contar dinheiro até ao fim do mês. Até hoje.

 

Vive realmente a contar dinheiro até ao fim do mês?

Sim, sim. Vivo bem, não vale a pena chorar sobre disso, mas não posso fazer disparates.

 

Se decidir amanhã ir a Nova Iorque, tem de fazer contas?

Vou num mês, mas não vou no seguinte. Antes do 25 de Abril ia para o melhor hotel, nem punha dúvidas quanto a isso. “Qual é o melhor hotel?, o Pierre!, muito bem!”. Agora, não me passa pela cabeça ir para o Pierre. É nesse sentido que digo que tenho de fazer contas.

 

Quando em 2009 aconselhou a que não se aumentasse o salário mínimo, foi zurzido na opinião pública, porque “o patrão dos patrões não sabia o que era viver com 450 euros por mês”…

Mas 95 por cento das pessoas em Portugal não vive com 450 euros por mês. Claro que 450 euros por mês é pouquíssimo, e desde que iniciei conversas sobre esse assunto, primeiro com o Governo e depois com a concertação social, disse que era uma coisa que me deixava incomodado. Fui muito mal interpretado. Era representante de muitas empresas que têm 150 a 200 mil empregados a ganhar isso, e que deixam de exportar se por acaso os ordenados sobem. As empresas de confecção não vendem roupa: vendem minutos de confecção; e fazem as contas ao centavo. Qualquer subida e saem fora dos concursos, que vão para a Turquia ou para Marrocos. Tinha permanentemente recados das associações dessas empresas a pedir que não se subisse nem um tostão. Era representante deles e tinha de defender isso.

 

Sente que foi uma pessoa especialmente poderosa nesse período em que presidiu à CIP?
Não. Aquilo tem um poder condicionado. Os presidentes são muito dominados pelos directores que são representantes das associações, não das empresas. Eles próprios representam muitas empresas, são também muito poderosos. Quando falam os presidentes das associações, falam em nome de milhares de empresas e das suas necessidades. Em alguns casos podemos fazer coisas por nossa conta, mas não somos livres de fazer o que queremos.

 

Alguma coisa que tenha dito, alguma intervenção que tenha feito, condicionou alguma medida essencial do país?

A primeira talvez tenha sido a desindexação do salário mínimo, que estava indexado às pensões do Estado. Depois as negociações do Código de Trabalho, as da Segurança Social (actualmente o sistema de Segurança Social em Portugal é talvez dos mais adiantados da Europa). Foi durante a minha estadia ali que a formação profissional veio ao de cima como elementar para que todas as empresas pudessem evoluir. E o próprio comportamento ético das empresas. Havia muitas empresas que não gostavam que falasse disso… Foi por isso que saiu a construção civil.

 

Quando falou de corrupção no sector da construção civil, conseguiu antecipar o efeito das suas palavras?

O problema já existia lá dentro. Quando referi que me tinha sido dito, no ministério, que nesse complô, de corrupção, estavam envolvidas empresas da construção civil – e foi só isso que disse – ficaram furiosos. Nessa manhã tinham-me mostrado que parte das empresas do “carrousel” pertenciam a esse ramo. Recebi uma carta assinada por ex-directores da CIP confrontando-me, discordando da minha direcção e do facto de falar tantas vezes da ética. Depois tirei essa palavra [do discurso] – aí está um condicionamento da direcção –, no segundo mandato da CIP.

 

Teve alguma intervenção na localização do novo aeroporto de Lisboa?

Cem por cento. Houve muita gente que influenciou e acabou por convencer [o Governo] a avançar [com esta localização]; mas foi uma actuação pessoal.

 

Pessoal?

A direcção da CIP não gostou nada da minha actuação, até me repreendeu. Foi uma actuação pessoal. Primeiro fui convencido por engenheiros do Técnico, encabeçados pelo Professor José Manuel Viegas, que me trouxe o projecto. Quando o vi achei que tinha uma obrigação de cidadania. Montámos um sistema de influência, através de um grupo de pessoas de que faziam parte engenheiros do Técnico e outros conselheiros que arranjei, o Professor Ernâni Lopes, e outros. Recorri a conhecimentos pessoais, o Primeiro-Ministro, o Presidente da República, o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, dono daquele terreno. O grupo, através de mim, conseguiu tomar os passos certos de modo a não ofender pessoalmente ninguém e dando os elementos correctos para se tomar a decisão final. Deixámos que se convencessem todos de que o sítio era o Poceirão, e começou toda a gente a concentrar as objecções no Poceirão. Ao mesmo tempo estudávamos um sítio alternativo e definitivo, que era aquele. Não é o melhor local, mais ao sul era melhor. Mas para conseguir demover a Ota, aquele foi o melhor.  

 

Sentiu-se especialmente realizado? Tratou-se da sua influência pessoal, foi o catalisador dessa equipa que foi sendo formada.

Foi talvez o concentrar daquilo que foi a minha educação desde o princípio. Conseguir ser visto como uma pessoa que não tinha ambições próprias. Ter acesso tanto ao Primeiro-Ministro como ao Presidente da República, como ao Chefe do Estado-Maior, e isso não era só por ser presidente da CIP. Era por causa do que vem de trás. O facto de ser presidente da CIP fez com que me tivessem recebido e fosse ouvido. Em relação a estas personalidades, apenas fiz o mesmo que fizeram comigo: mostrar que havia alternativas.

 

Se não tivesse a importância que tem, o poder da influência que tem, se não fosse quem é, não era ouvido. Independentemente do conteúdo.

Não era ouvido, sem dúvida. Foi por isso que as pessoas vieram ter comigo: para ser o intérprete desse movimento. Escolheram-me por ser da CIP, por ser eu e por ser engenheiro. Era um diálogo fácil. Não era apenas um advogado a defender uma causa. Era também um engenheiro com convicções, que sabia o que é que havia na Ota que tornava aquilo numa obra faraónica, e o que é que havia de engenharia em Alcochete que podia facilitar o arranque da construção.

 

A quem é que telefona para contar que isso aconteceu? Com quem partilha?

Com certeza com a minha mulher, mas à parte disso tenho muitos amigos. Não tenho um confidente particular. Tenho alguns velhos amigos, já do tempo do Técnico, e alguns desses continuo a ver regularmente.

 

Amigos que foram feitos naquele período e que não vinham de trás?

Uns vinham de trás e outros não.

 

Estou a tentar perceber se o seu círculo é razoavelmente aberto ou se são sempre as pessoas do seu meio.

Há três espécies: as que estão ligadas à parte profissional, os meus amigos antigos, de toda a vida, e muitos dos da minha mulher.

 

Com pessoas de esquerda, dá-se?

Com a maior das facilidades. Contando que não haja nenhuma confusão, porque não sou de esquerda. A primeira vez que o Dr. Mário Soares foi a minha casa disse-lhe que ficasse claro que não era socialista e que não gostava dos socialistas. Ele deu-me um grande abraço, agradeceu-me ter dito aquilo e disse que assim podíamos ser amigos. Continuamos a ser amigos, ele pergunta-me coisas sobre o que chama “o nosso lado”, e temos muito à vontade.

 

Nunca houve dúvida de que o seu lado era esse? Nunca vacilou?

Não, nem pensar, nada, nada. Há muita coisa que se confunde que seja exclusivamente da esquerda. A caridade, o respeito, a ética. Mas não é. Há muito da extrema-direita, que também não sou, que tem valores que se confundem com a esquerda. A autoridade, a concentração do poder. Tudo o que são valores universais e de que a esquerda se apoderou, a direita também tem. Fui educado a ter esses valores. A esquerda pura, que quer a nacionalização, que acha que o Estado tem mais razão, que tem horror ao lucro, que não percebe o que é o investimento, que não percebe que os direitos têm de ser distribuídos segundo os méritos – tudo isso, não sou desse lado.

 

Viveu a crise académica de 61, mas estava “do outro lado”. Como é que a viveu?

Saí em 61, apanhei o princípio da crise. Em 60 já havia muita inquietação. As associações de estudantes eram revolucionárias, havia muita actividade política lá dentro. Fizemos uma coisa fantástica: corremos com um professor do 4º ano de quem não gostávamos.

 

Fantástica?

Termos conseguido, perante a autoridade, ter mudado de professor porque não gostávamos da maneira de ele ensinar. A partir daí houve sempre a ideia de que os alunos tinham poder.

 

Tem 71 anos. Está agora a começar outro ciclo, no AICEP. A nomeação para aqui passou pelo ministro Vieira da Silva? A relação com ele é especialmente boa?

É óptima. Mas não sei se terá sido ele, talvez tenha sido o Primeiro-Ministro com quem também tenho uma boa relação. É uma sorte continuar a trabalhar com um ministro com quem já trabalhava. Facilita muito, posso ir direito aos assunto. O trabalho que vamos ter aqui é muito grande, tenho medo que seja lento – lá estou eu com o medo: “será que estou à altura?”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009

 

Para o meu Pai que foi à guerra

19.03.14

O meu pai não estava quando dei os primeiros passos nem quando disse as primeiras palavras. Sabem porquê? Porque estava na Guerra Colonial. Hoje pensei nas fotografias que o meu pai mandava, de camuflado e a tocar viola. Hoje pensei nos pais que não estavam. E na puta da guerra. Os pais das meninas e meninos da minha geração estiveram quase todos na guerra. Roubaram-nos um pedaço. Sou anti-fascista desde que penso nisto. 
Obrigada ao meu pai e aos outros pais.

João Cravinho

18.03.14

João Cravinho está a regressar de cinco anos em Inglaterra. Fala de Sócrates, uma no cravo e outra na ferradura, mais cravo que ferradura, no fim de contas. De não ser possível fazer o edifício ruir. Que é uma maneira de expressar um certo desencanto em relação à política. Fala de fazer política porque isso é uma maneira de acompanhar a pulsação da História, fazer parte dela. O tema da corrupção continua a ser um dos seus temas. Apesar do chumbo do pacote que propôs, e a que muitos atribuíram a sua ida para o BERD. Não foi o caso, conta ele.

Conta de um jantar com Marcelo Caetano, da passagem por Paris, por Yale, de um avô que esteve emigrado nos EUA, de um outro que em África impôs que não houvesse na família filhos ilegítimos. É um engenheiro civil que honrou o pai quando escolheu esse caminho. É um homem que podia repetir o título de Garcia Márquez: viver para contar. Exímio contador de histórias, ri-se facilmente. Pela simples razão de se divertir com as histórias que está a contar. Mais do que tudo, é um africano?

Foi ministro do Equipamento do governo Guterres. Fez 75 anos.

 

Começamos por 1975, quando foi ministro durante uns meses?

Fui, do IV governo provisório.

 

Isso vem da sua filiação no MES?

Não, vem até contra a filiação no MES. Estive no MES até Novembro, Dezembro de 1974. Por altura do congresso do MES, com o Jorge Sampaio à cabeça, apresentámos uma moção que foi rejeitada. O MES votou uma moção que orientou o movimento para uma configuração praticamente leninista; passou a integrar a chamada extrema-esquerda. Estávamos contra esse tipo de opção política.

 

Por causa disso, imagino, eram considerados perigosos direitistas.

Eu era considerado um social-democrata cor-de-rosa [riso]! Assinei um memorando sobre a situação económica que era escrito em papel cor-de-rosa, e passei a ser conhecido pelo papel cor-de-rosa.

 

Quem diria que a rosa seria anos mais tarde símbolo do PS.

Mas nessa altura o cor-de-rosa era a burguesia envergonhada, com alguns pergaminhos, que oscilava entre dois mundos sem se decidir.

Seguimos e resolvemos conservar a nossa autonomia, criando o Grupo de Intervenção Socialista, o famoso GIS. Só em 77 aderimos ao Partido Socialista.

 

Como é que se dá essa adesão?

Com duas condições. Primeiro aderimos em grupo, sem que houvesse a possibilidade, mediante o nosso acordo com o Mário Soares, que o Partido Socialista andasse à pesca. Ou entravam todos ou não entrava nenhum. A segunda é que entrávamos no momento em que o PS estava a fazer o acordo com o CDS com a expressa declaração de que não concordávamos com essa aliança e a considerávamos prejudicial e contrária aos motivos e aos ideais que nos orientavam na adesão. Suponho que o Mário Soares terá dito que, se era isso, não tinha importância. O Mário Soares é uma pessoa que sempre teve, deste ponto de vista, uma abertura plural. Não íamos ali para cargos nenhuns. Não discutíamos qualquer cargo nem compensação, influência aqui ou acolá.

Entretanto tinha sido convidado para todos os governos provisórios – sem excepção.

 

Por que é que este foi o primeiro que aceitou?

Foi a seguir ao 11 de Março. Porque me pareceu que o PREC fazia um corte umbilical com o poder económico que, com vontade ou sem vontade, sustentou o fundamental do antigo regime em termos de base económica. Sustentou e beneficiou. Com essa ruptura as coisas entravam numa fase completamente nova, sem possibilidade de pré-determinar qual seria a trajectória. A única coisa que se sabia é que teria de haver uma consolidação posterior. A nossa aposta era numa evolução de um confronto, que era inevitável, que consolidasse uma versão de democracia avançada.

 

Por que é que recusou nas vezes anteriores, conte isso.

Fui convidado para todos formalmente excepto para um, para o qual fui sondado. Havia uma corrente do MFA que tinha a ideia de que eu devia estar no governo desde o início, e que me fez bastantes sondagens. Na altura não tive grande abertura ao caso. É preciso ver o que foi o 25 de Abril e os primeiros tempos após o 25 de Abril. O primeiro governo, de Palma Carlos, foi dominado pela tentativa spinolista, do próprio Spínola, de, à força daquilo que ele julgava ser um poderosíssimo carisma, plebiscitar-se como Presidente da República. Trazia pela mão uma Constituição talhada à sua medida de grande chefe e líder carismático.

 

Está a dizer que temia que aquilo derivasse para um regime militarista, que não confiou completamente?

No primeiro governo, eu era militante do MES, e o MES decidiu não participar nos governos provisórios. Eu era um militante de boa fé e empenhado.

 

Mas ali a questão de base que o impedia de estar era uma certa cumplicidade – não sei se conluio é uma palavra demasiado forte – com os militares?

Não. Os mesianos em geral, e nós em particular, tínhamos muito boas relações com os militares. A coisa resultou das vicissitudes que precederam a revolução, a Guerra Colonial. O César Oliveira foi alferes, junto com o [António] Lobo Antunes, da companhia do Melo Antunes. O César Oliveira tinha uma relação fraternalíssima com o Melo Antunes forjada em África. Por outro lado, éramos um grupo que antes do 25 de Abril já tinha expressão. Alguns de nós, não eu, tinham participado nas eleições de 1969. Os movimentos estudantis a que pertencemos quase todos mantinham uma relação de convivência e de referência mútua que permitia que eu, dez anos depois de sair do movimento estudantil, ainda fosse conhecido.

 

O movimento estudantil era uma referência em termos de luta política.

Foi nesse mundo que nasci para a política. Cheguei a 1974 e tinha a minha formação e a minha reputação já consolidadas como profissional. Conhecia bem a situação económica do país, os mecanismos, o modo de intervenção da administração pública, as pessoas. Era natural que naquele período em que andava tudo de nariz no ar a perguntar “quem é que sabe disto?” participasse em muitas conversas. Sobretudo com aqueles que não estavam possuídos de uma cartilha e que procuravam orientar-se.

Quando se estabeleceu o primeiro governo provisório percebi que havia uma instabilidade política fundamental e irreversível. Havia dentro do MFA vários MFA, alguns dos quais constituídos no 27 e 28 de Abril.

 

Imediatamente após 25 de Abril, desconfiou da democracia que ali nascia? Duvidou seriamente que aquilo podia derivar para uma ditadura militar ou para uma coisa que se colava demasiado à esquerda radical?

Pareceu-me sempre que o spinolismo tinha no bojo um autoritarismo novo de fachada democrática. O primeiro governo provisório nasceu sob esse signo. Os MFA, a comissão coordenadora, tinha pensado no General Costa Gomes para Presidente da República. O General Costa Gomes não quis e o Spínola quis. Entre o não querer de um e o querer de outro, o Spínola avança logo. O Marcelo Caetano teve influência, na medida em que pediu ao Salgueiro Maia que fosse o Spínola a receber a rendição deles. “Para que o poder não caia nas ruas”, dizia o Marcelo Caetano. O Otelo e os seus camaradas que estavam no Regimento de Engenharia concordaram. A partir daí surgiu uma junta militar cuja composição era surpreendentemente heterogénea.

 

No tempo em que todas as conciliações eram possíveis.

E ainda estava por resolver a Guerra Colonial, que era a chave da questão.

 

E isso toca-o particularmente por causa da sua raiz angolana?

Toca. Quais foram os grandes problemas de ordem política que me tocaram? Em primeiro lugar, a situação dura em que o país estava, a pobreza, a desigualdade profunda, a injustiça de todo o tipo. A seguir a isso, e em complemento, tocou-me a situação colonial. Era angolano de origem e tinha muitos contactos com angolanos. Tinha dois grandes amigos, já falecidos, o Paulo Jorge, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos dirigentes do MPLA, homem íntegro até ao último dia, e o Gentil Viana. Estiquei essa preocupação a duas outras zonas: o Apartheid e a questão dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.

No princípio dos anos 60 fui estudar para Paris. Os meus amigos que estavam na Casa dos Estudantes do Império, quando a guerra deflagrou, em princípio de 61, saíram de Portugal e foram trabalhar nos movimentos vários – no caso, o MPLA.

 

Com que idade é que vem de Angola?

Venho com nove anos, no fim de 1945. A guerra acabou, os meus pais não vinham a Portugal há muitos anos, durante a guerra não havia possibilidades. Resolveram que eu e o meu irmão ficaríamos em Portugal a estudar, e assim sucedeu. Digo que sou angolano, e sou, mas aqui em Portugal sou essencialmente algarvio. O meu pai era algarvio. A família da minha mãe era da Beira, mas nunca tivemos contactos, emigraram todos. Sou um algarvio que residiu quase toda a sua vida em Lisboa, depois de ter nascido em Angola.

 

Veio para Lisboa estudar para a universidade?

Fiz a quarta classe no Algarve, em Alte, uma aldeia, e fiz a admissão ao liceu em Faro. Estudei nessa aldeia no concelho de Loulé, onde eram todos primos e primas. Vim para o D. João de Castro, onde fiz os sete anos do liceu.

 

Quando veio estudar para Lisboa veio para um colégio interno?

Não, vim para casa de uma pessoa amiga dos meus pais. Os meus pais estavam em Angola, vinham cá de vez em quando. Depois fui para o Técnico. E depois do Técnico entrei num serviço público que estava a constituir-se, o Instituto Nacional de Investigação Industrial, obra do Eng. Magalhães Ramalho. Uma instituição completamente nova nos objectivos, na perspectiva, no modo de trabalhar. O Eng. Magalhães Ramalho reuniu um grupo de pessoas competente, a quem deu a oportunidade de fazer estágios ou estudos no estrangeiro.

 

E é nessa altura que vai para Paris?

É, no Verão de 62. Fiz um estágio curto numa empresa e depois fui para o Instituto de Estatística da Universidade de Paris, onde tirei um curso de Investigação Operacional.

 

O perigo da guerra e de uma eventual mobilização, existiam?

Formei-me em 59, fiz a tropa de Setembro de 59 até Fevereiro de 61. Saí da tropa e passados dois ou três meses tive de voltar. Estive de Março/Abril de 61 até princípios de 62. Já estava no INII. Entrei para o INII como tarefeiro ainda estava no Técnico, no último ano. Fui para Engenharia porque tinha boas notas, não precisava de fazer exame de admissão. O meu pai, que era um autodidacta, não tinha mais que a quarta classe, era um homem com uma capacidade intelectual fora do vulgar. Era um grande engenheiro prático. [comove-se] Estava em Angola em condições tais que tinha responsabilidades administrativas e autonomia para fazer pontes, casas. Sempre tive uma enorme admiração pelo meu pai e ele queria que eu fosse para Engenharia.

                    

É por ele que é engenheiro?

Fui um pouco por causa dele.

 

Ia perguntar precisamente porquê Engenharia. Todo o seu percurso político é feito com pessoas de Direito e Economia.

No segundo ou terceiro ano apercebi-me de que a minha grande vocação não era a Engenharia. Fiz uma barragem e umas casas. A barragem não chegou a ser construída, não sei se a estrutura era boa ou má. As casas, não caíram [riso]. O que me interessava mais eram questões de Sociologia e de Economia. Fiz aquilo que me pareceu razoável: acabar o curso de Engenharia e ao mesmo tempo, por auto-didactismo, e por ligações a uns e a outros, que me iam dando as suas opiniões, fazer uma formação em Economia fora dos cânones habituais. Estou muito satisfeito por essa opção. Os cursos de Engenharia são das melhores formações de base que um economista pode ter, e o tempo só tem reforçado essa opinião.

 

Isso tem a ver com a sustentação do edifício, vê-lo no seu conjunto, pensar na sua solidez?

Não. Por causa da formação que a Engenharia dá. O Técnico dava uma excelente formação de base, de Física, de Matemática. A Economia nos últimos 50 anos matematizou-se e procurou copiar as metodologias e a ossatura das ciências exactas, e com isto perdeu-se por completo.

 

Em Paris fez essa espécie de especialização, na economia.

Quando fui para o INII entrei na produtividade, um serviço novo criado pelo Magalhães Ramalho. No fim da Segunda Guerra Mundial os americanos exportaram para a Europa, e a Europa absorveu isso de maneira ansiosa, a ideia de que na reconstrução era fundamental superar o fosso de produtividade entre a indústria americana e a indústria europeia. E iam empresários, iam formadores, às centenas, aos Estados Unidos, aprender. E vinham às dezenas dos Estados Unidos explicar como deveria ser. Portugal apanhou essa vaga dez ou 15 anos depois de ela ter sido iniciada na Europa, através de assistência técnica da OCDE. Magalhães Ramalho percebeu, e muito bem, que o país precisava disso como de pão para a boca.

 

Isso para si foi uma aprendizagem fundamental?

Foi uma excelente aprendizagem, em França, na investigação operacional. Permitiu-me alargar bastante as minhas referências, passar mais para o lado da Economia do que da Sociologia.

 

Esteve também nos Estados Unidos, em Yale. Em que ano foi?

Voltei para Portugal em 63. Quando o Marcelo Caetano apareceu, nos meses em que Salazar caiu da cadeira, ganhei uma bolsa para ir estudar para os Estados Unidos. Tirei o mestrado e estava no programa de doutoramento. Voltei para Portugal no verão de 69, estava a Primavera marcelista com alguns meses. Uma das grandes figuras da Primavera marcelista era o Rogério Martins, que por sua vez tinha ido buscar como colaboradores boa parte da escola do INII. Foi lá buscar o Torres Campos, com quem tinha trabalhado, e outros que me conheciam. O Rogério Martins, que é um homem pouco lembrado, era a grande figura daquele tempo. Superior ao Sá Carneiro. Os homens que representavam o espírito novo, a possibilidade de uma aproximação à Europa, eram o Rogério Martins, o João Salgueiro e o Joaquim Silva Pinto.

Quando chego a Portugal disseram-me que ia ser mobilizado e que já não tinha autorização para voltar aos Estados Unidos. Fui mobilizado para capitão, fui apanhado, não tinha escolha.

 

Veio de férias e apanhou com isto.

O Rogério Martins e o Torres Campos souberam dessa situação e vieram dizer-me: “Se quiseres ficas como chefe de gabinete, director de planeamento da Secretaria de Estado da Indústria”. Esse tipo de trabalho, ao nível de director-geral, permitia adiar a mobilização. E aceitei porque me pareceu que não tinha escolha. Bom, escolhi aquele caminho. Não vou dizer que não tinha escolhas. Temos sempre escolhas.

 

Quais são as razões pelas quais escolheu essa via?, ainda que não assumisse para si que estava a escolher.

Não era a incomodidade do serviço militar, era a incomodidade política, pessoal, de consciência. [Se fosse efectivamente mobilizado], podia fazer o que fez o Manuel Alegre ou outros, o Medeiros Ferreira. Não sei se faria. É difícil que haja planos pré-fixados nesta questão.

O Rogério Martins tinha uma enorme determinação em fazer coisas novas. Tinha uma relação especial com o Marcelo Caetano, laços de família, de amizade, mas era um homem que não era subserviente, tinha a sua independência. Disse-lhe que sim, mas que havia coisas que tínhamos que discutir.

 

Era claro o seu envolvimento político em coisas da oposição?

Disse-lhe que estava com a oposição, tinha actividades com a oposição, e continuaria: “É muito claro que não vou entrar em nada do regime, e que continuarei a exercer os direitos que entendo serem os meus”. Segundo ponto: “Não quero o cargo a título de nomeação definitiva”.

 

Porque isso pareceria uma nomeação política.

Exacto. Sou nomeado em comissão de serviço, por requisição. A terceira e última questão é que queria tornar claro que se houvesse algum problema saía a qualquer momento.

 

Um problema político e colonial, era isso?

O Rogério Martins podia concordar com tudo isto e mais 40 coisas. O problema era saber o que vinha a suceder na prática. O Rogério Martins pôs o problema ao Marcelo Caetano, que me conhecia desde o tempo da luta académica, de 1959. Sabia bem quem eu era. Já lhe tinha sido posta a hipótese de eu vir a exercer um cargo noutra área. Nunca me falaram no assunto, soube por portas travessas. Ele escolheu outro. Tinha trabalhado com o filho, Miguel Caetano, no secretariado técnico da Presidência do Conselho. Um tipo impecável. O pai, suponho, perguntou-lhe sobre mim. Promoveu um jantar com o Rogério Martins. Fomos jantar à messe da base aérea de Monsanto. O jantar correu muito bem.

 

Como lhe pareceu Marcelo Caetano?

Um homem que sabia expor muito bem as suas ideias, de modo a vincar aquilo que era a linha de força, os seus princípios e a sua margem de flexibilidade. Falávamos com ele e percebíamos bem o que queria dizer sem o dizer, que é um bom sinal de inteligência. No fim disse-me: “Sr. Eng., foi uma conversa muito interessante. Devo dizer-lhe uma coisa, o senhor é muito novo, pode ter um grande futuro à sua frente, mas é preciso ter cuidado”. Na minha vida tenho tido a sorte de ter alguns repentismos de que eu próprio não me julgava capaz, e respondi-lhe o seguinte: “Sr. Presidente, sou muito novo para certas coisas e demasiado velho para outras” [riso].

 

Sentiu-se importante? Era novo, e apesar de tudo era o Presidente do Conselho que tinha este cuidado consigo, que jantava consigo, que lhe dizia estas coisas.

O que me pergunta diz respeito a esse momento como diz respeito a outros momentos da minha vida. Sou uma pessoa modesta, conheço as minhas limitações.

 

Mas também sabe o que vale.

Conheço os meus pontos fortes. É muito diferente o indivíduo estar sozinho ou, como hoje se diz, networked com os poderes tradicionais. Sempre tive a consciência de que estava desligado dos poderes tradicionais. Podia ter vontade de cooperar, mas nunca esperei de nenhuma instituição, de nenhuma natureza e muito menos na área do poder, protecção. Percebi que há uma limitação em termos de afirmação individual, que há forças políticas e sociais que o ultrapassam, e que o aniquilam facilmente. Podia ter-me dado isso para ser prudente, no sentido de ser calculista – nunca fui. Também não sou suicidário, não me armo aos cucos [riso]. Mas sempre tive esta noção de que há um equilíbrio a que uma pessoa tem que atender.

 

Um equilíbrio de forças.

Dá-me às vezes para ser um bocado quixotesco, determinado e persistente em defesa de causas perdidas, mas não a título de martírio nem de representação simbólica. Não perder o respeito a si próprio é uma noção fundamental. Não sei se viu A Rainha Africana, um grande filme com o Humphrey Bogart e a Katherine Hepburn. Um sujeito está a ser compelido a aceitar uma situação, fazer-se cúmplice, e está a fazer a barba em frente de um espelho manhoso. A certa altura diz: “Tenho um grande problema. Como vês, faço a barba à navalha todos os dias. Quero continuar a gostar da cara que vejo no espelho”. Quando estava no governo, às vezes consideravam-me arrogante pela maneira como falava. Não era bem arrogância, era convicção. E também alguma censura pela ignorância e incapacidade que, bem ou mal, imputava a outros. Em relação à questão Rogério Martins: foi um homem impecável, excedeu de longe todos os compromissos que assumiu, e foi meu amigo de uma maneira como politicamente nunca tive amigos.

 

Deixe-me voltar ao momento de fazer a barba ao espelho, e de saber o que decidir nesses momentos nucleares. Sabe-se sempre? Sabe-se como?

Não vem por raciocínio, vem por intuição e por impulso profundo de carácter. Há pessoas que têm situações públicas estudadas ao milímetro, e depois a única coisa que lhes vem a suceder é aquilo que nunca foi estudado. Em situações em que surge a necessidade de se ser claro sem ser ofensivo, a minha experiência diz-me que o que vem ao de cima é o carácter. Considero que na vida pública, e não só na política, na vida profissional, a coisa mais importante é o carácter.

 

Com quem é que aprendeu isso? Fale-me das suas referências.

Com o meu pai. Era um homem de enorme carácter, que nunca se vergou àquilo que na percepção dele eram injustiças, gostassem ou não gostassem. Estava em África, era funcionário administrativo, estava isolado, passou pela região do algodão. Era um administrador da justiça. Os problemas de justiça que não têm uma repercussão política nem um enquadramento prévio têm o seu contexto próprio, de códigos. Eu próprio, miúdo, assisti a uma situação em que o meu pai prendeu um tipo branco porque deu um ensaio de porrada num criado. Deixou-o muitíssimo mal tratado. O meu pai foi a casa dele e prendeu-o, o que deu um escândalo brutal. Felizmente tinha um governador de província que o apoiou, porque todos os outros o queriam lixar a partir de Luanda. Um tipo que assistiu a essa cena, e que foi delator, disse-lhe: “Você faz isto hoje, não sabe o que lhe vai suceder amanhã”. O meu pai, com a maior das calmas, respondeu: “Amanhã cá estou eu”.

 

Esses nove anos com o seu pai – depois deixou de viver com ele – foram fundamentais. É como se tivesse aprendido o essencial muito novo.

O meu pai é a minha maior referência em vários aspectos. Apesar de ter convivido com muita gente, uns mais letrados, outros menos, uns mais convencidos de que eram duques, outros de que eram condes, nunca a referência do meu pai foi superada pela de qualquer outra pessoa.

 

Fale-me de conversas que podia ter com ele.

Entretanto o meu pai veio de Angola. Relativamente à situação política nacional, era democrata, sempre foi. Votou Norton de Matos no seu tempo, depois Humberto Delgado, mas tinha uma concepção de autoridade que não é a minha. E falámos muitas vezes sobre isso. Não que a concepção de autoridade que o meu pai tinha me ferisse, me desagradasse, do ponto de vista dos princípios; situava-se um pouco mais à direita do que eu em matéria de lei e ordem.

 

Era um homem do seu tempo.

Exacto, e era um homem de autoridade, o que deixa a sua marca. Era um self made man. Deixe-me falar de África. Em termos de grupos, família, o meu avô materno foi para África ainda no século XIX. Ficou sozinho à frente de uma família, madrasta e quatro irmãos, e responsabilizou-se por tudo; tinha19 anos. O pai era um pequeno industrial de lanifícios, de Gouveia, que foi à falência, não sei em que circunstâncias. Resolveu ir para África, esteve lá uns tempos, e assim que pôde foram todos. Isso deu origem a uma diáspora extraordinária. Quando chegava o Natal, nos anos 40, o meu avô era a referência de toda a família. Vinha gente de todo o lado, primos daqui e dacolá, para Malange passar o Natal. Como se sabe, em África, sobretudo naqueles anos, havia muita mestiçagem. O meu avô tinha uma máxima que fazia tremer uns, melindrava outros, mas que todos aceitavam. Na família não havia filhos ilegítimos, podia haver pais ilegítimos. Às vezes fazia chegar os filhos a casa.

 

Tem sangue mestiço?

Tenho. O meu avô teve cinco filhos de uma mesma mulher negra, e educou-os a todos. Praticava o que dizia, o que é uma coisa raríssima em África, na época. Estou em terceira linha. A minha avó era negra, a minha mãe era mulata, e eu sou filho de mulata e de branco.

 

A questão racial alguma vez teve importância na sua vida?

Nenhuma. Nunca tive complexos nenhuns a propósito disso.

 

Fale-me do seu outro avô, no Algarve.

No Algarve vivi ainda com os meus dois avós paternos. O meu avô foi emigrante nos Estados Unidos durante dez ou doze anos, a seguir à República. Não por razões políticas. Foi para Nova Inglaterra, Massachussetts, onde tinha família da mulher, cunhados, esteve lá a trabalhar em fábricas e depois regressou. Era o esquema habitual: tínhamos uma casa no povo, fez uma casa fora do povo. Conheci-o já com idade avançada. No Algarve, passávamos os serões de Inverno a falar, ao pé do fogo da cozinha. O meu avô contava histórias, experiências da emigração, coisas do antigamente. Tinha uma linguagem que estava salpicada de expressões próprias, vocábulos antigos. Era um grande contador de histórias.

 

Herdou essa característica dele? É conhecido como um contador de histórias.

Mas ele contava melhores histórias, e melhor. Uma coisa de que me lembro do meu avô: era um camponês sábio, tinha a sabedoria das estações. Tinha um grande sentido de independência. Foi um homem que por razões de solidariedade pagou muito com as suas fracas poupanças. Pertenceu a uma sociedade, de uma Caixa Agrícola, aquilo foi à falência; os tipos que tinha à frente fizeram uma falcatrua, e o resultado foi que os bens deles foram à praça. Nunca o ouvi queixar-se, nunca o ouvi dizer nada.

 

Tem estas figuras de referência à sua volta, várias, importantes. Que expectativa havia em relação a si? Há apesar de tudo um investimento da parte dos seus pais, até para virem estudar para a metrópole.

O meu pai tinha a noção muito viva daquilo a que hoje se chamaria a mobilidade social. Os meus pais sacrificaram-se, e muito, por nós.

 

Ele sonhava que alguma vez pudesse ser ministro? Tinha uma ambição nítida?

Uma coisa que é importante é que nunca manifestou a ideia do que esperava de mim. O que manifestou sempre foi a ideia de que era um meritocrata. Achava que se uma pessoa tivesse boas bases, trabalhasse a sério e fosse um tipo responsável chegaria sabe-se lá onde. As pessoas tinham a obrigação de estar à altura do armamento que lhe deram. Mas acharia natural que eu, dependendo de certas capacidades inatas, ou trabalhadas, pudesse ir bastante longe. Onde, nunca me indicou. E não ligava isso à situação material.

 

Mas a um certo estatuto social.

Isso, sim.

 

E é assim também em relação a si?

Uma coisa que nunca me moveu foi o dinheiro. Nunca fiz uma opção profissional por dinheiro. Nunca especulei, não tenho alma de empresário. Posso ter alma de impulsionador, de apoiante.

 

Por que é que a sua vida depois, a partir dos anos 60, foi a política, de um modo mais ou menos ininterrupto? Por que é que foi isso, mais que tudo, que lhe deu prazer? Podia ter feito muitas coisas.

São problemas de geração, também. Lembro-me de ter tido uma discussão com o meu pai a propósito do regime. Na associação de estudantes do Técnico a política passou a constituir o grande lado lúdico de estar na História. A História faz-se todos os dias, e eu estava do lado dos que, bem ou mal, procuravam fazer História. O que me agrada ainda hoje [riso].

 

Comecei a entrevista falando de si enquanto ministro, e podia ter perguntado se foi fundamental o encontro com Jorge Sampaio.

Conheci-o já tinha feito o Técnico. O Jorge Sampaio é mais novo do que eu. Conheci-o através de um amigo angolano, o José Bernardino, que foi militante e funcionário do PC; um homem destacado, esteve preso, ele e a mulher. Um dia no Técnico, encontro o Bernardino com um tipo ruivo “Vem cá, vou apresenta-te um tipo bestial, o Jorge Sampaio, da faculdade de Direito”. E foi assim que conheci o Jorge. Não sei explicar como é que se passou desse encontro fortuito, igual a qualquer outro, sem história própria, para uma amizade e um trabalho que começou logo após. Lembro-me do Jorge Sampaio na crise académica de 62, por isso o primeiro encontro deve ser de 60, 61.

 

Se pensar nas pessoas da sua galeria política, é uma figura fundamental. Mesmo que tenha sido ministro de Guterres, não era propriamente a sua família socialista.

Sem dúvida. Para além da política construímos uma amizade profundíssima, fraternal, e que não precisa de ser alimentada por muitos rituais de presença.

 

O que é que queria politicamente para si quando começou a fazer política? Uma coisa era a expectativa do seu pai – já falámos disso; outra coisa era o que ambicionava para si.

Houve uma coisa que de certo modo me marcou, condicionou, abriu e fechou, tudo isto junto. Do ponto de vista dos quadrantes políticos, nunca me inscrevi. Trabalhei, convivi muito e tinha amigos do Partido Comunista, mas nunca fui membro, nem de longe nem de perto. O Partido Comunista era uma entidade que respeitava muito. Não há persistência e sacrifício na luta contra o antigo regime que se assemelhe ao de muitos militantes comunistas. E não são apenas aqueles que conhecemos. Houve muitos camponeses no Alentejo, [cuja acção] não tem paralelo com aqueles que estavam sentados nos escritórios da Rua do Ouro.

 

Em todo o caso, nunca aderiu. O que é que o desagradava, de raiz?

Nunca fui seduzido pela ideia do estado estalinista. Pertenci sempre a pequenos grupos que estavam nos interstícios, nos espaços de ligação, mas que não tinham, nem poderiam ter, a noção de que lhes incumbiria um dia fazer a grande revolução. Eram parte de, mas nunca eram líderes de.

A igreja católica, não quero omitir isso, foi uma parte importante da minha vida. Durante todo o tempo do Técnico tinha bons amigos na JUC, e tenho grandes amigos desse tempo ainda. Eu não era da JUC nem das organizações católicas. Era na melhor das hipóteses agnóstico, mais inclinado para o ateísmo. Mas depois de ter tirado o curso, numa fase bastante amadurecida, converti-me ao catolicismo.

 

Porquê? O que é que espoletou isso?

A doutrina católica tem coisas espantosas, sedutoras.

 

Quem foram as pessoas que encontrou?

Não foram as pessoas. Não conheço doutrina mais bela que a do Corpo Místico. Fui católico durante dois anos, foi curto. Dei-me com a vanguarda dos católicos progressistas.

 

O que é que o desencantou? Foi curto, como diz.

O que me fez quebrar foi aquilo a que chamava na época, e que continuo a chamar, a hipocrisia da Igreja, da hierarquia. O sentido de cumplicidade displicente, o sentido de alijar responsabilidades. E o clímax de toda a história foi a questão colonial.

 

Vamos sempre dar aí. É como se África fosse um fio que aparece em toda esta trama.

Foi a questão colonial que me tornou insuportável considerar-me católico. Diziam-me que são coisas de ordem diferente – não são. Ou são, mas não acreditei que fossem. Ainda hoje não acredito que sejam coisas diferentes.

 

Volto à questão: o que é que ambicionava para si, além desse fazer todos os dias parte da História, e fazer a História? Jorge Sampaio foi Presidente da República.

Do ponto de vista político, agora mais focado no ó25 de Abril, há uma coisa que também percebi: a democracia é sem dúvida nenhuma o regime dos partidos políticos.

 

E dos compromissos.

Pois. Sucede que os partidos políticos foram evoluindo de tal modo que se tornaram associações clientelares, com muito poucas preocupações éticas. Na política dá a sensação que as coisas mudam, sai o A, entra o B, que aquilo é um torvelinho constante. Não é. Esse entrosamento dessas pirâmides, desses [poderes] fácticos, em simbiose com puras organizações de clientelas e de auto-serviço, dá uma gelatinosa consistência.

 

Isso percebeu de uma forma definitiva quando foi ministro do Equipamento ou já antes tinha percebido?

Já antes tinha percebido. O que não tinha percebido bem é que nada muda isto enquanto isto não entrar em colapso por razões externas.

 

Como uma crise com estas dimensões que obriga a repensar todo o sistema vigente?

Sem uma ruptura, e uma ruptura que vem do exterior, [nada muda]. Internamente isto tudo está mutuamente suportado.

 

Já há pouco disse de si que tinha lados quixotescos.

Prefiro que me chamem quixotesco do que naïf. Esta questão da corrupção: o meu amigo Vasco Pulido Valente, que aprecio muito, acha que isto não faz sentido nenhum porque sempre foi assim, a sociedade organiza-se deste modo.

Antes de entrar no governo, julguei que haveria pontos fracos sobre os quais se poderia deitar meia muralha abaixo; e depois logo se veria se havia tropa de infantaria, ou não, para ir à brecha. Pois bem, a muralha não se deita abaixo por dentro.

 

Não foi politicamente outras coisas porque percebeu que é menos compromissório do que seria necessário? Sendo um insider, é também um outsider.

Não tenho a ambição. Já me perguntaram várias vezes a razão porque nunca me candidatei a secretário-geral do partido: pelo que lhe acabei de dizer. Tirando o caso do Passos Coelho e da Ferreira Leite, por outras razões, olhamos para os partidos e não há respeito pelo pluralismo. É o reconhecimento da conveniência de ter todos a comer dentro do mesmo tacho. Seja qual for o partido ou a situação de poder, quem lá está é todo o mundo e o seu contrário. Não é possível na vida política dar um rumo verdadeiramente transformador da sociedade quando todos os interesses estão coligados e a única coisa que se discute são as esferas de interesse, limites, fronteiras e transferências mútuas.

 

Por falar em pluralismo, dentro do seu próprio partido, era evidente que Sócrates não era o seu cup of tea.

Nem de coffee [riso]. Ideologicamente não era. O Sócrates, não sei por que motivo, em relação aos órgãos do partido, nunca me excluiu. Não só não me excluiu como fazia questão que lá estivesse.

 

Uma leitura possível: como alguns líderes, deve achar que é melhor ter os inimigos por perto.

E sem me pôr condições nenhumas nem mandar recados. Nunca procurou pôr à volta da minha participação um condicionalismo que me levasse a reflectir que era melhor fazer assim ou assado.

 

A força que personificava dentro do PS, e que era contrária à de Sócrates, era muito evidente. Grande parte da opinião pública leu a sua ida para Inglaterra como uma espécie de tentativa de silenciar uma voz incómoda dando-lhe um tacho que não pode recusar, o BERD.

Pegue agora nessa frase e vamos ver os factos. A percepção pública viu na minha ida para Inglaterra isso?, não há a menor dúvida. Se era uma tentativa de me silenciar, implícita, nunca me silenciou. Estava em Inglaterra, vinha cá, continuei a falar. Fui à Assembleia da República, deixei lá entregue um documento com novas propostas [para o combate à corrupção]. Continuei a intervir, aprofundando o que vinha dizendo, na televisão, na comunicação escrita, nos contactos com as mais variadas instituições. O Teixeira dos Santos convidou-me para ir para Inglaterra meses antes de ter tomado posse, e dois ou três meses antes de ter apresentado o pacote da corrupção.

 

Que foi chumbado. Já tinha dito que sim?

Já tinha dito que sim. Era uma questão de oportunidade. O Teixeira dos Santos convidou-me, não me lembro do mês preciso, em Março ou Abril de 2006. Falei do pacote em Junho, apresentei-o logo na entrada parlamentar. Dois factos importantes: o convite foi-me feito muito antes, e o convite não foi alterado – nada – depois de ter apresentado o pacote e de ele ter sido chumbado, com algum desassossego para a rapaziada. Ficou tudo na mesma, mas pelo menos andaram para ali aflitos.

Já depois disto tudo, no último congresso do Sócrates, ele queria que eu integrasse a lista. O Sócrates, em relação ao meu pacote, nunca teve uma atitude de pressão pessoal, em nenhum sentido. Faço-lhe essa homenagem porque não é o costume. 

 

Está agora a regressar desses cinco anos fora e tem 75 anos. Vou usar uma velha expressão portuguesa: vai arrumar as botas ou, pelo contrário, está com vontade de continuar a fazer parte da História?

Vou fazer uma confidência que tinha reservado para os meus colegas e amigos. No meu discurso de despedida perguntaram muito porque é que me ia embora, se me dava mal com o novo ministro. O Vítor Gaspar foi correcto, tratou-me muito bem, até insistiu para que ficasse, só tenho a agradecer-lhe isso. Tinha o plano de vir para Portugal por esta altura. Expliquei-lhes que tinha acabado de fazer 75 anos. Uma coisa que sempre venerei foi a sabedoria da Igreja. Se a Igreja diz que para os cardeais aos 75 acabou, eles lá sabem porquê [riso]. Tenho ideias sobre o modo de ocupar o tempo em posições que me pareçam úteis para mim e para outros.

 

O que é que quer dizer com isso?

Volto um pouco a África, estou interessado na cooperação com África. Tenho feito alguma coisa em banho-maria, agora vou fazer mais persistentemente.

 

O seu coração é africano, está visto.

Um pouco. Tenho a ideia de que o debate público em Portugal está muito distorcido. Não estou a dizer que esteja pobre, está profundamente manipulado. Com aquilo que a vida me ensinou, aquilo que estudei, fico perplexo com as consequências das coisas que se dizem, com finalidades muito específicas, mesquinhas. Nunca fiquei chocado como dos últimos dois anos para cá sobre isto.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

 

José Medeiros Ferreira (2012)

18.03.14

José Medeiros Ferreira citou Ribeiro Sanches num artigo, não há muito: “Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se”. O historiador, analista, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, considera que este reino velho, Portugal, apesar do transe, tem emenda. O que perpassa do seu discurso é um alento: “Portugal tem condições. Apesar destas medidas terríveis. Que podiam não ser estas. Podiam não ser tão concentradas.”

Sobre este país em transe, novamente em transe, falou-se quase exclusivamente, há uma semana, na sua casa. Fez-se uma dissecação deste corpo, nem por sombras em putrefacção, ainda que com feridas fundas. “Estamos muito endividados, mas as infraestruturas estão cá. Portugal tem hospitais, escolas, autoestradas modernas. Não estou a fazer a apologia do modelo anterior. Denunciei-o. Nesse artigo, dizia que estávamos todos contentes com casa, comida e crédito. Em 2003. Não precisei da crise para o perceber.”

Fez 70 anos há um mês. É um senador da segunda metade do século XX português. 

 

Enquanto historiador, escreveu Portugal em Transe, título de um dos volumes da História de Portugal coordenada por José Mattoso, correspondente ao período 1974/85. Ainda que o tempo e as razões sejam outras, voltamos a encontrar um país em transe.

 Este Portugal em transe é uma consequência do outro. Embora as expectativas não tivessem sido essas quando se pediu a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Entre 1974 e 1976 tivemos uma república de revolucionários. Foram os que pilotaram a ruptura com a ditadura até ao estabelecimento da Constituição. Depois, com a vitória da democracia política pluralista, tivemos uma república de políticos. As grandes decisões eram eminentemente políticas, tomadas por homens políticos.

 

O que quer com isso dizer?

A autonomia da esfera política era real, verdadeira, incontestável. O pedido de adesão: os grupos de interesses (como diríamos hoje), que estavam dispersos e ainda à procura de um centro de gravidade, não tiveram qualquer papel. É uma época do predomínio político que termina no momento da primeira revisão constitucional, em 1982. A partir daí, o poder político e o desenvolvimento do país vão assentar numa figura social que simbolizo nos empresários. Temos uma república de empresários entre 1982 e 1992.

 

O poder dos empresários adveio de serem os fazedores? Eram aqueles que concretizavam um desígnio político.

De certa maneira, sim. A banca nacionalizada era muito pródiga na concessão de crédito, desde que essa concessão levasse ao aumento da produção nacional, e ao estímulo aos empresários. Os empresários dos bens transacionáveis. É um período em que Portugal exporta bastante. Era o domínio do norte, assente no PSD e nos empresários.

Eu tinha defendido em 1975 que o sistema financeiro devia ser um sistema compósito. Bancos nacionalizados, sim; mas não devia haver o monopólio da banca nacionalizada. Para favorecer uma política de estímulo ao crédito. Nunca fui favorável à irreversibilidade das nacionalizações – um dos pontos-base do Manifesto Reformador, que elaborei com António Barreto, em 1979.

Um bom período para os empresários foi o de 82/92, quando se dá a privatização da banca e Portugal entra no Sistema Monetário Europeu. Há dinheiro a rodos vindo do exterior. E a banca tem um acesso privilegiado ao crédito internacional – sabemos que foi assim que ela viveu entre 1992 e 2008.

 

Foi um tempo de dinheiro extremamente barato. E o endividamento dos particulares passou muito pelas baixas taxas de juro.   

O crédito à habitação foi a aliança entre os financeiros e a construção civil. Uma aliança poderosíssima. E por isso não houve alteração à Lei do Arrendamento Urbano. Repare no que é um casal endividar-se aos 25 anos num horizonte de 30 anos… Ficava refém. Só agora perceberam que isso tornava inflexível a mão-de-obra.

 

E inflexível a vida.

Claro. As pessoas ficavam acachapadas naquele casulo. Retomando a periodização que estava a fazer: vivemos numa república de financeiros e jornalistas (com a privatização dos grandes meios de comunicação social) de 1992 por diante. Período que sofreu um estremeção em 2008. Não ouso apontar a figura social dominante neste Portugal em transe.

 

E voltamos à questão inicial, à turbulência que se vive no país.

Há aqui vários transes. Há o transe do 25 de abril. Há o do pedido de adesão. E há o transe da zona euro e da dívida externa – o actual.

 

Vamos decompor alguns desses blocos, estruturantes da realidade portuguesa. Em 1982 começa um novo ciclo, segundo aponta. E pouco depois, temos o FMI no país, que põe as contas em ordem. Tudo parecia, nessa altura, pronto a ser empreendido. Como se a casa estivesse arrumada?

Como se a casa estivesse feita e fosse preciso arrumá-la. Mas tínhamos espaço para arrumações.

 

Porque é que não arrumámos a casa? Porque é que não empreendemos tanto quanto era possível? Replicámos uma longa história, passadas três décadas.

Penso que tem a ver com a nossa tendência para o negócio imediato. Durante muito tempo o Estado esteve sozinho nos grandes empreendimentos estratégicos. Nos últimos dez anos, Portugal não cresceu. Não cresceu mas fizeram-se muitos negócios. É quase a república dos negócios!

 

Alguém cresceu. Cresceram apenas uns quantos sujeitos, individuais?

Um banco é uma entidade colectiva. Esse espírito do lucro imediato, sem uma estratégia, apossou-se da sociedade portuguesa em meados dos anos 80 de uma forma imparável.

 

Está a falar do cavaquistão, de 1985 em diante.  

Sim. O cavaquistão teve uma ajuda exterior, a dos fundos estruturais. Os fundos tinham regulamentos, directivas que os enquadravam. Desse ponto de vista houve uma estratégia obrigatória. Depois, houve o aproveitamento privado. Os primeiros grandes aproveitadores era gente que foi bem informada sobre o acesso aos fundos. Desde a agricultura ao mundo do betão (e colaterais). Podemos simbolizar tudo isto no processo das facturas falsas.

O que lamento é que Portugal não tenha tido uma estratégia própria para a captura desses fundos e para o seu aproveitamento nacional. Custou-me o modo dogmático como se aceitaram os paradigmas dos regulamentos europeus. O cavaquistão ilustra isso bem com a frase: “Somos bons alunos”. Escrevi um artigo cujo título era: “Bons alunos de maus mestres”.

 

Tínhamos condições para questionar “os mestres”? Estávamos numa situação de dependência.

Nessa altura não estávamos.

 

Alguém estende-nos a mão dizendo: “Toma”…

E nós só recebemos o que nos interessa. Podíamos ter dito isso. Podíamos ter feito uma triagem dos sectores em que nos interessava ter ajudas. Sobretudo no CDS fazem-se críticas às cedências na Política Agrícola Comum. Mas não quero condenar o cavaquismo governamental em bloco. Teve uma consequência favorável para a sociedade portuguesa: uma tentativa de maior redistribuição da riqueza. A actual geração do PSD diz que temos de nos empobrecer. Quem fez essa redistribuição, pelos salários dos funcionários públicos, entre outros, foi Cavaco.

 

Por razões eleitoralistas?

Claro. O político está sempre a pensar em eleições – o político que as quer ganhar.

 

Preocupou-se sobretudo com a sua sobrevivência política?

O cavaquismo governamental deslumbrou-se com a entrada na CE, como as elites portuguesas se deslumbraram. Não havia pensamento crítico. Eu era, no Parlamento Europeu, dos poucos que ousavam criticar o paradigma em vigor da CE. E nós entrámos no melhor período.

 

Era o período de Jacques Delors.

E era o período em que ainda existia a Europa Ocidental. A CE via-se como sedutora em termos de modelo social, político, de crescimento económico e bem estar perante a Europa de Leste. 

 

A queda do muro estilhaçou tudo isso.

A queda do muro retirou estímulo a essa exemplaridade. Hoje não se fala de Estado-social sem se apresentar um gráfico. Mas os que apresentam gráficos sobre a falência do Estado-social não são os mesmos que apresentam gráficos sobre o dinheiro que o Estado gasta nas PPP [parcerias público-privadas].

 

Dito de modo redutor: Cavaco teve vistas curtas?

Não. Ele foi vítima.Os portugueses não conheciam a CE. Alguns conheciam a EFTA. Portugal, até 74, faz juras que nunca entrará na CE. As elites, que depois estiveram lá a chafurdar nos fundos estruturais, eram contra. Eram africanistas. O mal de Cavaco foi ter regressado ao ISEG como aluno. Ou seja, viu na CE as aulas que tanto o encantaram no ISEG e que fizeram dele um bom aluno.

No ISEG, nos anos 60/70, houve dois grupos de estudantes. Os que aprenderam o paradigma que lhes foi ensinado, e os que até propuseram cadeiras alternativas. Vou dar dois exemplos: Cavaco, que era assistente, e Ferro Rodrigues, que era dos que propunham cadeiras alternativas (embora agora se tenha esquecido disso). Para sintetizar: o mal de Cavaco Silva foi ter-se visto, de novo, como um bom aluno – da CE.

 

Insisto: quase nunca indagamos ou questionamos porque vivemos em carência, umas vezes mais, outras menos. Estar numa situação periclitante, não nos permite falar ao mestre como um igual.

Quando entrámos na CE, o pressuposto era o de que era um clube de iguais. Só agora é que se está a desfazer essa parte dos estatutos. Agora somos todos assim-assim. Não há nenhuma potência a nível europeu. Vistos de fora da Europa, todos os países europeus são débeis. A Alemanha e a França ainda não perceberam isso. A Alemanha é uma potência média. Repare no apelo que fizeram para que o mundo financiasse o mecanismo europeu de estabilização; o mundo não ouviu a Alemanha. Berlim fala para os países europeus e os países europeus ficam aflitos. Essa desproporção tem de ser ponderada em Berlim. A Alemanha não faz estas fanfarronadas sem afastar o coração dos europeus. Por muito que digam coisas como as que disse Teixeira dos Santos: “Quem paga, manda”. Uma frase tão grossa que não deveria ser dita. Ao dizê-la, aceita-se o jugo, o estatuto de subjugado.

 

Passados 30 anos, voltamos a enfrentar uma situação de agonia.

Não sei se é uma situação agónica. Acho que estamos numa situação de transe.

 

Não vê com cores tão carregadas o momento que atravessamos?

Acho que não vai haver uma solução individual para cada país. Essa é a ilusão em que nos querem fazer acreditar. Estive a ver as manifestações em Espanha; não sei se se pode parar aquilo. Foram centenas de milhares de pessoas na rua. Ou a solução é geral…

 

Ou seja, a reforma da UE tal qual a conhecemos.

Sim. Uma reforma gradual. Não estou à espera, nem queria, e até teria receio, de um passo em frente de gigante. Sobretudo quando está tudo desequilibrado. Sobretudo quando só há uma potência hegemónica. Quando dizem: a Europa é um sonho… Eu não quero sonhos para a Europa!

 

A expressão traduz o desejo de que exista um projecto, pensado, articulado, com laivos de utopia.

Não quero nenhuma utopia para a Europa. A literatura entre as duas guerras, e durante a Segunda Guerra, mostra que as utopias europeias são totalitárias e autoritárias. Não quero “a Europa como destino” (uma daquelas expressões que nos encantam). Quero um contrato político e social entre os povos europeus e os estados europeus. 

 

Se vivêssemos numa república de políticos, resultaria daí um contrato como aquele que deseja para a Europa?

Sem dúvida. Os políticos europeus é que se deixaram colonizar pelos poderes de facto. Os políticos europeus são brandos. Se o poder político não faz a arbitragem dos grupos sociais, a anarquia fica instalada. Como a polícia está bem armada, pode pensar-se que a coisa está controlada. Não tenho nada a certeza.  

 

A Espanha tem um novo governo desde Dezembro. São anunciadas medidas de austeridade e imediatamente há uma grande movimentação cívica. Em Portugal, a adesão e a participação não são tão maciças.

Portugal tem uma tradição, que acho que se devia aproveitar, de um movimento sindical ordeiro.

 

Não frouxo, mas ordeiro?

Ordeiro. E com capacidade de enquadramento. O Estado português deve imenso ao serviço de ordem da CGTP-Inter. Um serviço para que não haja provocadores, violência.

 

Outra leitura: a de que as pessoas não reagem porque estão tolhidas pelo medo.

Essa parte também existe. Mas não nos líderes sindicais, que são decisores políticos.

 

Estava a dizer que não haverá soluções individuais. Nesse caso, importa o esforço do bom aluno?

É claro que todos os países têm de fazer um esforço para o saneamento das suas finanças. Mas no detalhe, não haverá uma solução pelos méritos na contenção orçamental. A Holanda também está com dificuldade em cumprir os 3% de défice orçamental.

 

Inimaginável. Um país protestante… É a própria máquina que está desafinada.

Exactamente. Como não se quer assumir que é o sistema, como se quer atribuir as culpas a cada Estado individualmente – e a cada indivíduo – não se vai chegar a uma conclusão. Não vai haver solução para o pagamento das dívidas como elas estão. Tem de haver um outro tipo de solução. Apresentam a Grécia como um “não-precedente”. Ninguém quer ser a Grécia, mas a Grécia já avançou nesse domínio.

 

Não era praticável, nem para a Grécia nem para ninguém, pagar a dívida com juros de 100%.

Claro. Já não existe o euro como moeda comum.

 

Como assim?

Temos o padrão euro. Antigamente havia o padrão ouro. As moedas em grande parte são moedas nacionais que são aferidas pelas taxas de juro. Há o euro português, que vale no mercado consoante as taxas de juro. Há o euro espanhol, o euro alemão... Se formos ver as agências de rating, até 2009 só havia A para toda a gente.

 

Caímos todos num engodo?

Caímos numa armadilha. A liquidez financeira evaporou-se. O sistema interbancário deixou de funcionar. Quem eram os devedores mais à mão para expurgar e injectar capital nos sistemas? Os Estados. Claro que houve alguma leviandade no acesso à banca internacional. Uma leviandade praticada pelos Estados e pela banca privada.

 

E consentida por todos.

Era um modo de funcionamento do sistema. Isto vai ser resolvido numa conferência financeira internacional. Chame-se G-20, chame-se Ecofin, chame-se Zona Euro… Vai haver soluções.

 

É o jogo de equilíbrios mundial que vai ditar a urgência de uma conferência dessas?

Já há pressões. Nomeadamente sobre a Alemanha. Repito: a Grécia vai à frente no modelo de resolução da crise da dívida.

 

Não paga.

Não é não paga. Houve da parte dos credores a percepção de que, para continuar a receber as suas rendas, tinham de perdoar parte das rendas.

 

Isso vai acontecer inevitavelmente com outros países, entre eles Portugal?

Portugal será sempre um terceiro ou quarto país. Nunca seremos o segundo. Vamos dizer que não queremos… A Irlanda seria um bom segundo.

 

Foi ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, um governo socialista. É um homem de esquerda.

Cada vez mais. Esta organização social, económica e financeira tem os dias contados. Tem que haver reformas profundas. A base em que assenta a sociedade é frágil.

 

A sua relação com o PS tem sido turbulenta.

Distante, distante.

 

O PS teve até há pouco um líder que foi talvez o político mais execrado das últimas décadas.

Nunca o apoiei. Desde que se candidatou a secretário-geral do PS. Mas agora não vou dizer nada sobre ele. Não fazia parte da minha cultura política. Uma diferença de natureza.

 

Onde quero chegar: ao tempo que vai ser preciso para que a esquerda se recomponha, se reconfigure, para voltar a pensar em ser Governo.

É um movimento europeu, também. Os partidos [de esquerda] foram capturados nos anos 90 de uma forma infantil, mas sedutora. A Internacional Socialista desapareceu. Existe um partido socialista europeu que serve para gerir as votações no Parlamento Europeu, para fazer 302 emendas num relatório – coisas adjacentes. Há muitos anos que não dá resposta às questões fundamentais da construção europeia. Há movimentações, grupos de reflexão. François Hollande, o Partido Democrático Italiano, o SPD, o PSOE, o Partido Trabalhista inglês. Há um grupo de reflexão que vai querer retomar, reformando, os caminhos da Terceira Via.

 

No pós-Blair, ficou manifesto que o caminho da Terceira Via se esgotou?

Mas há muitos protagonistas que ainda estão lá. E que precisam de seguir aquela máxima do D. Luís da Cunha, que escreveu ao rei D. José I: “E agora que sucedeis a vosso pai, D. João V, sempre que tomardes uma posição diferente, justificai-a com um argumento antigo. Para que o vosso pai não seja desautorizado”. O que fizerem, será sempre num movimento reformista, de novo passo em frente. Os partidos socialistas europeus têm de olhar para esta crise em conjunto. António José Seguro tem de se associar aos outros partidos. Não pode ficar sozinho. O Partido Socialista foi muito filho da cultura política que existia, e que podemos simbolizar na cultura autárquica.

 

Isso dá-nos uma imagem paroquial, compartimentada, rente à necessidade.

Rente à necessidade, sim. Tudo muito prático e imediato. O PSD também é isso. O CDS e o BE não são porque quase não têm representação autárquica. Senão, também eram. Isso é o que o PS tem de ultrapassar.

 

Hollande, o mais proeminente líder de um partido socialista na Europa, não é uma figura carismática.

Na festa dos meus 70 anos disse que já estava de tal maneira que até aplaudia a eleição de François Hollande. Bem comportado…

 

Antes Ségolène?

Não! Foi um fogacho.

 

Também era bem comportada. Mas ao menos era mulher.

A Martine Aubry também é.

 

Mas não foi protegée do Miterrand. E é feia. Estas coisas contam.

Nas primárias norte-americanas tinha simpatia pela Hillary Clinton. Porque tem métier. Hollande: se ganhar é muito importante. Pode ser uma reviravolta. E o SPD, com este novo líder, está muito consciente de que a Alemanha tem de sair do isolamento em que está. Sarkozy não é aliado para ninguém. É um ser errático.

 

As eleições na Alemanha são apenas em 2013. Falta muito tempo.

Sim, mas é uma boa oportunidade para refazer alguns objectivos da esquerda europeia. 

 

Como é que vamos viver no curto prazo?

Até 2013, Portugal está ao abrigo do mercado global. Está protegido. Por muito mal que esteja. Fazemos parte dos países que têm acesso aos eurobonds. Em condições que consideramos más, penalizadoras da boa redistribuição de riqueza, do crescimento da economia. De acordo. Mas já estamos nessa realidade que só pode ir crescendo – a de que já existem eurobonds. 

O nosso PM diz que em 2013 vamos regressar aos mercados. Mas quando Portugal voltar aos mercados esses mercados não são os mesmos que Passos Coelho tem na cabeça.

 

A velocidade é uma das marcas deste tempo. As transformações serão galopantes?

Acho que não serão galopantes. Qual é a primeira palavra que os novos PM dizem?

 

Mudança.

Coragem. Parecem um alferes a conduzir um pelotão. A primeira qualidade que acham que um PM deve ter não é a lucidez. Nunca dizem: “Vou dar o máximo para manter a capacidade de lucidez.” A primeira frase sobre os nossos últimos PM’s é: “Vejam a coragem das medidas que está a tomar”. Na segunda parte do mandato, é uma desgraça. Porque já não tem coragem para tomar as verdadeiras medidas que devia ter tomado. Quero ver a coragem de Passos Coelho quando chegar ao problema das empresas com rendas excessivas. Ou ao problema das empresas que participam nas PPP.

 

Falou de lucidez. Porque é que é tão importante que um PM tenha esta qualidade?

Para saber onde está. No congresso do PSD, o PM falou de coragem. Não me garante nada. Até pode ser um aventureiro corajoso. Passos não é um aventureiro. É obstinado. Mas já tivemos aventureiros.

 

A verdade é que o memorando foi assinado com a troika e era preciso cumpri-lo.

Em todos os contratos, o que é preciso é a boa fé dos contratantes. Cumprir é na medida das possibilidades. Se se chegar à conclusão de que não é possível cumprir parte daquelas medidas, importa manter a boa fé. Se os credores perceberam que tinham de perdoar parte da dívida grega, como não hão-de percebê-lo para outros países?

 

Perceberam, nas ruas, que os gregos não iam pagar. Devem ter a esperança que nós, portugueses, paguemos.

Eles, os credores, farão as suas contas. Não estamos sozinhos a fazer contas.

 

Temos emenda, então.

Acho que vamos sair razoavelmente bem desta fase. Vamos baixar o nível de vida. Temos é de fazer isso de forma gradual, equilibrada. E não ao sabor do ciclo eleitoral. Ao contrário da coragem apregoada pelo PM, o que ele está a fazer é o que qualquer PM faz na primeira fase do mandato. São as medidas altamente impopulares concentradas. Como dizia o Nicolau Maquiavel, o mal deve fazer-se de uma só vez, e o bem pouco a pouco. O nosso Passos Coelho, embora sendo das artes da gestão, está a aplicar este princípio político.

 

Não está a aplicar o outro princípio político de Maquiavel que diz que, se for preciso escolher, é melhor ser temido do que amado. Passos parece querer ser amado.

Começou por ser amado. O que é a carreira pública de Passos? Imagino que tenha sido o aluno mais amado pela sua turma e pelos professores. Não parece estar na vida política por uma espécie de desequilíbrio sentimental, por uma necessidade de compensação. Ser temido, no fundo, é uma vingança por não ser amado. Maquiavel diz que é mais durável ser temido. Penso que nas sociedades democráticas isso não é verdade. O pavor não é tanto que não se possa derrubar o homem nas próximas eleições.

 

Qual foi o político português mais amado no pós-25 de Abril?

Mário Soares. Foi tudo: o mais amado, o mais odiado. Numa primeira fase, ao mesmo tempo. Depois, as coisas foram-se decantando. O facto de, com a sua idade, continuar a dar o seu testemunho, numa forma que tem mais a ver com o interesse público do que com qualquer interesse particular, faz dele uma figura querida. Diria que é cada vez mais apreciado pelos portugueses, desde a última campanha presidencial. Foi outro período em que não foi amado, em 2005.

 

Algum temido, houve?

Se houve, já desapareceu. [riso]  

 

Olhando para a política caseira, António Costa é um dos grandes políticos do futuro? Quer como PM, quer como PR?

Sem dúvida. Acho que tem de ser, primeiro, PM. Precisa de um ponto de apoio mais geral do que ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

 

Precisa de ter o partido na mão?

Não. Precisa de ter o país na mão. Mesmo que seja só metade do país. O partido, também. Escrevi um artigo sobre as reformas estatutárias do PS e fiz um elogio a Seguro. Se Seguro não chegar à Terra Prometida, mesmo inventando os Dez Mandamentos (que é o que está a fazer, com a alteração dos estatutos), aquele que me parece mais bem preparado é o António Costa. Como dizia o Mitterrand, o que é preciso nesta vida é ter muito métier e algumas convicções. Talvez Costa tenha demasiado métier (vem da Juventude Socialista), mas tem algumas convicções. É um homem da responsabilidade e do dever, o que é muito importante num político. Vejo-o como um excelente PM. Só depois disso deve encarar a candidatura à presidência.

 

Do lado do PSD?

Durão Barroso será o candidato presidencial do PSD. Imagino que já esteja a fazer a lista das benfeitorias que, como presidente da Comissão Europeia, conseguiu para Portugal. Uma lista extensa que há-de ser publicada em diferentes cadernos dos semanários. Bandeiras da CE nos edifícios que tiveram o seu apoio. É a única maneira que tem de fazer esquecer que saiu de PM de Portugal [para ser presidente da CE]. Coisa que o PM do Luxemburgo não quis fazer, porque deu prioridade a continuar a ser PM do seu país. Estamos a falar do senhor Juncker.

 Durão conhece como as palmas das mãos os grupos de interesse instalados em Portugal.

 

O seu PSD era o PSD do grande capital.  

Sim. Nem o Marcelo o foi dessa maneira. O Marcelo Rebelo de Sousa já não sai do estúdio de televisão. Ele não sabia, mas quando entrou, a porta fechou-se para sempre. O destino dele é a televisão. Outro candidato que pode correr por fora e obrigar a uma negociação: Santana Lopes.

 

À esquerda, para a presidência, aposta em quem?

António Guterres. A não ser que faça contas – é dado a isso –, perceba que pode não ganhar, e não avançar. Outra possibilidade: Jorge Sampaio. Não estou a dizer que queira ser candidato. Mas daqui a três anos tem 75 anos, ainda pode fazer um bom mandato. Se o Guterres não quiser, não estou a ver como o PS descalça a bota. O António Vitorino, é o costume. E não se passa das diatribes [partidárias] para a presidência.

 

Sócrates vai voltar?

Não creio. Neste regime, não creio.

 

É conhecido por ter “a visão planetária” – expressão que se usa a seu propósito. Vê as coisas globalmente, enquadradas. Como é que a adquiriu?

Tenho um certo sentido da previsão. Houve alguém que disse: “Sinto-me levado por forças do destino que não domino”. Não sei explicar. Sou muito intuitivo. Há também um treino. O que eu conheço bem é a natureza humana. Raramente me engano sobre uma pessoa. Tenho 70 anos, estou sempre a reflectir, a ponderar, a tentar ver para lá das aparências. Não me deixo levar por epifenómenos.

 

Mais do que desconfiar das aparências, o que prevalece é uma atitude crítica?

Não desconfio. É uma metodologia crítica, hoje em dia mecânica. Tenho um grande amigo, Vasco Pulido Valente (nem sempre estou de acordo com ele), que dizia para terem cuidado comigo…, que eu até no duche pensava em termos políticos!

 

Vasco Pulido Valente e muitos outros estiveram na sua festa dos 70 anos.

Gostei muito da presença de todos. 

 

Era um certo Portugal ali concentrado. É raro reunir tantas pessoas de sintonias tão diferentes. É a sua natureza, de agregador?

É a natureza das pessoas que lá estavam, que se mobilizaram. Só 24 horas antes percebi que se estava a preparar qualquer coisa. Um amigo telefonou-me a perguntar se não podia adiar o meu jantar de anos porque queria ir ver o Benfica a Guimarães!

Estavam cerca de 200 pessoas. Foi um momento muito emocionante. Bem sei que eram 70 anos. Bem sei que tinha acabado de passar por um momento difícil em termos de saúde.

 

Alguns dos que estiveram lá: Soares, Eanes, Jaime Gama, Mota Amaral, António Barreto, António Costa, Joana Amaral Dias, Eduardo Paz Ferreira, Mário Mesquita, Maria João Avillez, Eurico Figueiredo.

Tive muito gosto na presença de Eanes. Soares quis conhecer-me quando eu era um líder estudantil (e ao Jorge Sampaio). Tivemos relações políticas [difíceis], mas sempre gostámos um do outro. Bem, ele disse muito mal de mim! [riso] Fazemos parte da mesma família política. Costumo dizer que, para além de mim, é a pessoa mais intuitiva que conheço. Conheci Soares antes do 25 de Abril. É preciso dizer isto: se não tivesse havido a ditadura, eu não teria sido político. Comecei a combater a ditadura aos 18, 19 anos.

Em relação às pessoas que lá estavam: há sobretudo um laço emocional. Embora mantendo a cabeça fria, sou uma pessoa calorosa. Foi um gesto de generosidade da parte delas, de reconhecimento. “Quando passaste pela minha vida, marcaste a minha vida”. É muito reconfortante.

 

Sente que deixou uma marca?

Eu desconfiava que sim. Mas foi bom saber que sim. Lembro-me muito do filme Esplendor na Relva e do casal que gostou tanto um do outro… Dali a cinco anos encontram-se e percebemos que são dois fantasmas do passado. Tem de haver um momento certo de as relações aconteceram. Tenho muito gosto de fazer novas amizades. Uma das últimas foi o Antonio Tabucchi. Ofereceu-me um livro sobre o Curzio Malaparte, personagem inquietante – gostávamos de personagens inquietantes. Está a ver duas pessoas de 70 anos fazer amizade numa tarde?

 

Teve medo, com a doença?

Não. Medo, não. Fiquei muito surpreendido. Fui ao médico pensando que me passava com soro. Estava com uma aparente icterícia, e tratava-se de uma coisa mais séria. Até ali não tinha tido nada, fora as gripes, nunca tinha tomado uma injecção. Quando fui operado – felizmente tive boas equipas médicas – foi um choque. Mas o sentimento que me assaltou, e que persiste, foi o de uma grande serenidade. A ordem dos meus sentimentos em relação ao meu estado de saúde é: primeiro, tranquilo, segundo, confiante. Foi uma grande prova. Passou-se há três meses. Sinto-me bem. Se me dissessem: “Está curado”, eu acreditava! [riso]

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

Manuel Carvalho da Silva

17.03.14

“Tive uma fase decisiva: após a guerra colonial comecei a fazer formação profissional na área da organização do trabalho e fui trabalhar numa empresa a cujos quadros ainda pertenço. É uma multinacional de origem alemã. O responsável da minha área tinha esta tese: “Eh pá, um tipo vai fazendo esforços, é como o salto em altura. Põe-se a fasquia, e vamos treinando. Eu já salto 1,80m. Já estou a treinar para saltar 1,81m”. Quando estamos expostos no colectivo, desafiamos os outros a saltar 1,80m. Se no dia seguinte for necessário, temos de estar preparados para saltar 1,81m”. Manuel Carvalho da Silva tem esta história, este desafio, esta prática.

A vida dele fez-se de centímetro em centímetro. É um líder sindical que fala do pensamento de Max Weber. É um homem que se licenciou depois dos 50 e se doutorou há dois. Foi uma criança que trabalhou no campo. Foi um furriel que foi à guerra. Tem dois filhos crescidos e uma filha com apenas seis anos. Tem 60 anos. É de uma aldeia para os lados de Barcelos, onde o povo diz coisas como: “Trabalhar é honra”. Pela vida fora fez da Justiça Social uma palavra de ordem. É líder da CGTP.

(Antes de começar a entrevista, fiz o que sempre faço: esclareço que tudo o que fica gravado é transcrito. Também ajeitei a cadeira de modo a poder ficar frente a frente, e expliquei como era importante para mim apanhar o olhar do entrevistado. Foi então que ele disse…)

  

… Está a deixar-me um bocado nervoso.

 

Não acredito! Um líder de multidões não fica nervoso com tão pouco.

É mais fácil. No diálogo com as multidões, também há um tempo de aprendizagem e identificação, que, ao longo de uma intervenção, tem de se construir várias vezes. Em 1994, 95, em Braga, numa conferência sobre trabalho infantil, o D. Manuel Martins, antigo bispo de Setúbal, disse-me: “Tenho sempre uma preocupação quando estou a fazer uma homilia: fechar com alguma coisa que tenha conteúdo. Não importa que as pessoas fiquem de acordo connosco. O que importa é que fiquem a pensar sobre isso. É preciso que saiam daqui incomodadas”.

 

Preocupa-se, nas suas “homilias”, que fique lá a inquietação?

Sim. O que obriga a que, quem está a fazer o discurso, o faça com mais seriedade e empenho. Às vezes é um esforço físico dos diabos!, transpira-se imenso. O pensar dá muito trabalho [risos]. Há pessoas que até se incomodam quando digo isto, mas é verdade. Mas isto era a propósito da tensão que me estava a criar.

 

Começo por pedir-lhe que faça o seu auto-retrato. Olhando para fotografias antigas, percebe-se que a sua cara não mudou.

Mudou!, então não mudou?

 

A expressão é a mesma.

Sim. Essa é uma boa observação, que tem, talvez, a ver com a minha identidade. Ao longo da vida vou lendo livros, vendo filmes, participando em diálogos com as pessoas no dia-a-dia; dificilmente fico com grandes registos da identidade do personagem. Mas vou integrando os elementos na minha personalidade, na minha forma de encarar a vida. Não fico com aquilo compartimentado. Dilui-se. Isso levou-me a perceber uma outra coisa: o meu caminhar não tem sido de cortes, tem sido de integrações.

 

Mas o seu caminho é feito de blocos aparentemente desligados uns dos outros.

Nunca houve grandes rupturas. Não tive um tempo de ir à escola e um tempo de ir trabalhar. Fui à escola em criança e na passagem para a juventude à escola industrial. Comecei a trabalhar e procurei continuar a estudar. Mais tarde fui à universidade. E tudo isto fui fazendo caminhando. Quando me pede um auto-retrato, julgo que o traço mais significativo que posso apresentar é esse.

 

O da continuidade. Quanto, da sua infância e da primeira parte da sua vida, estão em si?

Está a visão da família. Nasci num meio rural do norte do país, profundamente católico. O meu pai não sabia ler nem escrever, escrevia o nome com dificuldade. A minha mãe sabia ler com alguma dificuldade, embora gostasse muito de ler. Impressionam-me muito as dificuldades dessa infância. Quando as pessoas morrem numa aldeia, toca o sino; e o toque para um adulto não é o mesmo que para uma criança. Quando era miúdo, ouvia muitas vezes o toque da morte de uma criança. A maior parte das famílias das aldeias não tinham condições de ir a um médico, e não havia serviço de saúde. Ainda outro dia encontrei na Universidade do Minho um companheiro de escola, que era filho de uma família muito pobre; trabalhou, estudou, e hoje é professor na Universidade do Minho. Ele ia para a escola descalço, mesmo no inverno.

 

O auto-retrato: falou apenas da continuidade. Que outros traços aparecem? Como é que se vê?

Nunca me dediquei muito a olhar para mim. Eu não tenho projectos definidos, tenho sempre objectivos gerais. [Procuro] ser activo do ponto de vista do trabalho, da valorização do trabalho, ter um contributo produtivo para a sociedade.

 

O seu percurso não se faria sem uma enorme perseverança. E confiança.

Sim. A confiança muitas vezes é minada. Todos os dias há momentos de “eu não aguento”; mas depois retoma. Tenho essa vivência: conhecer a vida difícil, viver nela. Fui um privilegiado em relação a algumas crianças cuja condição estava aqui a situar. Os meus pais eram pequenos agricultores. Todas as semanas se cozia pão. E, se andávamos a brincar ou estávamos com fome, pelo menos pão havia, e o meu pai deixava que o comêssemos. Os outros não tinham isso.

 

Há palavras e expressões que usa muito nos seus discursos e intervenções: “destinos inevitáveis”, “caminhos irreversíveis” e “alternativa”. O seu destino não foi inevitável. O seu caminho não foi irreversível.

Só há um destino inevitável: o da morte.

 

Podia ter ficado técnico electricista.

Antes disso: podia ter ficado o micro-agricultor. Somos seis filhos. Quando terminei a quarta classe, o destino que me estava traçado era trabalhar com o meu pai, e fui trabalhar com o meu pai. Trabalhar, trabalhava-se desde pequenino.

 

Era entendido como ajuda ou como trabalho?

Era uma ajuda, às vezes muito dura. Na grelha de avaliação de hoje, era trabalho infantil. Um professor primário, que não tinha sido meu professor, mas que conhecia o meu trabalho na escola pela informação que a minha professora lhe dava, convenceu o meu pai a deixar-me fazer o exame de admissão à escola industrial. Deu-me algumas aulas de preparação, e fui. Fui sacado de trabalhador rural assim. Senão, não era sequer operário electricista: era trabalhador rural, que estava um pedaço abaixo na escala social.

 

Trabalhou como electricista. Era uma coisa de que gostava ou foi uma contingência?

Eu tinha um sonho em pequenino…, dois sonhos. Um de diversão e outro de projecto de vida. O sonho de diversão é que eu gostava de jogar à bola, embora não tivesse grande jeito. O meu pai não tinha dinheiro para me comprar uma bola, nem considerava que aquilo fosse uma utilidade. Eu sonhava que, por qualquer arte mágica, alguém desse um chuto numa bola e ela pudesse cair do telhado! Passava debaixo [da chaminé], olhava, e o meu sonho era que a bola caísse. O outro: é que a casa dos meus pais não tinha luz eléctrica.

 

Que idade tinha quando passou a ter luz em casa?

Para aí, 14 anos. Em casa dos meus avós maternos, que era mesmo ao lado, e onde nasci, aí havia electricidade. O escuro fazia-me impressão. “Se conseguisse ser electricista, engenheiro electrotécnico…”. O sonho era ter electricidade e ter um rádio. Gostava imenso de ouvir notícias. Em casa dos meus avós havia um rádio e às vezes ia lá ouvir.

 

Porque é que na casa deles havia essas condições e na casa dos seu pais não?

A minha avó materna era descendente de uma família com alguns bens. Eram muitos irmãos e acabaram, como diz o povo, por dar cabo daquilo tudo. O meu avô materno era mestre marceneiro, fazia talha. Conheci-os muito velhos. O meu avô tinha nascido em 1869.

 

O casamento dos seus pais era interclassista?

Era “semi”. O do meu avô com a minha avó materna era interclassista. Foi quase um rapto! O meu avô é que era a pessoa mais culta; viajou, foi ao Brasil em trabalho. No início do século passado, isso era qualquer coisa que dava mundo. Tinha conhecido em vida o Camilo de Castelo Branco, que viveu próximo de Famalicão. O meu pai vinha de uma família muito pobre. O pai dele tinha sido criado de servir. (Olhe que se prolonga muito a conversa, depois vê-se aflita para fazer o trabalho...

 

Não se preocupe, sou muito paciente.

Eu precisava de ser mais…)

 

Na sua infância, pôde perceber, na casa ao lado, que havia diferenças, e que havia coisas a que podia aspirar.

Sim, e outras posturas. O meu avô era anticlerical, o meu pai não.

As pessoas viviam com grande miséria. A agricultura era mesmo de subsistência. Não havia subsídios para coisa nenhuma quando o ano era mau; vinha uma geada, matava tudo. O meu pai começou a cultivar batatas em grande quantidade, porque tinham surgido fábricas têxteis na região de Famalicão, começou a haver emprego e as pessoas iam comprando; levava às feiras e vendia. Começou a plantar vinho, e isso fez com que a vida melhorasse. Foi na passagem dos anos 50 para os anos 60. Foi também por causa disso que pude ser liberto para ir para a Escola Industrial.

 

Nesse tempo, as crianças não eram uma prioridade. E, como disse, ajudavam/trabalhavam o que fosse preciso.

As crianças eram “a canalha” – a expressão era esta. Nas prioridades, surgiam no fundo da escala. Quem tinha que se alimentar em primeiro lugar era quem tinha de trabalhar.

 

O pai.

Claro. A minha mãe tinha sensibilidade e o meu pai também, mas o contexto não deixava de ser este. E não havia tempo para o convívio. O envolvimento no trabalho, o cansaço físico, uma família numerosa, as condições limitadas – não tínhamos casa de banho – não permitiam uma convivência. Pediu-me um retrato e eu fiz-lhe um retrato; agora não me deixa sair do retrato… [risos]

 

Podemos dar um salto, no calendário e na geografia. Como é que o marcou a guerra colonial?

Foi um sacrifício grande para uma geração. A geração que viveu a guerra guarda as suas recordações, os seus azedumes, e não tem grande espaço para as expor. As mães eram quem mais sentia a dureza, as amputações e as limitações que a guerra provocava. Havia muitos pais que diziam: “Aquilo até abre horizontes” – o que não deixa de ter uma dimensão de verdade. Em 61 começou a guerra em Angola; o meu primo foi logo no início; as mães iam pensando: “Às tantas o meu filho, que agora tem 13, 14 anos também vai”.

 

Era o seu caso. Nasceu em 48.

É. Fui para a tropa no final de 68 e para a guerra colonial no início de 1970, com 21 anos.

 

Foi com medo?

Um misto de medo e de expectativa. No final dos anos 60 falava-se de Cabinda como espaço de desenvolvimento significativo, “os americanos é que estão lá a comandar o petróleo”. Um dos choques foi que, de Luanda para Cabinda, fomos numa lancha costeira; duas impressões fortes: uma, atravessar a foz do Rio Zaire, que tem o segundo maior caudal do mundo; vi entrarem pelo mar dentro árvores e pedaços de terra que iam naquela torrente. Depois foi ver, através de uns binóculos, que o porto e o cais de atracagem eram uma coisa improvisada. “Onde nós caímos…, afinal isto não é o que se diz por aí”.

 

Mas também havia expectativa. Porquê?

Fui como furriel miliciano. Em relação ao salário daqui, ganhávamos bastante bem. Se não estou em erro, eram 3.500 escudos por mês – era significativo. O primeiro choque, lá, foi perceber que a ideia que tínhamos de África, a ideia que Salazar trabalhou – “Somos um todo” –, não correspondia à verdade. Não éramos “todo” nenhum. Vim convencido que a descolonização, (o conceito nem era muito utilizado entre nós), o fim daquilo ia ser violento. Também me deu a oportunidade de ler. Nunca li tanto como li na guerra colonial. Li quase tudo sobre o Mao Tsé Tung. “As Vinhas da Ira”, [de Steinbeck], “O Prémio”, do [Irving] Wallace, o “Pavilhão dos Cancerosos”, do Solzhenitsyn, marcaram-me imenso. E escrevi muito. Todos os dias escrevia. Sou capaz de ter perto de 200 cartas.

 

Releu-as?

Em parte.

 

Que vida era a da sua companhia?

Vivemos dois anos dentro de um arame farpado. Não havia populações próximas. Brancos, não havia. Populações indígenas, os cabindas, viviam em pequenas sanzalas ali próximo. Para ir levar o lixo, era preciso ter um pelotão de segurança. Para jogar futebol, era preciso arranjar voluntários que fizessem segurança. Para ir buscar lenha, era preciso segurança. Não percebo é como é que chegavam lá tantos livros!

 

Mandavam-lhe livros da metrópole?

A minha namorada, que foi a minha primeira mulher, mandava-me alguns livros. Uma minha amiga, estudante de medicina, também. Como não tínhamos água potável, mandavam com regularidade cálcio; talvez tenha tido efeito, porque consegui que a minha dentição se mantivesse boa. Como fui furriel de transmissões e dirigia o serviço de informação, não tive de fazer tantas operações como outros camaradas, mas aquilo foi muito duro. Conheço um indivíduo no Alentejo, no concelho do Alandroal, que fez a guerra colonial e não sabe onde esteve! E não é uma pessoa com deficiência mental. É uma marca que apagou, e por outro lado é um distanciamento total.

 

Como se aquilo fosse uma outra existência, uma outra vida? No seu caso, até onde é que aquilo o marcou?

Marcou-me muito. Comecei a ter oportunidade de ler, trocar impressões com outros, discutir. Foi-se gerando um sentimento anti-guerra colonial em mim. Em situações de conflito a coisa é complicada; no limite, ou matas ou morres. Nunca estive em situações desse patamar.

 

Temia que qualquer coisa mais violenta deflagrasse e que isso ameaçasse a sua vida? Ou que o obrigasse ao “ou matas ou morres”? A ameaça, que é terrível, pairava sobre os dias...

Ah isso, sim.

 

Vou ou não ter coragem, como é que me vou portar.

Sim.

 

Lobo Antunes escreve que viu pessoas a borrarem-se de medo.

São esses sentimentos todos. Pouco tempo depois de estar lá, participei num destacamento. O comandante decidiu que eu ia nessa coluna; fomos a caminhar no meio da floresta, concentrados, à espera que acontecesse um primeiro disparo, ou que surgisse um rebentamento de uma armadilha. Seis ou sete quilómetros, numa zona muito arriscada. Cria tensões incríveis.

 

Tinha a expectativa de ali ganhar um bom dinheiro. Empregou-o em quê?

Ainda tinha uns milhares de escudos significativos. Casei-me pouco tempo depois de vir da tropa. Foi usado para a estruturação do casamento, da vida.

 

A experiência da guerra deu-lhe uma especial tenacidade? Fez com que perdesse o medo do confronto? Enquanto líder sindical, ambas são precisas.

É provável que uma parte significativa venha daí – é preciso resistir. Apeteceu-me fugir. A última vez que vim de férias, já tinha 17 meses, faltavam-me seis meses para acabar a comissão; estive preparado para fugir. O que era até um contra-senso…

 

Porquê depois de 17 meses?

Já tinha 15 meses de tropa aqui, com mais 18 meses lá… Estava revoltado com aquilo, havia tensões entre nós, na companhia. Um amigo, imensamente solidário, convenceu-me a não fugir. Mas o mais determinante foi a minha mãe. Um dia, já muito próximo do fim das férias, regressei a casa de madrugada; a minha mãe estava sentada na entrada para o meu quarto, numa salazita. Pediu-me para não fugir.

 

No fundo, não quis desgostá-la, e defraudar a ideia que ela tinha de si.

Foi um bocado isso.

 

Regressou em 72. Que vida foi a sua depois disso?

Respondi a anúncios do Centro de Emprego. Cheguei a casa numa segunda-feira à noite, e na quarta-feira fui prestar provas para um emprego. Fui admitido logo. Era razoavelmente bem pago, deram-me um salário de entrada de 4.500 escudos. Gostaram das minhas características e apostaram em mim; eu também estava empenhado naquilo. Depois começaram a surgir tensões internas entre mim e um dos sócios, que era gestor. Comecei a fazer alguma denúncia, embora discreta, a chamar à atenção para o desvio de aço – aquilo era uma fábrica de produção de talheres.

 

O líder sindical nasce aí.

Acabei por ser despedido quando estava a terminar esse período de formação. Ainda se gerou um movimento de solidariedade comigo, mas a repressão era muita e não havia espaço. Respondi a anúncios, nunca fiquei à espera. Quatro, cinco dias depois estava a fazer prestação de provas na empresa a cujo quadro agora pertenço.

 

Ficou aflito com a possibilidade de ficar desempregado?

Andava a preparar-me psicologicamente. Já tinha um filho. Vivi ali alguns dias…, “como é que isto se vai conduzir?”. Mas aí deita-se mão da confiança, e se é para resolver, vamos lá. Nesta empresa, consegui rapidamente mudar de trabalho e até com uma progressão salarial grande.

 

Já por duas vezes mencionou a importância do dinheiro que ganhava, quer na tropa, quer agora.

Eu vinha de uma família que tinha muitas limitações. Ganhar dinheiro era uma coisa importante. Mas não era no sentido de ser rico.

 

Queria ter o dinheiro suficiente para não ter que se preocupar?

Exactamente. Essa era a diferença.

 

Nunca quis enriquecer?

Nunca tive essa apetência.

 

Li num jornal que o seu ordenado enquanto líder da CGTP são 1600 euros.

É um pouco mais, com os complementos.

 

Se o dinheiro fosse o valor mais importante, o seu percurso tinha sido outro.

E com a passagem do tempo, isso tornou-se ainda mais evidente para mim. O dinheiro faz falta. Aspirar a ter um nível de vida razoável que nos permita viver com dignidade e ter algum conforto – não sou totalmente despido nesse quadro. Admiro quem é muito mais despido. Existem homens que entregam tudo a outros. Há figuras em Portugal que o fizeram, desde o Álvaro Cunhal a outros.

 

O Álvaro Cunhal tinha uma origem social diferente – faz diferença.

Profunda. Eu não deixarei nunca, para o bem e para o mal, de ser o indivíduo que nasceu no interior, na santa terrinha, filho de gente da terra, gente humilde, que faz um percurso. Consigo alguma formação e alguma inserção na sociedade, mas tenho um distanciamento. No espaço onde circulo há muita gente licenciada; tiveram um tempo de andar na universidade, a movimentação estudantil, a movimentação política. Eu não tenho isso. Os meus pares, aqueles que hoje estão no espaço de intervenção académica, também me vêem chegar como um estranho. Essa marca nunca desaparece.

 

A estratificação social é vincada.

Muito complexa. Podem fazer mil discursos e mil teses a dizer que se faz uma mobilidade social fácil. Mas ficam sempre marcas.

 

A propósito de mobilidade social: nem quando se doutorou, sentiu que estava num lugar diferente? Está evidentemente num lugar diferente.

Ainda é muito recente, só passaram dois anos. Comuniquei a um conjunto de pessoas [que ia defender a tese], outras tomaram conhecimento de outras formas. Um dos gestos que me marcaram foi ter aparecido um leque imenso de pessoas, de áreas diversas. Quiseram ir lá e, com essa ida, quiseram marcar uma atitude.

 

Quer apontar alguns nomes?

São conhecidos. A administração da minha empresa fez questão de se representar. Houve alguns empresários com quem tive contactos fortes ao longo do tempo. Governantes que já não [o] eram. O Silva Peneda, o Horta e Costa, o João Salgueiro, o Dr. Mário Soares, o Paulo Pedroso. Os amigos, o Carlos do Carmo, o Vitorino. A sala esteve repleta; alguns tiveram de ficar sentados no chão – como o Vital Moreira. Ou seja, na sociedade há muita gente que não aceita essas barreiras de estratificação de que estávamos a falar e que são dominantes.

 

Estava muito nervoso?

Acho que ficou mais nervoso o júri do que eu [risos]. Porque não é comum juntarem-se umas centenas de pessoas, ainda por cima, muitas delas referências na sociedade, e isso criou no júri uma exigência que foi notória. O processo levou quatro horas. Foi um massacre.

 

Era simultaneamente um sinal de respeito pelo seu percurso e pelo conhecimento?

O sinal para comigo não posso negar, quando falamos de percurso.

 

O Partido Comunista, a pertença a esse grupo ideológico, a essa larga família, foi fundamental nesse percurso?

É uma família grande. É uma das componentes importantes no meu processo, na minha construção.

 

Enquanto indivíduo e enquanto líder sindical?

Enquanto indivíduo e enquanto líder sindical. A grelha de análise dos problemas do mundo, essa, é uma. Já falámos de outras, da família e do seu contexto. Falámos de outra que é a cultura católica. Há valores e há referências que se mantêm fortes e que me levaram a nunca renegar [o catolicismo]. Olho para a sociedade com alguma abertura, com alguma disponibilidade para ver correntes de pensamento diversas.

 

Essa abertura na maneira como olha a sociedade, é um sinal da sua heterodoxia? Se tivesse sido mais ortodoxo talvez tivesse sido secretário-geral do PC? Isso passou-lhe pela cabeça, foi um objectivo?

Não, nunca! Conheço-me e conheço o partido o suficiente para, desde há imenso tempo, dizer que esses dois factores nunca produziriam convergência possível para se concretizar essa hipótese.

 

Porquê?

Como disse, conheço-me e conheço o partido. Os porquês são esses.

 

Então, quais são as incompatibilidades?

Não falei em incompatibilidades. Disse que não produziriam as convergências necessárias. Exactamente pela minha formação. Há dimensões da minha formação que, por um lado, não ajudam a essa convergência; e há posturas do partido que também não ajudam a essa convergência. Isso para mim é uma coisa tão clara há tanto tempo, tão, tão clara.

 

Não foi um desígnio ser líder do PC?

Em determinados momentos, alguns camaradas forçavam essa minha ligação à vida do partido. Houve períodos em que intervim mais, mas nunca fui candidato a deputado, e muito menos eleito. Progressivamente fui tendo menos ligação à vida partidária. Sou militante, com o meu quadro de valores, no terreno. É essa a minha participação, não há outra. Nos primeiros anos em que fui coordenador da CGTP, alguns amigos diziam: “Devias ter uma presença e até uma função dentro do partido mais elevada, porque isso te dava autoridade”. E houve outros da direcção do partido que falaram comigo: “Estás disposto a fazer um compromisso?”. Eu interroguei-os: “Para quê, com que projecto, para onde?”.

 

Porquê essa “recusa”?

Em vários momentos aferi que não havia essa convergência. Até costumava brincar: “Acabem com isso!, se for necessário escrever numa folha de papel selado que não sou candidato partidário, escrevo, porque esse é o meu sentimento, a minha convicção profunda”. Nunca falei disto com este pormenor, mas essa foi sempre a atitude. Depois, a minha vivência do sindicalismo é uma vivência de percorrer o país, observar as coisas, ir às empresas, debater, cruzar as minhas posições com as dos outros. Isso levou-me à tal – para usar o conceito que você usou – heterodoxia. A formação académica reforçou isso.

 

Alguma vez foi à biblioteca do British Museum, onde Marx escreveu “O Capital”?

Não.

 

Marx foi para si um herói?

Marx não pode ser um herói para mim porque não viveu no meu tempo.

 

Aponte-me um herói.

Não tenho heróis.

 

Todos precisamos dos nossos mitos, dos nossos heróis particulares.

De referências fortes. Os nossos heróis vão surgindo. Surgem nos autores que lemos, nas pessoas que conhecemos, numa ou noutra figura com que a gente se impressiona. Muitos dos meus heróis são delegados sindicais ou dirigentes sindicais de base com quem me cruzei ao longo do tempo. Que são seres humanos comuns. Mas uma das coisas que me impressionaram foi quando Nelson Mandela foi libertado. Fui ao 1º congresso do ANC, na África do Sul. Eram quatro ou cinco mil delegados e toda a gente queria falar. A força do Mandela, e a sua tranquilidade, impressionavam. Um homem que vem de tanto tempo de prisão, tão condicionado, e que tem aquela paz…

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009