Manuel Alegre
“Portugal, país de poetas” é uma frase feita. Nem por isso falsa. Para que serve a poesia quando falta o pão? Manuel Alegre é um poeta e um político que se candidatou duas vezes à presidência da República. Além de tribuno e resistente, de voz tonitruante. Toda a gente se lembra da primeira candidatura, em 2005, quando conquistou cerca de um milhão de votos.
É um poeta que olha para um país em fanicos e que escreve coisas assim: “Irmãos meus que passais um mau bocado/ e não tendes sequer a fantasia/ de sonhar outro tempo e outro lado”.
É um poeta e um político com quem é possível falar de Heitor, o mais comovente dos heróis da literatura, e duas linhas abaixo da geração a que pertencem Sócrates e Passos Coelho. Das fúrias e revoltas que o fizeram ser político. Do tempo em que não sabia se voltava, da prisão, do exílio, de fora.
Viveu o tempo das grandes utopias. Tem 75 anos e acaba de lançar um novo livro de poesia, Nada está Escrito. E então, falamos de poesia? Sim. E de política? O tempo todo. E do que mudou desde o tempo em que ele acreditava que era possível viver o paraíso na Terra.
Em casa tem muitos livros. E marcas de uma vida em que o sonho era a intervenção, e não o enriquecimento.
No poema que encerra este livro escreve: “País é um café e a mesa a um canto/ onde um poeta sonha e escreve e é Portugal”. É uma boa introdução ao que Portugal é?
Estou a falar de Fernando Pessoa, do Café Martinho. E da Ode Marítima que provavelmente foi escrita ali. Não sei se sem poemas há país. A poesia tem muito a ver com Portugal, com a afirmação da nossa identidade e com a língua. A língua é a maior riqueza que temos. O português que falamos e escrevemos é o que Camões escreveu n’ Os Lusíadas. Os heróis não são heróis míticos; é o próprio povo português e a viagem de Vasco da Gama. São heróis de carne e osso, pessoas verdadeiras.
Há um poema da Hélia Correia onde, citando Hölderlin, diz: “Para que servem os poetas em tempo de indigência?”.
Boa pergunta. Para quê?
É para escrever poesia. Neste tempo em que a língua está invadida pela cultura do número, das taxas de juro, das cotações bolsistas, escrever poesia – para falar de amor, da existência ou da não-existência de Deus, para procurar o sentido das coisas – é um acto de libertação da linguagem. É um acto de resistência. Não creio que haja mudanças sem a poética da mudança. Também não há revoluções sem a poética da revolução, mesmo que os poetas venham a ser vítimas da revolução (como aconteceu na revolução russa). A poesia neste momento é uma necessidade.
Vivemos tempos de indigência, portanto.
Indigência em todos os sentidos. Cultural, política, até literária. É um tempo muito unidireccionado.
E comandado.
Sim. A economia sobrepôs-se à política, não há espaço para mais nada. Vivi outros tempos: ditadura, guerra colonial, exílio. Tempos muito difíceis. Mas acabavam por ser mais fáceis. Havia um horizonte. Havia a convicção de que mudando a política se mudava a vida.
Havia também um inimigo com uma face definida contra o qual lutar.
Agora são inimigos invisíveis. Preferia ser ocupado por um exército estrangeiro do que estar a lutar contra esta ameaça invisível – os especuladores, os mercados, que invadem a nossa vida. Uma coisa que me faz impressão na juventude é a falta de sonho. Esse é o papel da poesia, como foi na minha geração. Procurávamos esse horizonte mais além.
Por que é que acha que tão rapidamente se chegou aqui? Esta entrevista é feita uma semana antes do 25 de Abril, e terão passado apenas 38 anos sobre o começo desta nova era. Não parecia crível para as pessoas da sua geração, em 1974, que no ano 2012 estivéssemos a usar a palavra indigência para descrever estes tempos.
Já vivi muitos ciclos. Nunca nada é definitivo, na vida pessoal ou colectiva. Trinta e oito anos é pouco tempo e é muito tempo. Quando estava no exílio dizíamos que tinham passado 30 e tal anos de salazarismo; uma enormidade. Agora a democracia tem 38 anos e parece-nos que foi ontem. Naquilo que o 25 de Abril se propunha ser, é uma revolução vitoriosa. Fez a democracia, a descolonização e o país desenvolveu-se.
Os três “D” foram cumpridos.
Houve várias revoluções e contra-revoluções no 25 de Abril. Os que queriam fazer uma revolução para instaurar um modelo de tipo soviético ou cubano. Os que queriam fazer uma coisa chilena. Foram derrotados. Com a queda do Muro de Berlim muita gente julgou que tinha chegado a hora da social-democracia. Mas não. Tinha chegado a hora da globalização, do triunfo absoluto do capitalismo, do poder financeiro sobre todos os outros poderes. Foi o que nos trouxe a esta situação.
Nestes 38 anos, mais do que tudo, foi a queda do Muro que desequilibrou as forças e dinamitou uma certa ordem social, política e económica?
O Mitterrand dizia que pior que o equilíbrio do terror é o desequilíbrio do terror. Não estou a dizer que o modelo da União Soviética fosse bom. Estou a dizer que havia um contra-peso. Depois da queda da União Soviética e do Muro de Berlim a social-democracia europeia, mundial, não se afirmou. Foi até cúmplice do neo-liberalismo. Deixou-se colonizar. O capitalismo, que noutros tempos tinha a sua ética, ficou sem regras.
Há esta crise, que toda a gente diz que é a maior depois da crise de 1929. As forças políticas que se reclamam da ideologia que está na origem da crise, ganham as eleições. A esquerda, perde as eleições em todo o lado. É um paradoxo.
Mas a esquerda, nomeadamente o PS, tem sido responsabilizada por, ao longo de 15 anos, ter conduzido o país à situação em que actualmente se encontra.
O PS já foi julgado, já perdeu eleições. Antes tinha havido Cavaco Silva e o desperdício brutal. Durante dez anos entraram rios de dinheiro. Claro que se fizeram auto-estradas e infraestruturas, mas perderam-se oportunidades. E houve muitos negócios e trapalhadas que vieram acabar nesta triste história do BPN. O que houve foi uma mudança do mundo. Havia um pacto social nascido no pós-Guerra: a democracia política com justiça social. Um pacto entre socialistas e democratas-cristãos que está a ser rasgado.
Quando é que esse pacto se exauriu?
A partir da queda do Muro de Berlim. As pessoas foram-se endividando, os bancos foram assediando as pessoas. E os bancos também se foram endividando. Criou-se nas pessoas o sentimento de que não há outras soluções. Isso é terrível, leva ao conformismo. Leva as pessoas a ficarem vergadas, deprimidas.
Há um verso muito forte, quando diz: “Aconteceu-me o pior: o esquecimento”.
Há outro poema em que digo: “As ruas cheias de gente e as pessoas desertas”. A cidade mudou. Há uma depressão. Estão a ser exigidos sacrifícios brutais. E as pessoas acham que isto vai piorar. Perderam o sonho. Esse é que é o papel da poesia. Eu próprio escrevi dois livros durante a ditadura que foram apanhados pela censura.
Praça da Canção tornou-se num livro-referência.
Os versos foram cantados, por Zeca Afonso, Manuel Freire. E isso acabou por ter uma grande influência no despertar da consciência democrática das pessoas – mais do que o discurso político. Creio que um poema hoje, ou uma canção, pode ser mais eficaz que um discurso político.
A palavra era mesmo uma arma.
Era. Mas não tem que ser um poema político. Nunca escrevi poemas políticos. Pode ser um poema de amor.
Enquanto gérmen para incutir a mudança e a esperança nas pessoas?
A vida não tem que ser esta coisa penosa, de um quotidiano que se repete, de um país em “inho”, como dizia o Teixeira de Pascoaes. A vida tem que ter outra dimensão. Não é possível viver sem esperança, sem sonho.
Quando é que em si morreu esperança?
Não morreu. Não sou capaz de viver sem esperança. A esperança é difícil, constrói-se. Muitas vezes o optimismo tem que passar pelo pessimismo, pela consciência de que as coisas são difíceis e de que é preciso mudá-las. Neste momento não há grandes razões para ter esperança. Não há respostas, não há milagres. Mas há uma coisa que se chama vontade, inteligência. E aquilo que alguns disseram noutras circunstâncias: “Sejamos realistas, vamos fazer o impossível”.
Precisamos de bater no fundo do poço para ter ganas de fazer o impossível?
Já estamos a bater no fundo do poço! Isto pode ser outra vez tempo de revoluções e de contra-revoluções, de grandes explosões sociais.
Tem sido feito o paralelismo, não só com a crise dos anos 30, mas com tudo o que veio depois. Com o espaço dado para os totalitarismos, nomeadamente.
O império austro-húngaro desfez-se. Desfizeram-se muitos impérios. Ninguém controla a História e às vezes a História descontrola-se, acelera.
Como se fosse um corpo em convulsão que não conseguimos deter?
Se continuar assim, o que é que vai ser daqui a três ou quatro anos? É imprevisível.
Quando perguntava quando lhe morreu esperança, não me referia à Esperança mas a partes que sempre ficam maculadas. Estava perguntar até pelas decepções.
Na nossa juventude era o tempo das grandes utopias. Vivíamos quase cegamente, tangidos por uma história que soprava num determinado sentido. Depois veio o tempo da lucidez, do confronto com a realidade. Já passei por muitas coisas. É preciso saber ler os sinais. Isso é um dom dos poetas, a vidência de que falava o Rimbaud. Poesia e profecia estão ligadas. Mas Rimbaud também dizia que a palavra poética, por efeito mágico, pode mudar vida.
Como ouvir os poetas e reconhecer os sinais quando somos submergidos numa torrente? E parece que contra ela somos impotentes.
Um grande poeta provençal, Arnaut Daniel, dizia que é preciso escrever contra a corrente. As grandes obras poéticas muitas vezes são escritas contra a corrente.
Este seu livro é contra a corrente?
É próprio da poesia subverter o discurso instituído, abrir brechas nas gramáticas da obediência e do conformismo.
Estou a falar com um homem de 75 anos, que passou por acontecimentos muito fortes toda a sua vida.
A minha vida foi intensa, tensa e densa [riso].
Explique-me cada um desses adjectivos.
Foi uma vida agitada. Vivi a ditadura, a luta estudantil, a luta contra o regime, a Guerra Colonial, a prisão, o exílio. E quando voltei não tivemos logo paz. Tivemos a festa do 25 de Abril, mas tivemos aqui grandes confrontos.
Nos últimos anos há as duas candidaturas à Presidência, a saída do Parlamento, e uma relação com o seu PS que não é a que teve durante décadas. Ainda que o seu objecto poético não seja o objecto político, às vezes as linhas cruzam-se.
Vivi sempre contra a corrente. Tenho um livro chamado Contra a Corrente, mas é um livro de textos políticos. A vida e a escrita são inseparáveis. A poesia não são só sentimentos, são partidas, desencontros. Para chegar a um verso é preciso ter passado por cidades, por países, por amores e desamores. A vida que vivi e a vida que estamos a viver está também nos poemas em que falo dos meus passeios pela cidade.
No poema de abertura, Balada dos Aflitos, diz: “A luz que nos guiava já não guia/ somos pessoas – dizeis – e não mercados”. Qual é essa luz?
Estava a referir-me aos tempos da juventude, da utopia. Para mim, a política nunca foi um sucedâneo da religião. Tive sempre um espírito crítico. Além de Marx li, muito António Sérgio, grande mestre, hoje esquecido. Falava da necessidade de combater o sectarismo, o dogmatismo. Havia um horizonte de claridade. Isto agora está bastante sombrio. Embora sejamos um país do sol e do sul, parece que querem fazer de nós um país luterano e puritano.
Está a vincar uma diferença cultural, que assenta muito na religião e na geografia.
A atlanticidade é a nossa identidade. A cultura passa pelo vinho, pelas areias, por essas coisas que agora querem fiscalizar demais. Hábitos muito diferentes de países que não têm sol, que têm tectos baixos.
Mas quem tem a guita são os luteranos.
É por isso que isto está triste. Não creio que seja possível aguentar por muito tempo.
Não deixa de ser curioso que tenha sido Hölderlin, um alemão, a falar de tempos de indigência, ainda que num contexto completamente diferente.
É verdade. É um país estranho. Goethe, Schiller, grandes músicos. Mas também Auschwitz, Birkenau, Sachsenhausen e essas coisas horríveis feitas com uma terrível racionalidade. Feitas com um espírito burocrático, frio. O mundo e as pessoas não podem ficar as mesmas depois de Auschwitz. O mal absoluto, como disse Malraux. A Alemanha tem essa eficiência que assusta. A verdade é que já destruíram duas vezes a Europa, e a si próprios. Agora não estão a usar armas nem a fazer nenhuma ocupação militar, mas estão a fazer uma ocupação ideológica.
A Alemanha e os banqueiros tornaram-se nas figuras odiosas deste tempo?
Não tenho qualquer dúvida. Não estão a fazer Auschwitz nem a praticar o culto da morte, mas estão a destruir um modelo político, democrático. “O estado social acabou”, disse Mario Draghi. Estão a aproveitar esta crise para pôr em causa direitos e conquistas sociais que demoraram muito tempo a construir. No pós-Guerra, era a economia de mercado mas com direitos sociais, com serviços de saúde, educação. Agora, a pretexto do equilíbrio da contas públicas, o que vemos é o BCE a emprestar aos bancos a um por cento para os bancos depois emprestarem aos Estados a taxas elevadíssimas.
E é aí que os bancos se tornam na figura odiosa?
É isso que é preciso mudar, o papel do BCE. Ou então nunca mais há Europa. Somos um país sebástico. Estamos sempre à procura de D. Sebastião, e agora passámos de D. Sebastião para a França. François Hollande não tem grande perfil de D. Sebastião. Mas se ganhar vai abrir uma brecha na muralha. Ele disse, e bem, que era preciso que o BCE começasse a emprestar aos Estados directamente.
Tanto quanto consegue reconstituir esse tempo, como é que não havia medo do futuro, qualquer que ele fosse? Hoje há um enorme medo do futuro.
Porque há uma ausência de futuro. No meu tempo os estudantes podiam ser presos, torturados, mas sabiam que terminado o curso não tinham um problema de emprego. A guerra da juventude hoje é não ter emprego.
Nesse caso, não ter emprego, acaba por ser uma primeira configuração do medo.
Tudo é precário. Não se sabe que futuro se vai ter, mas há a ideia de que nada é certo. Há um muro à frente das pessoas.
Se falavam de um eventual medo, que face é que ele tinha?
O medo no Portugal que vivi era o medo de ser preso, de ser torturado. Quem viveu isso ainda hoje tem pesadelos. A guerra. Punha-se o problema não só de morrer mas de ter que matar. E o medo de ter que fazer outra escolha, deixar o país e ir lá para fora. Foi um período muito difícil, o do exílio.
Fale-me disso. Uma coisa são as coisas vividas a quente. Outra, passados 50 anos, é pensar naquilo que o marcou nessa experiência.
O que mais me marcou foi a sensação de uma grande insegurança. Não tínhamos família, não tínhamos o amparo de quem está no país. Depois, como era uma figura conhecida e marcada pela polícia, insegurança pessoal. Estava no livro negro, podia ser abatido. Sobretudo: marcou-me o não saber se um dia voltaria. O regime já tinha durado tanto, tinha havido tantas tentativas falhadas. Tinha vivido a campanha do Delgado. Assisti ao maior levantamento nacional. Nem no 25 de Abril! Parecia impossível que ele fosse perder. Quando ouvi os resultados na rádio, transformei-me num resistente, num militante revolucionário. Senti-me roubado por dentro, na minha alma.
Por que é que diz que foi uma reacção popular mais forte do que a do 25 de Abril?
O 25 de Abril já era a vitória, ali foi uma grande esperança e uma grande promessa. A convicção de que aquele homem ia dar a volta a isto. Ele levantou o povo português, teve esse mérito. Às vezes via-o fazer discursos em que não falava, só agitava os braços [riso].
Pensou muito no Delgado nas suas candidaturas?
O Delgado marcou muito a minha vida. Pedem-me muito que escreva a minha autobiografia; é muito complicado. Há sempre um risco de justificação e de ocultação. Pela ficção, às vezes, é-se mais verdadeiro. Em todos os livros de prosa que escrevi, lá vem o Delgado. Não posso esquecer a chegada dele a Coimbra em 1958. Um homem muito alto, que estava ao pé de mim, com um filho pequeno nos braços, quando o Delgado passou, levantou-o, e com as lágrimas pela cara abaixo disse: “Ó meu general, salve o meu filho dos tiranos”. E depois a morte do Delgado. Foi o único general que morreu num campo de batalha. Gostava de um dia fazer um filme sobre o Delgado, se tivesse vocação de cineasta.
No seu livro fala de guerreiros. Achei que há poemas de guerreiros tombados e de homens que caminham para o fim.
Aí estou a falar de Tróia e de Heitor. Escolhi Frederico Lourenço para apresentar o meu livro. Ele traduziu a Odisseia (grande metáfora da vida humana – a errância, a procura de Ítaca) e fez-me descobrir em língua portuguesa a Ilíada, o mais fantástico poema que até hoje se escreveu. O grande herói de Homero não é Ulisses nem Aquiles, é Heitor.
Que é um perdedor.
Mas é humano. Defende a sua terra, a sua família com o barro da sua humanidade. Não foi gerado por nenhum deus e não era um perdedor nem um matador. Sendo vencido, é um vencedor eterno.
Heitor é uma espécie de herói para si?
É. Vai lutar para defender a sua dignidade, sabendo que não vai lutar com armas iguais, sabendo que não é imortal e que pode ser derrotado. Apesar de tudo, luta.
É possível fazer uma extrapolação do seu interesse pelo Heitor para outras batalhas que tenha empreendido?
Desde miúdo que tenho uma atracção por aqueles que travaram combates desiguais, e que marcaram a história sendo vencidos. D. Pedro é a referência cimeira da nossa história. É ele que abre caminho às navegações. Viajou pela Europa toda, foi o primeiro grande europeu. E foi durante a regência dele que Portugal dobrou os cabos e foi para longe. Toda a estratégia dos Descobrimentos é com ele. E no entanto morreu em Alfarrobeira, por intriga.
Quais é que foram as suas vitórias e as suas derrotas?
Um vitória desportiva (aí não há batota): fui campeão de Portugal de natação, na Praia das Maçãs em 1956 ou 57. Subir ao pódio marcou-me.
Não há batota significa que é uma vitória indiscutível?
Sim.
Agora, uma vitória discutível mas que tenha sentido como sendo uma vitória.
O sucesso que tiveram os meus livros. A Praça da Canção, o livro mais difundido em vida do autor. O 25 de Abril é uma vitória colectiva para a qual dei uma quota-parte. Dei uma contribuição com aquilo que escrevi, com as emissões de rádio que fiz. O dia em que foi aprovada a Constituição. Foi um dia muito emocionante, é o triunfo da democracia.
O primeiro milhão de votos?
Gostei da primeira campanha que fiz, foi uma coisa bonita, pioneira. Ter ficado a 29 mil votos da segunda volta foi uma derrota que teve um sabor de vitória.
Quando saiu de casa para ir votar – agora já pode dizer – acreditou que ia passar à segunda volta, que ia ter aquele resultado?
Sim, sim. Tinha sentido isso na rua. Não tinha vontade nenhuma de ser candidato à Presidência da República. Tinha sido abordado pelo Sócrates, e outros, mas nunca foi o sonho da minha vida.
Porquê?
Vivi sempre dividido entre a escrita e a política. As coisas estiveram sempre cruzadas. Tinha noção de que uma opção ia mutilar uma parte de mim mesmo. Depois recebi mensagens de todo o lado que mostravam bem o sentimento das pessoas relativamente ao estado das coisas. Por revolta e indignação resolvi candidatar-me. Sabia que ia ser muito difícil, mas sabia que ia ficar em segundo.
Tinha medo de ser um perdedor sem o heroísmo do Heitor? Há algumas derrotas que são apenas derrotas. Isso perseguia-o?
Não. Quando decidi candidatar-me sabia que podia fazer um grande resultado. As pessoas ficavam um bocado impressionadas, mas tinha essa convicção.
Como?
Antenas poéticas, o contacto das pessoas – são sinais.
Estávamos a falar das vitórias; e as derrotas?
A última eleição presidencial é uma derrota. Não tenho essa contabilidade feita. Na política vivi muitas vitórias e muitas derrotas, mas teve sempre um lado colectivo.
É diferente quando se vai a votos sendo cabeça de cartaz...
Fui sempre a votos. Fui muitas vezes cabeça de lista em Coimbra.
Isso é diferente de ser candidato a primeiro-ministro ou a Presidente da República. Tem-se um protagonismo diferente.
É muito difícil ir a votos naquelas circunstâncias. Fui a votos tendo o Cavaco Silva de um lado e o Mário Soares do outro. A primeira eleição não foi uma derrota, foi um facto que abriu novos horizontes. E começaram a surgir discípulos, há mais gente a fazer isso.
Na segunda, em termos aritméticos é uma derrota, mas foi muito mais difícil. Tinha o apoio do Partido Socialista, em crise, e tinha o apoio do Bloco de Esquerda. Uma parte do Partido Socialista não votou em mim por ter o apoio do Bloco de Esquerda. Parte do Bloco não votou por eu ser socialista. A minha candidatura nasceu de um movimento cívico, das pessoas que tinham estado associadas à primeira candidatura. Mas não tinha a euforia, a vontade...
Também percebeu que era a sua última hipótese.
Fui um bocado empurrado pelas circunstâncias. Para mim o que conta é travar ou não o combate. Nunca programei a minha vida. Quando tinha 20 e tal anos a minha carreira podia ser um tiro na guerra, ou ser preso e torturado, ser morto numa emboscada.
O que é que se encontra no combate? O que é que sabemos de nós mesmos no combate?
É a satisfação pelo que se está a fazer.
É um sentimento de dever?
É. E a responsabilidade cívica. É uma exaltação difícil de definir. Tenho gosto no combate. É o lado da política de que sempre mais gostei, do risco. Hoje é tudo muito programado. É tudo visto em termos de carreira pessoal, de vitória pessoal. Ser líder de um partido, ser candidato a primeiro-ministro, sem que as pessoas se perguntem o porquê. Para mudar a sociedade? Para fazer uma revolução? Vejo nos políticos muita cautela, muita programação.
Um político que encaixe nisso, pode apontar?
É uma questão geracional.
A geração de Sócrates ou Passos Coelho?
Já vem antes. A do Guterres. Acaba com Jorge Sampaio. A partir daí tudo é feito com racionalidade, a pensar na imagem, na sondagem, no sucesso. Quando travo um combate gosto de ganhar. Fui desportista, campeão, sou de uma família de campeões. Mas na política é a causa e a necessidade de travar o combate [que prevalecem]. Ficaria mal comigo se não travasse esse combate. Fui candidato a primeira vez porque me provocaram, porque me senti injustiçado.
A fúria é um dos seus motores?
A revolta e a indignação, sim. Aí, foi mesmo uma fúria.
O que há de si neste verso: “Eu sou aquele rei que não foi rei”?
Não tem paralelo. Esse poema é dos mais antigos, escrevi-o antes das candidaturas.
Voltando às derrotas...
Mas gosto das vitórias...
Não tenho de si a ideia de ser um mártir.
Não gosto de perder nem a feijões. Mas no combate contra o Cavaco ninguém queria lá ir. É um impulso. O primeiro foi uma fúria, depois de uma conversa com o Sócrates. Nem pensei, não tinha nada preparado. É um pouco como a poesia. A Sophia dizia que a poesia não se explica, implica-se.
Alguma vez fez as pazes com o Sócrates?
Nunca estive zangado com o Sócrates. A minha questão foi com o Mário Soares. O Sócrates não foi capaz de se opor ao Mário Soares e tomou aquela decisão. Aí discutimos. Enfrentei-o numa conversa.
Sei que a sua zanga foi com Soares, mas foi de propósito que perguntei se alguma vez tinha feito as pazes com o Sócrates. Desde 2005 a vossa relação ficou inquinada. A sua relação com o PS, nos seus últimos anos de política activa, foi marcada por essa relação instável com Sócrates?
É natural. Mas do ponto de vista pessoal sempre mantivemos contacto. E sempre dissemos um ao outro aquilo que pensávamos.
Era também uma questão geracional?
Não sou pelas rupturas geracionais em política. O Mário Soares tem muito mais juventude de espírito do que têm alguns de 20 ou 30 anos que já nasceram velhinhos. Eu também me sinto assim, mais novo do que alguns muito mais novos do que eu. É outra cultura, outra maneira de ser. Um problema de idiossincrasia. Não me entendia com aquilo. Já tinha tido isso com o Guterres.
Mas não se tinha notado tanto cá fora.
Não. E também tinha outra relação pessoal com o Guterres. A partir de certa altura tudo é feito em função do triunfo pessoal. Cada líder que vem cria uma corte à sua volta. Cria um aparelho para dominar o partido, para a comunicação social. E depois vive em função dessa imagem, dos sound bites e das sondagens. Uma vez fiz uma trilogia: imagem, sondagem, sacanagem. A política estava muito reduzida a essa trilogia. Isso já não tinha nada a ver comigo nem com aqueles com quem fiz outras coisas.
Custou-lhe sair do PS?
Não saí do PS.
Quando se retirou da assembleia, parecia um fim de festa não tão glorioso quanto o que tinha previsto.
Fui aplaudido de pé por todos. Recebi elogios de todas as bancadas. E tinha dito que não falava, fiz um improviso. Há um ciclo, e achei que era o momento certo para acabar. Foi antes da segunda eleição presidencial. Foi depois de ter votado contra o código laboral (esse, ao pé deste...). Havia um desfasamento muito grande, aquilo já não era comigo. Foi também um acto de inconformismo. Foi um acto político.
Este Governo tem quase um ano. O que é que foi feito que mais põe em causa aquilo que para si era um direito adquirido?
A agenda ideológica que aplicaram muito para além do memorando. O corte dos reformados, de pessoas que descontaram toda a vida. O 13º mês, que representa muito na vida de muita gente. (Também tive cortes, mas não me vou queixar como o nosso amigo Presidente. Sou um privilegiado em relação à maioria dos portugueses.) Sobretudo a subserviência em relação aos que mandam na Europa. Querer ser bom aluno, querer ser o primeiro, querer levar uma festinha da Sra. Merkel.
Ouço-o e olho para a Europa. Ainda é possível, com a força hegemónica que a corrente neo-liberal tem, preservar algumas das conquistas de que fala?
Se continuam, não vai ser. Isso vai dar lugar a grandes sarilhos. As pessoas não vão abdicar de dados que fazem parte das suas vidas sem resistência – educação, saúde, direitos sociais. Na França ou na Itália, nem mesmo na Alemanha, as pessoas não se vão resignar a empobrecer.
O português parece um pouco resignado quando o primeiro-ministro diz que temos que empobrecer.
É horrível ter como estratégia para um país o empobrecimento. Aqui já se fizeram algumas das grandes manifestações da Europa. Os portugueses são um povo para o qual é preciso olhar com atenção. Alguém dizia: “Gostam de encostar os portugueses à saudade. Parece que aguentam tudo, e de repente atiram com tudo ao ar”.
Avizinham-se maus tempos?
Podem vir muito maus tempos. Esta política de austeridade, excessiva, destrói a economia. Se destrói a economia não há emprego, não há crescimento. O que faz o crescimento é também o consumo interno. Se as pequenas e médias empresas vão à falência, se o comércio fecha, se as pessoas não têm poder de compra, isto não cresce. Como é que vamos pagar a dívida? Esta política da Sra. Merkel, que tão subservientemente está a ser seguida, leva-nos a uma situação de empobrecimento, de destruição da nossa economia, e a uma regressão social brutal. Vamos andar 20, 30 anos para trás.
Como é que vai ficar na história?
Não sei [riso].
No poema Mea Culpa diz: “Desculpem lá se tenho biografia/ e se vivi a vida intensamente dedicado à política e à poesia”. Diz com ironia “desculpem lá se tenho biografia”, mas parece que é uma coisa de que se orgulha muito.
Todos os poetas têm biografia. Fernando Pessoa, além da dele, ainda fez a dos heterónimos. Isso é uma provocação para alguns literatos e críticos literários.
Também é uma maneira de olhar para a sua biografia, “intensa, tensa e densa”.
Fui campeão de natação, joguei futebol, fiz teatro, fui fundador do CITAC, director do jornal A Briosa, redactor da Vértice. Estudava Direito mas o meu sonho era escrever. Ser poeta. E depois apareci envolvido na luta política. Ia ter que fazer uma opção. As coisas foram-se conciliando, mas esse dilema nunca se resolveu dentro de mim. As pessoas sabem que fui um resistente, alguém que lutou pela liberdade. Sou um dos poetas mais lidos, mais cantado. Inclusive pela Amália (tenho muito orgulho nisso). A posteridade é muito curta, o tempo é infinito. Ficarei tal como vivi, tal como escrevi. Há livros meus que vão ficar, poemas que vão ficar, há imagens que vão ficar.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012