João Fernandes
A noite começa a descer sobre as árvores. Da janela imensa que Siza rasgou sobre o parque, vêem-se as nuvens pesadas, assiste-se ao esbracejar das copas. O pulsar do tempo é sentido ao de leve. Quando João Fernandes irrompe pelo bar, em passadas largas e ofegantes, o cenário não é cortado. A conversa acentua a leveza do espaço. Do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.
O atraso é considerável, mas justificado: demorara-se a convencer um mecenas a patrocinar uma exposição; que «seria feita de qualquer modo...», mas com uma diferença substancialíssima quanto ao orçamento (leia-se liberdade) envolvido.
A partir do início do próximo ano, com a ida de Vicente Todolí para a Tate Modern, João Fernandes assumirá a direcção do museu. A nomeação tem dois meses. As linhas programáticas da nova equipa só entrarão em vigor em 2005; até lá, a programação é assinada pelos dois, que estiveram na génese do museu. Inaugurado em 99, Serralves é caso de sucesso. O homem que vai consolidar o projecto, e apostar na continuação do que tem sido feito, é este que a seguir se pode ler. Tem 38 anos.
... Logo que fui nomeado, senti o cansaço de as perguntas serem as mesmas, de só mudarem as pessoas. Nós próprios nos cansamos de nos ouvir, que é a chamada seca de primeira! É por isso que não podia ser político.
De que é que lhe apeteceria falar?
Numa entrevista prefiro sempre falar do que faço do que ter um tom confessional sobre o que possam ser as minhas obsessões ou singularidades.
Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas. A sua primeira ligação é com a palavra.
O meu percurso começa com a organização de iniciativas culturais. Faço parte de um movimento associativo enquanto estudante, dedico-me a organizar concertos, trabalho com artistas, escrevo sobre arte de forma adolescente e apaixonada. Sempre tive um grande interesse pela obra de arte. Encontrei na criação artística um horizonte de liberdade irredutível que está para além dos condicionalismos sócio-políticos, económicos e culturais que a sociedade oferece ao ser humano. O confronto com essa liberdade sempre me interessou na relação com a vida.
Como forma de evasão da própria realidade?
Os artistas reinventam a vida de uma maneira muito própria. Trabalhar com vários artistas significa viajar entre vários mundos. Cada artista ou cada obra é um mundo próprio, que tem as suas regras, que é necessário conhecer e estudar, para proteger e dar a conhecer. O ecossistema que cada artista representa acaba por ser uma metáfora da liberdade individual que cada um de nós é capaz de ter, mas que, muitas vezes, não consegue praticar.
A intrusão mais séria no meio acontece com a organização das Jornadas de Arte Contemporânea, em 92. Era também uma maneira de insuflar esse sonho antigo, de encontrar algo que lhe permitisse viver à margem da vida?
Não era viver à margem da vida, mas viver dentro da vida de uma outra maneira. Viver a vida que optamos por viver, explorar uma radicalidade possível no confronto com a vida, com as coisas mais simples ou as mais complexas, dar com a cabeça nas paredes, se necessário for, mas fazê-lo à nossa maneira. As Jornadas de Arte Contemporânea fizeram-me sentir não um agente político que faz política cultural, mas um representante num contexto artístico que tenta dialogar com uma cidade, transformá-la.
São as Jornadas que o fazem mudar de vida?
Decidi abandonar o ensino e ser comissário de exposições free-lance. Em Portugal não havia pessoas que se dedicassem em exclusivo à concepção, produção e reflexão sobre exposições. Cedo descobri que era complicado sobreviver economicamente... Mas isso não me assustava, era um risco que estava consciente de correr e que achava que valia a pena correr.
Recuando um pouco mais, onde radica esse fascínio pela obra de arte?
Leituras da adolescência, como Proust ou Thomas Mann, são leituras iniciáticas sobre o conceito de obra de arte que aí está representado, sobre o conceito de criação artística, etc.
São leituras que faz autonomamente?
Sim. Sempre vivi no meio de livros, sou filho único, educado com avós. Encontrava os amigos, (que não eram inúmeros), no universo dos livros que estavam em casa e que muito cedo me habituei a procurar. Esta educação literária levou-me a várias experiências interessantes: quando a Revolução portuguesa acontece, estava a ler autores tão díspares quanto Victor Hugo ou Maximo Gorki, e sentia que situações congéneres aconteciam nas ruas...
Porquê o impulso da organização e não o da criação na sua ligação à arte?
O fascínio pela criação não implicou uma mitificação da criação. Tenho vontade de reflectir e criar condições para a reflexão e o confronto com a obra de arte – um trabalho que estava por fazer. Portugal é um país onde a cultura crítica é escassa ou inexistente. Não estamos habituados, na universidade, na política, no dia a dia, a confrontarmo-nos criticamente connosco e com os outros. E confesso que sempre suspeitei desta famigerada condição de país de poetas em que todos somos criadores... A minha condição é um pouco diferente. Preocupo-me com a mediação, com a criação de oportunidades. Os portugueses não tiveram a possibilidade de conhecer os seus artistas ao longo do século XX, nem os artistas que havia no mundo. A arte foi roubada à vida portuguesa praticamente desde D. João V, desde o século XVIII.
Porque circunscrita a uma elite?
Não só. Tivemos uma elite que ignorava todas as experiências artísticas contemporâneas. Os nossos poderosos nunca estiveram conscientes das revoluções das linguagens artísticas dos últimos três séculos. Isso fez com que a sociedade portuguesa tenha condenado os artistas a uma marginalidade, à condição de estrangeirados, de exilados.
Os artistas portugueses mais consagrados, como a Vieira da Silva ou a Paula Rego, fizeram carreira lá fora. Tem que ver com isso?
Sim. Só depois da Revolução é que houve condições para os artistas poderem viver em Portugal e serem conhecidos internacionalmente. Portugal foi uma cápsula isolada no tempo e no espaço. Eça de Queiroz, os Vencidos da Vida, já sentiam isso. Na cultura portuguesa há sempre a sensação de que a criação não tem país para ela. O que não quer dizer que não tenha pessoas para ela.
Na realidade sócio-política do país a arte é considerada supérflua.
É uma maldição multi-secular. Se interrogarmos a cultura portuguesa dos últimos três séculos, confrontamo-nos com a sua falta de contemporaneidade. Há as excepções, claro. Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, vultos interessantes. Portugal nunca teve falta de criadores. Mas teve falta de leitores, de públicos, de cultura, sem dúvida que teve.
Que advém da pobreza do país?
E de uma ignorância das classes dominantes. Os dois contextos conjugados vão levar a que, quem cria, quem inova, acabe por se ver condenado ao exílio.
Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis são...
Os artistas contemporâneos com maior projecção internacional.
Vivem em Portugal.
É muito diferente comparar a situação de um Julião ou de um Pedro Cabrita com a que há pouco mencionou da Vieira ou da Paula Rego. Que são artistas francesa e inglesa, também.
A democracia permitiu à arte portuguesa um salto tão significativo?
Não é por acaso que as obras de artistas como Julião Sarmento e Cabrita Reis se afirmam internacionalmente na década de 80, numa altura em que o país conhece uma situação mais estável para se viajar, conhecer. A abertura de fronteiras foi muito importante.
Considera que a arte não tem passaporte. A ausência de necessidade de passaporte permite esta livre circulação, e, sobretudo, permite conhecer o que nos era vedado até algum tempo.
Sim. Aquilo que a obra de um artista representa nunca é um conceito de país. A cultura não depende de conceitos administrativos ou políticos. Cada artista cria o seu próprio país com a sua obra de arte.
Não acha que haja uma pátria artística? Que pode estar na cabeça do artista, aberta a influências do mundo todo.
Quando Fernando Pessoa disse que a sua pátria era a língua portuguesa, criou várias pátrias dentro da sua obra, através dos vários heterónimos. É um bom exemplo de como o país para um artista é o território que constrói com a sua obra. Tudo o resto são factores exógenos a essa obra. O qualificativo nacional, quando utilizado, é sempre extremamente restritivo. Em princípio a obra de arte dirige-se a todos e a ninguém. A sua universalidade é uma atitude muito individual.
Estava a pensar no seu interesse pela linguística. A língua materna é poderosíssima por representar a nossa primeira aproximação à realidade – todas as outras, por mais fluentes, serão sempre segundas. Na criação artística não se levanta de todo esta questão?
Para qualquer linguista, a língua materna não é a língua nacional. A minha língua materna não é a sua língua materna. Basta pensar que nasci num contexto mais agrícola ou mais piscatório. A sua gramática pode englobar nomes de peixes que eu não conheço. Não há um conceito de país nas línguas.
Há uma primeira aproximação à realidade através de uma língua.
Depende dos pais que teve, da família que teve. A língua portuguesa é composta de muitos dialectos; há dialectos portugueses que estão mais próximos do espanhol que do português. Há quem diga que uma língua é um dialecto com um exército e muitos canhões. A faculdade da criação nada tem a ver com a definição de fronteiras políticas.
Eu não estava a pensar na delimitação geográfica e política, mas na primeira aproximação e consequente nomeação da realidade exterior.
A capacidade criativa tem em conta o contexto a que se é exposto, mas não depende dele. Inventa independentemente dele. Não acredito que a arte dependa de uma arte nacional ou que o nosso falar dependa apenas de um falar nacional. Uma língua é para ser partilhada por uma comunidade. A criação artística é para ser confrontada dentro da comunidade. E é uma criação individual e um confronto individual. Uma obra de arte nunca é criada para trinta pessoas pensarem o mesmo sobre ela. A arte é um desafio individual, distinta do que é a identidade nacional. Picasso era catalão, viveu em França, e sentimo-lo como universal. Um filme de Abbas Kiarostami é profundamente iraniano mas é também profundamente universal. Se fosse exclusivamente iraniano, não o iria entender.
Na direcção de um museu é obrigado a atender àquilo que aprecia e resulta do seu confronto individual com a arte, e também à identidade do museu e ao confronto do colectivo com a arte. É difícil fazer a gestão desta confluência de planos?
Os museus devem ter programações claramente assumidas como opcionais. Devem ser conhecidos os gostos, identidade, filosofias de actuação. Mas não acho que os directores dos museus devam restringir a programação aos seus gostos; quem faz a programação, tem obrigação de confrontar-se com a realidade do país em que vive.
Poderia acontecer expor um artista cujo universo não lhe fosse particularmente atraente?
Não programo artistas em que não acredito. Um museu tem de ter uma identidade própria, e essa faz-se com o perfil do programador e das suas opções. Ao mesmo tempo, não deve ser confinado a uma idiossincrasia. Na prática, direi que é uma relação de 90% de liberdade de programação e 10% de representação de um contexto com o qual é também importante criar relações.
O peso de Vicente Todolí foi fundamental para a afirmação do Museu de Arte Contemporânea de Serralves no mapa internacional. Intimida-o pensar que, sendo muito mais novo no circuito, possa perder ou ter dificuldade em suster estas relações?
Se há quatro anos me visse confrontado com a possibilidade de direcção deste museu, se calhar não a aceitaria. Neste momento aceito-a porque acho que tenho condições para tal. A experiência acumulada nestes três anos e o facto de Serralves ser um museu que se integrou e afirmou no contexto internacional, foram uma importante formação para mim. Não me sinto diminuído ou coarctado para a continuação do projecto. Claro que as pessoas são diferentes, claro que o Vicente tem uma experiência muito maior, mas estes seis anos foram anos de formação.
Gostava de lhe pedir uma escolha imaginária para um museu privado, onde tudo cabe, com exposições permanentes e temporárias.
Está a propôr-me responder em 30 segundos ao museu imaginário do Malraux? Acredito em muitos artistas e a minha crença e gosto pelas suas obras não implica uma valoração hierárquica de cada uma delas. Não tenho obras de arte em casa. O que é quase um paradoxo, porque eu próprio gosto de entusiasmar pessoas a coleccionar arte. Pôr uma obra de arte na minha parede levar-me-ia a pensar nessa obra em função do espaço em que ia ficar. E não quero condenar uma obra de arte a domesticidade da minha casa. Não tenho a ambição de ser um coleccionador, tenho a ambição de fazer uma colecção para um museu.
Não tem um sentimento de posse em relação a algumas obras de arte?
Não tenho esse sentido de posse, de propriedade privada, de pertença de uma obra. Para mim, a arte não é uma decoração do espaço. A arte é uma redimensão do espaço. O incómodo que sinto quando me faz essa pergunta não é bem o incómodo do pai a quem pedem para escolher entre os filhos; mas partilha um pouco disso, sabe? Será difícil assumir preferências pessoais quando há tanta coisa e tão diferenciada que cada artista nos oferece. Vivo num mundo com muita gente que respeito, e sentir-me-ia injusto, não com os artistas, mas comigo mesmo, se fosse escolher dois ou três. Obviamente os artistas que apresento são selecções em relação a outros que não apresento... O meu exercício de selectividade e gosto faz-se na programação que faço. Mas não assumo para mim o problema de um gosto pessoal e restritivo.
Publicado originalmente na Revista Elle em 2003