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Anabela Mota Ribeiro

No Chile, o passado já passou?

11.03.14

1. Bachelet e Matthei

Parece um encontro de iguais. Não é. Michelle Bachelet e Evelyn Matthei não são amigas, nunca foram. Conheceram-se na infância, quando os seus pais, generais da Força Aérea, estavam colocados na base Cerro Moreno no norte do Chile. Michelle tinha seis anos, Evelyn tinha quatro. Brincaram juntas. Não coincidiram no colégio. O folhetim que tem sido alimentado do reencontro de duas siamesas que o golpe de Pinochet separou, além de falso, distorce o que verdadeiramente está em causa nas eleições presidenciais chilenas.

Os seus pais, Alberto Bachelet e Fernando Matthei, foram amigos próximos. Tinham afinidades comuns, apoiavam-se, plantaram árvores no jardim da casa nova de Matthei.

Para Michelle, o pai da sua rival mais directa era, e continuou a ser, o “tio Fernando”. Foi assim que se dirigiu a ele quando o reencontrou em 2009 e era presidenta do Chile. Apertou-lhe a mão direita e usou a esquerda para o abraçar.

Fernando Matthei não era um político convencional. Era o menos político dos generais que integraram a Junta Militar que tomou o poder na sucessão do golpe de 1973. Não se parecia aos católicos das Forças Armadas que tinham na parede uma imagem da Virgem Maria. Apoiou o conservador Alessandri nas eleições em que Allende saiu vitorioso, ao contrário do seu amigo, mas esta discrepância não provocou danos na relação.

Alberto Bachelet era um general constitucionalista. Não é estranho que não tenha aderido a um golpe que depôs um presidente constitucionalmente eleito. A sua lealdade a Allende – em última instância, a um princípio de constitucionalidade que foi violado com a tomada do poder pelos militares – custou-lhe a prisão, a tortura, a morte. Foi acusado de traição à pátria, esteve detido na Academia de Guerra, morreu em Março de 1974 na sequência da tortura de que foi alvo.

Matthei regressara de Londres, onde se encontrava aquando do golpe, no fim do ano de 73. Assumiu a direcção da Academia poucos meses antes da morte de Bachelet. Não fez um gesto para o salvar. Assumiria anos mais tarde: “Confesso que nunca o fui visitar, nem nos subterrâneos da Academia nem na prisão, facto do qual me envergonho”. Matthei esclareceu também que a Academia era um lugar onde quase não ia e sobre o qual não tinha controle. Mesmo que formalmente fosse o responsável pelo que ali acontecia. A viúva de Bachelet reafirmou em 2012 a amizade que os une: “O general Matthei foi sempre um amigo. Tenho a certeza de que não esteve na Academia de Guerra no tempo em que o meu marido esteve lá”.

O gesto de Michelle Bachelet – aquele abraço – foi entendido por muitos como um gesto de reconciliação. Começavam a ser cosidas as feridas da ditadura. Uma mulher, filha de um militar, ela mesma presa e torturada no centro Villa Grimaldi, em 1975, era presidente. O passado começava a passar e um diálogo necessário era feito, ou encarnado, por ela.

Não é despiciendo que tenha sido o general Matthei a anunciar a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988, que pôs fim à ditadura (embora sejam muitos os fins simbólicos e efectivos da ditadura). Como se vê no filme No, de Pablo Larrain, (o filho de um senador de direita que recentemente manifestou apoio a Michelle Bachelet), foi o anúncio-assunção de Matthei que impossibilitou um cenário de fraude eleitoral. “Dizer que se salvou graças a esse anúncio... salvar é uma palavra excessiva. Mas o seu lugar na história ficou matizado”, considera Patrício Fernández, director do semanário de esquerda The Clinic.

Fernando Matthei era membro da Junta, foi nessa qualidade que se pronunciou. A sua filha Evelyn, actual candidata, votou pelo Sim. Ou seja, pela continuação do pinochetismo. Se não fosse por outras razões, essa seria suficiente para impossibilitar a sua vitória nas eleições deste domingo, pensa Fernández. “Creio que o Chile nunca vai eleger um presidente que votou pelo Sim. Talvez na cabeça das pessoas isto não exista de modo explícito. Mas no final, se procurarmos o núcleo envenenado, é este”.

O peso deste apoio de Evelyn Matthei desencadeia uma série de questões complexas. Era possível ser de direita e recusar o golpe e o pinochetismo? Era. Sebastián Piñera, presidente cessante, fê-lo. Votou pelo Não. Em Setembro passado, quando se assinalaram os 40 anos do golpe, falou dos cúmplices passivos da ditadura. Não há muito era impensável que um presidente de direita, em democracia, pudesse dizer algo assim.

Que direita, então, é a de Evelyn? E quem é esta mulher, a primeira mulher de direita que concorre às eleições presidenciais?

 

2. Evelyn e Michelle

Evelyn converteu-se numa personagem que não é ela. Candidata de recurso, substituiu o muito conservador Pablo Longueira que abandonou a corrida alegando depressão. A candidatura não foi construída em torno da sua personalidade. Evelyn deixou de ser a economista liberal, que põe os filhos numa escola inglesa e não-católica, que diz palavrões e pode mandar à merda o seu interlocutor, para passar a ser uma personagem bem comportada, onde tudo está correcto (ou, pelo menos, se adequa a um protótipo). Foi deputada, senadora, ministra. É preparada, trabalhadora, inteligente. Não é a tonta frívola que o The Clinic parodia quando a mostra preocupada a franja... O comentário, sexista, concorda o director, deve ser entendido como um momento humorístico. Patrício Fernández resume a metamorfose da candidata: “Era um pouco louca, o que é divertido. E acabou a ser uma vassoura seca [riso]”.

Os comentários sexistas também atingiram Michelle Bachelet, mas apenas na primeira eleição presidencial (2006/2010). Era “a gorda” que não ia dar conta do recado. Não ia dar conta do recado por ser gorda e por ser mulher. Mas não há comentários deste teor nestas eleições. 

A candidatura de Evelyn, continua o director do semanário, “é um desastre. Não me atreveria a dizer que é a quintessência da ditadura, mas é representante disso, dessa direita. Não é uma candidatura de um projecto de direita renovador. Piñera, que é o seu inimigo principal, encabeça essa direita. Matthei, se se confirmarem as sondagens, vai ter o pior resultado da direita em toda a sua história.”

De certa maneira, Evelyn Matthei parece refém de uma escolha que ela própria fez ao votar Sim no plebiscito de 1988. Não foi capaz de desfazer este nó, ao contrário de outros sectores da direita que fizeram um mea culpa em relação ao passado ou disseram: chega! Nesse sentido, ela é menos a filha do seu pai do que do pinochetismo.

Michelle Bachelet beneficia deste momento conflitual. Partiu com 300 metros de avanço sobre os outros candidatos – são nove, no total. Em Janeiro deste ano, antes mesmo de anunciar que era candidata, uma sondagem indicava que tinha mais de 50% das intenções de voto.

Há uma história e uma imagem que talvez a definam. Michelle é ministra da Defesa do presidente Ricardo Lagos (2000/2006). Cenário de cataclismo, ruas alagadas, pessoas em botes. Bachelet aparece em cima de um carro militar, com um gorro militar, ao lado de militares, para ajudar a população. Essa imagem converteu-se no símbolo da reconciliação. Do começo da reconciliação efectiva.

Que tem ela? Uma mulher socialista, filha de um homem que foi perseguido e morto, que conheceu (bem como a mãe) a experiência da tortura e do exo de Pinochet em Londres, em 1998. Com a morte de Pinochet, em 200m socialista epois de chegar a secretou pela Sim. Ou seja, pelílio, chefia os militares. Era uma metáfora do tempo que aí vinha.

E isto leva-nos a esta eleição e ao regresso de Michelle Bachelet para a disputar. Porque é que veio depois dos quatro anos passados na ONU, onde havia boas possibilidades de chegar a secretária-geral? Porque a transição não estava completa. Porque o acerto de contas com o passado não está concluído. Muitos passos foram dados. Coincidiram com a prisão de Pinochet em Londres, em 1998. Com o primeiro governo de um socialista depois do golpe, Lagos. Com a primeira eleição de Bachelet, em 2006. Com a morte de Pinochet, nesse mesmo ano de 2006. O que falta fazer para que esse passado chileno esteja enterrado?

“Tanto para fazer”, dizia Michelle Bachelet esta quinta feira, no discurso de encerramento da sua candidatura, no parque Quinta Normal. (Antes de discursar, num ambiente impensável na Europa, Michelle dançou cumbia ao som de uma das mais antigas orquestras tropicais do Chile, a Sonora Palacios, cantou canções revolucionárias, letra por letra, e só nesses momentos abandonou o sorriso cálido para assumir um semblante grave.) 

Michelle não precisa de apresentar-se com mais do que o que é: simpática, carinhosa, consensual. “Vocês conhecem-me, sabem que não faço promessas. Assumo compromissos.” É a que ouve para decidir. La Madre.

Em meses de campanha, falou de três ideias, apenas. Uma reforma da Constituição, uma reforma tributária, educação gratuita para todos. Estes são os mecanismos que lhe permitirão combater o que identificou como “a grande ferida do país: a desigualdade”. 

3. O que aí vem (ou uma espécie de epílogo)

A direita, como se viu, não está incondicionalmente com Matthei. Mesmo os empresários, que tradicionalmente investem em candidatos de direita, colam-se ao valor seguro que Bachelet representa. O país continua a crescer 5% ao ano e nem o discurso usado por Matthei nesta etapa final, destinado a reavivar os medos da direita, parece surtir efeito: “Vamos perder o que ganhámos. Porquê destruir e fazer tudo do zero?”

Se as sondagens se confirmarem, Michelle Bachelet vence este domingo. Mas o grau de incerteza quanto aos resultados das legislativas, que são simultâneas, é grande. Eduardo Sepúlveda, editor de reportagem do diário conservador El Mercurio e um dos jornalistas mais relevantes no meio político chileno, diz-nos: “Esta é a primeira eleição presidencial em que o voto não é obrigatório. Bachelet tem uma vantagem gigantesca, mas não se sabe se essa vantagem a obriga a uma segunda volta. Nem se sabe como é que a maioria de Bachelet vai lidar com o parlamento. O que pode ou não fazer depende da quantidade de parlamentares que conseguir obter. Se a maioria que ela pede se reflectir nos votos da sua coligação, vamos ter um governo extremamente poderoso, capaz de fazer mudanças profundas no Chile. Senão, as mudanças terão de ser mais negociadas.”

A mulher que hoje se apresenta a votos não é a mesma que governou entre 2006 e 2010. No término do mandato, o dramaturgo Guillermo Calderón, escreveu um discurso de despedida – imaginário – onde se dizia assim: “Mas se se recordam, não me elegeram para mudar tudo. Elegeram-me para outra coisa. Para sermos felizes por um momento. Para que lhes amassasse o pão com sabor a justiça. Foi um grande triunfo de todos”.

A peça, Discurso, que foi representada em Portugal na Gulbenkian, também mostra que, apesar de todas as diferenças, Michelle é a mesma. A que diz: “Tenho filhos maravilhosos, sou filha de militar, também toco guitarra, tenho uma vida de filme, tenho dores no peito, senti um frio atroz na Alemanha [onde esteve exilada], estive exilada da vida, estive na lista negra dos maus, sou pediatra, choro abraçada às minhas amigas, e não convém esquecer que sou ateia”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013 

 

Nuno Amado

10.03.14

Nuno Amado não é um personagem bigger than life. Desses excessivos, que vemos nos filmes e lemos nos livros, cuja lenda os precede, cuja ambição os cega. Nuno Amado é um homem normalíssimo, que tem confiança qb nele próprio, que faz do trabalho um valor seguro. Uma pessoa normalíssima que preside a um dos maiores bancos comerciais em Portugal. É um desses homens que não precisam de usar sapatos por medida para se sentirem importantes.

É um homem de equipa, equipa, equipa – a repetição é dele. Por acaso é o líder, mas só se sente, genuinamente, uma parte da equipa. E está longe de estar contentinho da vida com o facto. “Se me tivesse perguntado, mesmo quando acabei o curso, se poderia estar onde estou hoje, eu diria: muito, muito, muito pouco possível. Não estava no meu cenário”. Mas está. Está onde está por causa de “trabalho, boas decisões, sorte e alguma ambição. 

É especialmente amável, modesto, humilde. E ao mesmo tempo firme, seguro, directo ao assunto. Constantemente devolveu-me a pergunta que lhe tinha feito – o que é raro. (De onde é que você é?, Qual é o filme da sua vida?, Você não acha?, coisas assim). Porquê é que o fez? Talvez tenha, simplesmente, interesse pelo outro. O que não quer dizer, exactamente, que tenha desinteresse por si.

Não é por insegurança que repete que acha a entrevista um equívoco, ou sem interesse. Pode ser, simplesmente, por não gostar de estar no centro do palco. Cerca de três anos depois da primeira abordagem (somos ambos persistentes…), concordou em revelar-se além do discurso técnico que lhe conhecemos. Ainda bem que o fez. Como pode não ter interesse a história de um homem que deixa às filhas a noção de que é preciso dormir bem com a sua consciência?

Não estavam outros à volta. Encontrámo-nos sem equipas. Começámos, por causa de um quadro que estava sobre as nossas cabeças, por falar de pintura. 

 

 

... então namorou um quadro da Menez.

Os namoros são demorados, às vezes. Éramos novos. Estava casado há pouco tempo – foi, portanto, há 25 anos – e tentei chegar a um quadro da Menez, através de um filho dela. Mas não havia “farinha”. [riso] Não se comprou. Quando não se pode, não se compra. Comprei um recentemente.

 

Nunca desistiu de ter esse quadro?

Nunca desisti de ter um quadro da Menez de que gostasse.

 

O que já é revelador de si, da sua persistência.

Talvez. Não parecendo, mas insistir. A técnica, às vezes, não é: quero, quero e vou conseguir. A técnica é: dar tempo, e o tempo ajuda. Foi o caso.

 

O que é que representou para si este reencontro com a peça da Menez?

Ter uma coisa bonita de que gosto, e ter tido a oportunidade de a comprar.

 

Devo dizer que consta no mercado que é dos menos peneirentos dos presidentes de instituições bancárias.

Conheço outros que, realmente, não são.

 

O que quero saber é quem é esta pessoa que não tem necessidade de afirmação por esta via.

Não tenho nenhum interesse em me afirmar. Não preciso! [riso] Não sei mesmo porque sou assim. Talvez por educação, por trabalho, por sentir que as pessoas atingem determinados pontos porque merecem, ou porque tiveram sorte, ou porque estavam no momento certo. Tenho necessidade de competir. Não tenho necessidade de me afirmar para ser o primeiro da fila.

 

Quando se compete é para ser o primeiro da fila.

Para tentar ser o primeiro da fila. E irrito-me quando não consigo. Mas não é por ser o primeiro. É para concorrer, para conseguir fazer coisas que os outros não fazem, para pertencer a uma equipa que pode funcionar bem. Talvez tenha necessidade de afirmação colectiva.

 

Emilio Botín e outras figuras do banco, como Horta Osório, são extraordinariamente carismáticas. O senhor entrou no banco em 97 e a sua ascensão foi muito rápida. E isto num estilo que é o oposto do que descrevi. É “o discreto”.

Temos um grande presidente do grupo, e um administrador delegado, o Alfredo Sáenz, que tem um perfil low profile.  Não deixa de ser óptimo porque é low profile. As boas equipas têm de ser complementares. Eu tinha uma boa relação de complementaridade com o António [Horta Osório]. As equipas não se desenham à imagem do líder. Há aspectos do líder que são óbvios: ambição, ambição por liderança, focada em resultados, cultura de eficiência, controlo de riscos. Tudo isso, dentro desta casa, temos. Mas as formas [de o afirmar] divergem. Eu não gosto de ver só eucaliptais, nem só manchas de pinheiro; a diversidade é boa.

 

Imagino que tenha demorado algum tempo a sentir-se bem na sua pele, nesse seu estilo menos espaventoso… E a confiar que ser discreto não era desmerecedor.

Não vou responder a essa pergunta. Vou só dizer que a confiança que tenho é muitas vezes acompanhada de desconfiança. A dúvida é uma coisa que tenho muitas vezes. Não sou iluminado – ao contrário. Muitas das coisas que fazemos, duvido que as façamos bem. Não tenho um excesso de confiança. Tenho confiança qb. Em termos de percurso, estou bem onde estou, mas também estava bem onde estava há quatro anos atrás. Estou a ser sincero.

 

No mesmo ano, em 2006, ascendeu à vice-presidência e à presidência. Deve ter sido para si um ano emocionante.

Foi, foi emocionante.

 

Descreva-me o que sentiu. Não tanto os factos, que esses já os conhecemos.

Senti que o António Horta Osório fez o percurso que gostava [de fazer] e que, na minha opinião, merecia. E que me deu a oportunidade de liderar este banco. O que eu não sabia é que seria num período tão difícil como aquele que estamos a viver. Mas deu-me essa oportunidade. Vi isso naturalmente. Nem deslumbrado, nem medroso. Naturalmente. (Espero não lembrar o treinador do Sporting!

 

Como é que ele diz?

Ele diz “Naturalmente!” Os cómicos, os Gatos Fedorentos, é que o imitavam ao dizer esta palavra à maneira dele…) Portanto, achei natural a mudança. 

 

Quando percebeu que ele ia sair, achou “natural” que isso apontasse a sua subida?

Até ao último momento nem pensei no tema.

 

Como assim, se era o vice-presidente?

Até ao último momento não pensei no que seria o banco sem o António Osório como presidente executivo.

 

Porquê?

Achei que esse era um tema para o António Osório e para o grupo, não era um tema para o Nuno Amado nem para o Francisco António nem para ninguém. Não tinha de pensar. Tinha de fazer a minha função.

 

Isso não bate completamente certo com aquele que compete.

Mas é verdade o que lhe digo. Pode não bater certo, mas foi assim. Gosto de concorrer, de competir; mas acima disso gosto de trabalhar em equipa. A minha juventude foi passada na escola e num clube na minha terra em que jogava basquete. Vejo-me mais como uma parte da equipa – com mais responsabilidade, menos responsabilidade – do que como uma estrela, no sentido desportivo do termo. Equipa, equipa, equipa. Pensei na equipa e não na sucessão.

 

A experiência no desporto foi marcante na forma como trabalha em equipa, e mesmo na sua formação pessoal?

Foi. Foi.

 

Não é especialmente alto. 

Sou baixinho, tenho 1 metro e 70.  

 

Nunca se sentiu inibido por não ser o mais alto, num desporto onde os desportistas são, normalmente, altos?

Não. Nuns anos fui o capitão. Não fui um capitão demasiado mandão, apesar de ter os meus repentes.

 

Ainda em 2006, uma das razões porque não pensou na sucessão foi estar na vice-presidência há pouco tempo? Estava ainda verde?

Está a obrigar-me a pensar na minha vida… Tomei decisões profissionais acertadas, e outras menos acertadas, em momentos decisivos, e não me recordo de ter pensado como é que podia ir à função do meu chefe. Até hoje. Talvez não faça parte da minha maneira de ser. Antes de estar aqui já tinha tido experiências em que, a prazo, poderia ocupar esse lugar; mas nunca me posicionei dessa maneira. Às vezes é negativo. Não acha? Um excesso de ambição pode ser negativo. 

 

Não tinha pensado que íamos começar pela Menez…

Foi você que começou, não fui eu. Disse que gostava muito da Menez.

 

A Menez pode ser lida como um preâmbulo. Interessa-me o que daí decorre. O que trazia preparado para o arranque era: quem era esta pessoa antes de ser o presidente do Santander Totta?

Sou o Nuno Amado, 52 anos, português, torreense, uma pessoa normalíssima. Que, em número de horas, se calhar, já trabalhou muito mais do que muita gente durante a vida inteira.

 

Porque é que trabalhou tanto? Quem é que lhe incutiu esse valor?

É do meu pai e da minha mãe. A minha mãe, que tem 77 anos, ainda hoje trabalha mais do que a maioria das pessoas que conheço. Se conhecesse a minha mãe… É extraordinária.

 

O que é que ela faz, se posso perguntar?

Pode, pode. Tem um pequeno hotel, agora deixou a parte da alimentação. Tem uma residencial e continua à frente do negócio. Não precisa, posso garantir-lhe, mas é a vida dela. O meu pai faleceu há um ano e tal. E acompanhava-a, no trabalho.

 

Foi assim que se habituou a olhar para eles, como dois trabalhadores infatigáveis?

Foi. Demais. Porque a vida não é só trabalho. A vida é trabalhar e desfrutar alguma coisa. Sou muito mais equilibrado.

 

Tiveram-no só a si?

Sim, sou filho único.

 

Qual é a primeira recordação que tem?

Por acaso, tenho algumas recordações antigas. De estar numa mesa com muitos empregados. Gostava de estar com eles. O cozinheiro, os ajudantes do cozinheiro. Eu ia ter com eles, pequeno, ao almoço e ao jantar, ouvir as histórias. Que idade tinha?, quatro, cinco. Lembro-me da mesa, da cozinha, e daquele momento de confraternização.

 

A capacidade de trabalho dos seus pais e a sua tenacidade deixaram que marca?

A noção de que há que fazer o que é preciso fazer, e não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Uma cultura de trabalho e uma cultura de dever, de que gosto muito. Eu acho que em Portugal muita gente – demasiada – tem os direitos à frente dos deveres. Na minha casa, os deveres estão à frente dos direitos. O dever, a honestidade, são aspectos fundamentais que têm que ver com a minha educação.

 

Conte-me mais coisas da sua infância. Que menino é que era?

A minha infância? Praia! A minha paixão são as ondas. Ainda este domingo, estava nortada e mar mau, água gelada, e tive de tomar banho! Em Santa Cruz, a minha praia. Os meus pais não tinham tempo para mim. Os meus pais sempre me educaram bem, nos valores correctos, mas sem tempo. Não passavam férias comigo, trabalhavam tanto… Mas tinha muitos amigos. Na escola fazem-se muitos amigos – não sei se fez…

 

Fala com alguém sobre sentimentos?

Não muito. Não, não falo. A não ser com a minha mulher. Normalmente não é preciso [falar com outras pessoas sobre sentimentos]. [Falar com ela] chega, é suficiente.

 

Lembrei-me novamente do miúdo para quem os pais não tinham tempo. Houve a cultura do trabalho, mas não a do sentimento expresso, ou até da ternura.

Talvez seja uma boa análise. Não quero aprofundar, mas talvez esteja correcta.

 

Não quer aprofundar? Não olha para dentro de si?

Não vale a pena aprofundar. Não se pode perder muito tempo com assuntos resolvidos. Bem resolvidos. Acho que é isso. Eu próprio já pensei. Nós funcionamos assim: andamos à volta, à volta, à volta de empresas que já não podem dar mais. Vamos para a próxima! Vamos para o próximo ponto.

 

Saber pôr um ponto final, é uma coisa que sabe fazer?

Neste grupo, é uma coisa que toda a gente tem de saber fazer. Na minha vida… Sei mais profissionalmente do que pessoalmente.

 

É um rochedo?

Rochedo? Não. Sou mais uma esponja. Não tenho a certeza. Não sou de grandes afectos, expressos fisicamente… Sou muito emotivo, mas como vem, vai. Passo as páginas rapidamente.

 

É muito emotivo. Tem facilidade em expressar essa emoção?

Se é um bom filme…, choro! Não choro muito, mas tenho de controlar a emoção.

 

Quais são as cenas de filmes que o comovem mais? Os reencontros, as despedidas, as perdas.

As despedidas. Então ”As pontes de Madison County”…, lembra-se daquela cena…?

 

Da mão na maçaneta da porta…

À chuva… Essa. Há quem não goste do filme. Quando era novo, (não lhe disse), quando andava a estudar, era um cinéfilo de filmes normais. Não era um cinéfilo de filmes intelectuais. Consegue dizer qual é o seu filme preferido? Pessoalmente não consigo. Qual é o seu filme preferido?

 

Neste momento, é o “Madame de…” do Max Ophüls.

Não sei quem é. Você é dos cinéfilos da Cinemateca! Não representa o país! [riso]

 

Vamos ao que interessa: porque é me perguntou qual é o meu filme preferido?

Porque adoro falar de cinema.

 

Queria saber porque é que me está a devolver a pergunta.

Porque a quero conhecer melhor. E é claro que conhece pouco o que se passa no país! Pertence a uma elite. Frequentemente não sei os nomes dos actores, nem dos realizadores, nem dos filmes. Gosto muito de confrontar os outros com as suas opções em matéria de cinema.

 

O que é que gosta, de perceber a diferença?

Porque é que gostou disto, porque é que não gostou daquilo – o cinema é um bom espelho, é uma boa forma de conhecer a outra pessoa.

 

Os livros, as viagens, o cinema, essas conversas enviesadas, deixam-nos perceber muito sobre quem é o outro. Qual é o seu caso?

Gosto mais de cinema do que de livros. Mas leio. E viagens, gosto. 

Um dos filmes que mais gostei de ver foi “Violência e Paixão”, do Visconti.

 

“Senso”, no título original. O que acontece nesse filme é que uma condessa perde a identidade, a coluna, tudo aquilo que é, por causa de uma paixão funesta. E por um homem que não vale nada, um canalha. Porque é que gosta do filme?

Vi-o no Estúdio 444. Revi-o duas vezes recentemente. O ambiente, o ritmo, a representação, a decadência… É um mundo decadente. Também gostei de ver “A Águia da Estepe”, de Akiro Kurosawa. Vi-o no Apolo 70, veja lá há quantos anos foi. Você viu esse filme?

 

Fale-me do tempo em que ia ver filmes ao Apolo 70.

Ah, tinha um livrinho... Vivia na Elias Garcia, e ia uma, duas vezes por semana, às vezes mais, à sessão das seis e meia/um quarto para as sete. Ainda não reencontrei esse livrinho, tenho de o procurar na casa dos meus pais. Contém as minhas anotações, as estrelas que dava a cada filme.

 

Era claro para si que iria tirar um curso superior e que viria para Lisboa estudar?

Sim. 

 

Qual era a sua expectativa e a dos seus pais em relação à sua vida?

Era tirar um curso superior e fazer uma carreira profissional. Nunca foi o de seguir o pequeno negócio dos meus pais, nunca, nunca.

 

Sendo trabalhadores tão aplicados, poder-se-ia pensar que se empenhavam numa coisa que ficava para o filho.

Nunca me vi assim. Eles? Nunca lhes perguntei.

 

Porque é que não quis aquilo?

[pausa] Nunca pensei assim. O meu objectivo sempre foi: desenvolver a minha carreira, os meus projectos, em Lisboa. (Isto foi em 1980). E um dia mais tarde voltar para Torres Vedras, ou ter uma actividade na minha terra. Sempre foi isto que esteve na minha cabeça, e é isso que vai acontecer – acho eu. Pensei casar-me com uma certa idade, casei-me um ano antes. Pensei ter uma experiência determinada, tive-a. Tenho tido essa sorte: de ter planos e de os cumprir.

 

Queria conquistar o seu espaço, a sua autonomia, e singrar na sua escolha. E só depois ser o filho pródigo que regressa a casa.

Talvez seja. Nunca pensei nisso assim, mas pode ter sido.

 

Disse de um modo enfático “os meus projectos”, “a minha carreira”. Acentuou o pronome, como quem diz “a minha vida”.

É verdade. Sempre fiz as opções dessa forma. A maioria dos amigos de juventude continuaram lá, sempre quiseram isso. Eu quis outra coisa – talvez por isso que está a dizer: para vincar a diferença e a separação. Acho que me afirmei em relação aos meus pais. Como? Através da minha carreira, do meu percurso.

 

Mas antes disso, na escola, como foi?

Fui aluno do quadro de honra. Mas sempre descontraído. Andava nas RGA’s. Nunca fui marrão. Para mim foi fantástico o período de 1974, 75, 76, de activismo.

 

Era um dos alunos que falavam nas RGA’s?

Era um dos que complicavam as coisas! Foi giro.

 

Olha-se para si como um que resolve, soluciona, e menos como um que complica.

Participei em acções interessantes. Mas não vou contar. Daquelas que eu diria aos meus filhos: não faças! Escrever numas paredes. Colar cartazes. Eu tinha quase 17 anos no 25 de Abril, e vim para Lisboa no ano seguinte, em 75. Apanhei a revolução com toda a força nas escolas. No ISCTE, onde andei, nunca conseguimos ganhar a Associação de Estudantes. O nosso partido era o PSD, o MRPP e um bocadinho o PS. Um arco.

 

Como foi a vinda para Lisboa?

Ganhei uma alergia, veja lá! Só pode ter sido da poluição da cidade.

 

Mantém o sotaque da terra.

Do lado do meu pai. Também é da província, onde falam muito depressa, e com este sotaque – que eu só sinto quando me ouço, em gravação.

 

Apesar de tudo, está em Lisboa há anos suficientes para o ter perdido. Porque é que não o perdeu? É expressão de um apego a essas raízes?

Espero que sim.

 

É uma sensação de pertença àquele lugar?

Pode ser.

 

O que quer também dizer que aquilo não tem nada de incomodativo para si.

Não! Incomodativo é estar aqui, em Lisboa. Aquilo é muito melhor, natural. Você de onde é que é? A mim não me passa pela cabeça viver em Torres Vedras, mas aqui é mais incomodativo. Tem uma tensão, um ritmo, dificuldades que num meio pequeno, perto de Lisboa, com acesso a tudo, não há. Não tenho uma casa em Torres, tenho uma casa em Santa Cruz. Não é um projecto ter uma casa em Torres. A casa em Santa Cruz é a casa na terra.

 

[longo suspiro]

 (Está a doer?

Não, mas acho que não tem interesse.)

 

Explique-me porque é que foi estudar Organização e Gestão de Empresas, e não escolheu uma coisa como Direito ou Economia?

Não sabia para onde havia de ir. Vim fazer um teste de orientação profissional no S. João de Brito.

 

Que foi o Colégio onde o Horta Osório estudou.

Foi. Mas não nos encontrámos. Ele é mais novo do que eu. Eu estava na dúvida entre Economia, Gestão e Engenharia. Gostava muito desses temas…, coisas de homens, exactamente. O teste, surpreendentemente, deu em primeiro lugar Diplomacia – que eu nem sabia o que era. Em segundo lugar Gestão e também Engenharia.  

 

Não é surpreendente, a Diplomacia. Muito do que faz, e do seu perfil, passa pelos consensos que promove.

Estou de acordo. Mas não no sentido tradicional da diplomacia, do networking e tal. Passo por isso. Provavelmente é um dos meus defeitos, não fazer networking nem viver para isso.

 

Olha para isso como uma espuma dos dias, coisa superficial?

Não, não. Acho que é importante, acho que vale muito.

 

Porque é que não faz? Não tem paciência para aturar certas pessoas e conversas?

Uma pessoa é o que é, não é o que se gostava que fosse – ainda que possa evoluir. Eu não quero evoluir mais nesse aspecto, faço o qb. Se eu fizesse mais, se isso me seria positivo? Sim. Mas custa-me fazê-lo.

 

A ida ao S. João de Brito decidiu, em parte, a sua vida.

É verdade. Esse professor foi muito arguto na orientação que me deu. Gostaria muito de ter ido para Engenharia Física.

 

O que é que respondia quando lhe perguntavam, em criança, o que queria ser?

Nada. O que é que gostaria de ter sido, realmente? Um bom jogador de basquete. [riso] Não tenho nem altura nem características. Arrependo-me de aos 30 anos não me ter posto a fazer surf. Não tive nunca a noção: quando for grande quero fazer isto.

 

O seu discurso não é o de uma pessoa especialmente introspectiva, centrada em si mesma. É de uma pessoa que faz, gregária, e cujos prazeres são coisas físicas, ligadas ao desporto.

Algumas sim. Cinema não é físico. De cinema podemos falar por mais tempo do que de mim… Avancemos.

 

Quero saber como começou a sua carreira profissional. Se teve angústias ao relação ao seu valor.

Tenho uma frase que não utilizo muito, mas que utilizo muito comigo: se eu fizer os possíveis e não puder fazer mais… Tenho de viver tranquilo com a minha consciência. Há situações em que isso não é possível e são para mim os momentos de maior stress e intranquilidade. Em termos profissionais não tive nunca nenhum problema. Excepto quando vim para esta função. De facto, entre ser número dois e número um, o passo é muito maior do que aquele que eu pensava. Pensava que fosse normal. Que fosse uma evolução simples. Eu fiz de tudo na banca e sempre me adaptei. Mas a passagem de número dois para número um é um passo difícil – o António avisou-me.

 

O que é que muda tanto?

Há um maior isolamento, e eu sou uma pessoa gregária, como você referiu. É uma função que implica uma solidão maior do que aquela que pensei que existisse.

 

Foi a primeira vez que ficou noites sem dormir?

Eu durmo pouco…, mas nunca tenho noites sem dormir. Saio à minha mãe, que também dorme mal. Coisas genéticas. Tenho estas manchas brancas [nas mãos] do meu pai. Posso acordar às seis da manhã a pensar nos problemas. Não sei se lhe acontece o mesmo…

 

Profissionalmente, o grande marco foi quando entrou em 97 para o Santander? Foi o encontro com este grupo que fez de si a pessoa que profissionalmente é?

Tive dois marcos importantes. Quando fui para o City Bank, em 84/85. Foi a minha entrada na banca, e implicou a opção de sair das auditorias e consultadorias. O segundo marco, foi a entrada no Santander uns meses depois de o António ter ido para o Brasil e me ter convidado. Boas decisões.

 

Decide facilmente?

Estas coisas, decido muito facilmente. Normalmente tenho uma boa sensibilidade, e sigo-a. Tive uma opção difícil quando vim para o banco, até porque tinha outras opções com pessoas que me eram próximas; mas nunca tive dúvida de que esta era a melhor solução. Amigos, amigos, negócios à parte.

 

Era a melhor opção porque vinha ganhar mais, crescer mais?

Vim ganhar menos.

 

Ainda não falámos do peso do dinheiro na sua vida.

Não existe.

 

Sempre teve o suficiente para não ter que se preocupar com isso?

Provavelmente sempre tive o suficiente para não ter que me preocupar com isso. O suficiente era mesmo o suficiente. Até há pouco tempo, gastava muito pouco. Agora gasto um bocadinho mais. Gosto de poupar. Nunca se sabe o dia de amanhã, e faz-nos falta poupança e investimento correcto. Gastar tem para mim uma componente de desperdício de que não gosto.

 

Se era preciso fazer uma summer school, havia dinheiro para isso?

Fiz, e havia dinheiro para isso. Fiz em 75 em Inglaterra. Fui para aprender inglês. Se puder gastar sete, não vou gastar dez. Fui viver para casa de uma família inglesa de classe baixa. E foi a primeira experiência que tive de viver com uma família cujos rendimentos estavam abaixo daquilo que eu conhecia. E com uma cultura muito suburbana. Apesar se eu ser da província, não era suburbano. Impressionou-me mais isso do que a questão dos rendimentos. (O meu pai trabalhou toda a vida, a minha mãe também. A minha mãe não tinha a quarta classe. Fê-la já crescida. Fê-la já minha mãe. A minha origem é claríssima e gosto muito dela). Cheguei lá com duas garrafas de Porto, e nunca pensei que ao fim do dia estivessem bêbedos!

 

Tem memória da sua mãe a fazer a quarta classe?

Tenho. De ter aulas com uma professora para fazer a quarta classe, devia ter uns 35 anos. Eu estava também a fazer, ou já tinha feito, a quarta classe. A minha mãe é uma pessoa com muita força – até demais. Eu vou-me abaixo. Se eu tivesse a força ela… É um caso raro.

 

Disse que era mais equilibrado do que os seus pais…

Sou como o meu pai. A minha mãe é a força motriz, o meu pai era mais equilibrado. Já pensei nisto muitas vezes: tenho um bocadinho de um e um bocadinho de outro. O que é que tenho dela? Capacidade de trabalho, emotividade (habituei-me a não tomar decisões a quente), e alguma da sua força. As pessoas têm de estar bem com elas.

 

É por estar bem consigo que não é deslumbrado com o sucesso? Nem parece complexado por ser provinciano.

Não me considero provinciano. Considero-me uma pessoa que vem da província, e estou muito, muito bem com isso. “Provinciano” tem uma conotação pejorativa: de vistas curtas, tacanho, que dá muita importância aos sinais exteriores. Eu não sou nada assim. Sinto-me é com um apego às origens, à terra e isso é uma parte da minha génese.

 

Como foi o seu primeiro encontro com Botín? Com que impressão ficou?

Que é uma força da natureza. Ambição, pragmatismo, capacidade de decisão.

 

Ele incute isso nos seus? A sua ambição cresceu desde que está no grupo?

Não tenho dúvidas.

 

Estamos a terminar: o que me contaria de si seria diferente se não fosse o presidente deste banco?

Alguma coisa, sim.

 

Estou a perguntar até onde é que se resguarda, até onde é que a função toma conta de si?

Resguardo-me em termos pessoais, políticos, económicos.

 

Além do quadro de Menez, o que é que deixa às suas filhas? É um homem que poupa, deve deixar-lhes também uma boa conta bancária…

Pago todos os impostos que tenho de pagar e praticamente não faço uma optimização fiscal, que poderia fazer. Pergunto-me porquê. Acho que é por dever. Que é que lhes deixo? Princípios. Estar bem com a sua consciência. Sou um privilegiado financeiramente, mas isso não é o mais importante que lhes vou deixar. Digo em casa: hoje estamos bem, amanhã não, hoje estamos numa posição, amanhã noutra. A vida é um ciclo, muitos ciclos, temos de estar preparados para estar hoje num ponto e amanhã noutro.

 

Faz planos para o seu futuro?

[pausa, seguida de sorriso] Tenho um plano para quando me reformar. Até lá, não tenho planos. Já pensei voltar para Torres, mas tenho uma divergência familiar, e a família manda. Mas voltarei para fazer coisas de responsabilidade social, em part-time.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

Ler Shakespeare

10.03.14

Passaram 450 anos e andamos a repetir to be or not to be, a olhar para a comédia humana, para a tragédia de Coriolano, de Lear, pensamos em Miranda, em Desdémona, em Julieta... Que tem Shakespeare que faz dele um autor tão actual? Porque é que as suas palavras nos tocam, em tantos sentidos? O prof. da Universidade Nova Gustavo Rubim, a psiquiatra Luísa Vicente e o crítico de teatro do Público Tiago Bartolomeu Costa dão algumas respostas no próximo Ler no Chiado. Dia 13 de Março, às 18.30, na Bertrand do Chiado. Moderação de Anabela Mota Ribeiro. Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand, todos os meses, na livraria do Chiado.

 

 

Eduardo Batarda

09.03.14

Numa exposição retrospectiva, um artista encontra-se com o seu discurso. A exposição de Eduardo Batarda no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, que acontece na sequência da atribuição do Grande Prémio EDP 2007, permite sistematizar o discurso, reconhecer os seus Great, Great Moments (título da exposição), seguir o curso do artista, as derivas. Batarda, na entrevista, foi igual a si próprio: frases longas e bem estruturadas, culto, provocador, arisco. Falámos na sala. As estantes revestidas de livros (em destaque, os italianos da Renascença, que estuda e venera). Depois mostrou o espaço onde pinta. Um quarto de onde tudo sai.

 

Esta não é a primeira vez que se olha para o conjunto do seu trabalho. Mas quando uma mostra tem este arco cronológico, permite identificar os Great, Great Moments da sua carreira.

Se me revejo naquilo? Diria, então, great and not so great moments. Acredito que algum do meu trabalho recente é capaz. Fiquei satisfeito com ele, seguro daquilo. Há um núcleo de aguarelas dos anos 70 que corresponde a great moments. Great moments ao meu nível, é evidente. Se as coisas do entretanto, dos anos 80, estão menos representadas, pela dificuldade de encontrar peças, ou porque os curators [João Pinharanda e João Fernandes] não gostaram muito daquilo, ou porque já se sabe que essa fase foi criticamente mal aceite, não me posso queixar. As coisas já foram mostradas.

 

O que é que o faz olhar para um trabalho e considerar que ele é “capaz”? Estou a perguntar pela sua satisfação com aquilo que faz.

A satisfação não é imensa. Refaço coisas. O bocadinho ali, uma vez mudado, faz mudar o bocadão além, e assim sucessivamente. Cada camada cria novas imagens, ou novas formas, tapando uma quantidade de coisas que estão em baixo.

 

Essa técnica, ou abordagem, seria impraticável com o óleo. O acrílico permite que se pinte eternamente, por cima de coisas já pintadas.

Os acrílicos dos anos 80 tinham uma maneira de ser feitos que muitas pessoas não entenderam. O processo de fazer, para mim, era tudo. Pintava quadros coloridos, mais ou menos expressionistas, mais ou menos figurativos, mais ou menos abstractos, emaranhados. Quando estava satisfeito, tapava tudo de branco com gel. (Não, não é gel para o cabelo. É gel acrílico, cremoso, esbranquiçado.) Tapava com uns nevoeiros pastosos, deixava secar, e só depois reconstituía. Não era uma maneira directa de actuar sobre a tela.

 

Porque é que pintava por cima?, como se rasurasse o que estava para trás.

E o reconstituísse parcialmente… De certo modo, para levar as pessoas a reconstituir esse processo. E ninguém reconstituía. Era a inversão total do que fazia com as aguarelas.

 

Como era nas aguarelas, que fez em toda a década de 70?

Eu usava papéis muitíssimo bons. Estava em Inglaterra, havia-os lá, e trouxe uma grande reserva deles. Aguentavam todas as vezes que eu apagava. Portanto, era no desenho que podia ter as ideias, os arrependimentos, as mudanças de feitio. Isto não está bem, apaga-se, volta-se a fazer. Quando estava pronto, passava a tinta e coloria a aguarela. O processo imaginativo era dirigido ao tal bem-feitinho (que me foi atirado à cara várias vezes) e acontecia no desenho. 

 

Há uma grande amostra de aguarelas na exposição. Fale-me da importância que elas tiveram para si, no período seminal que passou em Londres.

Tiveram uma grande importância. Durante muito tempo, mesmo os meus tutores, grande parte dos professores, e sobretudo os meus colegas, aceitaram-nas mal. O que estava a fazer era pintura escandalosamente pintura. E dentro da pintura, usava uma técnica que era considerada antiquada, fora de moda, própria (na melhor das hipóteses) dos hobbyistas. Usava uma técnica de desenho e uma maneira de aplicar as cores que eram próximas daquilo que se usava em banda desenhada e ilustração. Houve professores que teimaram: “Este homem tem de mudar de departamento”. O outro ponto de vista era o reaccionarismo. Eram os anos gloriosos da arte conceptual, da arte baseada na fotografia, na instalação, nas performances, etc. E eu estava a fazer “aquilo”.

 

Porque é que estava a fazer “aquilo” quando tudo à volta ia num sentido diferente? Era a sua natureza provocadora?

Era uma provocação e eu sabia que era uma provocação. Era uma coisa entre mim e o mundo da arte, e quem quisesse perceber, percebia. Não era um choque. Era uma graça. Por muito que aquilo mais tarde tenha sido revisto. Acontece muito aos músicos, aos artistas: as pessoas que não gostavam do que fazíamos nos anos 70, dizem-nos nos anos 90 que gostavam era do que fazíamos nos anos 70. A revisão que essas aguarelas tiveram foi uma coisa nessa base.

 

Continuou a provocar nos anos 80.

Tenho a ideia que nunca ninguém percebeu as coisas que andei a fazer nos anos 80. Também consideradas antiquadas e reaccionárias.

 

Era-lhe mais fácil apanhar com o rótulo de fazer coisas reaccionárias porque tinha as costas quentes de quem é erudito? Uma pessoa com a sua cultura permite-se fazer o que quer.

Eu, um erudito? Não. Sem ofensa para ninguém: no mundo das artes, e por aí em geral, é que há muita gente que é muito ignorante. Muitas vezes, com razão ou sem ela, fui julgado por pessoas que não tinham a capacidade de ter razão. Mas muita gente é vítima desse tipo de coisas. Juízos apressadíssimos. A isso é difícil fugir. Nem eu era um conhecedor de arte.

 

A informação é fundamental para o que se faz?

O que as pessoas sabem ou deixam de saber é quase sempre irrelevante. Pode dizer-se, sobre as aguarelas, que muitas daquelas coisas lidam com informação, com literatura, com bonecada, com olhares de viés. São cotoveladas que eu dou às pessoas – que esperto e sabedor que eu sou, e tal. O que era uma manifestação de saloiice.

 

Saber tudo sobre os renascentistas, ter lido o Boris Vian quando ele não estava na moda, consumir revistas estrangeiras que dificilmente chegavam a Portugal, não transparecia naquilo que fazia?

Pelos vistos, aparecia. Muita da minha pintura, era literária. Mesmo hoje, na minha pintura, que é abstracta, há escritos. O que quis dizer é que não é isso que faz da arte uma arte melhor. Desconfio que há milhares de artistas, milhares de vezes mais educados do que eu, que não são capazes.

 

O que está a dizer é que talento é diferente de educação.

Eu faço as minhas coisas. O assunto “originalidade”, “individualidade”, como se fosse um “contra tudo e contra todos”… Eu acho que sou relativamente integrado. Se querem que eu seja um artista de vanguarda, não sou. Quando era novo, até fui, ou acharam que era. Foi retrospectivamente que acharam que não tinha sido. Mas para o Portugal dos anos 60, as coisas foram muito comentadas, apreciadas, etc. Depois foram os anos da tropa, os anos de Inglaterra. Quando cheguei cá: “Olha, este ainda faz isto”. Não há ninguém, a não ser um génio, uma Louise Bourgeois, um Marcel Duchamp, que aos 68 anos esteja perto da vanguarda. Não há muitas dezenas de pessoas que tenham feito isso.

 

O que é que foi determinante na sua passagem por Londres?

Na escola aprendi relativamente poucas coisas. Na biblioteca da escola aprendi muitas. Nos seminários aprendi bastante. Com alguns professores, discuti que me fartei. Isso talvez fosse aprendizagem, mas na altura não o percebia. Aprendi bastante sobre vinho. Via obviamente mais cinema do que tinha sido possível ver em Portugal. Civilizei-me um bocado. Não aproveitei os museus tanto quanto queria. Mesmo assim, houve tardes que tirei ao College e a casa e que passava na National Gallery. Isso dava-me alguma vantagem nos seminários teóricos, porque a malta não fazia isso. Os meus colegas não frequentavam museus. Também, diga-se, apesar de aquilo ser uma pós-graduação, a escolha [dos alunos] não era grande espingarda.

 

Não diminua a escola. O Royall College of Art não era uma escola qualquer. O David Hockney tinha estudado lá.

Quando teve êxito, oCollege deu-lhe uma medalha de ouro; antes disso, tinha-o expulso. Passaram por lá pessoas estimáveis. Raros os que singraram. Um vizinho meu de zona de trabalho é um artista canadiano com certa fama no Canadá. O meu colega do outro lado era um artista galês que tem certa fama no País de Gales.

 

Como o Eduardo Batarda é um artista português e tem uma certa fama em Portugal.

Exactamente. Alguma fama. Oxalá seja assim.

 

Sente-se a envelhecer?

Com certeza. Deve aparecer no que faço... Acho que não aparece muito… As coisas são as mesmas. Mas [essa apreciação] não me compete a mim.

 

Em termos formais, as fases do seu trabalho são notoriamente diferentes. Mas em termos de conteúdo, as coisas são basicamente as mesmas? O que tem para dizer. O comentário.

Ouço muitas vezes isso. “É sempre a mesma merda”. É bem possível que seja a minha maneira de ir acompanhando.

 

Esteve cinco anos sem pintar, entre 2004 e 2009. Como foi possível?

Tenho um forte fundo de preguiça. Sou depressivo. Tive uma vida muito difícil na escola [de Belas Artes do Porto]. Fui acusado de ter tido sempre tudo de mão beijada, fui criticado pela minha origem social. A recepção ao meu trabalho de 2004 não foi aquela que eu gostaria. Afectou-me a morte do Manuel de Brito [galerista, morreu em 2005]. Tudo isto se juntou para me fornecer pretextos para não pintar.

 

Dá-lhe prazer pintar? Esta é uma pergunta do tipo: tem apetite? Mas queria saber do prazer físico e intelectual do acto de pintar.

Dá-me prazer às vezes. Quando estou na fase de quase acabar um quadro. Naquela fase em que o quadro já se explicou e eu já me expliquei com ele. Antes disso, dá um trabalhão. 

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2011

 

Mulher

08.03.14

Em quem penso quando penso em Mulher? Seria bonito dizer que penso na minha mãe, na minha querida avó que partiu, na outra avó que também partiu, mas que amei menos quando se aprende a amar, nas minhas irmãs e sobrinha e amigas. E penso. Porém, a primeira coisa que me ocorre é Lutadora. E só depois Cuidadora. As mulheres que admiro mais são as que inventam um mundo e se comprometem com ele, as que têm um mundo próprio e se empenham no dos outros. Não conheço muitas delas, mas observo-as, no todos os dias. Admiro muito quem trabalha muito. Também os homens. Muitas vezes está associado a uma forma de sacrifício. Mas isso é outra conversa. Bom dia da Mulher.

 

 

Ingrid Betancourt

07.03.14

Ingrid Betancourt foi sequestrada em 2002 pelas FARC. Os guerrilheiros colombianos mantiveram em cativeiro a senadora e candidata à presidência cerca de seis anos e meio. O livro Até o Silêncio Tem um Fim é um relato doloroso desta experiência. Que descobre o humano sobre outro humano numa situação como esta? E que descobriu Ingrid sobre ela própria?

 

“Despojada de tudo, tinha agarrado a minha energia à felicidade de o ouvir, a voz do meu filho transformada em voz do homem. E, como Penélope, fiz e desfiz a minha obra à espera desse grande dia.” Mas você não é Ulisses da obra de Homero, que vive a tragédia e enfrenta os grandes desafios?

Eu era Penélope porque era a que esperava, enclausurada numa selva. Era quem fazia e desfazia, na minha cabeça, o momento da libertação. Não era a que estava a fazer grandes viagens.

 

O seu primeiro desafio era transformar o mundo, através da política. E por causa dessa aventura caiu nesta situação. Por isso pergunto se tem um pouco de Ulisses.

Desse ponto de vista, sim. Em Penélope há uma estratégia para desfazer uma coisa que lhe dá trabalho a fazer. Para ter uma desculpa para esperar. Percebo que as pessoas possam entender o que me aconteceu como uma grande aventura, mas para mim foi uma grande tortura. Na viagem de Ulisses há um poder sobre o tempo e o espaço, que eu nunca tive. Ele era senhor da sua vontade, capitão do seu barco. Eu não.

 

A pergunta – como seria a voz do seu filho? – era um sonho, que criou para si mesma, para enfrentar a espera?

Sim, imaginava-o a ele. Tal como imaginava a minha filha. Precisava de projectá-los visualmente na minha cabeça, para sentir que estava em contacto com eles. Tinha perfeita consciência de que o tempo estava a passar e de que eles continuavam a caminhar. Quando me sequestraram, eram crianças.

 

Que idades tinham?

Lorenzo tinha 13 e Mélanie tinha 16. Eu conseguia imaginar como tinha crescido Mélanie, dos 16 aos 22 anos; mas custava-me muito imaginar como estaria Lorenzo. Se já estaria transformado num homem? Se já teria mudado a voz?

 

Era um espaço só seu, simultaneamente de sonho e realidade, para poder respirar um outro ar, diferente do cativeiro. Que continuava a ser a mamã, e não só a refém dos guerrilheiros.

Exactamente. E para sentir que o tempo não me tinha distanciado completamente deles.

 

No livro fala-se da família como a coisa mais importante. Mas é curioso que diga: “...ficaria [Mélanie] desiludida com a mulher em que me tornara?”. Você também tinha mudado.

Sabia que os meus filhos tinham uma imagem minha quase mitológica, sobretudo o mais novo. Pensava: “Que recordações pode ter de mim? Que recordações tenho eu dos meus 13 anos? Não se lembra de mim. A imagem da minha cara apagou-se. Já não sabe quem eu sou”. Com a minha filha: eu sabia que ela tinha conhecido uma mulher diferente da que iria encontrar, depois do cativeiro. Claro que me perguntava se o que eu era, depois desses anos de sofrimento não os iria desiludir.

 

A selva matou, de certa forma, a pessoa que existia antes? Uma parte da outra que estava antes?

Não. Sou a mesma pessoa em momentos diferentes da sua própria história. Em outra idade, com outra bagagem de vida. Há aspectos dessa “Ingrid de antes da selva” que continuam cá. É mais fácil dizer-lhe o que mudou. Mudou a visão do mundo. Acho que era bastante maniqueísta, via as coisas a branco e preto. Na selva descobri os cinzentos. Isso dá outra dimensão, e creio que faz o mundo mais bonito. A relação com o tempo também mudou, porque a relação com a morte se alterou, e a morte é que determina o valor do tempo. Se fôssemos eternos não haveria qualquer problema... Muda a prioridade que damos às coisas.

 

Que prioridades eram as suas antes da selva?

Eu tinha que fazer uma séria de coisas, projectos muito definidos, de médio e curto prazo. Tinha uma agenda cheia de sucessos diários. Hoje em dia não quero essa vida. Quero ter tempo para reflectir, para ler, quero ter tempo para as pessoas que amo, para a minha família, os meus filhos. Quero estar disponível quando precisam de mim. Não quero ter que dizer depois ou esperem... Sou mais paciente, mais tolerante, sou menos exigente.

 

Consigo e com os outros?

Comigo continuo a ser exigente. É o meu carácter, é parte do que sou. Gosto de estabelecer metas e cumpri-las. Creio também que a área de interesse da minha vida se alterou.

 

Era a política. E agora?

O mundo. A política que eu fazia era uma política em que bastava ser eleita para mudar as coisas que eu achava importante mudar, apresentar projectos-lei, ter influência sobre decisões governamentais. Eu tenho poder hoje, mas é diferente. O poder de dizer o que quero, de ser escutada, de conhecer pessoas que são interessantes.

 

Sobre as pessoas, que aprendeu na selva? E sobre si própria?

O que se aprende na selva são coisas muito íntimas, difíceis de verbalizar. A maior força reside na consciência da debilidade, da fragilidade. Somos fortes quando tomamos consciência das nossas limitações. Temos sempre, interiormente, a capacidade de crescer, de ser mais fortes ou superiores ao nosso sofrimento, àquilo que vemos como um travão ou um obstáculo na nossa vida. Há sempre, em cada um de nós, essa dualidade de percepção; por um lado somos frágeis, e temos consciência dessa limitação, e simultaneamente é nessa mesma limitação que reside a força para superar obstáculos.

 

No livro fala das latas de conserva que o seu amigo Lucho recebia para remediar a diabetes, e que suscitavam ciúmes. “Uma garfada de atum era um luxo invejável”.

É interessante que tenha reparado nisso, pouca gente reparou; também creio que é uma das coisas mais fortes que estão neste livro. [Esta conversa] volta a colocar-me na situação. Vejo as reacções de uns e de outros, os ciúmes, companheiros nossos que (era tanta a dor que sentiam…), se davam atum ao Lucho, por estar doente, diziam estar também doentes para que lhes dessem o mesmo. Para Lucho não era uma opção, não era um luxo. Era uma necessidade. Isto criou muita controvérsia. Mas que podemos dizer? A fome era muita. As guerras fazem-se pelos egos, há momentos em que o ser humano se deixa levar por sentimentos irracionais e negativos.

 

E em momentos extremos aparecem coisas irracionais ao de cima…

Havia muita irracionalidade neste comportamento. E uma vontade de ignorar a realidade para poder justificar este comportamento. Tenho certeza de que eles tinham consciência de que essas reacções não eram correctas, mas tinham que justificá-las. Para isso, inventavam um raciocínio quase jurídico, ouviam-se frases como: “Aqui não pode haver preferências. Não podem existir prisioneiros de primeira e segunda classe.” Soa muito bem, mas quando há um doente, isto não se aplica. Isto tem necessariamente que nos fazer reflectir sobre o que se passa no mundo. Há raciocínios que parecem lógicos e escondem grandes perversidades.

 

Passa a ser outra discussão, não se trata de ser justo ou injusto, mas sim de vida ou morte?

Creio que ou é ético ou não é ético. Decidem-se coisas que são justas, mas não-éticas.

 

É um pouco o cinzento de que falava?

O cinzento, exactamente. Onde isto leva é às limitações que temos como seres humanos. A única maneira de enfrentar estas situações é com compaixão e muito amor. No final de contas, todas estas tensões se podem dissolver com a palavra, se nos dermos oportunidade para falar, entender, criar pontes de comunicação. Nesta situação de que falávamos [de Lucho], sentia-me tão indignada que simplesmente criei um muro de silêncio. Não queria sequer falar do tema, parecia-me infame. Mas a reacção correcta era falar sobre isto. Ter ido mais ao fundo das motivações de cada um.

 

Também descobriu, neste processo, coisas de que não gosta em si. Coisas que não correspondem à imagem de heroísmo e coragem que os outros têm de si…

Sim. Mas uma pessoa pode suportar mais facilmente a avaliação que os outros fazem de nós do que a avaliação que fazemos de nós mesmos. Os outros tendem sempre a criticar. O que nos deve alertar é quando sentimos que o que estamos a fazer não está bem. Vamos sempre encontrar muitas justificações para o fazer.

 

Racionalizações.

Sempre, a racionalização permite-nos explicar por A, B e C por que temos direito a fazer o mal que estamos a fazer. Vivemos como sendo vítimas das nossas reacções.

 

Mas somos também os autores.

Somos autores. O que sei é que podemos mudar – essa é a boa notícia. Na selva, foi uma oportunidade que nos foi dada: estar nus diante dos outros. Não havia maquilhagem possível. Não havia telefone, porta, compromissos. No mundo, em liberdade, podemos sempre encontrar uma maneira de sair de um problema, fisicamente, escapar, não o resolver. Na selva, numa situação de cativeiro, somos confrontados com o que somos e com o outro. E não há saída.

 

São duas selvas: a selva enquanto espaço físico à volta e a selva que se instala entre as pessoas, na forma como se relacionam.

A selva dos animais e da vegetação é incómoda. Mas a selva dos homens é cruel.

 

Desde o princípio do livro fala da sua obsessão: escapar. A sua companheira de cativeiro, Clara Rojas, tinha um comportamento diferente: procurava adaptar-se. Nunca, nestes seis anos e meio, pensou que poderia também adaptar-se?

Tive que adaptar-me de muitas maneiras. Mas não queria. Achava que se criasse raízes estaria a trair o que para mim era fundamental. O desejo de escapar era o que me permitia aceitar o dia que passava. Nesse dia eu tinha estado a planear como escapar, tinha sido produtiva...

 

Tinha um objectivo.

Um objectivo e um controle sobre o meu tempo e o meu espaço. O tema da adaptação era uma traição à minha essência. Sabia que os guerrilheiros queriam que nos adaptássemos, que faziam o possível para que perdêssemos a sede de fugir. No fundo o que queriam era que aceitássemos que a guerrilha tinha direito a manter-nos sequestrados. Isso era algo que não iria aceitar.

 

Era uma forma de se manter viva psicologicamente?

Era, mas era também uma forma de manter a ordem na minha cabeça. A ordem era: estou injustamente sequestrada, tenho o direito de voltar a casa. Não é somente o meu direito, é a minha responsabilidade, porque tenho dois filhos à minha espera e não vou aceitar que sejam órfãos, enquanto for viva. Portanto, tenho o dever de escapar. Se me adaptar traio os meus filhos e aceito o que não devo aceitar. Eram temas muito profundos. E deles derivavam uma série de comportamentos, em todos nós.

 

Este livro é dedicado a diferentes pessoas, e depois numa página à parte, é dedicado apenas à sua mãe. Porquê?

A minha mãe foi quem me manteve viva. Na sua obstinação, no seu amor. Ela enviou-me mensagens todos os dias. Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira... Seis anos e meio.

 

Foi a primeira vez, nesta conversa, que se comoveu. Isso aconteceu porque falou da sua mãe? Comove-se muito?

Acontece-me frequentemente. Mas hoje estou muito bem, então aconteceu menos! [risos] Pouco a pouco fui-me fortalecendo. Há momentos de emoção, ela existe e existirá sempre. Cada vez menos. Chegará um dia em que deixará de acontecer.

 

Como a raiva, que desaparece?

Sim. Ou como uma porta que se abre sem fazer barulho.

 

Termina o livro assim: “Tudo desaparecera, tudo fora levado, esvaziado, limpo. Acabara de nascer. Não havia nada mais em mim senão amor.” Como é possível apagar a raiva e a dor que estão para trás e nascer limpa?

É a graça. E é muito natural. Como quando se dá à luz. O parto, normal, exige muito e é doloroso. Mas esquecemos que sofremos. Perante o bebé, a única coisa que dizemos é: “É uma maravilha.” Há momentos em que a passagem da dor para a felicidade pode dar-se num segundo. São experiências muito fortes que todos temos, de momentos em que soltamos tudo e ficamos novos. Isso é renascer.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2010

 

Nelly Furtado

07.03.14

Quando ao fim passeávamos pelo parque, eu perguntava-lhe se já tinha escolhido o vestido que levaria aos Junos na noite da sua consagração. Estava ainda hesitante entre uns quantos, e balouçava as argolas gigantes que pendiam para lá do aprumo do cabelo. Semanas mais tarde, as fotografias exibiam-na, radiosa, num vestido primaveril tufado nas mangas, bafejado de flores de cor púrpura. Abraçava quatro dos seis prémios canadianos para os quais estava nomeada, confirmada a excitação à volta do seu álbum de estreia "Whoa, Nelly!".
Nelly ainda refreou os ímpetos no Verão em que andava pelos 18 anos. Do outro lado da linha havia dois rapazes, chamados Gerald Eaton e Brian West, que insistiam no seu talento e a forçavam a voltar a Toronto, onde, aliás, se haviam conhecido há meia dúzia de meses. Os ditos integravam um multiplatinado grupo canadiano de nome The Philosopher Kings, cujo manager passou também a representar Nelly, e produziram a primeira demo de Furtado. O material ficaria adormecido no calor do Verão, na modorra das férias na Europa. Regressada à vida de sempre, em Victoria, com os pais, Nelly recusou o sonho. Que não sabia, que tinha de voltar à escola, blá-blá-blá. Em Toronto, convenciam-na. Que tinha de fazer mais demos, que não podia desistir.

Em duas semanas mudou-lhe a vida. Foi, gravou. O material chegou à DreamWorks, e o resto do processo é conhecido. Para trás ficava a transpiração do sonho, as músicas, avulsas, a ecoarem na sua cabeça. Provavelmente, pensou nelas na noite dos Junos. No kitsch de trazer por casa dos Abba e do Lionel Ritchie, na cassete da Mariah Carey que lhe deram pelos 12 anos, na soul urbana que lhe inspirou a juventude, nos discos dos Radiohead e dos Pulp que surripiou da discoteca do irmão mais velho. Provavelmente, pensou na moderna música portuguesa que descobriu quando cá veio, aos 16. E nas canções ao desafio que bebeu do pai, nos temas religiosos que cantou com a mãe. Nas interpretações em cima dos palcos da comunidade portuguesa que lhe admirava o prodígio e a precocidade. Provavelmente, rememorou todas essas coisas e sentiu-se feliz.

O parque que se estendia à nossa frente era o mais famoso de Londres. O frio cortava. Ela posava, graciosa, indiferente às famílias e ao domingo. Cingia o casaco de pêlo branco ao corpo e acenava aos dois managers americanos, à promotora inglesa, à maquilhadora inglesa (que lhe emprestara o casaco de pêlo branco ...). Tal qual as meninas que trocam de roupa ao mesmo tempo que trocam segredos de rapazes.

Nelly Furtado é uma menina de 22 anos. Tem um pai e uma mãe portugueses. Nasceu no Canadá. É uma prioridade da reputada Dream Works Records; nesse sentido, "I'm like a bird" é peça insistente dê lá o mundo as voltas que der. O álbum que sustenta este single foi escrito por ela, idealizado por ela uma vida inteira. Escreveu canções, aprendeu a tocar instrumentos. Esfolou-se a trabalhar para urdir o seu projecto. Ante o entusiasmo da mãe, com quem debutou nos palcos aos 4 anos, e o silêncio ensimesmado do pai.

 

 

Gostava que começasse por falar-me do seu avô açoriano, maestro da banda.

O meu avô Virgínio Araújo Neto era uma lenda em S. Miguel. O seu irmão tocava também nas bandas. Compunham marchas. Havia uma grande paixão pela música na casa da minha mãe.

 

Onde viviam exactamente?

Ponta Garça, S. Miguel. Eram lavradores.

 

As letras das canções falavam da lida da terra?

Eram instrumentais. Não faziam vocalizações. Esta minha paixão, por escrever letras de canções, não sei de onde vem. A minha inspiração musical vem do meu avô, do meu tio, da minha mãe.

 

Que idade tinha a sua mãe quando foi para o Canadá?

25 anos. O meu pai foi primeiro; emigrou com a família para o Canadá também com 25 anos. Conheceu a minha mãe numas férias em S. Miguel, começaram a namorar, e depois mandou-a ir para casarem. A minha mãe tem agora 54 anos. O meu pai vai fazer 60 na quarta-feira.

 

Vai estar no aniversário do seu pai?

Não.

 

O que é que vai fazer nesse dia?

Vou estar no «David Letterman Show».

 

Fica nervosa por estar num show tão importante onde todos os artistas ambicionam estar?

Fico com nervos. Já fiz o «Jay Leno», o «Saturday Nigth Life», que é o mais importante para a música, e esta semana, em Inglaterra, já fiz seis programas de televisão, em directo. Vou-me habituando, perdendo o medo. O «Jay Leno» foi o segundo programa a que fui; aconteceu muito cedo na minha carreira e estava muito nervosa. Tinha medo de não corresponder às expectativas. A voz fica com tremores, e a música sai pior.

 

Sente-se atemorizada ante a possibilidade de não cantar bem?

Sim. Antes de estar no palco só penso em não ficar nervosa. A música é o mais importante. Quando penso só nisso, fico mais calma. Se penso «Oh, os meus pais estão a ver-me em casa», «Hi, tem tanta gente a assistir», «Ah, o meu vestido», não estou realmente lá no momento.

 

A sua vida mudou tanto que já não pode assistir ao aniversário do seu pai. Como foi o ano passado?

Estava em Los Angeles a gravar o disco. Estes dois anos têm sido muito cansativos, sem tempo livre. Sobretudo na gravação do disco, trabalhámos muito. 12 horas cada dia, seis dias por semana. Mas estive lá pelos anos da minha mãe.

 

Em todas as suas entrevistas fala muito mais da sua mãe que do seu pai.

As mães..., há sempre uma relação mais forte. O meu pai é mais calmo, transpira silêncio.

 

Que tipo de coisas conta à sua mãe que não conta ao seu pai?

Muitas coisas. O meu pai tem o peso dos anos, o seu modo de pensar é antiquado. A relação está agora a ficar mais aberta. Na adolescência, aos 13, 14, 15 a ligação com os pais pára um bocadinho. Com a minha mãe, havia a música: cantava com a minha mãe, participava nas coisas da igreja com a minha mãe. O meu pai gosta de estar sozinho, no jardim, em paz. Há uma parte de mim que é como o meu pai, sossegada e calada. Mas há outra parte que gosta de palco, de ser estrela, gosta de viver.

 

O seu pai levava a sério a sua carreira, mesmo antes de gravar o disco e de ter sucesso? A sua mãe esteve sempre mais perto do seu potencial artístico.

O meu pai também acreditava. Se tinha um concerto de trombone, os meus pais assistiam juntos. Deram-me a possibilidade e a liberdade de escolher a música; não me forçaram. Às vezes ia para um café tocar o meu violão e dizia «Pai, hoje vou tocar naquele sítio». Ele respondia «Ah, vão pagar-te alguma coisa?»

 

Pagavam?

Muitas vezes era de graça. Fazia-o para mostrar as minhas canções. Mas os comentários do meu pai não eram negativos; ele gosta de música, também. Gosta de Canções ao Desafio e de Fado. Quando era pequena, levava-nos para as festas para vermos as Canções ao Desafio. Lembro-me bem disso. Nunca o vi cantar, mas sei que cantou. O ano passado pelos anos dei-lhe umas vídeo-cassettes com Canções ao Desafio. Arranjei-as em Toronto numa festa do Dia de Portugal.

 

Com que periodicidade iam a Portugal? Uma vez por ano?

Nem tanto. Passei Verões inteiros lá, uma vez pelos nove, outra pelos 12 anos. Aos 16 fui sozinha e passei o Verão com a minha avó. O ano passado fui com a minha mãe.

 

Aquilo era chato para si?

Hum... Quando somos pequenos achamos chatas muitas coisas dos adultos. As Canções ao Desafio não são muito vivas, não têm muita coisa a acontecer no palco: é só sentar e cantar. Mas sempre soube que era uma coisa bonita, com grande história. Com 4/5 anos já dançava nos ranchos folclóricos lá na comunidade. Desde muito nova que apreciava a cultura portuguesa e açoriana. E tinha orgulho.

 

Tinha mesmo?

Tinha. Porque era uma coisa diferente. Não havia muitos portugueses; em Victoria inteira não há sequer duas mil pessoas luso-descendentes. Na Escola Primária não havia nenhuma portuguesa. Na cidade há muitos ingleses, mesmo ingleses, de pele clara, de cabelo claro. Sentia-me muito diferente. E os outros podiam perceber que eu era diferente... Levava sandes de feijão para a escola

 

Feijão?

Sim, feijão, de feijoada. Os outros levavam sandes de queijo, fiambre, presunto. O feijão era mesmo português. Sentia essa diferença quase com vergonha. Mas não era vergonha realmente. Tinha a minha comunidade, encontrava-a na igreja. Sentia também orgulho. E chegava a casa da escola, ligava a televisão e não via nunca portugueses. Então pensava «Um dia vou aparecer na televisão para as crianças verem uma pessoa portuguesa». Era um sonho. Por isso estou sempre a falar de Portugal, estou sempre a falar da cultura açoriana.

 

Qual era o estrato social dos seus colegas da escola? Os pais trabalhavam no duro?

Não. Lembro-me de na primeira classe a professora ter perguntado o emprego dos nossos pais. Um por um fomos dizendo. Quando disse «A minha mãe é mulher de limpeza» olharam-me com surpresa. Eu cresci na sala das máquinas de lavar roupa do motel! Tinha um grande respeito pelos meus pais, e não achava esquisito que a minha mãe fizesse limpezas, que o meu pai trabalhasse com as suas mãos.

 

O que é que fazem os pais dos seus amigos?

Trabalham em escritórios, são doutores.

 

Alguma vez se sentiu incomodada pelo facto de os seus pais precisarem de trabalhar no duro para ganhar a vida?

Incomodada?... Envergonhada?

 

Também.

Um bocadinho. Mas sempre tive respeito. Isso é o que me dá força. Esta vida que tenho agora, (viajar muito, tornar-me uma estrela), é estranha. As pessoas querem que as estrelas tenham um certo comportamento, um certo modo de viver. Eu sou trabalhadora, sou proletariado eternamente. Não há outras pessoas nesta carreira que falem destes assuntos, da sua cultura, da sua retaguarda. O que faz de mim o que sou, é ser portuguesa e ser working class. Isso é Nelly Furtado.

 

Este passado de menina que trabalhou muito é uma parte do american dream.

A minha vida não era realmente difícil; tínhamos sempre o que precisávamos. Mas sim, o Norte América gosta do conceito de american dream, de um bom sonho, de uma história qualquer. A minha história é gira. Falo nesses assuntos porque a cultura portuguesa faz parte da minha música, o universo português alimenta a minha inspiração. Se não fizesse, não falaria tanto de Portugal.

 

Sempre teve tudo, mas habituou-se a trabalhar. Ao longo de oito Verões ajudou a sua mãe a fazer as camas do motel.

Sim, sempre trabalhei no Verão.

 

Com certeza preferia ir para a praia ou piscina.

Trabalhava para ganhar dinheiro para viajar. Os meus pais responsabilizaram-nos muito cedo. A partir dos 12, 13 anos tínhamos de trabalhar para comprar as coisas que queríamos: roupa, viagens. Mas era difícil, sete horas da manhã, sábado, pum pum pum, «Está na hora de ir para o trabalho».

 

Que idade tinha quando começou a trabalhar?

12 anos. Aos 17 trabalhei o Verão inteiro para pagar o bilhete para Toronto. Fiquei um ano, trabalhei das nove às cinco numa companhia de alarmes. O emprego era muito chato!, mais ruim do que limpar. Usei o dinheiro para pagar as gravações do meu grupo de então (Nellstar) e o bilhete para a Europa.

 

Como foi esse Verão na Europa?

Fui até Madrid, Barcelona, San Sebastian, Paris, Londres. Viajei cinco semanas. Depois regressei a Victoria, ingressei na Universidade e tirei um curso de escrita criativa. Ao longo desse ano trabalhei também com a minha mãe. E já estava farta!, «Ah, pensava que já tinha acabado, trabalhar no Robin Hood Motel!, oh, quando é que vai acabar?». E sabe uma coisa, intimamente ainda penso que um dia vou limpar quartos no Robin Hood Motel.

 

A sério?

Trabalhar lá faz parte do meu imaginário. Era mesmo a história da Cinderela, a limpar e a sonhar. Mas não pensava em ser estrela. Pensava em fazer álbuns: nas músicas, nas letras, nos instrumentos.

 

Quer dizer que tem medo que as coisas voltem para trás?

Nada é eterno. Por isso é importante saborear o momento. Por isso convidei a minha família para ir aos Junos, em Toronto.

 

Foi nomeada para seis categorias.

Quero que me vejam. Tenho muita fé no meu talento, no que o meu espírito tem para dar. Acredito que vou fazer música, que vou ter sucesso na música. O resto não sei. Há sempre coisas a bater-me na cabeça: uma confusada! Nesta carreira há coisas tão falsas e as pessoas são tão reais... A televisão é falsa. As entrevistas podem ser falsas. Esta não é! [riso]

 

Obrigada.

Os media têm uma força enorme. Há regras: põe uma cara alegre, não podes ser chata...

 

É isso que lhe dizem as editoras, os managers?

Os meus managers são muito honestos comigo, não escondem nada que diga respeito à minha carreira. Estou a aprender muito sobre promoção. Não sabia quase nada. É tão diferente quando se está a sonhar...

 

Qual é a grande diferença?

Imagina-se o aplauso, a paixão da escrita. Não se imagina o trabalho. Sou muito perfeccionista. A guerra é comigo! Nelly quer ser perfeita, na promoção, nas entrevistas, em tudo. Altas expectativas.

 

As expectativas são suas, para começar.

Sim, sou a pior.

 

Quando assinou com a DreamWorks confiou-se nas mãos da companhia. Tratam de tudo, não é?

É. Há de repente uma pessoa a marcar as datas da nossa vida! Curiosamente, em miúda, sonhava com isto: acordar e ter alguém a dar-me o plano daquele dia. Sou muito preguiçosa, não sei organizar o tempo. Agora tenho pessoas que me organizam.

 

Tem um manager pessoal?

Tenho. Está sempre uma pessoa da empresa do meu manager a acompanhar-me. Quando começar a tournée vou ter uma assistente pessoal; mais para ser amiguinha, mas também para ver a roupa, trazer a comida, qualquer coisa.

 

Portanto, ainda não chegou à fase de se enfadar. Tem saudades da vida normal?

Não. O que me preocupa é conseguir um bom equilíbrio entre as duas coisas de que gosto: a calma e o pragmatismo da vida normal, e a exposição e a azáfama do palco.

 

Para que lado pende quando dá uma entrevista em português? Seria diferente se falássemos em inglês?

Sim. Sou mais honesta quando falo em português. Porque não tenho muito vocabulário: não tenho palavras para bailar, restrinjo-me aos factos.

 

Pensa em inglês, o português é a sua segunda língua.

Tenho intenção de passar uns tempos em Lisboa e em S. Miguel para melhorar o meu português. Talvez quando terminar a promoção deste cd. Romanticamente sempre quis viver em Portugal, gosto do estilo de vida da Europa. Com o passar do tempo, gostava de vir.

 

Não se torna impraticável? O seu sonho não se concretiza neste canto no mundo.

Há uma parte de mim que corresponde à estrela que está no palco. Há outra que permanece nos bastidores.

 

Uma parte do seu pai, outra da sua mãe.

Isso. A parte do meu pai é a que gosta de pensar, de escrever; é insular. A da minha mãe é a da partilha. Não sei qual prefiro. Talvez a paixão mais forte seja a da escrita, para falar verdade. Talvez gostasse, daqui a uns... dez anos!, de me dedicar aos livros, a uma vida mais calminha. E mais política, também. (Os meus irmãos envolvem-se em assuntos políticos; o meu irmão é socialista). Antes dos 17 anos, não sabia sequer que os meus pais tinham vivido num país fascista! Fiquei interessada em estudar a história de Portugal, em saber quem sou.

 

Estudar as raízes para melhor perceber aquilo que é.

Sim. E tenho paixão pela ideia de Revolução. A ideia da Revolução é tão gira. Não acha? Aos 16/17 estive em Portugal e descobri um clima muito artístico, a música moderna portuguesa. Foi nessa altura que fiquei ainda mais orgulhosa de ser portuguesa. Descobri que ser português não é só Ranchos Folclóricos e Canções ao Desafio. Há um movimento de modernidade.

 

Como é que uma rapariga de 22 anos pode ser tão confiante?

A música dá-me essa confiança. Toquei instrumentos. Cantei. Dancei. Ouvi sempre palavras elogiosas dos professores, dos colegas, da família, «És muito talentosa, tens de fazer isso pela tua carreira».

 

Na Comunidade era olhada como a menina prodígio, a menina precoce?

Era a menina perfeita. (risos) Desde pequena. Era boa aluna, era exemplar. Mas na adolescência, pelos 13/14 anos, fiquei muito interessada em divertir-me com as minhas amigas!

 

Os seus pais deixavam-na sair? As famílias portuguesas, por tradição, restringem as saídas das raparigas.

Para a minha irmã foi mais difícil, é mais velha. Eu fugia pela janela. Nunca fui apanhada! O meu pai é muito antiquado no que toca a rapazes. Não me deixava levar namorados lá a casa; à minha irmã deixava. Era também essa coisa de ser perfeita, de ser princesa, «Ninguém toca na Nelly». A minha mãe chamava-me sempre nomes abebezados... Eu respondia «Não sou bebé!».

 

Tem namorado?

Já tive. Era um emigrante português da Lourinhã. Terminámos em Setembro.

 

Não tem tempo para namorar?

Não. E, para falar a verdade, tenho medo do amor. Viajo muito e se me apaixonasse levaria uma vida de saudade. Estou melhor assim, livre, solteira. Mas claro que quero uma família. Se Deus quiser.

 

Que tipo de relação tem agora com a sua família?

Temos uma relação mais adulta. Eles respeitam-me, vêem que trabalho muito. As pessoas são o que são; resulta da educação que tiveram, resulta daquilo que naturalmente são. Penso que já nasci assim, com sentido de responsabilidade. Às vezes sinto que o meu destino já está marcado. E o meu destino é fazer os outros felizes com a minha música. É só.

 

O que sentem as pessoas da sua família em relação ao seu percurso?

[engasga-se com o mel que fica na garganta]

Estão muito orgulhosos. Ao mesmo tempo... A minha família é muito humilde. O meu titi era lavrador, quando tinha inspiração parava e compunha música; talvez o seu sonho fosse a música...

 

E agora corporiza o sonho de toda a família.

Acho que é isso. Mas a minha avó não aprecia que ande em tournée, que viaje tanto, que conheça tantos rapazes. Quando viu o video-clip, estavam todos na televisão da cozinha a assistir... Sabe aquela parte em que aparecem milhares de pessoas? Ela viu essa parte e comentou «Com a barriga de fora diante destes rapazes todos!» (gargalhada) Para dizer que a minha avó está orgulhosa, mas não percebe a minha vida.

 

Os seus pais percebem?

É difícil. São também humildes, olham para esta vida de forma muito glamorosa.

 

Têm medo que fique outra, transformada por esta vida glamorosa?

Talvez sim. Talvez tenham medo que fique muito distante daquilo que são.

 

Você tem medo, medo de ficar demasiado distante da vida que teve?

Tenho sim, tenho medo de ficar estrangeira. Não quero ficar distante. Não tenho mais nada, entende? Só tenho a minha família. As pessoas não têm nada se não têm família. Aquilo é o amor verdadeiro. Cortar? Acho que não podia...

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2001