Elvira Fortunato
O seu verbo é fazer, fazer, fazer, e fazer bem. Conjuga menos frequentemente o verbo ser. É pouco introspectiva. Não gosta de falar dela própria. Gosta de falar daquilo que faz. Elvira Fortuna é o tipo de mulher que tem como máxima: “Não há impossíveis aqui no laboratório!”. Mas a sua geografia e a sua ascensão não se resumem ao laboratório: ela tem tempo para a casa, ela precisa de se sentir em família. Tem 44 anos.
É uma investigadora que viaja o tempo todo. Em semanas pode cruzar o mundo: Estados Unidos, Coreia, Índia, Suécia, Brasil… É uma cientista que trabalha com materiais não convencionais. Experimenta fazer, por exemplo, transístores com matérias da construção civil, cimento ou tijolos. Licenciou-se em Engenharia Física e dos Materiais, doutorou-se em 1995 com distinção e louvor. É professora associada com agregação da Universidade Nova. É directora do Centro de Investigação de Materiais desde 98. A wikipedia menciona-a como uma das inventoras da electrónica transparente. Recentemente ganhou uma bolsa de 2,25 milhões de euros – a mais avultada alguma vez atribuída a um português. O “seu” transístor de papel foi discutido na net por mais de cinco milhões de pessoas. Os principais jornais europeus debruçaram-se sobre as suas descobertas. Nós, debruçámo-nos sobre a sua vida. Para saber o que a fez ser como é.
O que é que havia na sua infância que pudesse prenunciar o seu percurso de excelência?
Sempre fui muito curiosa. Ainda sou curiosa. Gostava de saber coisas, como funciona?, [conhecer] a parte de dentro. O que talvez me tenha despertado para a área da ciência ou investigação foram as observações ao microscópio – como a células de cebola – que fiz no liceu. Ver coisas ao microscópio que o meu olho não vê...
Era uma criança curiosa. Os seus pais, as pessoas à sua volta tinham em relação a si especial expectativa?
Não sei, nunca lhes perguntei. Acho que me viram como uma pessoa bem comportada. Eu era muito organizada, metódica, boa aluna, mas daí a ser excelente, a chegar onde cheguei... Também acho que não cheguei assim... Tenho feito algumas coisas, mas às vezes quem está ao nosso lado é que devia fazer um bocadinho mais.
Quando entrou para a escola, teve a sensação de o mundo ter mudado? De repente dispunha de ferramentas, como ler, escrever, contar – para melhor compreender.
Completamente. Estou num contínuo processo de aprendizagem. Hoje sei muita coisa porque passei a vida toda a estudar, e continuo; mas quanto mais se sabe que sabe, maior é a noção daquilo que ainda não se sabe. Sei que sei muito pouco de tudo aquilo que existe.
Olhando para os seus cadernos e livros da escola: rasurava-os?, até à perfeição, até aprender, até dominar?
Ainda guardo os meus livros, os testes da escola primária: são impecáveis. Tinha os cadernos bem passados, limpinhos, com cores. Os meus cadernos eram fotocopiados por todos os meus colegas, e esses apontamentos e resumos passaram, passaram... Já como assistente, reparei que os meus alunos ainda os usavam!
Eles sabiam que eram seus?
Não!
Não se importava de ceder os seus apontamentos aos seus colegas?
Nunca me importei. Sei que hoje em dia se faz negócio com isso, mas posso dizer que foi a custo zero! Não havia esse espírito de competição, na minha turma.
Teve algum tipo de competição com a sua irmã?
Não. Ela é nove anos mais nova, faz muita diferença. Licenciou-se em Farmácia.
Portanto viveu praticamente toda a infância como filha única. Os seus pais exigiam especialmente de si?
O meu pai, em termos de estudo, exigia, mais até do que a minha mãe. Sabia que eu tinha capacidade e queria que estudasse. O meu pai faleceu há treze anos; assistiu à minha licenciatura, não assistiu ao doutoramento. Era empregado de balcão.
Era disciplinador e exigente consigo? A sua tenacidade é uma herança dele?
Sim.
Conte-me uma boa recordação de infância em que ele esteja presente.
Emociono-me um bocadinho quando falo do meu pai... (Tinha 55 anos, foi um cancro fulminante, em seis meses faleceu). O que guardo de melhor é a educação que me deu, a atitude na vida, a seriedade, a exigência. O rigor, acima de tudo o rigor.
Foi empregado de balcão mas quis que a filha tivesse um destino social, profissional, económico diferente do dele?
Sem dúvida. E isso, quer para mim quer a minha irmã, era sentido como um estímulo.
O seu empenho é uma forma de lhe prestar tributo?
É.
O que é que queria ser quando era pequena? Quando se é pequena não se quer ser engenheira física! Quer-se ser coisas românticas como médica, professora, astronauta...
Quando era pequena, pensei ir para medicina, mas não consigo ver sangue, não consigo cortar nada… Vim ter a esta faculdade por várias razões. Às vezes, é a sorte, é a conjuntura… A minha vida aconteceu. Eu nasci em Almada, morava em Almada, entrei para a faculdade em Almada em 1982. Tinha uma universidade nova ao pé de casa, [não se pôs] o problema de ter de me ausentar, pagar o quarto, ir para fora da família. A primeira opção foi Engenharia do Ambiente, só que não entrei...
Porque é que não entrou?
Tinha média de 15. Na faculdade, sim, tive notas muito altas. Mas no liceu não era uma excelente aluna. Entrei para Engenharia Física e dos Materiais, gostei imenso da licenciatura, e nunca mais saí daqui.
Ficou por casa – em família, na cidade onde sempre viveu. Quando é que sentiu que era dona da sua vida, que a vida era aquilo que queria fazer com ela?
Quando tive o primeiro salário. Até esse momento, eram os meus pais que me pagavam os transportes, a alimentação, que me vestiam. Nas férias trabalhava, em part-time, dei explicações, mas isso eram coisinhas, uns extras. A primeira coisa que quis, quando entrei para a faculdade como assistente, quando tive o meu salário regular, foi comprar um carro.
As viagens seduziam-na? Eram uma miragem?
Estou cansada de viajar tanto! Nas férias fico sempre em Portugal. Não gosto de andar de avião. Mas no princípio deslumbrou-me imenso. A minha primeira viagem foi a Israel, como monitora, ou não?... Hum…, esqueci-me. Mas sei que Nova Iorque foi uma das primeiras e marcou-me. Pela sensação de liberdade, e porque é tudo grande, diferente.
É fácil imaginar que se sinta em casa nos Estados Unidos, uma Babel onde sobressaem os melhores, os que trabalham mais. O seu modo de trabalhar é americano. Rigoroso, competitivo, meritocrático.
Identifico-me, sim. Nunca pensei nisso, mas é capaz de ter razão. Somos muito competitivos – é um facto – e a minha bitola são os melhores. Na minha área de trabalho conheço os meus colegas todos, sei quais são os melhores e gosto de comparar o meu trabalho com esses. Gosto de ser como esses. Isso é Exigência, e eu sou exigente.
A partir de que momento percebeu que podia ser audaciosa naquilo que exigia de si mesma? Que se podia comparar com os melhores? A miúda que tem média de liceu de 15 não pensaria nisso…
Nem eu sei. Isto é um percurso. Posso dizer que construí o meu percurso, mas não andei à procura de coisas para ser o que sou hoje. Sempre gostei de dar o meu melhor, de fazer as coisas bem feitas, de nunca subestimar o que faço ou o que os portugueses fazem.
Que marca é que lhe deixou a sua mãe?
Não sei. Neste aspecto da carreira profissional o meu pai marcou-me mais do que a minha mãe, que ainda é viva. A marca da minha mãe? São perguntas a que não sei responder.
Interroga-se pouco sobre si própria?
Por acaso, é. Não gosto muito de falar de mim.
É uma mulher tímida, segura das suas conquistas, com um discurso imensamente pragmático; por isso me lembrei da sua mãe, e me perguntei onde foi buscar este pragmatismo.
Para ser sincera, não sei. Quando nos apaixonamos por aquilo que fazemos, a probabilidade de falhar ou ter insucessos é pequena. Os sucessos são relativos – posso ser um sucesso muito grande aqui e ser uma coisa muito pequena acolá. Mas acho que parte do sucesso que tenho tido é porque acredito muito no que faço, e porque sou desconfiada.
Desconfiada, em que sentido?
Quando fizemos o transístor de papel, se eu ouvisse uns teóricos, uns colegas, diria logo: “Impossível, o papel não tem propriedades boas para um dispositivo da área da electrónica.” Sou um bocado desconfiada porque gosto de experimentar, e porque posso ouvir muito conselhos mas faço o que está na minha cabeça. Sou desconfiada nesse aspecto: gosto de confirmar as coisas.
Tem um espírito científico. Mas quando decide levar a experiência do transístor de papel até às últimas consequências segue a sua intuição? É uma mulher intuitiva?
Muito. Penso que o espírito científico e a intuição estão ligados. [Inúmeros] trabalhos que tenho feito têm muito de intuição. Nós utilizamos gelatina de comer para fazer coisas da electrónica [riso]. Isto não é muito comum, até num homem que cozinha. Copiar e melhorar, tudo bem, mas sou um bocado disruptiva, no sentido de fazer coisas diferentes. O transístor de papel é um ovo de Colombo; se for ao Google e colocar paper transistor veja os sites que aparecem. Até eu fiquei um bocado assustada.
Quer dizer que pode acontecer ter uma ideia, uma invenção, e não se dar conta imediatamente do impacto que ela tem?
Com o transístor de papel, sabia que era importante, mas não tive esta noção. Isto saiu no Scientific America, no The Economist, tenho ali as revistas todas… Os japoneses vêm cá ver o que andamos a fazer – “Mas em Portugal fazem-se transístores?”. Fizemos logo uma patente – já aprendemos.
Na mesma semana, ganhou um prémio do European Research Council no valor de 2,25 milhões – foi a primeira vez que um português ganhou uma bolsa deste tipo – e anunciou a descoberta do transístor de papel. Foi o reconhecimento total?
Eu já tinha a noção de que o meu trabalho, cientificamente, era bom, porque desde há três ou quatro anos são os próprios organizadores das conferências que querem que participe na qualidade de Invited Speaker [Orador Convidado]. Vou a esses congressos, mas não na qualidade de conferencista normal, como ia até aí. O facto de o trabalho ser reconhecido, e ser reconhecido internacionalmente, [fez-me acreditar] que tinha os mínimos para poder candidatar-me a essa bolsa do European Research Council. Daí a ganhar o projecto vai um passo, e daí a ficar em primeiro lugar ainda vai uma distância maior!
Ainda a dissuadiram, dizendo que era só para a nata da nata europeia...
Foi o que me disseram, cara a cara. Achei tão estúpido... Era uma mulher. Eu estava com umas calças de ganga…; os portugueses só vêem realmente o valor dos outros portugueses quando os de fora lhes reconhecem o valor. A senhora não me conhecia de lado nenhum, mas sendo responsável por essa área tem de estimular os investigadores a candidatarem-se.
Pessoalmente, nunca desejou ganhar muito dinheiro? Pôr o seu talento a render de outra maneira? Ganhar dinheiro para ter uma casa maior, para ter um carro melhor, as coisas para que normalmente as pessoas querem ganhar dinheiro.
Não. Tenho uma posição permanente aqui na faculdade, o meu ordenado está garantido. O meu marido é meu colega, é professor catedrático; não temos uma vida excelente, mas é uma vida confortável. Não tenho a preocupação de chegar ao fim do mês e ter contas para pagar. A riqueza que tenho é o meu trabalho, é o meu salário. Enquanto tiver duas mãos e uma cabeça para trabalhar... A saúde é a minha maior riqueza.
Porque é que quis ficar na margem sul? Podia ter sido um estigma, um estigma social...
Às vezes falam da margem sul e criam esse estigma – fico ofendidíssima. [A margem sul] tem um Figo… Essa conotação é negativa no sentido em que parece que aqui as pessoas não têm qualidade. Mas as pessoas, ou as ideias, não têm cor, não têm local. Eu também podia dizer: “Como é que em Portugal se fazem transístores?” Portugal pode estar conotado negativamente na área científica em que eu trabalho, que é extremamente competitiva em termos internacionais, com japoneses, coreanos, americanos, e nós conseguimos lá chegar.
Podia viver em qualquer cidade do mundo.
Eu nasci em Almada, gosto de viver onde vivo. Moro na charneca, a faculdade fica no campo. Não há aquele stress das grandes cidades. Eu tinha aqui condições excelentes para me doutorar, para fazer investigação, este é um dos melhores laboratórios do mundo – para que é que eu ia para outro sítio?
Gosta de se sentir com os pés na terra, e em casa?
Gosto.
A quem é que telefonou quando soube que tinha recebido a bolsa?
Ao meu marido. Depois aos meus alunos e às pessoas que trabalham na minha equipa.
Foi aluna do seu marido. Deduzo que ele tenha começado por ser um tutor; quando é que se emancipou?
Em termos de investigação, a seguir ao doutoramento. Dentro do grupo, temos várias linhas de investigação e eu iniciei esta.
Neste momento o seu nome é uma referência mundial na área da electrónica transparente. A Ferrari vai adoptar uma invenção sua – é sintomático.
É outro projecto, que não tem a ver com os prémios que ganhei. São materiais electrocrómios, que mudam de cor; são as janelas inteligentes, em que podemos controlar a transmitância de uma janela electricamente. Quando está sol, por exemplo, o tejadilho fica mais escuro; mas sou eu que controlo electricamente, se não quero, carrego no botão e fica transparente. O estímulo não é o fotão, ou, neste caso, o ultravioleta, é um potencial eléctrico em que controlo electricamente a cor, a transmitância.
Os seus projectos têm uma fortíssima componente prática.
Sim, são aplicados a coisas concretas. Isso é uma preocupação: sou experimentalista, gosto de fazer coisas que tenham uma aplicabilidade a curto prazo para a sociedade.
Porquê a curto prazo?
Não gosto de esperar muito tempo até ver as coisas acontecer. Não é que seja apressada, mas sou um bocado impaciente. Fazemos coisas com aplicação prática imediata, daí ter muito interesse por parte das indústrias. A Ferrari veio por arrasto, porque temos um projecto europeu com a Fiat; parte da investigação que fazemos em conjunto pode ser aplicada na Ferrari.
E há um lado glamoroso na Ferrari que remete para a ficção científica…
O projecto com que ganhei o ERC tem 27 páginas e chama-se Invisible [Invisível]; começa assim: “Imagine ter um monitor totalmente transparente e flexível, dobrável e de baixo custo, ou um circuito electrónico transparente na janela do seu escritório. Pode perguntar-me se estou a escrever ficção científica. Não estou. De facto, este é um objectivo muito ambicioso, mas tangível no quadro deste projecto”. Comecei exactamente com a ficção científica...
Porque é que acha que a bolsa lhe foi concedida?
Estes projectos financiam uma ideia. O investigador tem que ter um currículo de excelência nos últimos dez anos. Mas se a ideia que é apresentada não é disruptiva, não é muito boa, o projecto não é financiado. Depende do investigador e da originalidade e força da ideia.
O que é que existe na sua vida fora do trabalho?
Gosto de passear, gosto imenso de ir a um bom restaurante. A minha filha tem 11 anos, deixo-a na escola às nove da manhã, venho para o trabalho, vou buscá-la às seis da tarde, depois é o banho, são os trabalhos de casa, jantar... Ao fim-de-semana temos as compras; se me perguntar qual foi o último filme para adultos que vi, já nem sei...
Significa que tem tempo para ser mãe, mais ou menos a tempo inteiro, apesar de todo o trabalho que faz?
Sim, estou muito com ela. O nosso problema, às vezes, é a organização. Se organizarmos o nosso tempo, temos tempo para tudo, e ainda sobra. Venho no carro, escrevo num post-it o que é que tenho que fazer no dia seguinte. Trabalho oito a dez horas por dia. Chego por volta das nove, saio às seis, por vezes ainda trabalho depois do jantar e aos fins-de-semana. Agora é tudo fácil, mas nem sempre foi assim. Houve horas da minha vida pessoal que sacrifiquei, mas temos que fazer opções. A minha mãe diz: “Trabalhas tanto, descansa um bocadinho.” Mas é que este trabalho não me dá trabalho. As pessoas e a família não entendem...
Este prémio que ganhou é considerado uma espécie de Nobel.
Não gosto de chamar-lhe Nobel, porque estou a anos luz disso. Mas realmente, depois do nascimento da minha filha, este acontecimento, foi a segunda coisa boa que aconteceu na minha vida.
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2010