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Anabela Mota Ribeiro

Ana Catarina Mendes e Adolfo Mesquita Nunes

20.04.14

São a geração de 70, nascida aquando da democracia. Não se envergonham de ser políticos porque tudo é política, como dizia Bertold Brecht. Isto num tempo em que ser político parece uma nódoa, e se vive a descrença nos agentes políticos e nas instituições. Como se chegou aqui? Quais foram os passos, quem foram os protagonistas?

O verso do dramaturgo alemão é trazido por Adolfo Mesquita Nunes, Ana Catarina Mendes concorda. Ele é secretário de Estado do Turismo, ela é deputada do PS. Não acham que os seus pais, a geração dos seus pais, tenha feito tudo fazendo a democracia. Abrindo a sua história, entram também na História do país, e do que é ser de esquerda e de direita nos 40 anos do 25 de Abril.  

 

 

Ana Catarina Mendes nasceu em 1973, Adolfo Mesquita Nunes em 1978. Onde é que os vossos pais estavam política e socialmente no 25 de Abril?

Ana Catarina Mendes – Eu morava em Abrantes. A minha mãe era professora e o meu pai era advogado e também professor. A minha mãe chegou à escola onde dava aulas e ouviu: “Ainda não se sabe se é um golpe de direita ou um golpe de esquerda, mas está a haver uma revolução”. A minha mãe vem de uma família de pai operário, alentejano, que vai para a Marinha Grande. Gente de esquerda, do Partido Comunista. O meu pai é filho de médico e farmacêutica vindos do antigo regime.

 

Numa sociedade tão classista, não era comum uma mulher de uma família comunista, filha de um operário, casar com o filho de um médico. Hoje a estratificação não é tão vincada, a separação esquerda/direita não é tão rígida, mas antes não se falavam.

ACM – É verdade. Quando a minha mãe sai de casa e vai trabalhar para Fátima, conhece o meu pai. Apaixona-se e em três meses casa. Isso dá origem a cartas de amigos a dizer que ela é uma traidora porque casa com alguém de outra classe. O meu avô escreveu no jornal da Marinha Grande dizendo que não tinha nada a ver com isso [risos].

 

Adolfo, os seus pais.

Adolfo Mesquita Nunes – Os meus pais eram muito novos. Tiveram-me com 22 e com 20 anos. A família do meu pai é da Covilhã. Chamo-me Adolfo, um nome pouco vulgar, por causa do meu bisavô, que fundou uma das maiores fábricas têxteis da região. Era uma família associada ao antigo regime, embora o meu avô fosse ligado aos católicos progressistas. A partir de uma determinada altura viu a revolução como algo positivo. O meu avô, que ainda é vivo, foi Provedor da Misericórdia durante décadas.

Se com o meu pai estava habituado a ver os Beatles e O Tempo e o Modo, a minha mãe ouvia Léo Ferré e lia Sartre. A minha avó materna lia Simone de Beauvoir. O meu avô materno, que depois foi do Partido Socialista e secretário de Estado nos governos provisórios, vinha de uma aldeia da Beira Alta, de um meio social muito, muito baixo. Foi a primeira pessoa da aldeia que fez o ensino secundário (e mais tarde doutorou-se).

 

De esquerda, portanto.

AMN – Sim. Os hábitos familiares, entre a família da minha mãe e a do meu pai, eram distintos, as referências eram distintas.

 

Como é que se tornou possível a co-habitação entre os dois?

AMN – Os meus pais conheceram-se muito novos e casaram muito novos. Deve ter sido uma altura extraordinária para se ter 20 anos em Portugal. Beneficiaram dessa circunstância.

 

Da ideia de que tudo era possível?

AMN – No caso da minha mãe havia um espírito de rebeldia muito presente e uma sensação de liberdade vincada. Politicamente sou o que sou porque conciliei a ideia de liberdade cívica da minha mãe, do ponto de vista das liberdades individuais, e a ideia de liberdade económica que veio da família do meu pai.

 

Provindo de um contexto semelhante, um posiciona-se à esquerda e outro à direita. Tanto quanto conseguem reconstruir, porque é que a Ana Catarina é de esquerda e o Adolfo de direita?

ACM – Temos referências que nos fizeram aquilo que somos. Cresci com a família da minha mãe. A casa dos meus avós maternos e a casa da minha mãe era palco de ex-exilados, ex-clandestinos, ex-presos políticos. O meu avó materno foi preso político, no Aljube. A presença da minha tia, que foi também uma revolucionária, é constante. A minha mãe leu Simone de Beauvoir, eu li Simone de Beauvoir, Sartre.

 

Uma casa muito politizada mesmo depois do 25 de Abril?

ACM – Sim. Pouco depois do 25 de Abril, o meu avô afastou-se do PCP. Foi convidado várias vezes para integrar listas do PS mas recusou. Passeava com os netos pelo pinhal, discutia os livros que nos oferecia. Numa dessas conversas eu disse: “Acho que me sinto um bocadinho comunista” [risos]. Lembro-me de histórias à lareira, de o meu avô contar como é que se fazia na prisão, de como é que se sabia que mais um tinha chegado. Todos aqueles códigos que ainda hoje me emocionam.

 

Outras referências de resistência?

ACM – Mais tarde, as histórias da Segunda Guerra Mundial. O primeiro contacto que tenho é no Les uns et Les Autres. Mas quando digo isto ao meu avô, ele responde-me: “As utopias fazem parte, mas precisas de ler umas coisas”.

 

A revolução não é um chá dançante, diziam. Era preciso substância.

ACM – Sim. E deu-me um livro que me marcou para sempre, “Enquanto há Esperança”, de um cubano que esteve 20 anos numa prisão de Cuba, de Fidel Castro. Os meus amigos comunistas ficam sempre zangados quando falo nisto.

 

Como é que a direita era vista na sua família materna?

ACM – A direita foi sempre vista como a opção que não ia ao encontro do combate às injustiças mas que agudizava essas injustiças.

 

Porque é que é de direita, apesar de uma parte da sua família ser de esquerda?

AMN – Não sou daqueles que acham que a classificação esquerda-direita está ultrapassada. No meu caso, a dicotomia que faço é entre liberais e socialistas. O entendimento que tenho do Estado é que este não deve reconhecer-me liberdade, deve limitar-se em função da minha liberdade. A liberdade é pré-existente ao Estado.

 

Foi fácil situar-se politicamente, encontrar a sua família ideológica?

AMN – Não. Consigo encontrar afinidades dentro de uma certa esquerda e dentro de uma certa direita. Mas convivi com os problemas relacionados com a falta de liberdade económica. Na Covilhã, onde passei a infância e fiz os estudos até vir para a faculdade, sofri, como muitos dos que trabalhavam na Covilhã, e que tinham as suas fábricas na Covilhã, as consequências pessoais das decisões políticas. Aquilo que me motiva do ponto de vista da participação política e pública são as questões das liberdades económicas.

 

Dá a cara pela defesa de outras liberdades, cívicas e pessoais. Foi contra o referendo à co-adopção, por exemplo. Isto vale-lhe o epíteto de enfant terrible do CDS.

AMN – Não posso fingir que não penso o que penso.

 

Porque é que são políticos? A geração dos vossos pais tinha um objectivo comum, sobretudo à esquerda: a luta pela democracia. A vossa geração é globalmente apática, desinteressada da política, num período em que tudo parece garantido.

ACM – Não houve logo uma apatia. Nos anos 80 vivo em Almada, época de Cavaco Silva. Almada é um concelho onde a Juventude Comunista tem uma presença muito forte nas escolas. A primeira vez que faço qualquer coisa de política, sem nenhuma juventude partidária comigo, é quando sou confrontada com a Prova Geral de Acesso. Era uma reforma tola no sistema de educação. Mobilizei a escola, 90% dos alunos fizeram greve.

Na campanha de Jorge Sampaio, em 1991, o meu irmão mais novo inscreveu-se na Juventude Socialista. O Jorge Sampaio era advogado de presos políticos. Senti-me impelida a participar. Mais tarde dinamizei a Juventude Socialista em Almada, que não existia.

 

Porque é que não é médico, industrial, seguindo uma tradição familiar, e veio dar à política activa?

AMN – Sou advogado. É quase provocatório, mas há um poema do Brecht, o Analfabeto Político, que diz que tudo é política. O preço do pão é determinado pela política. O que comemos, o que fazemos, é determinado pela política. Aqueles que desdenham da política (como sendo uma actividade com a qual não querem ter qualquer relação), parecem desconhecer que tudo é política.

Esta percepção, sobretudo para quem gosta tanto da liberdade, fez-me estar desperto para a política. Confesso que me filiei porque não havia outra forma de ter uma intervenção.

 

Em que ano é que se filiou?

AMN – Em 1994, por aí, estava no 10º ano, na Covilhã. Não havia blogues, não havia Internet, não havia forma de discutir, encontrar pessoas que pensassem o mesmo que eu. A minha forma de abrir a porta e poder fazer alguma coisa foi a política. Nunca estive em associações de estudantes nem em associações académicas. Filiei-me e tive sempre a preocupação de não ser político. Queria ser advogado, queria ter uma carreira.

 

Não queria depender da política, é isso?

AMN – A minha preocupação foi sempre a de não depender da política para poder vir embora quando quisesse. Curiosamente, a primeira polémica que tenho do ponto de vista público é por ter tido uma carreira. [Resulta de] se achar que quem teve uma carreira vem para a política defender interesses, defender os seus antigos clientes.

 

Vê-se como um advogado que eventualmente está na política?

AMN – Vejo-me como advogado. A política não é interessante durante muito tempo no seu exercício diário. Passa-se rapidamente de bestial a besta e de besta a bestial. Estamos, e bem, sindicados diariamente, e um erro nosso é treslido como se fosse algo catastrófico, um acto corrupto.

 

Está a falar da politiquice? De um jogo do qual se fica refém.

AMN – Não. É o exercício diário da política que envolve esta circunstância. Gosto muito de viver, e vivo mais livre e mais feliz se não estiver a ser sindicado pelos outros. Prefiro não estar preocupado com a forma como as pessoas me vêem, me lêem.

 

É uma visão da política distante da utopia.

AMN – Tudo é elevado a uma questão de vida ou morte política. De limite entre o Estado barbárie e o Estado de justiça social. De conflito entre os que estão ao serviço dos mais fracos e os que estão ao serviço dos mais fortes. É uma herança de uma geração. Não tem a ver com o 25 de Abril, tem a ver com os que viveram o 25 de Abril.

 

Ana Catarina, concorda?

ACM – Devemos muito a quem lutou para que tivéssemos o 25 de Abril. Defendo uma democracia republicana onde as liberdades individuais são aceites, onde a crítica é aceite e onde a possibilidade da paz perpétua se faz no confronto de ideias. Mais do que há uns anos, as pessoas estão apáticas. Há uma crise de confiança em todos nós, nos agentes políticos. Mas não nos envergonhamos de ser políticos porque tudo é política, como dizia o Brecht.

AMN – Ainda estamos muito politizados em matérias onde podíamos encontrar consensos, e isto com culpas de parte a parte. Opções políticas legítimas, e que a esquerda defende noutros países, aqui são tratadas, porque vêm da direita, como se fossem opções dramáticas.

 

Apontemos grandes momentos e grandes figuras destes 40 anos. No fundo, peço que façam um mapa daquilo que enquadrou a vossa vida e determinou os vossos percursos.

AMN – As nacionalizações. A nacionalização é, à luz das experiências internacionais já conhecidas, um erro catastrófico. Nenhum dos países dos quais ambicionávamos aproximar-nos tinha economias nacionalizadas. Foi uma minoria que as impôs. É um erro que ainda hoje estamos a pagar. É verdade que Mário Soares teve um papel insubstituível – tanto é que as nacionalizações fossem revertidas.

ACM – Seguramente houve erros. Mas é bom perceber que partíamos de 48 anos de ditadura, de uma asfixia total. Os exilados políticos, os emigrantes, as famílias que todos os dias perdiam um membro na Guerra Colonial – tudo isto deixou marcas nos primeiros anos da instauração da democracia.

AMN – A necessidade de devolver à sociedade a liberdade política e cívica: estou inteiramente de acordo. Mas a revolução deveria permitir, além disto, uma liberalização da economia. Isso não sucedeu.

 

As nacionalizações – primeiro momento apontado por Adolfo Mesquita Nunes. Que momentos apontaria, Ana Catarina Mendes? Pensemos em mudanças políticas.

ACM – A primeira de todas é a impossibilidade de a revolução se tornar uma ditadura comunista. Soares permitiu que tivéssemos a democracia. O modelo que Cunhal queria para Portugal teria sido desastroso.

AMN – Atenção: não menosprezar o povo português.

ACM – E todos os esforços de trazer a democracia para Portugal teriam sido em vão. Lembro-me das lágrimas que se choraram na casa da minha mãe em 1989 com a queda do muro de Berlim, pelo horror do que se via do outro lado. Felizmente não tivemos um muro em Portugal. Esses anos do PREC são anos decisivos, e permitiram o espectro partidário que hoje temos.

AMN – Concordo com a Ana Catarina. Não sou daqueles que pretendem substituir as comemorações do 25 de Abril pelas do 25 de Novembro, mas sou dos que consideram que só no 25 de Novembro é que a revolução se reconciliou com a sociedade portuguesa. Outro momento decisivo: a entrada na CEE, em 1986.

 

É o que marca os anos 80?

ACM – É um marco histórico. Uma pessoa que também estimo muito, Medeiros Ferreira, teve um papel extraordinário nessa altura. Foi o fim do isolamento, é a fractura com o conceito “orgulhosamente sós”. É a possibilidade de circular, de ter mundo. Destacaria também, no início dos anos 80, a primeira discussão sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). É o primeiro grande confronto de esquerda e direita.

 

Houve uma mudança no papel das mulheres, das crianças, dos homens. O que é que destacariam ao nível dos costumes e da vida privada, na sociedade portuguesa, nos últimos 40 anos?

ACM – A igualdade de género. Os meus pais divorciaram-se tinha eu oito anos. Em Abrantes não havia pais divorciados. Há 30 e tal anos isto era um estigma e deixou de ser. A minha avó estava em casa. A minha mãe e a minha tia já fizeram a sua vida, os seus cursos. Hoje, a emancipação feminina é um dado adquirido. Outras mudanças significativas no domínio das liberdades individuais que imprimimos na sociedade portuguesa nos últimos dez, 15 anos: as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo a possibilidade das uniões de facto; a questão da IVG e da liberdade de decidir; o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

 

O que é que destacaria na sociedade portuguesa como significativamente diferente?

AMN – Sou menos optimista relativamente ao poder da lei do que a Ana Catarina.

ACM – Nem estava a pensar na perspectiva da lei. As mentalidades foram mudando. Em relação à IVG, a discussão faz-se no início dos anos 80, acalorada, dura e predadora para os que defendiam a despenalização, e só em 2007 é que conseguimos ter uma lei de despenalização.

 

Primeiro mudaram as mentalidades e depois a lei?

ACM – Demorámos muito tempo, porque entretanto morreu muita gente por causa do aborto clandestino. Mas foi a mudança de mentalidades que determinou o referendo e consequentemente a lei.

AMN – Durante décadas utilizou-se o Estado para propagar uma visão maioritária de família, daquilo que deviam ser os valores em sociedade. Se abrimos espaço, temos de o fazer para todo o tipo de noções, e não impor um modelo de família. Não queremos trocar o modelo de família conservador (o que quer que isso queira dizer), e dizer que o valor certo é outro. Temos que permitir que na sociedade portuguesa convivam vários tipos de vivências desde que não prejudiquem terceiros.

 

Quais são os grandes protagonistas destes 40 anos?, quem são aqueles que vão figurar nos livros de História?

AMN – A Ana Catarina vai dizer o Mário Soares e eu concordo [risos].

ACM – É uma figura incontornável. Álvaro Cunhal foi um vencido, mas tem o seu papel, também. Estávamos a falar da despenalização da IVG na alteração dos costumes: a Natália Correia. O Botequim tem um papel na história. A Maria de Lurdes Pintasilgo.

 

Por ser a primeira primeira-ministra mulher?

ACM – Sim, e isso significa também uma mudança na sociedade.

 

Está a evitar dizer Cavaco Silva?

ACM – Fui e sou muito crítica de Cavaco Silva presidente da República. E fui extremamente crítica de Cavaco Silva primeiro-ministro. Nos momentos em que podíamos ter tomado opções, também económicas, com o novo mundo da Europa, o caminho escolhido por Cavaco Silva foi todo ele errado. Não sei se estou a evitar [apontá-lo], mas não o vejo como protagonista dos 40 anos da democracia. Os discursos do 25 de Abril de Cavaco Silva são arrepiantes do ponto de visto do que podia ser, e devia ser, a consolidação da democracia.

Mas não evito dizer o nome de António Guterres. E de um conjunto de ministros do seu Governo que imprimiram transformações importantes. José Sócrates, enquanto ministro do Ambiente, foi um desses protagonistas.

 

Sabe que Sócrates não vai figurar nos livros de História enquanto ministro do Ambiente.

ACM – Cavaco Silva é uma figura que me deixa inquieta. Representa sempre cinzentismo.

AMN – Há figuras nos últimos 40 anos que são muito importantes, mas já o eram antes do 25 de Abril. A Agustina, que retrata uma certa forma de Portugal, e que admiro muito; é a mesma antes e depois da revolução. No pós-revolução há duas personalidades e uma instituição que foram essenciais. Marcelo Caetano, Mário Soares e a Igreja Católica.

 

Porquê essa escolha?

AMN – A revolução precisava de uma paz social que permitisse uma revolução sem sangue. A percepção que Mário Soares teve, que a Igreja Católica teve e que Marcelo Caetano teve permitiram criar a minoria silenciosa que vai ser vencedora no 25 de Novembro. Mário Soares percebeu que a Igreja Católica, que tinha sido a argamassa do estado novo, tinha, de certa forma, de ser a argamassa da nova ordem. E temos muitos católicos progressistas no Partido Socialista e no PSD. Isto foi importante para permitir, apesar dos delírios do PREC, a paz e a aproximação à Europa.

 

Como justifica Marcelo Caetano entre os três que referiu?

AMN – Pela forma como saiu. Outros nomes: Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.

 

Nomeia-os por serem de direita?

AMN – Não. O modo como morreram determinou a sua presença nos 40 anos da nossa história. [Nomeio-os] por aquilo que uma certa sociedade portuguesa, e foi muita, projectou neles. E porque criaram a verdadeira alternância democrática. Até lá só o PS é que podia ganhar as eleições.

 

Sá Carneiro e Amaro da Costa representavam uma direita moderada, poucos anos depois da revolução que pôs fim à ditadura.

AMN – Era muito importante à sociedade portuguesa sentir que era possível alternar entre dois projectos políticos que não iriam pôr em causa o adquirido da revolução. E quando foi possível ter governos maioritários do PSD e do CDS, e a revolução não voltou para trás, isso foi também importante para a consolidação do processo democrático. Claro que a sua morte abrupta agiganta esta relevância porque nos permite projectar o que queremos neles.

Desde que entrámos na União Europeia, nenhum governante marcou, por muito boa que tenha sido a sua acção, [os livros de História].

 

Está a dizer, em resumo, que o protagonista político é a Europa, mais do que os políticos que integraram os nossos governos?

AMN – A partir do momento em que entrámos na União Europeia, que entrámos numa certa estabilidade – apesar de tudo com opções ideológicas diferentes e polémicas –, o consenso europeu e o consenso de um certo modelo económico e de respeito pela iniciativa privada, fez com que todos os governos tenham [governado] sem uma ruptura que nos fizesse dizer: “Aquela pessoa vai ficar na História porque a partir dela fez-se alguma coisa”.

ACM – Não concordo com o papel da Igreja Católica [nestes 40 anos]. Não acho que tenha sido determinante. E se é verdade que depois da entrada na União Europeia esta clivagem [política] se foi esbatendo, não é menos verdade que o fim da era cavaquista, em 1995, é uma marca muito ideológica. A marca que Guterres deixa é uma marca social que não ficou vincada nos anos de Cavaco Silva.

 

Prometeu-se tanto, fez-se tanto. Evidentemente muito ficou por fazer e muito do que foi feito não foi bem feito. É preciso meter mãos à obra em relação a quê?

AMN – Não é possível comparar as condições em que vivemos hoje com as condições em que vivíamos antes do 25 de Abril. Diria que o maior desafio que temos é o de criar condições para que o nosso contexto de nascimento não seja tão determinante nas nossas hipóteses de futuro. Não temos instrumentos suficientes nem criámos um modelo político, social, cultural, de integração, que permita sair das limitações do nosso contexto.

 

Está a dizer que não somos meritocráticos e que temos que passar a ser.

AMN – E não só. Se olharmos para o tecido social português e se olharmos para o tecido político, não encontramos diversidade nenhuma. Não encontramos diversidade religiosa, étnica. Com vagas sucessivas de imigração continuamos a ter nas nossas magistraturas, no nosso parlamento, no nosso Governo, nos nossos escritórios de advogados portugueses, brancos. Ainda não criámos um ambiente propício para arriscar. Esse é um fracasso.

ACM – Há uma degradação da classe média que foi sendo construída ao longo destes 40 anos. Há um desinvestimento, que é hipotecador da qualidade do país nos próximos anos, na educação. Há uma apatia muito grande. Não apatia política, mas partidária. Há uma desconfiança nas instituições, nos protagonistas. Estamos a falhar na explicação do sentido da política.

 

Isso é perigoso.

ACM – É. Não estamos a conseguir que as pessoas encontrem no poder político a firmeza para combater este ciclo. Isto leva a sentimentos de nacionalismo e de individualismo que podem fechar a democracia que queremos construir há 40 anos.

AMN – Nada tenho contra o individualismo. Recentemente Francisco Assis escreveu no Público sobre o facto de não sabermos dignificar a democracia. Estamos a dar palco...

ACM – A quem não acredita nela!

AMN – E a quem faz do ataque à política um modo de vida. Um modo de vida fácil e de aplauso fácil. Os agentes políticos (e isto não tem a ver só com partidos, tem a ver com as nossas instituições) não têm sabido lidar com esta questão.

 

Têm um herói? Todos precisamos de heróis e os grandes momentos da história são quase sempre inspirados por alguém, por personagens, mitos. Às vezes, pessoas que temos ao lado.

AMN – O meu avô paterno. Mas não explico.

ACM – Penso sempre numa figura porque nele homenageio os anónimos todos que tornaram possível a democracia: o meu avô materno. Não o coloco como herói, não gosto muito dessa expressão, mas é uma referência.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014