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Anabela Mota Ribeiro

Maria Elisa Domingues

07.04.14

Ficou envaidecida de ser a primeira mulher a ocupar o cargo de directora de programas da RTP? “Ah, isso fiquei. E fiquei de ser a primeira mulher a fazer entrevistas políticas. A palavra certa é orgulho. Tenho orgulho nessa carreira. Porque fiz tudo por mim.”

Aos 62 anos, Maria Elisa tem um livro novo para promover. Em Amar e Cuidar conta a sua “viagem pelo mundo do cancro”, enquanto cuidadora da mãe, entretanto falecida. É a pretexto do livro que fala dessa carreira, do seu percurso. Ela é a mesma de há 30 anos?

Conversa errática. Sobre vestidos, a mãe, a perda. Um pai comunista, inteligente, que morreu em três dias. Sobre o acerto de contas com José Sócrates. A vez em que disse a Durão Barroso: “Assim não continuo”. Fala-se de tudo e de tudo ao mesmo tempo. Interrompe-se. Retoma-se. Londres, depois de Madrid, depois de Paris (“Paris é uma cidade agreste. Se calhar porque vivi lá com muito pouco dinheiro, e tinha percursos intermináveis de metro”). Fala-se da vez em que lhe apresentaram Margarida Marante dizendo: “Esta é a nova Maria Elisa”. De um casamento com um americano que é rico, mesmo que não seja “rico assim”. Assim como se imaginam os americanos ricos. Fala-se do tempo em que imaginava que ia ser feliz. De ser uma sonhadora.

Do que é que tem orgulho Maria Elisa? Do que fez por ela. Quase não fala do filho, que não gosta que se fale dele. Mas mostra fotografias da neta, e estão brinquedos a um canto da sala. Ficaram avisos à navegação. Vai escrever um livro de memórias. Onde os nomes serão postos. Amores e não só. Assédio, coisas que lhe aconteceram a ela e a outras mulheres.

Na conversa a linearidade e a arrumação são impossíveis. Nada do espaço o faria prever. Sala exemplar, objectos do mundo, almofadas alinhadas. Mas sim, o escritório estava desarrumado, e Maria Elisa parecia ter um secreto orgulho nisso. A meio tocaram à porta. Era o senhor do talho, e no fim a TVI, que chegava para uma entrevista. 

Maria Elisa está no ocaso da vida? Falámos sobre o pavor de o ocaso ser como o de Gloria Swanson em Sunset Boulevard, (o filme retrata uma diva de Hollywood na sua fase crepuscular. Crepúsculo dos Deuses foi o título português). Longe disso. Eis um close-up de uma mulher madura, em luto, recém-casada.

 

 

Um dos músculos que mais trabalhou enquanto jornalista foi o da entrevista. Por onde é que começaria uma entrevista com esta Maria Elisa, de 62 anos?

Pelo livro que publiquei esta semana e pela morte da minha mãe. Pelo significado que isso tem para mim. Está de acordo com as regras do jornalismo – a actualidade. Sou habitada por essa circunstância.

 

É sobretudo uma mulher que vive de modo agudo, nesta fase da vida, a condição de filha? 

Há bastante tempo. Desde que me tornei cuidadora da minha mãe. Quando a minha mãe, sobretudo nos últimos meses, largos meses, perdeu autonomia, quase me tornei mãe dela. Não conheci essa circunstância com o meu pai. Morreu com 70 e poucos anos, em três dias. Mas nunca partilhei a intimidade da minha mãe. Era um ser de um enorme pudor. Uma senhora antiquada. Nunca troquei uma palavra com a minha mãe sobre sexo.

 

Nem lhe contou da sua vida íntima?

De modo nenhum. Não passava pela cabeça da minha mãe – acho que não passava – que tal pudesse acontecer. Houve uma fase, pelos 30 anos, em que senti a falta de poder falar sobre determinados assuntos. Mas já era claro que era impossível.

Ter que penetrar essa reserva foi-me extremamente doloroso. Por ela. [comoção] “Até onde é que isto lhe custa?”.

 

Uma recordação feliz, com a sua mãe, de quando era pequena.

A maneira como a minha mãe me vestia.

 

É muito visível o seu gosto pelos vestidos.

A minha mãe, que era muito coquete, é que mo incutiu. Tinha muito jeito para bordar, para tudo. Vivemos na província, andámos aos saltos. Fiz a escola em casa. A minha mãe arranjava-me uns bibes para quando estivesse a estudar. Também me lembro de uma coisa que desapareceu para sempre: fazia champô de alecrim para mim. Lembro-me do cheiro, do meu cabelo brilhante, em que a minha mãe tinha orgulho. A minha infância foi de grande amor. E de rigor. Fomos educados, o meu irmão e eu, com uma noção de dever.

 

Que reacção tiveram os seus pais quando se tornou “a Maria Elisa”? E vamos discutir a que é que isso corresponde.

O meu pai e a minha mãe tiveram um enorme desgosto quando fui para a televisão. Resolvi casar aos 19 anos. Contra a vontade deles. Continuei a estudar. Tínhamos de viver em casa dos nossos pais porque não tínhamos dinheiro. Portanto comecei à procura de emprego. Com as habilitações que eu tinha (dois anos de Medicina, dois anos do Conservatório, não sabia escrever à máquina) a primeira coisa que apareceu foi um concurso para locutora de televisão. Concorri. Ganhei. É uma história antiga. No dia em que fui admitida, cheia de orgulho, o meu pai disse-me coisas tão terríveis que só me lembro de chorar, chorar, chorar.

 

Porquê?

O meu pai tinha a pior impressão do meio televisivo. Achava que era promíscuo. Sei que mais tarde tiveram muito orgulho na tal Maria Elisa que você refere. A semana passada encontrei nas Finanças uma senhora que me disse: “O seu pai falava muito de si”. A minha mãe via os meus programas. Comentava o trabalho e comentava como eu estava. “Quem é que te penteou hoje?”

Havia coisas, que nunca disse, e que não direi agora – admito que as diga um dia – em que acho que tinham razão.

 

Está a falar de quê?

Havia uma certa promiscuidade e uma tentativa de, pessoas mais velhas e com poder, seduzir meninas novas e aparentemente vulneráveis. Tive um ou dois dissabores, que não passaram disso. Eu era uma miúda. Ter 23 anos em 1973 não é ter 23 anos agora. Pessoas desagradáveis, que você odeia, a quem tem asco. Pessoas com quem não tem o menor contacto e que de repente lhe fazem uma proposta obscena. Aconteceu-me. Com pessoas que foram admiradas, durante anos.

 

Ser uma mulher bonita, pesou? E vinda do teatro, que constava ser um meio libertino.

Palavra de honra que só há poucos anos comecei a olhar para as minhas fotografias com 30 anos e a dizer: “Ah, eu era engraçada”. Não tinha a ideia de ser uma mulher bonita. Sempre odiei o meu nariz. Achava que tinha os olhos bonitos. Quando entrei para a televisão, tinham um cabeleireiro mais antigo do que a minha bisavó, que dizia: “Eu é que mando nos seus cabelos”. Depois fui para Paris estudar jornalismo [1974/76]; passava as noites em casa a ver televisão. Comecei a dar importância à imagem, a reparar que as jornalistas que eu admirava eram sóbrias. Quando vim de Paris e comecei a fazer entrevistas, as primeiras grandes entrevistas políticas, e durante anos fui só eu a fazê-las na RTP, comecei a tomar conta da minha imagem.

 

Como é que era aos 19 anos, quando casou?

Casei sem me pintar, de tailleur, que fiz para a ocasião. Uma coisa austera. Fui a pé para a conservatória. O meu ex-marido pôs um blazer e uma gravata. Éramos estudantes contestatários, ambos. Passávamos o tempo nas RGT do [Instituto Superior] Técnico e em reuniões políticas.

 

Com o que é que sonhavam?

Com a democracia. Nesse tempo (muitas pessoas lhe devem ter dito o mesmo), não pensávamos muito em carreiras.

 

Era um tempo dominado pela dinâmica do colectivo, e menos centrado no sujeito, a sós com o seu destino.

Completamente. O destino colectivo era prioritário.

 

Quando é que começou a centrar-se em si, na sua carreira, na sua ambição?

Ambição? É uma palavra que é colada a mim e que acho que nunca tive.

 

Porque é que acha que lhe colam essa palavra?

Porventura porque tive poder muito cedo. Sem ter feito nada por isso. Não conhecia a pessoa que me convidou, aos 30 anos, para ser directora de programas [1980/83].

 

Daniel Proença de Carvalho. Ficou envaidecida de ser a primeira mulher a ocupar o cargo de directora de programas da RTP?

Ah, isso fiquei. E fiquei de ser a primeira mulher a fazer entrevistas políticas. A palavra certa é orgulho. Tenho orgulho nessa carreira. Porque fiz tudo por mim. Mas sou um produto da revolução. A minha carreira não existiria sem a revolução. Provavelmente teria continuado a ser locutora. Estava no sítio certo, no momento certo. Era mulher.

O João Soares Louro, meu segundo pai, e que também morreu de cancro, confiou em mim. Patrocinou a minha ida para Paris. (Só foi possível porque a televisão continuou a pagar o meu ordenado cá. Já tinha um filho. Fui bolseira do Ministério dos Negócios Estrangeiros Francês.) Achava-me graça. Esse sim, são. A liberdade que eu tinha... Com 28 anos, ninguém me perguntava quem é que ia entrevistar nessa noite.

 

Quando foi convidada para a direcção de programas, era um tempo de experimentação no país. Na conjuntura pós-25 de Abril, tudo parecia subitamente possível. Hesitou? Ocorreu-lhe que podia não ser capaz?

Tudo isso. O João Soares Louro foi importante. Porque o meu trabalho anterior tinha sido ser assessora de comunicação da então primeira-ministra, engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo. [Julho de 79 a Janeiro de 80]

 

Como é que isso se deu?

Ela requisitou-me à RTP. O João Soares Louro estava a recebê-la, como é normal os presidentes fazerem, e no fim da entrevista disse: “Vou roubar-lhe a Maria Elisa”. Ela conhecia-me de miúda. No liceu Filipa de Lencastre havia professoras ligadas ao Graal, cuja sede era em frente. Ia lá, lia poesia, fiz sessões de alfabetização no Algarve. Com 14, 15, 16 anos. Pintasilgo não me perguntou se eu queria. E a mim não me ocorreu dizer que não. Mas quando acabou o Governo Pintasilgo, com a conotação de esquerda que tinha, e a AD ganhou, o Soares Louro disse-me: “Agora tem de ficar uns tempos sem fazer nada para esbater a sua imagem”. Era uma época em que – não vi, mas sabia – ela e eu éramos grande parte dos quadros do Parque Mayer.

 

O que também dá ideia da sua popularidade.

Eu era muito próxima dela. O gabinete era mínimo. Era como a confiança do Soares Louro e do Sarsfield Cabral (então director de informação) em mim. Eu era a única pessoa que fazia comunicação no Governo! Tinha 29 anos. A primeira conferência de imprensa que deu, e de que tenho fotografias, é no Palácio das Necessidades. Ela, o ministro dos Negócios Estrangeiros de um lado, e eu do outro. Pedia isto? Não pedia. Ela achava que era assim, e era a minha função.

Quando o Proença de Carvalho me convidou, estava em casa há meses, sem fazer nada. Hesitei imenso. “Mas como é que sou capaz?” Tive 24 horas para decidir. Foi das fases mais felizes da minha vida. Nunca fui alvo de tanta polémica nos jornais. Ah, fui, fui, mais tarde, no parlamento. Mas tinha 30 anos e mandava em 600 pessoas e em vários milhões de contos. Revolucionámos a televisão. Em número de horas de emissão, directos, tudo. Ainda hoje há muita coisa que se faz parecida. Mas enfim.  

 

O que é que aprendeu do lado de lá?

Que as coisas são diferentes daquilo que as pessoas pensam. Mas não aprendi tudo. Se tivesse aprendido, não tinha, mais tarde, aceitado ser deputada [2002/04].

Foi muito fácil trabalhar com a imprensa estrangeira. Foi uma das primeiras mulheres a ser primeira-ministra na Europa. [Thatcher assumira funções dois meses antes] Tínhamos pedidos de entrevista de todo o lado. ABC, BBC, TF1, tudo o que se quisesse. Ela gostava disso, e eles gostavam dela. Era uma mulher com mundo, muito inteligente.

 

Pintasilgo gostava, sobretudo, do reconhecimento da sua inteligência?

Era. Da inteligência e dos propósitos em relação ao país. Nunca casou. Viveu para ler, para a política (num sentido extenso e nobre), para os seus ideais. Era uma pessoa com quem era muito difícil trabalhar. Teimosa. Por vezes, dura.

 

Deram-se bem?

Só tivemos uma zanga. E foi porque recebeu em plena reforma agrária, em pleno PREC, Álvaro Cunhal em S. Bento e não queria que eu dissesse. Os jornalistas perguntaram-me e confirmei. “Sra. Engª., quando não quiser que se saiba, não pode receber as pessoas aqui.” Também não gostava quando diziam mal dela. As manhãs eram difíceis, a comentar os jornais.

 

Retomando a palavra ambição, que se apostou a si...

Até há pouco tempo não tive tempo para pensar o que queria fazer com a minha vida. As coisas foram-me acontecendo. As propostas foram surgindo. Não procurei ser directora de programas. Não procurei ir para a embaixada de Portugal em Madrid [1986/88]. Não procurei ser directora da Marie Claire (o Carlos Barbosa foi a Madrid convidar-me).

 

Nunca se pôs a jeito para nada?

Não. [dois segundos depois] Ah, pus-me a jeito – e disse-o ao primeiro-ministro Durão Barroso – para sair do parlamento e ir embora. A comissão de ética, através de Jorge Lacão (foi o grande trabalho dele durante um ano inteiro), [obrigou-me] a optar entre o parlamento e a RTP. Num primeiro passo, optei por sair da RTP. Tentei cumprir os meus compromissos eleitorais. Fiquei só com o ordenado do parlamento. Tinha uma família para sustentar, uma casa para pagar – não era possível. Além de que, tirando a discussão de 2002 acerca do que fazer ao segundo canal [da RTP], em que fui bastante activa, não me deram mais nada para fazer.

 

Porquê?

Os partidos odeiam [deputados] independentes. Tive episódios durante a campanha eleitoral que são a prova cabal do que aquele partido me odiava. Puseram-me a dever uma noite de hotel em Caminha (dez ou onze contos), quando fui ao comício de rentrée do PSD. Não dormi no hotel, sequer!

No parlamento, como era conhecida, estava sempre a ser vigiada. Vi deputados (vários) a entrarem com resmas de processos, dos seus escritórios, para estudar e despachar. Eu tive zooms a uma agenda aberta, a uma revista que estava a ler. Um dia fui dizer a Durão Barroso: “Assim, não continuo.”

 

Saiu para Londres, onde foi conselheira cultural na embaixada (2004/06). Antes disso, fundou o serviço de comunicação da Gulbenkian (1995/98), foi novamente directora de programas da RTP (1998/99). Óptimos cargos. Tudo bons contratos?

Tive um contrato feito pela Maria de Jesus Serra Lopes, de prestação de serviços, quando estava na Gulbenkian e fazia programas para a RTP. Esse contrato foi renovado e depois interrompido quando fui para directora de programas. Fiquei a ganhar menos. Prometeram-me que passaria a ganhar o mesmo – nunca ganhei o mesmo. Como directora, não tive contrato nenhum. Era o que a casa pagava, era o que aos directores pagavam.

 

A segunda passagem pela direcção de programas foi curta.

Foi no tempo do Eng. Sócrates, ministro da tutela. Fui afastada sem qualquer razão válida. A desculpa que me foi dada para a demissão foi que na véspera o canal 1 tinha tido menos de 30% de share porque não tínhamos transmitido um jogo de futebol (que um dos canais privados comprou). Acontece que eu não mandava no futebol.

 

Quem era então o presidente?

Brandão de Brito. Coitado. Nunca mais ninguém ouviu falar dele. Quem me convidou foi Manuel Roque. Correctíssimo comigo. Sai de um dia para o outro num diferendo com o Eng. Sócrates. Quando chegou o novo administrador, fui pôr o meu lugar à disposição. “De maneira nenhuma!” Foi esse que me disse: “Você é o ex-libris da RTP”. Até que me despediu.

 

Está a dizer que a questão foi com Sócrates? Um acerto de contas?

Foram dois, não é? Ah, não tenho dúvida. O Eng. Sócrates primeiro-ministro decidiu despedir-me a meio do contrato [quando estava em Londres]. Apesar de ter sido Freitas do Amaral a destituir-me de funções.

[Quando fui despedida da RTP] fiquei sem trabalho, praticamente, e acabei por aceitar o convite de Durão Barroso. Não foi à segunda!, foi à terceira.

 

Quais foram os outros convites?

Convidou-me para o Parlamento Europeu, para várias câmaras municipais (não vou dizer quais são) e convidou-me para o parlamento, cá. Eu gostava muito dele, do Durão. Havia muitas mulheres cabeça de lista. A Assunção Esteves. Acreditei mesmo naquele projecto.

 

Politicamente está com pessoas de diferentes áreas.

Mas não muito.

 

Pintasilgo. Durão Barroso. Apoiou António Costa na candidatura à câmara de Lisboa. O que é que a faz apoiar ou aderir a um projecto político? O que aqui mais importa são as relações pessoais e a confiança pessoal?

Sim, e os valores. De todas as pessoas que pode citar só encontra pessoas do PSD ou do PS. Quanto a Pintasilgo, é inclassificável. Sendo de esquerda, tem muitos ideias da democracia cristã. Não era comunista, ao contrário do que muito gente afirmou. Há um projecto – o da social democracia, representada no seu máximo por Mário Soares – que, para mim, é mais claramente assumido, e com projectos que me parecem mais exequíveis, umas vezes pelo PSD e outras pelo PS. Quiseram dar de mim uma imagem de salta-pocinhas. Nunca me senti isso.

 

Participou na candidatura de Freiras do Amaral à presidência.

Participei. Não por ele, mas pelo director de campanha, que era Proença de Carvalho. Que era o nosso candidato. E acabou por não ser. 

 

Nunca foi comunista? Nem quando era jovem universitária e sonhava revolucionar o mundo?

Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Tive os maiores conflitos com o meu pai por causa disso. O meu pai era comunista. Quando caiu o muro, quase dizia que o muro não tinha caído. Cegava quando chegava ao regime comunista. Álvaro Cunhal também era assim. Um ser fascinante, que entrevistei não sei quantas vezes, com quem adorava conversar – e conversávamos sobre imensas coisas; gostava muito de medicina, também; falava com ele antes e depois das entrevistas, e às vezes na sede do partido. Como é que seres tão inteligentes, que tinham já dados para ver o que se passava no mundo comunista, nos gulags, que tinham lido o Soljenitsin, com certeza, e os dissidentes soviéticos, que eu também tinha lido, continuavam a acreditar naquilo? Mas continuavam. É uma coisa comparada à fé. Você não explica a fé, não é?

 

Reconciliou-se com o seu pai?

Sim. Digamos que aos 50 tinha uma veemência que mais tarde [perdeu]. Foi adoçando. Não no vigor das discussões. Eu evitava-as. Morreu comunista. Como em todas as famílias, a seguir ao 25 de Abril, naqueles anos de maior agitação, as nossas discussões eram épicas. Havia coisas engraçadas. A minha mãe votou sempre à esquerda, de certeza. [Partido] Socialista

 

Nunca perguntou à sua mãe em quem é que ela votava?

Ela dizia que não dizia. O meu pai dizia. Penso, espero, que quando fui candidata tenha votado PSD. Mas deve ter fechado os olhos, porque nunca gostou [do PSD]. Perguntei-lhe. Ela respondia: “O voto é secreto”, e ria-se.

Uma vez, antes do 25 de Abril, levei uma sova da polícia. Quando Mário Soares foi fazer uma palestra na Sociedade de Belas Artes, eu estava à porta, com centenas de outras pessoas. Não houve palestra nenhuma. Houve uma carga da polícia, apanhei imenso. Não corria tanto como um homem. Cheguei a casa com um ombro todo pisado. A minha mãe queria ir para a polícia fazer queixa!, foi o meu pai que a impediu. A minha mãe tinha umas coisas [riso] de uma grande justiça e de uma grande naîveté. Mais secreta e menos racional. Era católica, ao mesmo tempo.

 

É católica?

Eu sou. A minha mãe era sobretudo devota de Nossa Senhora de Fátima.

 

Volta-se para quem, quando se sente perdida?

Agora? Agora, para a minha mãe. [comoção] Às vezes tento falar com Deus, mas acho que não mereço, porque é só quando estou aflita [riso nervoso]. Sou pouco constante. Sou muito amiga da Catalina Pestana e no dia do funeral da minha mãe agarrou-me e disse assim: “Ela está no Céu”, com alegria e convicção. “Tomara eu acreditar”.

 

Um outro católico convicto faz o prefácio do seu livro, Bagão Félix.

É um bom amigo, ele e a mulher. É uma pessoa com quem falo nos momentos difíceis. Tive muito poucas pessoas no meu casamento, 30 e tal incluindo família, e ele estava lá.

 

Casou-se no início do Verão. Inesperada para si, esta nova vida?

Conheci o meu marido depois de Londres, em 2008. Não estava à espera. Ninguém está à espera de uma coisa destas. Queria muito encontrar uma pessoa, partilhar a vida com alguém. Angustiava-me a ideia de acabar [põe ênfase na palavra “acabar”] sozinha. As tentativas que aconteceram não resultaram.

 

Porque é que não resultaram? O que estou a perguntar é: um dos preços que pagou por ter tido uma carreira plena foi não ter conseguido uma vida afectiva estável? Era uma equação que se punha às mulheres da sua geração.

Era. Não acho que [a minha carreira] tenha sido um factor determinante para as coisas não resultarem. Acho que tive pouca sorte. Não sei se isto se chama assim. Houve relacionamentos que não foram de maneira nenhuma o que eu esperava que fossem. A evolução não correspondeu, de todo, à fase do enamoramento. Houve um caso – um caso importante – em que, admito, e isso era referido pela outra pessoa, o facto de eu ser uma personalidade pública lhe desagradava profundamente. Saíamos em Lisboa, eu era reconhecida, e ele era o senhor que acompanhava a Maria Elisa.

 

Concede que é difícil ser destituído de identidade própria. Ser o acompanhante.   

Concedo perfeitamente. Mas vejo casos de colegas minhas cujos maridos desempenham esse papel com à vontade. Havia insegurança e não havia amor suficiente. Ponto.

 

Mencionou, não sei se com um travo de culpa, ter deixado o seu filho em Portugal quando foi estudar. Para arrumar o assunto: foi com culpa para Paris?

Fui. E até hoje não sei se fiz bem. Há as pessoas que têm dúvidas, optam e acabou. Não sou nada assim. Fico a remoer o resto da vida. Também não sei se as coisas correriam melhor se tivesse ficado cá. Ficaria a pensar que tinha perdido uma oportunidade. Fiz um concurso público para ganhar aquela bolsa, com 500 pessoas, e queria evoluir. Não havia cursos de comunicação social em Portugal. Parece que estamos a falar da pré-História. É pré-História. Muito do que fui enquanto jornalista aprendi em Paris.

 

A Anne Sinclair já trabalhava?

Já. Mas a grande vedeta era a Christine Ockrent, que era a minha referência. Vi-a uma vez, em casa dela, onde fui com um amigo que era amigo dela e do marido, Bernard Kouchner. Simpática, um pouco distante. Na televisão, a Anne Sinclair tinha uma beleza estonteante, os mais extraordinários olhos azuis. A Christine Ockrent sempre teve pouco cabelo, tem uma face correcta, serena. Uma revista chamou-lhe “La reine Christine”. A Sinclair começou um pouco depois, há quatro, cinco anos de diferença. Transformou-se num exemplo para mim quando Dominique Strauss Kahn se tornou ministro das Finanças, e sendo ela a jornalista vedeta da TF1, abdicou de fazer programas. Porque achou que havia um conflito de interesses com a posição do marido. Em Portugal esta fronteira (entre a família e a política) não existe. Faz-me confusão.

 

Quando foi para Paris, era uma jovem impetuosa e emocional.

[riso] Ainda sou muito.

 

A “reine Christine” era o oposto disso. Refreou-se?

Nunca me viu com uma imagem muito emocional.

 

A sua imagem pública não era a de uma “reine” inacessível. Margarida Marante ou Manuela Moura Guedes, que apareceram um pouco depois de si, tinham uma imagem mais seca.

Seca não se me pode aplicar. Concordo consigo: as imagens não eram coincidentes.

 

Foi uma grande rivalidade com estas mulheres?

Nunca a senti. Houve pessoas dentro da RTP que provocaram muito isso. Não com a Manuela Moura Guedes, que era locutora quando eu era directora. Fazia parte das pessoas que dependiam de mim. Quanto à Margarida Marante, quando entrou para a televisão, foi-me apresentada por uma das pessoas que a levaram (não vale a pena referir o nome) como: “Esta é a nova Maria Elisa”. Foi-me apresentada assim!, com ela à minha frente, coitada, mais nova do que eu. “Ah, sim? Óptimo, ainda bem.”

 

A que é que correspondia nessa altura ser “a Maria Elisa”?

Aquela que entrevistava os políticos. Que fazia o telejornal. Que era uma jornalista conhecida. Para alguns [sublinha “para alguns”] terei sido uma jornalista de referência.

 

Nesse tempo, pensava no que seria a sua vida aos 62 anos?

Sabe que não? Aos 20 e tal pensava que ia ser feliz, feliz, feliz aos 30.

 

É sempre a seguir que se vai ser feliz?

Não, depois deixei de pensar. O que é triste. Ser feliz era encontrar a pessoa certa, mesmo depois do meu divórcio. Como nas histórias: ser feliz para sempre. Era romântica. O Luís Pinto Coelho aplicou a palavra que se me ajusta melhor; estão ali três coisinhas dele à entrada, numa delas está escrito: “Para a Maria Elisa, sempre sonhadora”. (Fizemos uma grande amizade em Madrid. Era meu confidente. Fiz a última entrevista ao Luís, poucos dias antes de ele morrer de cancro.) Fui imensamente sonhadora, por isso tenho um grande choque quando vejo isso da ambiciosa. Tudo o que me podia ter dado dinheiro, rejeitei. Depois do Parlamento Europeu, rejeitei um anúncio de 60 mil contos [300 mil euros]. Era a minha independência para o resto da vida.

 

Era a um detergente?

Era. Tenho o contrato em casa, estão vivas as pessoas que me convidaram. Meti advogados, exigi isto e aquilo, foram-me dando tudo o que queria. No fim perguntei a opinião ao meu filho, à minha mãe, toda a gente achou mal. Rejeitei. Sabe qual é o significado? É que hoje não sou independente do ponto de vista financeiro. Vou ter de continuar a trabalhar.

 

Falemos de dinheiro.

O dinheiro nunca motivou ne-nhu-ma escolha minha. Não estou a dizer isto com orgulho. Fui muito influenciada pelos princípios dos meus pais. O meu pai era engenheiro, e mais tarde fez um curso de Ciências Sociais. Um lírico. Nunca fez nenhuma opção por dinheiro. As minhas opções – o João Soares Louro dizia isso – foram sempre por razões afectivas. Por gostar das pessoas. Por confiar nas pessoas. E por acreditar que naquilo podia ser útil.

 

Quando é que o dinheiro foi determinante?

Agora. Rescindi com a RTP. Mas tenho um enorme pudor em falar hoje de dinheiro. Os portugueses estão a viver tão mal, tão mal. Tenho vergonha de quem, tendo mais meios, se queixa.

 

Quando folheamos as revistas e sabemos que se casou com um advogado americano, imaginamos uma vida glamorosa.

O meu marido tem uma vida muito confortável, temos uma casa muito simpática em San Francisco. Mas não equacionamos sequer a hipótese de eu não trabalhar. É uma relação muito romântica, claro que é. De duas pessoas maduras. Teria sido impossível aos 30 anos. Como você diz, eu era explosiva. Agora as coisas não podem ser imediatas. Ele teria adorado estar cá no lançamento do meu livro – não pôde. Não é rico assim [sublinha “assim”]. Dirige um enorme gabinete de advogados numa grande empresa, mas é empregado por conta de outrem.

 

Chegámos a esta parte da conversa quando lhe perguntei se pensava em como seria o seu ocaso.

O meu ocaso? Hum.

 

Sente que está a começar um ocaso?

Vou tentar que não seja. Isto é tudo muito recente. Não é o casamento. Foi adiado tantas vezes que é como se tivesse sido há mais tempo. A morte da minha mãe e o que ela me vai provocar ainda não começou. Quase ainda não chorei. Até ao fim do ano não vou pensar no que vou fazer. Não tenho espaço. Para já, este livro, os livros. Concebo isto como futuro. Provavelmente vou voltar a estudar, nos Estados Unidos. Gostaria que o ocaso fosse a escrever, eventualmente a fazer televisão (é o meu habitat natural).

 

Deixou de ter na televisão o mesmo poder, o mesmo protagonismo. Foi especialmente evidente no último programa que fez, sobre saúde.

Foi difícil. Tinha poucos meios, poucas pessoas a trabalhar comigo. Foi produzido num cantinho de um estúdio. Pensei o programa para um auditório.  

 

É uma coisa para a qual estava preparada?

É claro que me custou. Mas não foi por pensar: “Agora tenho menos poder”. Até porque lá dentro [RTP] – tinha 30 anos, tirei de funções pessoas de 60 anos – criei inimigos. Também dei a mão a muitas pessoas que estão agora em lugares de topo. Houve algumas pessoas que fizeram o possível para que não me sentisse desrespeitada. A administração disse-me sempre que eu era uma óptima jornalista; mas depois não me convidava para nada. Você vai perdendo coisas, contactos, oportunidades.

 

Sabemos como é difícil manter as carreiras, em especial as de grande exposição, no auge. Sempre em forma.

Não é preciso ser no auge.

 

Porque é que nunca perdeu o tino, como aconteceu com outras pessoas quando saíram do ecrã e tiveram problemas com álcool, drogas, plásticas?

Primeiro porque tenho um enorme pudor em relação a fazer figuras tristes. Peço sempre aos meus amigos: “Se algum dia me virem fazer figuras ridículas – em relação ao envelhecimento – avisem-me”. Depois porque tenho a sorte de nunca ter bebido, nunca ter experimentado drogas, nada, zero. É mesmo sorte. Estou convencida de que isso são doenças, como a úlcera, o reumatismo. Apanhei uma vez uma bebedeira de champanhe em casa.

 

O envelhecimento, foi um fantasma, um grande problema?

Ah, não gosto. A modificação do corpo, não gosto nada. A minha mãe, aos 88 anos, quando morreu, não tinha uma ruga. Um cancro, a quimioterapia. O corpo da minha mãe modificou-se menos do que o meu já se modificou. A minha cara? Tenho sorte.

 

No filme de Billy Wilder Sunset Boulevard, ficou famosa a frase da diva do cinema mudo, em decadência: “Mr. De Mille, I’m ready for my close-up”. Insisto: é difícil deixar a boca de cena. Deixar de ter poder.

A Hollywood dos anos 50, com as suas beldades míticas, cujo prazo de validade era muito curto – salvo raras excepções, como Katharine Hepburn – não pode ser comparada ao mundo da televisão, nem sequer ao Hollywood de hoje. Meryl Streep ganhou o terceiro Óscar aos 62 anos. Na informação, a beleza não é critério determinante e a idade também não tem de ser. Só para falar das mais célebres jornalistas americanas: Barbara Walters, com 83 anos, é co-produtora e co-apresentadora do principal programa da manhã da ABC e continua com frequência a fazer entrevistas no primetime. Diane Sawyer, com 66, mantém igualmente uma carreira de primeiro plano.

Um país que não aproveita a experiência e a maturidade das pessoas mais velhas é que me parece inexoravelmente votado ao ocaso. De resto, há vários anos que não tenho poder nenhum.

 

Quando é que deixou de ter poder?

Depois de ir para o parlamento.

 

Foi aí que a sua credibilidade foi afectada irremediavelmente?

Foi. Sobretudo fui condenada pelos meus colegas.   

 

E pelo público?

Acho que não. Na altura, talvez. Não sei se se lembra, mas tive meses de aparecer todos os dias nos jornais.

 

Como é que olha para essa que aparece nos jornais? Quando se é uma figura pública, há sempre uma persona ficcionada pelo colectivo.

Com estranheza. Quando aparece muita coisa, diz-se: “Não há fumo sem fogo”. Há imenso. Bolas, eu sou a melhor prova de que há fumo sem fogo. Fica um ruído. “Ah, esta quer é dar-se bem na vida”. Mas depois passa. Nunca senti nenhuma animosidade [do público]. As pessoas muito novas não fazem ideia de quem eu sou. As pessoas muito novas sabem quem são os actores das novelas. Há poucos meses perguntaram-me se era a Dina Aguiar. É muito estranho o modo como nos situamos no imaginário público. Há pessoas convencidas de que têm muito poder... [riso cínico] Nós “damos” na televisão.

Essa pessoa que eu via nos jornais – a que não entregava a roupa que a Stivali lhe emprestava! – nunca senti que fosse eu. Não sei de quem estão a falar.

 

Na imprensa atribuíram-lhe romances. Algumas das pessoas eram figuras públicas.

Só sofri com aqueles em que senti que fui utilizada. É um tema que fica para o meu livro de memórias. É importante para a minha evolução como mulher, e para mulheres portuguesas da minha geração, saber como determinadas pessoas de comportamento aparentemente irrepreensível na vida pública podem ser tão danosas na vida privada. É uma espécie de aviso que quero deixar.

 

Vai escrever sobre isso porquê?

Porque tenho necessidade de explicar como é que algumas coisas se passaram. Sei que não me aconteceram só a mim. E não há nada de que tenha vergonha. É o meu testemunho do que fui aqui. O Paul Johnson escreveu um livro sobre o lado privado das figuras públicas, The Intellectuals. Tenho um testemunho dos lados sombrios de determinadas pessoas. No meio deste percurso de que falámos há situações terríveis do ponto de vista emocional. Dez minutos antes de entrar no ar. Com as pessoas mais insuspeitas.

 

Quais são os seus lugares de sombra? Todos temos os nossos.

Não gosto de ter dito que sim algumas vezes. Não fui capaz de dizer que não – quando fui para o parlamento. Falei com uma grande amiga, a Lídia Jorge; disse-me tudo o que me ia acontecer. A minha vaidade foi flaté [bajulada] e fraquejei. Paguei muito caro. Fui injusta, não para muita gente, penso eu, na RTP, quando tinha poder. Avaliei mal as situações. Tenciono pedir desculpa a essas pessoas. Não acho que me tenha portado muito mal na vida.

Também me arrependi de ter participado na campanha de Freitas do Amaral; acho que todos nos arrependemos, inclusive ele. Lembro-me de, mais tarde, o ouvir dizer que apreciava imenso a forma como Soares estava a exercer a presidência. Foi o afecto, mais uma vez. Embora o tivesse, também, por Soares, pela família. A Isabel Soares é das minhas maiores amigas. Esteve no meu casamento.

 

Uma última pergunta: como é que era o seu vestido de noiva?

[abre os olhos] Lindo de morrer! Quer ver?

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012