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Anabela Mota Ribeiro

Fernando Rosas

15.04.14

Fernando Rosas, o historiador, escreveu um livro para compreender como é que o regime ditatorial durou, e durou, e durou. O professor catedrático estudou os anos 30 e inquieta-se com a eventual ruína da Europa, com o retrocesso civilizacional que tal representaria. O político, fundador do Bloco de Esquerda e membro da mesa nacional, preconiza uma coligação das esquerdas para enfrentar a situação concreta que o país atravessa. E diz que o projecto não é idílico.

É um europeísta de esquerda. Não esperava ver tantos direitos adquiridos na revolução de Abril a serem ameaçados. Não tem dúvida de que o Governo tem os dias contados. Algo monumental está para acontecer? O que será, que será (que anda nas cabeças, anda nas bocas...)?

 

O país que hoje temos ainda tem uma herança muito vincada dos 48 anos de ditadura e da marca que Salazar deixou?

Acho que tem. Sobretudo ao nível da cultura e da mentalidade. Assim como deixaram uma marca poderosíssima os três séculos de Inquisição. Meio século do século XX português viveu sob censura, todos os dias. Isso não pode não deixar marcas no comportamento. Uma das marcas mais duradouras foi a do medo de intervir. O medo de tomar posição, de ter uma opinião.

 

Medo de quê? Consegue tornar mais palpável essa coisa que é difícil de definir?

É a intimidação. A atitude padrão das pessoas, perante uma situação complicada, é: “O melhor é estar calado”. A indignação, o protesto são frequentemente substituídos por uma atitude de prudência. É uma coisa que vem de um medo antigo. Antigo e anterior ao próprio regime e que o Estado Novo acentuou. O Estado Novo actuava a dois níveis de violência. Uma, a preventiva, é a mais eficaz de todas.

 

Pode especificar o que isso é?

A violência preventiva é a que organiza a intimidação. As pessoas sabem que estão a ser observadas e vigiadas. Sabem que há uma censura à imprensa. Sabem que a correspondência é interrompida. Sabem que pode haver escutas telefónicas. Sabem que nos sítios onde trabalham ou convivem há informadores da polícia política. Ou seja, o melhor é não se exporem. Como diziam na altura, a minha política é o trabalho.

Isto é organizado por órgãos do Estado que inculcam esta intimidação. Se tem uma organização como a Mocidade Portuguesa, masculina, que, desde os bancos da escola, padroniza comportamentos; se tem uma Obra das Mães pela Educação Nacional que tem como função substituir os defeitos e as deficiências da família; se tem uma Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, que é uma organização de controlo dos lazeres, de todos os lazeres (seja uma excursão para ver as vistas, seja um campeonato de pingue-pongue, seja um baile), percebe que há uma organização totalizante.

 

Os exemplos que deu representam também uma intromissão permanente no espaço privado, introduzindo o Estado nesse espaço.

Nos interstícios da privacidade, sem dúvida. O Estado Novo arrogava-se o direito de substituir a família porque entendia que a família estava doente. O facto de a maioria da população não concordar com o regime era indiferente.

 

Porquê? É difícil compreender.

Porque o critério de legitimidade não era democrático. Recusavam a herança da Revolução Francesa – um homem, um voto, conselho de soberania popular, uma soberania que legitimava os órgãos do Estado. O conceito de legitimidade que preside aos regimes de tipo fascista, de tipo autoritário, anti-democrático, como estes, é completamente diferente. Há a ideia de que uma minoria conhece o que interessa ao país. E uma maioria obedece àquilo que os outros definem como o interesse nacional. “Manda quem pode, obedece quem deve.” [frase de Salazar] Se a maioria do país está doente, contaminado pela doença do liberalismo, do bolchevismo, da insânia, a minoria, que é detentora da verdade, tem obrigação de partir em cruzada. Tem obrigação de curar o país mesmo contra o país.

 

Mesmo que o argumento tenha sido usado, a marca bolchevique não foi avassaladora.

Em Portugal não foi. Mas era um argumento retórico. Até à greve geral de 34 (o regime vem de 33, Salazar de 32), o anarco-sindicalismo é a ideologia mais pesante no movimento operário. O comunismo tem um aparecimento tardio em Portugal. O Partido Comunista é fundado em 21 e demora uns anos a [consolidar-se].

 

Também é verdade que o PC encarnou, numa segunda fase, a ideia de resistência e de oposição. Ser resistente era ser comunista.

Encarnou. Até ao princípio da guerra [Segunda Guerra], a resistência em Portugal foi dominada pelo reviralhismo, pelo republicanismo que pegou em armas contra a ditadura. Essa é a força dominante numa primeira fase, com um PC que tem dificuldade em bolchevizar-se (de acordo com os padrões da Terceira Internacional). Os comunistas tornam-se uma força hegemónica com a reorganização e refundação do partido. E aí aparece a figura do Álvaro Cunhal. Em 1941, 42 surge com uma nova geração de intelectuais e activistas do operariado que vai reorganizar o PC.

 

Retomemos a questão de abertura, que vai dar umbilicalmente a outra: se a marca do salazarismo está muito entranhada, como compreender isso quando passam 39 anos sobre a revolução?

[A marca] fica porque as coisas que respeitam às mentalidades são de longa duração. As coisas que respeitam aos medos antigos, ainda por cima numa sociedade que permanece muito estratificada socialmente, são de longa duração. A nossa sociedade é uma sociedade com diferenças sociais grandes.

 

A escola não aboliu as grandes diferenças? Pelo menos, estreitou os caminhos entre as classes sociais.

Atenuou. A democracia em geral, e a escola em particular, contribuíram para um processo de dinâmica social ascendente que não tinha precedentes em Portugal. Entendamo-nos: há 50 anos era impensável que um bancário ou empregado de escritório pudesse ser presidente da câmara. Foi a escola e a democracia que tornaram isso possível. A escola pública – bem como a saúde pública – é um grande êxito da revolução.

A crise veio [que atravessamos veio] acentuar as diferenças sociais, outra vez. O insucesso da economia teve mais força. O que é facto é que as diferenças sociais em Portugal são das mais acentuadas da Europa comunitária.

 

A realidade anda mais depressa que as mentalidades...

As mentalidades arrastam-se. Apesar de a revolução de Abril ter sido um sobressalto (um susto para uns, uma perspectiva libertadora para outros), nestes períodos pesados, em que a ameaça do desemprego se torna a instalar, em que as leis laborais permitem despedir quando for preciso, o medo regressa. O medo de ficar sem emprego, de não poder pagar a escola dos filhos, de não ter dinheiro para a renda de casa. Medos ancestrais que regressam sabe-se lá de onde. Da memória oculta dos tempos.  

 

Medos que estão ligados à sobrevivência?

Exacto. E vêm ao de cima os velhos reflexos. O: “A ver se me torno invisível para o patrão não se lembrar que eu existo, o Estado não se lembrar que eu existo. A ver se me safo”.

 

Ao mesmo tempo há nisso uma falta de rasgo. Não estou a dizer que haja condições para ele. As pessoas têm pouco a perder (o quadro que descreve é o da sobrevivência, ou pouco mais do que isso), e não ousam perder esse pouco que têm.

Acho que tem razão. Mas as pessoas que têm muito pouco agarram-se desesperadamente à ilha de sobrevivência que têm. Agarram-se ao pequeno estatuto que têm. Sabem que se perderem isso ficam ainda pior. Isto é uma situação onde se misturam os surtos de revolta e o peso da submissão. O que a sociedade portuguesa não desenvolveu foi uma cultura de defesa sustentada dos direitos adquiridos.

 

Há dois anos atrás essa frase surgiria incompreensível.

Os direitos não estavam ameaçados. Em França, há uns anos, quando começaram a atacar o Estado Social, as manifestações e as greves derrubaram o governo de direita que iniciou essa política. Em França existe uma sociedade com uma profunda consciência da intocabilidade dos direitos que se adquiriram, e que reage fortissimamente ao ataque a esses direitos. Na nossa sociedade, a consciência da intocabilidade desses direitos é menor. Primeiro porque eles são muito recentes. Trinta anos não é nada, não é? Mesmo assim, há alguns em que as pessoas não deixam tocar.

 

Quais?

A liberdade de expressão. A liberdade de associação. O direito à greve.

Outra coisa: a História ensina que os momentos de crise são sempre maus para a luta social e política. É paradoxal, mas é verdade. Porque as pessoas têm medo.

 

Até ao rebentamento. Até à revolução. Há um crescendo de medo e revolta surda que cresce até ao instante em que rebenta com o jugo.

Quando há revolução. Os movimentos revolucionários não são mecanicamente fruto de situações de grande crise social. O Maio de 68 deu-se num período de crescimento em França. A própria revolução de Abril deu-se no fim de um período de acelerado crescimento do país. As pessoas são mais ousadas quando o risco é menor. Nas situações de depressão e de grande desemprego a disponibilidade para lutar é menor. Na última greve geral, as duas centrais sindicais disseram que para muitos trabalhadores o prejuízo de perder um dia de trabalho é enorme. E os precários têm receio de entrar numa greve ou movimentação social porque perdem o emprego a seguir – não têm garantias. A instabilidade de tudo o que diz respeito ao trabalho, mesmo que haja cansaço e revolta surda, torna muito difícil a mobilização.

 

Em França, quando aconteceram essas manifestações tão expressivas, já se falava há muito do fim inexorável do Estado Social. Que também parecia um direito adquirido e que é uma marca identitária da Europa.

Marca identitária da Europa: acho absolutamente que é isso.    

 

Tudo está então em desmoronamento?

Acho que há uma segunda crise histórica dos sistemas demo-liberais do Ocidente. O mundo que conquistámos no pós-guerra está em crise. Em crise político-institucional, de legitimidade das instituições (uma grande parte dos cidadãos não se reconhece no sistema político-partidário que tem). Crise económica e social (o capitalismo está a viver a pior crise da sua história desde 29). E crise de valores, como a esperança, o optimismo.

 

Interrogamo-nos: “Que sociedade somos nós e para onde vamos?”.

Conhecer bem a primeira crise dos sistemas liberais do Ocidente é muito importante. Sabemos o aconteceu. Os fascismos. A guerra. A primeira crise terminou em tragédia. A segunda crise: não sabemos onde é que vai parar. O que é que vai acontecer ao mundo ocidental que herdámos da Segunda Guerra? Neste momento temos o campo dos que acreditam que vai ser possível preservar os direitos conquistados, o Estado Social, sem que isso represente uma perspectiva revolucionária; e o campo dos que entendem que a lógica do desenvolvimento do capitalismo implica perder isso tudo – o que é um verdadeiro regresso civilizacional.

 

Acha que as pessoas aceitam facilmente um hipotético retrocesso...

Estão a resistir. Não sou pessimista. Tenho é a nostalgia de chegar à idade a que cheguei (67) e ver que aquilo que pensávamos que eram conquistas irreversíveis estão ameaçadas. E se se mexe nos fundamentos da democracia social a seguir vem a democracia política. Sobretudo num processo de supranacionalização. Estão a destruir o Estado nacional e a construir instituições supranacionais sem controle democrático. Assistimos a coisas extraordinárias: a uma Troika que ninguém conhece e que manda no Governo português.

 

Ainda esta semana Angela Merkel dizia que os Estados têm de estar preparados para ceder em questões de soberania.

O que ela diz é que os Estados devem estar preparados para isto: a Alemanha é que manda. O federalismo alemão significa pôr a Europa sob tutela política e económica da Alemanha. É esse tipo de federalismo que é preciso, absolutamente, recusar. Há outro tipo de entendimento interestadual (que tem aspectos federalistas no seu funcionamento, mas que não significa a anulação dos Estados) que é o único caminho para a Europa fazer face a esta crise.

 

Defende a existência de Eurobons?

A Europa tem de ter Eurobonds. O BCE não pode preocupar-se só com o nível da inflação. Tem de preocupar-se com a ajuda directa às economias. A Europa tem de ter um plano social comum.

Se quiser, há um europeísmo de esquerda e um europeísmo de direita. Eu sou um europeísta de esquerda e acho que há um outro caminho para a Europa, que não é este [que tem sido seguido]. Este é o caminho da hegemonia alemã. Terceira vez... Foi a primeira, perderam a guerra. Foi a segunda, perderam a guerra. A terceira, não se sabe o que vai acontecer.

 

Como é que observa o facto de ser a “terceira vez”? E como é que a Alemanha se reconstrói tão rapidamente na segunda metade do século XX?

A Alemanha reconstrói-se fazendo exactamente o contrário do que agora quer fazer. No pós-guerra, a Alemanha Federal foi viabilizada por uma injecção maciça de capital dos EUA e de outros países e pelo perdão da dívida. Nunca pagou as dívidas de guerra, nomeadamente aos países que ocupou. A Grécia, que agora reclama uma indemnização da Alemanha, tem razão.

 

Os eleitores de Angela Merkel neste momento consideram que não têm de sustentar a dívida dos país que viveram acima das suas possibilidades.

É um puro discurso xenófobo. Não é verdade que estejam a sustentar coisa nenhum. A dívida é um instrumento financeiro de subjugação dos povos. As dívidas são exponencialmente agravadas pela especulação financeira, por juros abusivos. Países periféricos como Portugal, nunca mais saem disto. Qual é a resposta à dívida? É um programa de intervenção que destrói a economia do país. Se destrói a economia do país, ele não tem nenhuma possibilidade de pagar a dívida. Portanto é uma dívida impagável.

 

Como é que se sai disto? Ou renegociamos a dívida (mais tempo, mais tempo, mais tempo) ou beneficiamos de um perdão (como aconteceu noutros momentos da História noutros países)?

Perdão da dívida. Perdão de uma parte da dívida, claro. E o resto, renegociar prazos e juros. Prazos que permitam uma consolidação da dívida a longo prazo e com juros que permitam à economia crescer. Era bom que isto fosse feito no quadro da União Europeia. Senão, vai empurrar vários países para fora do sistema euro.

 

Grécia, Portugal, Chipre, Irlanda, Espanha... os países que estão em apuros.  

Esse risco existe. Ou a união monetária serve para integrar e ajudar países em dificuldades (como acontece com os estados federados e o banco federal nos EUA) ou, se não funciona dessa maneira, se funciona como elemento de exclusão e de perpetuação da distância que há entre eles, uma parte desses países fica fora do Euro. Significa abandonar a moeda europeia, recusar unilateralmente pagar as dívidas, entrar num sistema de ruptura.

 

Fazer um pouco o que a Islândia fez, quando se recusou a pagar a dívida?

A Islândia fez. E não se está a sair mal. Não estava no Euro. Tinha essa vantagem. Mas declarou que havia dívidas que não assumia porque não tinha sido o Estado a fazê-las. Tinham sido os bancos. Bancos privados. Renegociou a dívida unilateralmente.

Para nós, adoptar essa posição significa abandonar o Euro. O que tem um preço social pesado. Não há que iludir isso. Vejo muita gente a defender a saída do Euro, com fundamento, mas subestimando o preço social que sair do Euro representa (sobretudo nos rendimentos das pessoas).

 

Retomemos um ponto que já aflorou: o abismo que há entre a classe política e a população. Ninguém se revê em ninguém. Não acontece só em Portugal, mas acontece muito vivamente aqui.

Tenho alguma dificuldade em aceitar esse conceito de “classe política”. Há políticos bons, há políticos maus. Há políticos de esquerda, há políticos de direita. E há políticos bons e políticos maus na esquerda e na direita. A classe política como um todo é uma classificação que me inquieta.

 

É assim que ela é olhada. E recusada.

Eu sei. Mas inquieta-me. Estudei as vésperas do movimento militar do 28 de Maio de 26, onde esse discurso de condenação da política e dos políticos imperou largamente. A alternativa então foi: “Afastamos os políticos e chamamos os técnicos”. O técnico que se chamou para tomar conta do poder e salvar o país foi Salazar, que ficou cá meio século. Esse discurso de recusa global da política, dos políticos, dos partidos e do Parlamento é um discurso protofascista. É um discurso a caminho da ditadura. O ordenado que você ganha, o preço dos transportes, da gasolina, do pão: tudo é política. O debate que é preciso fazer é em torno das boas e das más políticas, e não uma condenação global das políticas e dos políticos.

Por outro lado, a distância entre os cidadãos e os partidos tem alguma razão de ser nessa espécie de neo-rotativismo que se instalou nas democracias do Ocidente.

 

Neo-rotativismo?

Entra um, entra outro, sai, roda. Veja Portugal. Há dois partidos que se alternam no poder, aparentemente sem alternativa, e, vendo bem, a diferença entre uns e outros não é grande. Na oposição prometem muita coisa, e no poder repetem sensivelmente as mesmas políticas. Esse rotativismo é responsável pela gestão política do país desde os governos constitucionais, desde 1976, e não deu bons resultados.

 

As pessoas têm medo dos partidos que estão nas franjas. Do seu radicalismo. Quer à esquerda, quer à direita.

As pessoas escolhem. O que acho é que tem que se tirar conclusões disto. A crise actual, a meu ver, não tem soluções nem ao centro nem à direita. Não há uma austeridade benigna. Ou há uma política de austeridade (e num país periférico como Portugal o espaço que sobra para o desenvolvimento económico não é nenhum...

 

Está a dizer que austeridade e desenvolvimento económico não são compagináveis?

Com austeridade, não há desenvolvimento económico. Acaba com a procura interna, com o investimento. A exportação não é um factor, só por si, de arranque económico do país. Noventa por cento das empresas que há em Portugal são pequenas e médias empresas, e quase todas voltadas para o mercado interno); ou renegoceia a dívida no quadro de um programa de desenvolvimento económico.

[As opções são entre] um desenvolvimento económico que permita pagar a dívida e uma austeridade que impede o desenvolvimento económico. Estas soluções são soluções à esquerda. E são soluções que põem à esquerda um desafio muito grande: entender-se para fazer esse programa.

 

A esquerda está especialmente desacreditada porque foi ela que nos últimos anos, com o PS, deteve o poder?

A governação foi partilhada pelo PS e pelo PSD. Os partidos socialistas na Europa têm uma responsabilidade enorme: foram eles que abriram o caminho às políticas neoliberais. Quando Thatcher e Reagan personificaram na governação o exercício dessa nova estratégia (uma herança destrutiva de tudo o que era a herança do pós-guerra), o que é que vimos nos partidos socialistas? Não se levantaram contra elas. Tony Blair foi uma versão da senhora Thatcher de calças.

 

É a esquerda que tem de se reinventar? A esquerda que esteve no poder.

A esquerda da governação, ou se alia à esquerda que está à esquerda dela, ou vai repetir o que estes estão a fazer com pequenas variantes.

 

Com estes líderes, António José Seguro, João Semedo e Catarina Martins, Jerónimo de Sousa... Estava a considerar o PC?

Quando falo da esquerda, falo da esquerda no seu conjunto.

 

Acha que há alguma possibilidade de entendimento?

Acho que as circunstâncias vão exigir esse entendimento. Ou nós nos entendemos e ganhamos força social e política para impor essa alternativa ou é o afundanço sinistro. Fico arrepiado quando vejo António José Seguro falar de uma aliança com democratas-cristãos, social-democratas, humanistas (humanistas?). O que é isto como política? É uma austeridade boazinha? Não é este o modelo de que o país precisa.

 

Seguro pensa o PS como um partido de poder. O poder não está neste momento com o Bloco de Esquerda ou com o PC.

Não está. Um governo de entendimento à esquerda tem de sair de eleições. Tem de ter uma forte legitimidade saída das urnas. O que vejo? Que o PS meteu a viola no saco em termos de eleições.

 

Foram previsivelmente derrotados na moção de censura.

Mas a reclamação das eleições pode continuar a ser feita. Deve continuar a ser feita. Não há outra maneira de este Governo ser derrubado. Alguém anda a sonhar que Cavaco Silva vai retirar o apoio a este Governo, e vai nomear um Governo qualquer de responsabilidade presidencial com Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite? Não acho de todo provável.  

 

Voltamos à questão: as pessoas não se revêem nestes partidos, nestes políticos. Basta olhar para a manifestação de 3 de Março para perceber que a atitude é apartidária.

Sim e não. Os partidos também lá estavam (pelo menos alguns). O que houve foi uma recusa muito clara das políticas partidárias que têm sido responsáveis por esta crise. E [manifestou-se] uma certa desconfiança do sistema político em geral, que não é, apesar de tudo, tão grande como é em Espanha. Mas a solução não é acabar com os partidos. Há um discurso contra os partidos que é um discurso contra o pluralismo político e a democracia política. A solução em democracia é esta: se as pessoas entendem que os partidos que as representam estão esgotados, tentam criar outros. O Bloco de Esquerda é fruto disso.

 

E os movimentos à margem dos partidos?

Os movimentos cívicos têm uma capacidade de intervenção política relativamente limitada. A menos que – e acho que é uma boa política – se aliem em sistemas de coligação com partidos políticos. Uma grande coligação entre partidos políticos de esquerda e associações representativas de movimentos sociais seria uma excelente rede de oposição e de alternativa.

 

As sondagens deixam perceber como as pessoas não confiam nem se revêem nestes líderes. Não passa muito por aqui?

Acho que é uma questão de política. Claro que os líderes têm a sua importância carismática, mas o que define um partido é a atitude que ele tem perante a realidade. O PS com esta direcção tem um estilo diferente da que tinha no tempo do Eng. Sócrates. Mas a política não me parece essencialmente distinta.

Gostaria de ver um PS, fosse com que líder fosse, optar por uma preferência de aliança à esquerda. A solução do país está à esquerda, está na coligação das esquerdas. Uma coligação em pé de igualdade, e não: “Quem manda aqui sou eu porque sou a vanguarda da classe operária”, nem: “Quem manda aqui sou eu porque sou o partidão”. Todos temos um papel a desempenhar nisto.

 

Parece uma resposta idílica.

Não é idílica.

 

Encontramo-nos no dia 23 de Abril. Presume que no 25 de Abril o tradicional descer da Avenida da Liberdade (que celebra a revolução) vai ser mais expressivo do que tem sido em anos anteriores?

Acho que sim. Acho que vai ser uma manifestação mais politizada, forte, de repúdio. Vai ser uma acção contra o Governo. Massiva. Assim como o 1 de Maio. Não vejo outro caminho que não seja o da mobilização social e política.

 

Há 39 anos acreditava-se no futuro. Quando é que deixou de acreditar?

Nunca deixei de acreditar no futuro.

 

De certeza que não imaginava que a erosão do sistema fosse tão acelerada.

O que há 40, 35, 30 anos não pensávamos era o que núcleo duro das conquistas sociais da revolução pudesse ser posto em causa como está a acontecer. Achávamos que era um núcleo civilizacional. O direito a ter férias, à contratação colectiva. A realidade ultrapassou-nos. A realidade da crise e a nova estratégia de acumulação do capitalismo. Um capital financeiro em lugar do capital produtivo, e um ataque aos rendimentos do trabalho. Na Europa, no mundo, isto está a processar-se a um nível que era impensável.

A estratégia de destruir as conquistas sociais é muito mais smooth do que foi nos anos 30. Não se trata de fechar os parlamentos. Trata-se de esvaziá-los. Os parlamentos nasceram para aprovar orçamentos. Agora os orçamentos são previamente visados por uma comissão de tecnocratas que ninguém elegeu. De repente quem manda é a Troika, é a senhora Merkel. A soberania nacional sobre coisas fundamentais já foi.

 

Qual é a grande diferença em relação à crise dos anos 30?

O capital consegue atacar as conquistas sociais sem, por enquanto, mexer na democracia política. Não tenha dúvida de que isso vem a seguir.

 

Como é que não é pessimista, apesar do quadro que descreve?

O quadro é o do meu adversário. A solução para isto é lutar. É criar à esquerda uma alternativa. O que dizia que era idílico vai acabar por realizar-se. O que é olhado sobranceiramente como um discurso lunático, é o que as circunstâncias vão exigir.

 

Quando escreveu o livro Salazar e o Poder foi uma forma de sistematizar, sob este ângulo, muitos dos assuntos que vem investigando. Pensou em paralelos que era possível estabelecer entre o que se viveu então e os nossos dias?

Esses paralelos existem sempre na nossa cabeça. O meu livro correspondia a uma interrogação antiga, que foi a que me fez estudar História Contemporânea: tentar perceber como é que um regime como o salazarista se pôde aguentar no poder durante meio século. Foi uma questão que perturbou muito a minha geração – como é que estes gajos se aguentam? Esta é uma questão que se põe na actualidade.

 

E que se traduz em: como é que este Governo não cai? É isso?

Este Governo vai cair. Dentro de pouco tempo. Não sei como é que vai cair. Mas vai cair. Um Governo que perdeu legitimidade real, um governo que tem a opinião pública contra ele de forma sustentada e durável, nunca se aguenta. É uma questão de tempo. Foi o que aconteceu com o Governo de Santana Lopes. Tinha a oposição do país e o presidente da República, que o empossou, passados uns meses, dissolveu-o.

 

As circunstâncias são outras. E este Governo tem dois anos de exercício.

É um Governo sustentado pela Troika. As últimas sondagens falam em mais de 55% [dos inquiridos] que desejam que este Governo acabe. O que é difícil na opinião pública é encontrar quem o defenda. Não acredito que um Governo nesta situação de isolamento político se aguente. Tudo o que faz, faz mal. Cada cavadela, uma minhoca. É um cadáver adiado. O presidente da República segura-o enquanto pode.

 

Como vê a acção de Cavaco?

Acho que é o sustentáculo principal deste Governo.

 

Porquê? Cavaco e Passos correspondem a facções diferentes do PSD.        

Cavaco aparentemente tem críticas a fazer, mas acha que é o Governo que lhe merece confiança. Se não achasse, tinha tido todas as possibilidades para o mudar. Neste último episódio [chumbo do TC], o facto de ter aceite renovar a confiança política quando o Governo se dirigiu a Belém significa que (e estou de acordo com o Sócrates), em certo sentido, este Governo transformou-se num Governo presidencial. Claro que tem uma maioria no Parlamento, tem legitimidade formal. Não tem substantiva.

 

Como é que daqui a 39 anos um historiador vai olhar para este momento?

Estamos numa esquina da História. Estamos numa situação de crise, ainda não aguda, mas crescente dos sistemas demo-liberais do Ocidente. Temos uma UE, uma moeda comum, tudo isso ameaça ruir. Mas a ruína não é efectiva. Pode não se dar. A Europa pode sofrer um regresso civilizacional de um século por virtude de um triunfo mais ou menos pacífico das estratégias neoliberais. Pode entrar num período longo de sombra, de sombra e de atraso, de sombra e de pobreza, de autoritarismo disfarçado e de pobreza. Ou então a Europa do trabalho, da cultura, da política à esquerda encontra-se para se constituir como alternativa. Ou pode arrastar-se com soluções intermédias. Mas a crise já se conforma pouco com soluções intermédias. Estamos na véspera de alguma coisa importante. Não sei se viverei o tempo suficiente para o ver. Mas acho que o desenlace vai ser rápido.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013 

 

 

Sobre o Blog

12.04.14

Conheci pessoas extraordinárias. Ouvi as suas histórias, os seus caminhos, as escolhas. Achei que talvez valesse a pena sistematizar esses encontros (que resultaram em entrevistas), e reuni-los num sítio onde estivessem sempre disponíveis, nas versões integrais (que, no essencial, coincidem com as versões publicadas em papel).

Há anos (são mais de 15 e menos de 20) que escrevo para jornais e revistas. Mais do que tudo, fiz entrevistas. Faço perguntas porque quero saber as respostas. Também porque é mais fácil a um jornalista freelance exercitar esse músculo. Mas pode ser que isto seja apenas uma parte, e não a mais significativa, da verdade. Talvez faça sobretudo entrevistas porque gosto de conhecer as pessoas num cenário de um para um, concentrar-me nelas, em quem são, ouvir a narrativa que fazem de si próprias.

Frequentemente perguntam-me qual foi a pessoa que mais gostei de entrevistar. Se foi um privilégio entrevistar o Plácido Domingo, por exemplo. Gostaria de citar o cirurgião plástico Ivo Pitanguy para responder a essa questão. “Algumas me decepcionaram, outras me enriqueceram, tudo isso faz parte da vida. Umas foram pacientes, outras foram amigas, outras foram circunstanciais... Mas estou sempre preparado para encontrar outra pessoa.”

Pitanguy, como é sabido, operou “todo o mundo”. Mas disse-me que num momento de vulnerabilidade, não importa que a Clarice seja a Clarice Lispector. “Essas pessoas que você diz que poderiam ser importantes, quando estão dependendo, elas são tão dependentes quanto qualquer outra.” Todo mundo é, por instantes, um menino perdido numa noite escura. O importante é manter essa disponibilidade para o encontro. Com curiosidade. Sem preconceitos, sem juízos. Todos temos zonas de sombra e de glória. E estima e admiração não são sinónimos.

Relendo o que fiz, dou-me conta de que o trabalho é desigual. Mais do que o carácter heteróclito da amostra, sou eu que não sou a mesma – não olho e não pergunto da mesma maneira. Gosto de pensar que há uma identidade profissional que foi sendo construída, errando e acertando, à vista de todos, e que conto com a benevolência dos leitores para eventuais imprecisões e desnivelamentos.

Agradeço, desde já, a todos os jornais e revistas que manifestaram (e manifestam) interesse no meu trabalho, aos meus colegas fotógrafos (Augusto Brázio, Clara Azevedo, Miguel Baltazar) que me cedem as imagens para publicação neste blog. Agradeço aos que me lêem e, muito especialmente, aos entrevistados que me confiaram as suas histórias e as suas palavras. Sou uma pessoa enriquecida por causa destes encontros. O privilégio não é conhecer o Plácido Domingo. O privilégio é conhecer pessoas. E todas são extraordinárias à sua maneira.

 

No meu blog disponibilizo o meu arquivo. Grande parte dele é constituído por entrevistas, mas há também guias de viagem, perfis, reportagem. Sempre que possível, será a actualidade a suscitar a revisitação do arquivo. 

Haverá sempre uma identificação à primeira publicação, em papel. Infelizmente não anotei as datas exactas em que isso aconteceu, mas farei um esforço para situar a entrevista no calendário. Muitos desses trabalhos, do tempo do papel – parece que foi há uma eternidade, mas não foi – vão ficar disponíveis na net pela primeira vez.

Quando saem de cena (i.e., da home page), os conteúdos ficam instalados numa série de categorias, identificadas no menu. É uma tentativa de arrumar todos os textos e facilitar a identificação dos mesmos. Há uma caixa de pesquisa que vai dar a todo o lado, a todos os nomes. 

Dado que os conteúdos são muito específicos, e não pretendo dedicar-me ao comentário e ao registo diarístico que caracterizam grande parte dos blogs, decidi que o meu blog não vai ter espaço para comentários.

Em última instância, se alguém o quiser fazer, há um endereço de email onde se pode dirigir.

Até 14 de Maio de 2013, nunca tinha tido um blog ou estado nas redes sociais. Foi por acreditar que os testemunhos dos entrevistados são valiosos, e que nos ajudam a conhecer o país e alguns dos seus protagonistas das últimas décadas, que decidi partilhá-los, neste espaço.

 

 

Olga Roriz

11.04.14

Podia ter sido fotógrafa, pintora – diz ela. Todavia, sempre soube que seria bailarina. Desde muito jovem, desde aquela primeira professora que insistiu com os pais para que investissem no talento da menina. A família mudou-se de Viana do Castelo para Lisboa para dar seguimento ao projecto. Ela estudou e firmou-se como intérprete de excepção no panorama da dança em Portugal.

Em 2005 coincidem três aniversários: os seus 50 anos, os dez anos da sua companhia e os 30 anos de carreira. Um ano de comemorações e de produções constantes. Curtas-metragens realizadas por si e de exibição apontada para Agosto e Novembro (a primeira foi em Abril). E uma nova coreografia com um título cinematográfico: «Amor ao canto do bar vestido de negro», que deve estrear no Outono.

Olga Roriz é bailarina e coreógrafa. Fala do seu corpo como se fosse uma casa que ela conhece muito intimamente. O que lá se passa, os percursos e emoções, são uma parte do que podemos ver sobre o palco. 

 

Disse numa entrevista que «o amor é para ficar fora do palco». Contudo, uma das coisas que definem a sua dança é o movimento estar prenhe de sentimentos, de vísceras. Como é que exclui o amor?

A grande distinção, no meu trabalho, tem a ver com a paixão. A paixão é uma coisa descontínua, curta, forte, extrovertida, que implica os órgãos todos; não é só o coração, há um revolver dos intestinos… O amor está mais próximo do equilíbrio. O estado de felicidade é um bocado amorfo, improdutivo, não produz. O meu trabalho é desenvolvido com muito amor. Mas o que levo para o palco tem a ver com um lado conflituoso, com coisas e ideias que me perturbam. Há uma grande confusão entre a minha personalidade e aquilo que faço!

 

É aparentemente contraditório. Porque há uma grande tranquilidade no processo de construção e descoberta_ mesmo na sua voz, que é pausada e suave. E depois há uma agressividade, uma tensão que parece estar prestes a desabar, que é o que aparece nas suas coreografias.

Exactamente. A maior parte das pessoas que falam comigo dizem: «Ah, mas afinal é tão calma!». Estava à espera que eu agora lhe desse um murro?! É óbvio que é uma conjugação de tudo o que sou. Trabalho muito como um encenador, dirijo. Mas estive 18 anos na Gulbenkian onde trabalhava com o método mimético: fazia o movimento e os bailarinos interpretavam-no mais pelo lado de cópia. Neste momento, há um diálogo criativo muito maior, entre o improviso dos bailarinos e a minha direcção. Comecei com as mesmas características que tenho hoje, apesar de ter havido um percurso de desenvolvimento. Tem a ver com o meu próprio corpo.

 

Tem uma definição para corpo?

Corpo é invólucro deste cérebro e desta alma. Que tem características específicas. Anatómicas e orgânicas, tipo de musculatura, tipo de articulações, desenvolvimento ósseo. Como mulher, como ser humano, tenho tendência para fazer umas coisas. Sou uma mulher lenta, com peso, com um tronco exageradamente longo em relação às pernas; é um tronco que fala muito. Umas costas largas, curvas, em forma de concha, um pescoço longo com uma cabeça que flutua. Umas mãos muito expressivas, uns braços compridos, umas pernas e uns pés muito agarrados ao chão.

 

Faz uma descrição exacta do seu corpo.

Sim. É nos nossos limites, no encontrar o nosso limite, que devíamos trabalhar. Às vezes, ao tentar ultrapassar os limites, o que a pessoa está a fazer é a descurar aquilo que consegue fazer, e é aí que se deve desenvolver. Houve, pelo menos, duas pessoas, bastante cedo, na minha carreira, que me despertaram para este meu tronco, esta parte de cima das ancas, [para o modo] como isto tudo se move.

 

Há no seu corpo um lado térreo, as pernas, os pés, como um tronco firmado no chão, e há toda uma parte mais volátil, como se fosse a copa de uma árvore, onde o movimento é mais solto.

Sim. O facto de todos estes membros terem uma característica mais oval, arredondada, faz com que eu tenha muita facilidade (e aí está o limite) na contracção rápida. Uma das qualidades da minha movimentação, e por aí da minha coreografia, tem a ver com uma dinâmica. Essa dinâmica é muito precisa: são os contrapontos entre uma coisa muito suave e uma capacidade de contracção muito rápida, que dá essa tal agressividade.

 

Como é que se reconheceu assim?

Fiz um percurso de formação linear, não houve empurrões nem saltos para a frente – por isso é que ainda consigo dançar, toda esta musculatura foi bem construída… Quando conheci a técnica Graham, (da escola Martha Graham), que passa por um recolhimento ao chão, apercebi-me de que estava como um peixe na água. O meu corpo cedia muito facilmente a essa técnica. A minha relação com o chão foi, desde o início, de amor e paixão.

 

O que é que caracteriza essa relação com chão?

O desejo e a vontade e o gosto pela queda. Na queda há o prazer do precipício, o momento da verticalidade, o momento em que já não há recuo.

 

Não tem medo do impacto e do contacto com o chão?

Isso foi uma técnica que fui adquirindo e passando a outras pessoas. Vários bailarinos se lembram do primeiro ensaio que tiveram comigo, de, no dia a seguir, estarem cheios de nódoas negras, doridos... Porque não sabiam cair.

 

Falou de uma coisa muito importante: o reconhecimento que cada um faz de si, das suas características, do perímetro que tem para explorar.

É aí que sou diferente do coreógrafo que está ao meu lado, que tem características completamente diferentes, que teve outro percurso. Isto falando só na parte física, porque, depois, as nossas cabeças e as nossas vivências são outra coisa...

 

Entram em igual proporção?

Completamente. Mas a parte física é muito importante, porque podia pensar uma coisa e o meu corpo não estar ao meu serviço, digamos. Há uma osmose. Não sei qual é que começou primeiro, como é que se entenderam os dois, mas a minha cabeça e o meu corpo dialogam muito bem. Às vezes faço coisas e pergunto: «Mas como é que este corpo sabe isto?». Entraram em sintonia, ou sempre estiveram em sintonia. Se me perguntar quando é que comecei a dançar, não me lembro. Acho que sempre dancei.

 

Tem memórias recônditas de si a dançar?

Recordo-me de, quando ainda era muito miúda, arranjar a sala, fechar os estores, pegar numa cadeira, pôr uma luz, a música certa, estar a encenar qualquer coisa, que partia sempre de uma ideia.

 

A ideia funcionava como um enredo?

Pode ser uma espécie de diálogo simbólico... Por exemplo, uma improvisação sobre como é um corpo esvaziado de paixão, mas cheio de desejo, um corpo sozinho.

 

Como é que se lança para uma improvisação sobre este tema e como é que faz aqueles gestos todos?

Eu sei que isto é para escrever..., mas explico-lhe e talvez consiga transcrever. [fecha os olhos e o movimento passa a acompanhar aquilo que diz] Penso numa pessoa que me deixou e que eu desejava. Ele era deste tamanho. Eu gostava de lhe pegar no pescoço e de o trazer para mim, e de o embalar. Mas ele já não está cá, não existe nada agora. [Cessam os movimentos e volta a falar comigo] Eu posso realmente só fazer isto [os gestos], isto, isto. Que é nada!

 

Os seus movimentos nunca são esvaziados. Abstracção é uma palavra que nunca irá bem consigo. A sua base é o concreto.

Aliás, um dos problemas que enfrentei no início da minha carreira foi quando me pediam, (e insistiam) que fizesse dança pela dança, deixasse de ter aquelas ideiazinhas que tenho... Até que o Jorge Salavisa, que foi a pessoa que me incentivou e me fez crescer no Ballet Gulbenkian, se apercebeu de que por aí eu não ia. Escolher uma música e fazer uma coreografia para essa música, então, é o fim!

 

Portanto, os seus movimentos têm um enredo por trás e têm uma ambiência. Essa preocupação com a encenação, com o espectáculo total, é uma coisa muito antiga em si. Terá que ver com proximidade com a ópera? Estudou desde os oito anos no Teatro S. Carlos, pôde conviver desde muito cedo com a mais sintética das artes.

Eu vivia num conto de fadas. Não posso deixar de dizer que isso me influenciou, dos oito aos 14 anos só pode ter influenciado. Ainda por cima há um lado barroco. Numa festa de Verdi há uma mesa, há pratos, há cadeiras, há uma vivência das coisas no sentido real. Não transpus isto completamente para a minha obra, fi-lo de um modo mais depurado. As coisas aparecem sempre com um “porquê”. Aquela cadeira existe porque vai ser utilizada. Raramente usei um cenário pelo lado decorativo.

 

Tudo é funcional.

É uma coisa funcional, usada pelo bailarino como se fosse um outro corpo. Quando eu própria faço os cenários, tiro as coisas do lugar, transformo-as, passam a ser outras. No caso dos “Malmequeres” [peça “Não destruam os malmequeres”], um canteiro de malmequeres num jardim, não é exactamente o mesmo que um canteiro de malmequeres num palco... Essa vivência das óperas, do palco, com certeza que ficou. Foi utilizável, serviu-me, integrou o meu imaginário.

 

Os livros que lê, os filmes que vê, que peso têm na construção do seu imaginário? É um peso tão expressivo quanto o das óperas? As palavras estão muito presentes no seu trabalho, e desempenham uma função, não são simples adereços.

As minhas primeiras leituras nem sequer foram influenciadas pelos meus pais, apesar de eles lerem imenso. Comecei com o Nietzsche e Schopenhauer, novíssima. Ainda no outro dia encontrei o [Assim falava] “Zaratustra”, todo escritinho nas margens, com uma letra ainda diferente. Gosto de ensaios de filosofia, psicologia. Quase nunca leio romances. Ou então são histórias como as do [George] Pérec, que, em vez de falar do casal que está dentro da casa, fala da modificação da casa ao longo dos anos. Claro que depois há Kafka, Jean-Paul Sartre, Camus, Genet.

 

É aparentemente mais fácil coreografar histórias de amor: trata-se de encenar a vida como ela é. Mas como é que se encenam ideias? Como é que se dá corpo e tridimensionalidade às ideias?

É um trabalho que demora muito tempo. Agora demoro quatro a cinco meses a desenvolver um projecto. Mas, antes de o trabalhar em estúdio com os bailarinos, há uma pesquisa sobre o tema. Por exemplo, «Propriedade Privada» era sobre cinema, «Propriedade Pública» era sobre sem-abrigo. Os bailarinos estiveram a dormir na rua para perceber o que era. Eu estive a observar, observei imenso. O próximo projecto, que estreia em Outubro, chama-se «O amor ao canto do bar vestido de negro».

 

Esse título sugere um quadro do Hopper...

O que é que é este «Amor ao canto do bar vestido de negro» sem ser “aquele” amor ao canto do bar vestido de negro? Ou seja, desligado das minhas vivências. Foi uma luta de noites e noites, eu a escrever. Até que um dia, um minuto, um segundo as imagens começaram a aparecer desapegadas das minhas memórias. De repente, deixou de ser “aquele” casal e passou a ser um grupo de homens e mulheres e a relação de cada um deles com o amor. O que é que é o amor?, este encontro, este desencontro, esta sensação, este ar que passa de repente? Começo a construir cenas, três homens, três ventoinhas, e uma mulher de cabelos ao vento.

 

A história que é contada, através do movimento do corpo e das palavras que são ditas, é a sua história? O que temos nas suas coreografias são fragmentos da sua vida, pedaços de si reelaborados, reinventados?

Não. Eles partem todos de mim, são quase reflexos, como se me visse no espelho. Coisas que vivi, li, coisas que me perturbam, de que não gosto, com que não concordo. São os meus medos, os meus exorcismos.


E no movimento, na expressão, na libertação, a sensação é sobretudo de prazer? Também de desprazer? A exigência física é tremenda. Como um atleta de alta competição, como um instrumentista que trabalha infatigavelmente o seu instrumento, o bailarino exige do seu corpo o absoluto.

Depende. O desprazer pode ser uma coisa que não acaba mais. O prazer acontece, comigo e com os meus intérpretes, quando se percebe o que é que se quer dizer quando se faz o que se faz. Não se trata de depurar o movimento per se, mas de comunicar esse movimento da melhor maneira. Aí está um prazer inaudito: o da comunicação. Só pode trabalhar comigo quem tiver essa vontade e essa necessidade. O prazer de trabalhar o corpo e a voz vem depois.

 

É capaz de ter uma relação próxima com pessoas que vivem desligadas do corpo? Que não usam o corpo como elemento de expressão?

Só não consigo falar com pessoas que não sejam criativas, sensíveis. Mas podem não ter absolutamente nada a ver com o corpo. Faz-me confusão se não há o mínimo de elegância no estar. Pode ser uma mulher ou um homem. Os bailarinos têm aquela coisa de serem magrinhos, mas não tem a ver com isso. Há em mim um lado estético muito forte.

 

É no corpo que mais sente a marca do tempo?

Sim. Gostava de ser desligada das datas, mas já percebi que não sou, bem pelo contrário. Mesmo em relação à minha vida privada, não sou nada desligada. A minha memória é muito visual e muito física. Geralmente lembro-me daquele dia, daquele sítio, da minha posição, da posição das outras pessoas.

 

O envelhecimento atormenta-a?

Estou muito bem dentro do meu corpo. Talvez seja porque foi bem tratado. Só comecei a fumar depois de ter tido a segunda filha, aos 33 anos. Só comecei a sair à noite aos 40. Como as coisas que se devem comer; nesta altura, não como carne, mas gosto de tudo.

 

Vive bem com o seu corpo?

É com este corpo que me faço, que cresço, que continuo a crescer. Apercebi-me de que vamos estando prontos para as coisas. O problema é pensarmos nelas prematuramente, pensarmos na morte prematuramente, pensarmos no envelhecimento prematuramente. Uma ruga não aparece de um dia para o outro, as coisas vão-se modificando aos poucos. Eu pensava que uma mulher de 50 anos era uma mulher velha. Neste momento estou no meu estado quase perfeito.

 

Estado adulto.

A todos os níveis. O meu corpo sabe tanto, a nível profissional e a nível íntimo; a minha cabeça também. O meu corpo é muito activo, mexe-se bem, gosto do que faço. Neste país, sou a única bailarina que, aos 50 anos, continua a fazer solos de uma hora. Tenho o privilégio de ser coreógrafa. Não tenho que lutar contra o meu corpo, fazer uma coisa que alguém me manda fazer. Faço coisas económicas para mim, coisas que estão certas. Até o meu osteopata me diz: «Os seus trabalhos fazem bem ao corpo». Danço aquilo que o meu corpo sabe dançar e faz bem.

 

Aquilo que lhe é natural…

E que vai fazendo cada vez melhor. Obviamente sei o que não posso fazer, e não me lanço para isso. Para quê? Façam outras pessoas mais jovens! Eu tenho muitas coisas para dizer agora que não podia dizer antes. Coisas que só agora é que sei e consigo dizer. E isto é extraordinário para conseguir levar a bem essa coisa que é o envelhecimento.

 

Por último, gostava de pedir-lhe um comentário à extinção recente do Ballet Gulbenkian, por onde passou e onde se destacou.

Fica uma lacuna. Era uma companhia de qualidade, uma das melhores da Europa, e uma alternativa. E essa qualidade e o ser alternativa só eram possíveis graças ao apoio financeiro da instituição. Aí nasceram e cresceram e apresentaram-se coreógrafos e bailarinos portugueses e estrangeiros. Houve um público que foi educado para outras linguagens na dança, e tudo isso desaparece. Não quero dizer que seja insubstituível. Mas é uma pena desaparecer de um dia para o outro qualquer coisa que demora tanto tempo a construir.

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2005

 

 

Elvira Fortunato

10.04.14

O seu verbo é fazer, fazer, fazer, e fazer bem. Conjuga menos frequentemente o verbo ser. É pouco introspectiva. Não gosta de falar dela própria. Gosta de falar daquilo que faz. Elvira Fortuna é o tipo de mulher que tem como máxima: “Não há impossíveis aqui no laboratório!”. Mas a sua geografia e a sua ascensão não se resumem ao laboratório: ela tem tempo para a casa, ela precisa de se sentir em família. Tem 44 anos.

É uma investigadora que viaja o tempo todo. Em semanas pode cruzar o mundo: Estados Unidos, Coreia, Índia, Suécia, Brasil… É uma cientista que trabalha com materiais não convencionais. Experimenta fazer, por exemplo, transístores com matérias da construção civil, cimento ou tijolos. Licenciou-se em Engenharia Física e dos Materiais, doutorou-se em 1995 com distinção e louvor. É professora associada com agregação da Universidade Nova. É directora do Centro de Investigação de Materiais desde 98. A wikipedia menciona-a como uma das inventoras da electrónica transparente. Recentemente ganhou uma bolsa de 2,25 milhões de euros – a mais avultada alguma vez atribuída a um português. O “seu” transístor de papel foi discutido na net por mais de cinco milhões de pessoas. Os principais jornais europeus debruçaram-se sobre as suas descobertas. Nós, debruçámo-nos sobre a sua vida. Para saber o que a fez ser como é.

 

O que é que havia na sua infância que pudesse prenunciar o seu percurso de excelência?

Sempre fui muito curiosa. Ainda sou curiosa. Gostava de saber coisas, como funciona?, [conhecer] a parte de dentro. O que talvez me tenha despertado para a área da ciência ou investigação foram as observações ao microscópio – como a células de cebola – que fiz no liceu. Ver coisas ao microscópio que o meu olho não vê...

 

Era uma criança curiosa. Os seus pais, as pessoas à sua volta tinham em relação a si especial expectativa?

Não sei, nunca lhes perguntei. Acho que me viram como uma pessoa bem comportada. Eu era muito organizada, metódica, boa aluna, mas daí a ser excelente, a chegar onde cheguei... Também acho que não cheguei assim... Tenho feito algumas coisas, mas às vezes quem está ao nosso lado é que devia fazer um bocadinho mais.

 

Quando entrou para a escola, teve a sensação de o mundo ter mudado? De repente dispunha de ferramentas, como ler, escrever, contar – para melhor compreender.

Completamente. Estou num contínuo processo de aprendizagem. Hoje sei muita coisa porque passei a vida toda a estudar, e continuo; mas quanto mais se sabe que sabe, maior é a noção daquilo que ainda não se sabe. Sei que sei muito pouco de tudo aquilo que existe.

 

Olhando para os seus cadernos e livros da escola: rasurava-os?, até à perfeição, até aprender, até dominar?

Ainda guardo os meus livros, os testes da escola primária: são impecáveis. Tinha os cadernos bem passados, limpinhos, com cores. Os meus cadernos eram fotocopiados por todos os meus colegas, e esses apontamentos e resumos passaram, passaram... Já como assistente, reparei que os meus alunos ainda os usavam!

 

Eles sabiam que eram seus?

Não!

 

Não se importava de ceder os seus apontamentos aos seus colegas?

Nunca me importei. Sei que hoje em dia se faz negócio com isso, mas posso dizer que foi a custo zero! Não havia esse espírito de competição, na minha turma.

 

Teve algum tipo de competição com a sua irmã?

Não. Ela é nove anos mais nova, faz muita diferença. Licenciou-se em Farmácia.

 

Portanto viveu praticamente toda a infância como filha única. Os seus pais exigiam especialmente de si?

O meu pai, em termos de estudo, exigia, mais até do que a minha mãe. Sabia que eu tinha capacidade e queria que estudasse. O meu pai faleceu há treze anos; assistiu à minha licenciatura, não assistiu ao doutoramento. Era empregado de balcão.

 

Era disciplinador e exigente consigo? A sua tenacidade é uma herança dele?

Sim.

 

Conte-me uma boa recordação de infância em que ele esteja presente.

Emociono-me um bocadinho quando falo do meu pai... (Tinha 55 anos, foi um cancro fulminante, em seis meses faleceu). O que guardo de melhor é a educação que me deu, a atitude na vida, a seriedade, a exigência. O rigor, acima de tudo o rigor.

 

Foi empregado de balcão mas quis que a filha tivesse um destino social, profissional, económico diferente do dele?

Sem dúvida. E isso, quer para mim quer a minha irmã, era sentido como um estímulo.

 

O seu empenho é uma forma de lhe prestar tributo?

É.

 

O que é que queria ser quando era pequena? Quando se é pequena não se quer ser engenheira física! Quer-se ser coisas românticas como médica, professora, astronauta...

Quando era pequena, pensei ir para medicina, mas não consigo ver sangue, não consigo cortar nada… Vim ter a esta faculdade por várias razões. Às vezes, é a sorte, é a conjuntura… A minha vida aconteceu. Eu nasci em Almada, morava em Almada, entrei para a faculdade em Almada em 1982. Tinha uma universidade nova ao pé de casa, [não se pôs] o problema de ter de me ausentar, pagar o quarto, ir para fora da família. A primeira opção foi Engenharia do Ambiente, só que não entrei...

 

Porque é que não entrou?

Tinha média de 15. Na faculdade, sim, tive notas muito altas. Mas no liceu não era uma excelente aluna. Entrei para Engenharia Física e dos Materiais, gostei imenso da licenciatura, e nunca mais saí daqui.

 

Ficou por casa – em família, na cidade onde sempre viveu. Quando é que sentiu que era dona da sua vida, que a vida era aquilo que queria fazer com ela?

Quando tive o primeiro salário. Até esse momento, eram os meus pais que me pagavam os transportes, a alimentação, que me vestiam. Nas férias trabalhava, em part-time, dei explicações, mas isso eram coisinhas, uns extras. A primeira coisa que quis, quando entrei para a faculdade como assistente, quando tive o meu salário regular, foi comprar um carro.

 

As viagens seduziam-na? Eram uma miragem?

Estou cansada de viajar tanto! Nas férias fico sempre em Portugal. Não gosto de andar de avião. Mas no princípio deslumbrou-me imenso. A minha primeira viagem foi a Israel, como monitora, ou não?... Hum…, esqueci-me. Mas sei que Nova Iorque foi uma das primeiras e marcou-me. Pela sensação de liberdade, e porque é tudo grande, diferente.

 

É fácil imaginar que se sinta em casa nos Estados Unidos, uma Babel onde sobressaem os melhores, os que trabalham mais. O seu modo de trabalhar é americano. Rigoroso, competitivo, meritocrático.

Identifico-me, sim. Nunca pensei nisso, mas é capaz de ter razão. Somos muito competitivos – é um facto – e a minha bitola são os melhores. Na minha área de trabalho conheço os meus colegas todos, sei quais são os melhores e gosto de comparar o meu trabalho com esses. Gosto de ser como esses. Isso é Exigência, e eu sou exigente.

 

A partir de que momento percebeu que podia ser audaciosa naquilo que exigia de si mesma? Que se podia comparar com os melhores? A miúda que tem média de liceu de 15 não pensaria nisso… 

Nem eu sei. Isto é um percurso. Posso dizer que construí o meu percurso, mas não andei à procura de coisas para ser o que sou hoje. Sempre gostei de dar o meu melhor, de fazer as coisas bem feitas, de nunca subestimar o que faço ou o que os portugueses fazem.

 

Que marca é que lhe deixou a sua mãe?

Não sei. Neste aspecto da carreira profissional o meu pai marcou-me mais do que a minha mãe, que ainda é viva. A marca da minha mãe? São perguntas a que não sei responder.

 

Interroga-se pouco sobre si própria?

Por acaso, é. Não gosto muito de falar de mim.

 

É uma mulher tímida, segura das suas conquistas, com um discurso imensamente pragmático; por isso me lembrei da sua mãe, e me perguntei onde foi buscar este pragmatismo.

Para ser sincera, não sei. Quando nos apaixonamos por aquilo que fazemos, a probabilidade de falhar ou ter insucessos é pequena. Os sucessos são relativos – posso ser um sucesso muito grande aqui e ser uma coisa muito pequena acolá. Mas acho que parte do sucesso que tenho tido é porque acredito muito no que faço, e porque sou desconfiada.

 

Desconfiada, em que sentido?

Quando fizemos o transístor de papel, se eu ouvisse uns teóricos, uns colegas, diria logo: “Impossível, o papel não tem propriedades boas para um dispositivo da área da electrónica.” Sou um bocado desconfiada porque gosto de experimentar, e porque posso ouvir muito conselhos mas faço o que está na minha cabeça. Sou desconfiada nesse aspecto: gosto de confirmar as coisas.

 

Tem um espírito científico. Mas quando decide levar a experiência do transístor de papel até às últimas consequências segue a sua intuição? É uma mulher intuitiva?

Muito. Penso que o espírito científico e a intuição estão ligados. [Inúmeros] trabalhos que tenho feito têm muito de intuição. Nós utilizamos gelatina de comer para fazer coisas da electrónica [riso]. Isto não é muito comum, até num homem que cozinha. Copiar e melhorar, tudo bem, mas sou um bocado disruptiva, no sentido de fazer coisas diferentes. O transístor de papel é um ovo de Colombo; se for ao Google e colocar paper transistor veja os sites que aparecem. Até eu fiquei um bocado assustada.

 

Quer dizer que pode acontecer ter uma ideia, uma invenção, e não se dar conta imediatamente do impacto que ela tem?

Com o transístor de papel, sabia que era importante, mas não tive esta noção. Isto saiu no Scientific America, no The Economist, tenho ali as revistas todas… Os japoneses vêm cá ver o que andamos a fazer – “Mas em Portugal fazem-se transístores?”. Fizemos logo uma patente – já aprendemos.

 

Na mesma semana, ganhou um prémio do European Research Council no valor de 2,25 milhões – foi a primeira vez que um português ganhou uma bolsa deste tipo – e anunciou a descoberta do transístor de papel. Foi o reconhecimento total?

Eu já tinha a noção de que o meu trabalho, cientificamente, era bom, porque desde há três ou quatro anos são os próprios organizadores das conferências que querem que participe na qualidade de Invited Speaker [Orador Convidado]. Vou a esses congressos, mas não na qualidade de conferencista normal, como ia até aí. O facto de o trabalho ser reconhecido, e ser reconhecido internacionalmente, [fez-me acreditar] que tinha os mínimos para poder candidatar-me a essa bolsa do European Research Council. Daí a ganhar o projecto vai um passo, e daí a ficar em primeiro lugar ainda vai uma distância maior!

 

Ainda a dissuadiram, dizendo que era só para a nata da nata europeia...

Foi o que me disseram, cara a cara. Achei tão estúpido... Era uma mulher. Eu estava com umas calças de ganga…; os portugueses só vêem realmente o valor dos outros portugueses quando os de fora lhes reconhecem o valor. A senhora não me conhecia de lado nenhum, mas sendo responsável por essa área tem de estimular os investigadores a candidatarem-se.

 

Pessoalmente, nunca desejou ganhar muito dinheiro? Pôr o seu talento a render de outra maneira? Ganhar dinheiro para ter uma casa maior, para ter um carro melhor, as coisas para que normalmente as pessoas querem ganhar dinheiro.

Não. Tenho uma posição permanente aqui na faculdade, o meu ordenado está garantido. O meu marido é meu colega, é professor catedrático; não temos uma vida excelente, mas é uma vida confortável. Não tenho a preocupação de chegar ao fim do mês e ter contas para pagar. A riqueza que tenho é o meu trabalho, é o meu salário. Enquanto tiver duas mãos e uma cabeça para trabalhar... A saúde é a minha maior riqueza.

 

Porque é que quis ficar na margem sul? Podia ter sido um estigma, um estigma social...

Às vezes falam da margem sul e criam esse estigma – fico ofendidíssima. [A margem sul] tem um Figo… Essa conotação é negativa no sentido em que parece que aqui as pessoas não têm qualidade. Mas as pessoas, ou as ideias, não têm cor, não têm local. Eu também podia dizer: “Como é que em Portugal se fazem transístores?” Portugal pode estar conotado negativamente na área científica em que eu trabalho, que é extremamente competitiva em termos internacionais, com japoneses, coreanos, americanos, e nós conseguimos lá chegar.

 

Podia viver em qualquer cidade do mundo.

Eu nasci em Almada, gosto de viver onde vivo. Moro na charneca, a faculdade fica no campo. Não há aquele stress das grandes cidades. Eu tinha aqui condições excelentes para me doutorar, para fazer investigação, este é um dos melhores laboratórios do mundo – para que é que eu ia para outro sítio?

 

Gosta de se sentir com os pés na terra, e em casa?

Gosto.

 

A quem é que telefonou quando soube que tinha recebido a bolsa?

Ao meu marido. Depois aos meus alunos e às pessoas que trabalham na minha equipa.

 

Foi aluna do seu marido. Deduzo que ele tenha começado por ser um tutor; quando é que se emancipou?

Em termos de investigação, a seguir ao doutoramento. Dentro do grupo, temos várias linhas de investigação e eu iniciei esta.

 

Neste momento o seu nome é uma referência mundial na área da electrónica transparente. A Ferrari vai adoptar uma invenção sua – é sintomático.

É outro projecto, que não tem a ver com os prémios que ganhei. São materiais electrocrómios, que mudam de cor; são as janelas inteligentes, em que podemos controlar a transmitância de uma janela electricamente. Quando está sol, por exemplo, o tejadilho fica mais escuro; mas sou eu que controlo electricamente, se não quero, carrego no botão e fica transparente. O estímulo não é o fotão, ou, neste caso, o ultravioleta, é um potencial eléctrico em que controlo electricamente a cor, a transmitância.

 

Os seus projectos têm uma fortíssima componente prática.

Sim, são aplicados a coisas concretas. Isso é uma preocupação: sou experimentalista, gosto de fazer coisas que tenham uma aplicabilidade a curto prazo para a sociedade.

 

Porquê a curto prazo?

Não gosto de esperar muito tempo até ver as coisas acontecer. Não é que seja apressada, mas sou um bocado impaciente. Fazemos coisas com aplicação prática imediata, daí ter muito interesse por parte das indústrias. A Ferrari veio por arrasto, porque temos um projecto europeu com a Fiat; parte da investigação que fazemos em conjunto pode ser aplicada na Ferrari.

 

E há um lado glamoroso na Ferrari que remete para a ficção científica…

O projecto com que ganhei o ERC tem 27 páginas e chama-se Invisible [Invisível]; começa assim: “Imagine ter um monitor totalmente transparente e flexível, dobrável e de baixo custo, ou um circuito electrónico transparente na janela do seu escritório. Pode perguntar-me se estou a escrever ficção científica. Não estou. De facto, este é um objectivo muito ambicioso, mas tangível no quadro deste projecto”. Comecei exactamente com a ficção científica...

 

Porque é que acha que a bolsa lhe foi concedida?

Estes projectos financiam uma ideia. O investigador tem que ter um currículo de excelência nos últimos dez anos. Mas se a ideia que é apresentada não é disruptiva, não é muito boa, o projecto não é financiado. Depende do investigador e da originalidade e força da ideia.

 

O que é que existe na sua vida fora do trabalho?

Gosto de passear, gosto imenso de ir a um bom restaurante. A minha filha tem 11 anos, deixo-a na escola às nove da manhã, venho para o trabalho, vou buscá-la às seis da tarde, depois é o banho, são os trabalhos de casa, jantar... Ao fim-de-semana temos as compras; se me perguntar qual foi o último filme para adultos que vi, já nem sei...

 

Significa que tem tempo para ser mãe, mais ou menos a tempo inteiro, apesar de todo o trabalho que faz?

Sim, estou muito com ela. O nosso problema, às vezes, é a organização. Se organizarmos o nosso tempo, temos tempo para tudo, e ainda sobra. Venho no carro, escrevo num post-it o que é que tenho que fazer no dia seguinte. Trabalho oito a dez horas por dia. Chego por volta das nove, saio às seis, por vezes ainda trabalho depois do jantar e aos fins-de-semana. Agora é tudo fácil, mas nem sempre foi assim. Houve horas da minha vida pessoal que sacrifiquei, mas temos que fazer opções. A minha mãe diz: “Trabalhas tanto, descansa um bocadinho.” Mas é que este trabalho não me dá trabalho. As pessoas e a família não entendem...

 

Este prémio que ganhou é considerado uma espécie de Nobel.

Não gosto de chamar-lhe Nobel, porque estou a anos luz disso. Mas realmente, depois do nascimento da minha filha, este acontecimento, foi a segunda coisa boa que aconteceu na minha vida.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2010

 

Estou bem, obrigada (em Portugal, e não no Chipre)

10.04.14

Caras e caros,

não estou em Limassol, Chipre, não estou aflita, fui pirateada na minha conta de email.

O facto de a invasão e utilização abusiva do meu nome ser evidente, com erros grosseiros e construção palerma, não faz dela menos chocante.

Eu devia ter desconfiado que algo se estava a passar quando o meu gestor de conta recebeu um email a perguntar pelo meu saldo... Ele estranhou que o email tivesse erros ortográficos, e decidiu telefonar-me a confirmar que tinha sido eu a enviar o email. Não tinha. Pensei que fosse só aquilo. Não foi. 

Houve muita gente, muito amável e cuidadosa, a avisar-me, a ajudar. Sou muito grata. Até o Baiano, super bacana taxista do Rio, falou para cá para saber se a Dona Ana estava em apuros.

Sou eu, e não estou.

Felizmente.

Para um brasileiro e para os que sabem que sou dada à brasileirada, era mais fácil acreditar, não fosse aquela frase:

"Eu sou o tipo de preso agora eu preciso de um pouco de ajuda de vocês."

Já me assaltaram a casa, já me roubaram o carro, já me levaram a carteira. Isto não é tão grave, mas deixa uma sensação de horror semelhante. Não sabemos bem o que vão fazer com os nossos dados, com os nossos contactos, com a nossa identidade, com a nossa intimidade. Mesmo que só lhes interesse o dinheiro. Nem percebemos logo a extensão do problema. Ou seja, não sei se isto fica por aqui. Espero que sim.   

A expressão não é elegante, mas não encontro melhor: chatíssimo, tudo isto. Sim, porque depois do email foram ao Facebook, mudaram a password... 

Peço desculpa pelo transtorno que vos causei, e de novo agradeço a preocupação.

Estou temporariamente fora de circulação, a retomar o pé, sem os contactos do costume.

Até breve.  

 

ps: ainda não consigo fazer humor e não tenho tiradas espirituosas sobre esta maçada. Mas a palavra "bagunça" é boa. Insuficiente e boa. 

 

Maria Elisa Domingues

07.04.14

Ficou envaidecida de ser a primeira mulher a ocupar o cargo de directora de programas da RTP? “Ah, isso fiquei. E fiquei de ser a primeira mulher a fazer entrevistas políticas. A palavra certa é orgulho. Tenho orgulho nessa carreira. Porque fiz tudo por mim.”

Aos 62 anos, Maria Elisa tem um livro novo para promover. Em Amar e Cuidar conta a sua “viagem pelo mundo do cancro”, enquanto cuidadora da mãe, entretanto falecida. É a pretexto do livro que fala dessa carreira, do seu percurso. Ela é a mesma de há 30 anos?

Conversa errática. Sobre vestidos, a mãe, a perda. Um pai comunista, inteligente, que morreu em três dias. Sobre o acerto de contas com José Sócrates. A vez em que disse a Durão Barroso: “Assim não continuo”. Fala-se de tudo e de tudo ao mesmo tempo. Interrompe-se. Retoma-se. Londres, depois de Madrid, depois de Paris (“Paris é uma cidade agreste. Se calhar porque vivi lá com muito pouco dinheiro, e tinha percursos intermináveis de metro”). Fala-se da vez em que lhe apresentaram Margarida Marante dizendo: “Esta é a nova Maria Elisa”. De um casamento com um americano que é rico, mesmo que não seja “rico assim”. Assim como se imaginam os americanos ricos. Fala-se do tempo em que imaginava que ia ser feliz. De ser uma sonhadora.

Do que é que tem orgulho Maria Elisa? Do que fez por ela. Quase não fala do filho, que não gosta que se fale dele. Mas mostra fotografias da neta, e estão brinquedos a um canto da sala. Ficaram avisos à navegação. Vai escrever um livro de memórias. Onde os nomes serão postos. Amores e não só. Assédio, coisas que lhe aconteceram a ela e a outras mulheres.

Na conversa a linearidade e a arrumação são impossíveis. Nada do espaço o faria prever. Sala exemplar, objectos do mundo, almofadas alinhadas. Mas sim, o escritório estava desarrumado, e Maria Elisa parecia ter um secreto orgulho nisso. A meio tocaram à porta. Era o senhor do talho, e no fim a TVI, que chegava para uma entrevista. 

Maria Elisa está no ocaso da vida? Falámos sobre o pavor de o ocaso ser como o de Gloria Swanson em Sunset Boulevard, (o filme retrata uma diva de Hollywood na sua fase crepuscular. Crepúsculo dos Deuses foi o título português). Longe disso. Eis um close-up de uma mulher madura, em luto, recém-casada.

 

 

Um dos músculos que mais trabalhou enquanto jornalista foi o da entrevista. Por onde é que começaria uma entrevista com esta Maria Elisa, de 62 anos?

Pelo livro que publiquei esta semana e pela morte da minha mãe. Pelo significado que isso tem para mim. Está de acordo com as regras do jornalismo – a actualidade. Sou habitada por essa circunstância.

 

É sobretudo uma mulher que vive de modo agudo, nesta fase da vida, a condição de filha? 

Há bastante tempo. Desde que me tornei cuidadora da minha mãe. Quando a minha mãe, sobretudo nos últimos meses, largos meses, perdeu autonomia, quase me tornei mãe dela. Não conheci essa circunstância com o meu pai. Morreu com 70 e poucos anos, em três dias. Mas nunca partilhei a intimidade da minha mãe. Era um ser de um enorme pudor. Uma senhora antiquada. Nunca troquei uma palavra com a minha mãe sobre sexo.

 

Nem lhe contou da sua vida íntima?

De modo nenhum. Não passava pela cabeça da minha mãe – acho que não passava – que tal pudesse acontecer. Houve uma fase, pelos 30 anos, em que senti a falta de poder falar sobre determinados assuntos. Mas já era claro que era impossível.

Ter que penetrar essa reserva foi-me extremamente doloroso. Por ela. [comoção] “Até onde é que isto lhe custa?”.

 

Uma recordação feliz, com a sua mãe, de quando era pequena.

A maneira como a minha mãe me vestia.

 

É muito visível o seu gosto pelos vestidos.

A minha mãe, que era muito coquete, é que mo incutiu. Tinha muito jeito para bordar, para tudo. Vivemos na província, andámos aos saltos. Fiz a escola em casa. A minha mãe arranjava-me uns bibes para quando estivesse a estudar. Também me lembro de uma coisa que desapareceu para sempre: fazia champô de alecrim para mim. Lembro-me do cheiro, do meu cabelo brilhante, em que a minha mãe tinha orgulho. A minha infância foi de grande amor. E de rigor. Fomos educados, o meu irmão e eu, com uma noção de dever.

 

Que reacção tiveram os seus pais quando se tornou “a Maria Elisa”? E vamos discutir a que é que isso corresponde.

O meu pai e a minha mãe tiveram um enorme desgosto quando fui para a televisão. Resolvi casar aos 19 anos. Contra a vontade deles. Continuei a estudar. Tínhamos de viver em casa dos nossos pais porque não tínhamos dinheiro. Portanto comecei à procura de emprego. Com as habilitações que eu tinha (dois anos de Medicina, dois anos do Conservatório, não sabia escrever à máquina) a primeira coisa que apareceu foi um concurso para locutora de televisão. Concorri. Ganhei. É uma história antiga. No dia em que fui admitida, cheia de orgulho, o meu pai disse-me coisas tão terríveis que só me lembro de chorar, chorar, chorar.

 

Porquê?

O meu pai tinha a pior impressão do meio televisivo. Achava que era promíscuo. Sei que mais tarde tiveram muito orgulho na tal Maria Elisa que você refere. A semana passada encontrei nas Finanças uma senhora que me disse: “O seu pai falava muito de si”. A minha mãe via os meus programas. Comentava o trabalho e comentava como eu estava. “Quem é que te penteou hoje?”

Havia coisas, que nunca disse, e que não direi agora – admito que as diga um dia – em que acho que tinham razão.

 

Está a falar de quê?

Havia uma certa promiscuidade e uma tentativa de, pessoas mais velhas e com poder, seduzir meninas novas e aparentemente vulneráveis. Tive um ou dois dissabores, que não passaram disso. Eu era uma miúda. Ter 23 anos em 1973 não é ter 23 anos agora. Pessoas desagradáveis, que você odeia, a quem tem asco. Pessoas com quem não tem o menor contacto e que de repente lhe fazem uma proposta obscena. Aconteceu-me. Com pessoas que foram admiradas, durante anos.

 

Ser uma mulher bonita, pesou? E vinda do teatro, que constava ser um meio libertino.

Palavra de honra que só há poucos anos comecei a olhar para as minhas fotografias com 30 anos e a dizer: “Ah, eu era engraçada”. Não tinha a ideia de ser uma mulher bonita. Sempre odiei o meu nariz. Achava que tinha os olhos bonitos. Quando entrei para a televisão, tinham um cabeleireiro mais antigo do que a minha bisavó, que dizia: “Eu é que mando nos seus cabelos”. Depois fui para Paris estudar jornalismo [1974/76]; passava as noites em casa a ver televisão. Comecei a dar importância à imagem, a reparar que as jornalistas que eu admirava eram sóbrias. Quando vim de Paris e comecei a fazer entrevistas, as primeiras grandes entrevistas políticas, e durante anos fui só eu a fazê-las na RTP, comecei a tomar conta da minha imagem.

 

Como é que era aos 19 anos, quando casou?

Casei sem me pintar, de tailleur, que fiz para a ocasião. Uma coisa austera. Fui a pé para a conservatória. O meu ex-marido pôs um blazer e uma gravata. Éramos estudantes contestatários, ambos. Passávamos o tempo nas RGT do [Instituto Superior] Técnico e em reuniões políticas.

 

Com o que é que sonhavam?

Com a democracia. Nesse tempo (muitas pessoas lhe devem ter dito o mesmo), não pensávamos muito em carreiras.

 

Era um tempo dominado pela dinâmica do colectivo, e menos centrado no sujeito, a sós com o seu destino.

Completamente. O destino colectivo era prioritário.

 

Quando é que começou a centrar-se em si, na sua carreira, na sua ambição?

Ambição? É uma palavra que é colada a mim e que acho que nunca tive.

 

Porque é que acha que lhe colam essa palavra?

Porventura porque tive poder muito cedo. Sem ter feito nada por isso. Não conhecia a pessoa que me convidou, aos 30 anos, para ser directora de programas [1980/83].

 

Daniel Proença de Carvalho. Ficou envaidecida de ser a primeira mulher a ocupar o cargo de directora de programas da RTP?

Ah, isso fiquei. E fiquei de ser a primeira mulher a fazer entrevistas políticas. A palavra certa é orgulho. Tenho orgulho nessa carreira. Porque fiz tudo por mim. Mas sou um produto da revolução. A minha carreira não existiria sem a revolução. Provavelmente teria continuado a ser locutora. Estava no sítio certo, no momento certo. Era mulher.

O João Soares Louro, meu segundo pai, e que também morreu de cancro, confiou em mim. Patrocinou a minha ida para Paris. (Só foi possível porque a televisão continuou a pagar o meu ordenado cá. Já tinha um filho. Fui bolseira do Ministério dos Negócios Estrangeiros Francês.) Achava-me graça. Esse sim, são. A liberdade que eu tinha... Com 28 anos, ninguém me perguntava quem é que ia entrevistar nessa noite.

 

Quando foi convidada para a direcção de programas, era um tempo de experimentação no país. Na conjuntura pós-25 de Abril, tudo parecia subitamente possível. Hesitou? Ocorreu-lhe que podia não ser capaz?

Tudo isso. O João Soares Louro foi importante. Porque o meu trabalho anterior tinha sido ser assessora de comunicação da então primeira-ministra, engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo. [Julho de 79 a Janeiro de 80]

 

Como é que isso se deu?

Ela requisitou-me à RTP. O João Soares Louro estava a recebê-la, como é normal os presidentes fazerem, e no fim da entrevista disse: “Vou roubar-lhe a Maria Elisa”. Ela conhecia-me de miúda. No liceu Filipa de Lencastre havia professoras ligadas ao Graal, cuja sede era em frente. Ia lá, lia poesia, fiz sessões de alfabetização no Algarve. Com 14, 15, 16 anos. Pintasilgo não me perguntou se eu queria. E a mim não me ocorreu dizer que não. Mas quando acabou o Governo Pintasilgo, com a conotação de esquerda que tinha, e a AD ganhou, o Soares Louro disse-me: “Agora tem de ficar uns tempos sem fazer nada para esbater a sua imagem”. Era uma época em que – não vi, mas sabia – ela e eu éramos grande parte dos quadros do Parque Mayer.

 

O que também dá ideia da sua popularidade.

Eu era muito próxima dela. O gabinete era mínimo. Era como a confiança do Soares Louro e do Sarsfield Cabral (então director de informação) em mim. Eu era a única pessoa que fazia comunicação no Governo! Tinha 29 anos. A primeira conferência de imprensa que deu, e de que tenho fotografias, é no Palácio das Necessidades. Ela, o ministro dos Negócios Estrangeiros de um lado, e eu do outro. Pedia isto? Não pedia. Ela achava que era assim, e era a minha função.

Quando o Proença de Carvalho me convidou, estava em casa há meses, sem fazer nada. Hesitei imenso. “Mas como é que sou capaz?” Tive 24 horas para decidir. Foi das fases mais felizes da minha vida. Nunca fui alvo de tanta polémica nos jornais. Ah, fui, fui, mais tarde, no parlamento. Mas tinha 30 anos e mandava em 600 pessoas e em vários milhões de contos. Revolucionámos a televisão. Em número de horas de emissão, directos, tudo. Ainda hoje há muita coisa que se faz parecida. Mas enfim.  

 

O que é que aprendeu do lado de lá?

Que as coisas são diferentes daquilo que as pessoas pensam. Mas não aprendi tudo. Se tivesse aprendido, não tinha, mais tarde, aceitado ser deputada [2002/04].

Foi muito fácil trabalhar com a imprensa estrangeira. Foi uma das primeiras mulheres a ser primeira-ministra na Europa. [Thatcher assumira funções dois meses antes] Tínhamos pedidos de entrevista de todo o lado. ABC, BBC, TF1, tudo o que se quisesse. Ela gostava disso, e eles gostavam dela. Era uma mulher com mundo, muito inteligente.

 

Pintasilgo gostava, sobretudo, do reconhecimento da sua inteligência?

Era. Da inteligência e dos propósitos em relação ao país. Nunca casou. Viveu para ler, para a política (num sentido extenso e nobre), para os seus ideais. Era uma pessoa com quem era muito difícil trabalhar. Teimosa. Por vezes, dura.

 

Deram-se bem?

Só tivemos uma zanga. E foi porque recebeu em plena reforma agrária, em pleno PREC, Álvaro Cunhal em S. Bento e não queria que eu dissesse. Os jornalistas perguntaram-me e confirmei. “Sra. Engª., quando não quiser que se saiba, não pode receber as pessoas aqui.” Também não gostava quando diziam mal dela. As manhãs eram difíceis, a comentar os jornais.

 

Retomando a palavra ambição, que se apostou a si...

Até há pouco tempo não tive tempo para pensar o que queria fazer com a minha vida. As coisas foram-me acontecendo. As propostas foram surgindo. Não procurei ser directora de programas. Não procurei ir para a embaixada de Portugal em Madrid [1986/88]. Não procurei ser directora da Marie Claire (o Carlos Barbosa foi a Madrid convidar-me).

 

Nunca se pôs a jeito para nada?

Não. [dois segundos depois] Ah, pus-me a jeito – e disse-o ao primeiro-ministro Durão Barroso – para sair do parlamento e ir embora. A comissão de ética, através de Jorge Lacão (foi o grande trabalho dele durante um ano inteiro), [obrigou-me] a optar entre o parlamento e a RTP. Num primeiro passo, optei por sair da RTP. Tentei cumprir os meus compromissos eleitorais. Fiquei só com o ordenado do parlamento. Tinha uma família para sustentar, uma casa para pagar – não era possível. Além de que, tirando a discussão de 2002 acerca do que fazer ao segundo canal [da RTP], em que fui bastante activa, não me deram mais nada para fazer.

 

Porquê?

Os partidos odeiam [deputados] independentes. Tive episódios durante a campanha eleitoral que são a prova cabal do que aquele partido me odiava. Puseram-me a dever uma noite de hotel em Caminha (dez ou onze contos), quando fui ao comício de rentrée do PSD. Não dormi no hotel, sequer!

No parlamento, como era conhecida, estava sempre a ser vigiada. Vi deputados (vários) a entrarem com resmas de processos, dos seus escritórios, para estudar e despachar. Eu tive zooms a uma agenda aberta, a uma revista que estava a ler. Um dia fui dizer a Durão Barroso: “Assim, não continuo.”

 

Saiu para Londres, onde foi conselheira cultural na embaixada (2004/06). Antes disso, fundou o serviço de comunicação da Gulbenkian (1995/98), foi novamente directora de programas da RTP (1998/99). Óptimos cargos. Tudo bons contratos?

Tive um contrato feito pela Maria de Jesus Serra Lopes, de prestação de serviços, quando estava na Gulbenkian e fazia programas para a RTP. Esse contrato foi renovado e depois interrompido quando fui para directora de programas. Fiquei a ganhar menos. Prometeram-me que passaria a ganhar o mesmo – nunca ganhei o mesmo. Como directora, não tive contrato nenhum. Era o que a casa pagava, era o que aos directores pagavam.

 

A segunda passagem pela direcção de programas foi curta.

Foi no tempo do Eng. Sócrates, ministro da tutela. Fui afastada sem qualquer razão válida. A desculpa que me foi dada para a demissão foi que na véspera o canal 1 tinha tido menos de 30% de share porque não tínhamos transmitido um jogo de futebol (que um dos canais privados comprou). Acontece que eu não mandava no futebol.

 

Quem era então o presidente?

Brandão de Brito. Coitado. Nunca mais ninguém ouviu falar dele. Quem me convidou foi Manuel Roque. Correctíssimo comigo. Sai de um dia para o outro num diferendo com o Eng. Sócrates. Quando chegou o novo administrador, fui pôr o meu lugar à disposição. “De maneira nenhuma!” Foi esse que me disse: “Você é o ex-libris da RTP”. Até que me despediu.

 

Está a dizer que a questão foi com Sócrates? Um acerto de contas?

Foram dois, não é? Ah, não tenho dúvida. O Eng. Sócrates primeiro-ministro decidiu despedir-me a meio do contrato [quando estava em Londres]. Apesar de ter sido Freitas do Amaral a destituir-me de funções.

[Quando fui despedida da RTP] fiquei sem trabalho, praticamente, e acabei por aceitar o convite de Durão Barroso. Não foi à segunda!, foi à terceira.

 

Quais foram os outros convites?

Convidou-me para o Parlamento Europeu, para várias câmaras municipais (não vou dizer quais são) e convidou-me para o parlamento, cá. Eu gostava muito dele, do Durão. Havia muitas mulheres cabeça de lista. A Assunção Esteves. Acreditei mesmo naquele projecto.

 

Politicamente está com pessoas de diferentes áreas.

Mas não muito.

 

Pintasilgo. Durão Barroso. Apoiou António Costa na candidatura à câmara de Lisboa. O que é que a faz apoiar ou aderir a um projecto político? O que aqui mais importa são as relações pessoais e a confiança pessoal?

Sim, e os valores. De todas as pessoas que pode citar só encontra pessoas do PSD ou do PS. Quanto a Pintasilgo, é inclassificável. Sendo de esquerda, tem muitos ideias da democracia cristã. Não era comunista, ao contrário do que muito gente afirmou. Há um projecto – o da social democracia, representada no seu máximo por Mário Soares – que, para mim, é mais claramente assumido, e com projectos que me parecem mais exequíveis, umas vezes pelo PSD e outras pelo PS. Quiseram dar de mim uma imagem de salta-pocinhas. Nunca me senti isso.

 

Participou na candidatura de Freiras do Amaral à presidência.

Participei. Não por ele, mas pelo director de campanha, que era Proença de Carvalho. Que era o nosso candidato. E acabou por não ser. 

 

Nunca foi comunista? Nem quando era jovem universitária e sonhava revolucionar o mundo?

Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Tive os maiores conflitos com o meu pai por causa disso. O meu pai era comunista. Quando caiu o muro, quase dizia que o muro não tinha caído. Cegava quando chegava ao regime comunista. Álvaro Cunhal também era assim. Um ser fascinante, que entrevistei não sei quantas vezes, com quem adorava conversar – e conversávamos sobre imensas coisas; gostava muito de medicina, também; falava com ele antes e depois das entrevistas, e às vezes na sede do partido. Como é que seres tão inteligentes, que tinham já dados para ver o que se passava no mundo comunista, nos gulags, que tinham lido o Soljenitsin, com certeza, e os dissidentes soviéticos, que eu também tinha lido, continuavam a acreditar naquilo? Mas continuavam. É uma coisa comparada à fé. Você não explica a fé, não é?

 

Reconciliou-se com o seu pai?

Sim. Digamos que aos 50 tinha uma veemência que mais tarde [perdeu]. Foi adoçando. Não no vigor das discussões. Eu evitava-as. Morreu comunista. Como em todas as famílias, a seguir ao 25 de Abril, naqueles anos de maior agitação, as nossas discussões eram épicas. Havia coisas engraçadas. A minha mãe votou sempre à esquerda, de certeza. [Partido] Socialista

 

Nunca perguntou à sua mãe em quem é que ela votava?

Ela dizia que não dizia. O meu pai dizia. Penso, espero, que quando fui candidata tenha votado PSD. Mas deve ter fechado os olhos, porque nunca gostou [do PSD]. Perguntei-lhe. Ela respondia: “O voto é secreto”, e ria-se.

Uma vez, antes do 25 de Abril, levei uma sova da polícia. Quando Mário Soares foi fazer uma palestra na Sociedade de Belas Artes, eu estava à porta, com centenas de outras pessoas. Não houve palestra nenhuma. Houve uma carga da polícia, apanhei imenso. Não corria tanto como um homem. Cheguei a casa com um ombro todo pisado. A minha mãe queria ir para a polícia fazer queixa!, foi o meu pai que a impediu. A minha mãe tinha umas coisas [riso] de uma grande justiça e de uma grande naîveté. Mais secreta e menos racional. Era católica, ao mesmo tempo.

 

É católica?

Eu sou. A minha mãe era sobretudo devota de Nossa Senhora de Fátima.

 

Volta-se para quem, quando se sente perdida?

Agora? Agora, para a minha mãe. [comoção] Às vezes tento falar com Deus, mas acho que não mereço, porque é só quando estou aflita [riso nervoso]. Sou pouco constante. Sou muito amiga da Catalina Pestana e no dia do funeral da minha mãe agarrou-me e disse assim: “Ela está no Céu”, com alegria e convicção. “Tomara eu acreditar”.

 

Um outro católico convicto faz o prefácio do seu livro, Bagão Félix.

É um bom amigo, ele e a mulher. É uma pessoa com quem falo nos momentos difíceis. Tive muito poucas pessoas no meu casamento, 30 e tal incluindo família, e ele estava lá.

 

Casou-se no início do Verão. Inesperada para si, esta nova vida?

Conheci o meu marido depois de Londres, em 2008. Não estava à espera. Ninguém está à espera de uma coisa destas. Queria muito encontrar uma pessoa, partilhar a vida com alguém. Angustiava-me a ideia de acabar [põe ênfase na palavra “acabar”] sozinha. As tentativas que aconteceram não resultaram.

 

Porque é que não resultaram? O que estou a perguntar é: um dos preços que pagou por ter tido uma carreira plena foi não ter conseguido uma vida afectiva estável? Era uma equação que se punha às mulheres da sua geração.

Era. Não acho que [a minha carreira] tenha sido um factor determinante para as coisas não resultarem. Acho que tive pouca sorte. Não sei se isto se chama assim. Houve relacionamentos que não foram de maneira nenhuma o que eu esperava que fossem. A evolução não correspondeu, de todo, à fase do enamoramento. Houve um caso – um caso importante – em que, admito, e isso era referido pela outra pessoa, o facto de eu ser uma personalidade pública lhe desagradava profundamente. Saíamos em Lisboa, eu era reconhecida, e ele era o senhor que acompanhava a Maria Elisa.

 

Concede que é difícil ser destituído de identidade própria. Ser o acompanhante.   

Concedo perfeitamente. Mas vejo casos de colegas minhas cujos maridos desempenham esse papel com à vontade. Havia insegurança e não havia amor suficiente. Ponto.

 

Mencionou, não sei se com um travo de culpa, ter deixado o seu filho em Portugal quando foi estudar. Para arrumar o assunto: foi com culpa para Paris?

Fui. E até hoje não sei se fiz bem. Há as pessoas que têm dúvidas, optam e acabou. Não sou nada assim. Fico a remoer o resto da vida. Também não sei se as coisas correriam melhor se tivesse ficado cá. Ficaria a pensar que tinha perdido uma oportunidade. Fiz um concurso público para ganhar aquela bolsa, com 500 pessoas, e queria evoluir. Não havia cursos de comunicação social em Portugal. Parece que estamos a falar da pré-História. É pré-História. Muito do que fui enquanto jornalista aprendi em Paris.

 

A Anne Sinclair já trabalhava?

Já. Mas a grande vedeta era a Christine Ockrent, que era a minha referência. Vi-a uma vez, em casa dela, onde fui com um amigo que era amigo dela e do marido, Bernard Kouchner. Simpática, um pouco distante. Na televisão, a Anne Sinclair tinha uma beleza estonteante, os mais extraordinários olhos azuis. A Christine Ockrent sempre teve pouco cabelo, tem uma face correcta, serena. Uma revista chamou-lhe “La reine Christine”. A Sinclair começou um pouco depois, há quatro, cinco anos de diferença. Transformou-se num exemplo para mim quando Dominique Strauss Kahn se tornou ministro das Finanças, e sendo ela a jornalista vedeta da TF1, abdicou de fazer programas. Porque achou que havia um conflito de interesses com a posição do marido. Em Portugal esta fronteira (entre a família e a política) não existe. Faz-me confusão.

 

Quando foi para Paris, era uma jovem impetuosa e emocional.

[riso] Ainda sou muito.

 

A “reine Christine” era o oposto disso. Refreou-se?

Nunca me viu com uma imagem muito emocional.

 

A sua imagem pública não era a de uma “reine” inacessível. Margarida Marante ou Manuela Moura Guedes, que apareceram um pouco depois de si, tinham uma imagem mais seca.

Seca não se me pode aplicar. Concordo consigo: as imagens não eram coincidentes.

 

Foi uma grande rivalidade com estas mulheres?

Nunca a senti. Houve pessoas dentro da RTP que provocaram muito isso. Não com a Manuela Moura Guedes, que era locutora quando eu era directora. Fazia parte das pessoas que dependiam de mim. Quanto à Margarida Marante, quando entrou para a televisão, foi-me apresentada por uma das pessoas que a levaram (não vale a pena referir o nome) como: “Esta é a nova Maria Elisa”. Foi-me apresentada assim!, com ela à minha frente, coitada, mais nova do que eu. “Ah, sim? Óptimo, ainda bem.”

 

A que é que correspondia nessa altura ser “a Maria Elisa”?

Aquela que entrevistava os políticos. Que fazia o telejornal. Que era uma jornalista conhecida. Para alguns [sublinha “para alguns”] terei sido uma jornalista de referência.

 

Nesse tempo, pensava no que seria a sua vida aos 62 anos?

Sabe que não? Aos 20 e tal pensava que ia ser feliz, feliz, feliz aos 30.

 

É sempre a seguir que se vai ser feliz?

Não, depois deixei de pensar. O que é triste. Ser feliz era encontrar a pessoa certa, mesmo depois do meu divórcio. Como nas histórias: ser feliz para sempre. Era romântica. O Luís Pinto Coelho aplicou a palavra que se me ajusta melhor; estão ali três coisinhas dele à entrada, numa delas está escrito: “Para a Maria Elisa, sempre sonhadora”. (Fizemos uma grande amizade em Madrid. Era meu confidente. Fiz a última entrevista ao Luís, poucos dias antes de ele morrer de cancro.) Fui imensamente sonhadora, por isso tenho um grande choque quando vejo isso da ambiciosa. Tudo o que me podia ter dado dinheiro, rejeitei. Depois do Parlamento Europeu, rejeitei um anúncio de 60 mil contos [300 mil euros]. Era a minha independência para o resto da vida.

 

Era a um detergente?

Era. Tenho o contrato em casa, estão vivas as pessoas que me convidaram. Meti advogados, exigi isto e aquilo, foram-me dando tudo o que queria. No fim perguntei a opinião ao meu filho, à minha mãe, toda a gente achou mal. Rejeitei. Sabe qual é o significado? É que hoje não sou independente do ponto de vista financeiro. Vou ter de continuar a trabalhar.

 

Falemos de dinheiro.

O dinheiro nunca motivou ne-nhu-ma escolha minha. Não estou a dizer isto com orgulho. Fui muito influenciada pelos princípios dos meus pais. O meu pai era engenheiro, e mais tarde fez um curso de Ciências Sociais. Um lírico. Nunca fez nenhuma opção por dinheiro. As minhas opções – o João Soares Louro dizia isso – foram sempre por razões afectivas. Por gostar das pessoas. Por confiar nas pessoas. E por acreditar que naquilo podia ser útil.

 

Quando é que o dinheiro foi determinante?

Agora. Rescindi com a RTP. Mas tenho um enorme pudor em falar hoje de dinheiro. Os portugueses estão a viver tão mal, tão mal. Tenho vergonha de quem, tendo mais meios, se queixa.

 

Quando folheamos as revistas e sabemos que se casou com um advogado americano, imaginamos uma vida glamorosa.

O meu marido tem uma vida muito confortável, temos uma casa muito simpática em San Francisco. Mas não equacionamos sequer a hipótese de eu não trabalhar. É uma relação muito romântica, claro que é. De duas pessoas maduras. Teria sido impossível aos 30 anos. Como você diz, eu era explosiva. Agora as coisas não podem ser imediatas. Ele teria adorado estar cá no lançamento do meu livro – não pôde. Não é rico assim [sublinha “assim”]. Dirige um enorme gabinete de advogados numa grande empresa, mas é empregado por conta de outrem.

 

Chegámos a esta parte da conversa quando lhe perguntei se pensava em como seria o seu ocaso.

O meu ocaso? Hum.

 

Sente que está a começar um ocaso?

Vou tentar que não seja. Isto é tudo muito recente. Não é o casamento. Foi adiado tantas vezes que é como se tivesse sido há mais tempo. A morte da minha mãe e o que ela me vai provocar ainda não começou. Quase ainda não chorei. Até ao fim do ano não vou pensar no que vou fazer. Não tenho espaço. Para já, este livro, os livros. Concebo isto como futuro. Provavelmente vou voltar a estudar, nos Estados Unidos. Gostaria que o ocaso fosse a escrever, eventualmente a fazer televisão (é o meu habitat natural).

 

Deixou de ter na televisão o mesmo poder, o mesmo protagonismo. Foi especialmente evidente no último programa que fez, sobre saúde.

Foi difícil. Tinha poucos meios, poucas pessoas a trabalhar comigo. Foi produzido num cantinho de um estúdio. Pensei o programa para um auditório.  

 

É uma coisa para a qual estava preparada?

É claro que me custou. Mas não foi por pensar: “Agora tenho menos poder”. Até porque lá dentro [RTP] – tinha 30 anos, tirei de funções pessoas de 60 anos – criei inimigos. Também dei a mão a muitas pessoas que estão agora em lugares de topo. Houve algumas pessoas que fizeram o possível para que não me sentisse desrespeitada. A administração disse-me sempre que eu era uma óptima jornalista; mas depois não me convidava para nada. Você vai perdendo coisas, contactos, oportunidades.

 

Sabemos como é difícil manter as carreiras, em especial as de grande exposição, no auge. Sempre em forma.

Não é preciso ser no auge.

 

Porque é que nunca perdeu o tino, como aconteceu com outras pessoas quando saíram do ecrã e tiveram problemas com álcool, drogas, plásticas?

Primeiro porque tenho um enorme pudor em relação a fazer figuras tristes. Peço sempre aos meus amigos: “Se algum dia me virem fazer figuras ridículas – em relação ao envelhecimento – avisem-me”. Depois porque tenho a sorte de nunca ter bebido, nunca ter experimentado drogas, nada, zero. É mesmo sorte. Estou convencida de que isso são doenças, como a úlcera, o reumatismo. Apanhei uma vez uma bebedeira de champanhe em casa.

 

O envelhecimento, foi um fantasma, um grande problema?

Ah, não gosto. A modificação do corpo, não gosto nada. A minha mãe, aos 88 anos, quando morreu, não tinha uma ruga. Um cancro, a quimioterapia. O corpo da minha mãe modificou-se menos do que o meu já se modificou. A minha cara? Tenho sorte.

 

No filme de Billy Wilder Sunset Boulevard, ficou famosa a frase da diva do cinema mudo, em decadência: “Mr. De Mille, I’m ready for my close-up”. Insisto: é difícil deixar a boca de cena. Deixar de ter poder.

A Hollywood dos anos 50, com as suas beldades míticas, cujo prazo de validade era muito curto – salvo raras excepções, como Katharine Hepburn – não pode ser comparada ao mundo da televisão, nem sequer ao Hollywood de hoje. Meryl Streep ganhou o terceiro Óscar aos 62 anos. Na informação, a beleza não é critério determinante e a idade também não tem de ser. Só para falar das mais célebres jornalistas americanas: Barbara Walters, com 83 anos, é co-produtora e co-apresentadora do principal programa da manhã da ABC e continua com frequência a fazer entrevistas no primetime. Diane Sawyer, com 66, mantém igualmente uma carreira de primeiro plano.

Um país que não aproveita a experiência e a maturidade das pessoas mais velhas é que me parece inexoravelmente votado ao ocaso. De resto, há vários anos que não tenho poder nenhum.

 

Quando é que deixou de ter poder?

Depois de ir para o parlamento.

 

Foi aí que a sua credibilidade foi afectada irremediavelmente?

Foi. Sobretudo fui condenada pelos meus colegas.   

 

E pelo público?

Acho que não. Na altura, talvez. Não sei se se lembra, mas tive meses de aparecer todos os dias nos jornais.

 

Como é que olha para essa que aparece nos jornais? Quando se é uma figura pública, há sempre uma persona ficcionada pelo colectivo.

Com estranheza. Quando aparece muita coisa, diz-se: “Não há fumo sem fogo”. Há imenso. Bolas, eu sou a melhor prova de que há fumo sem fogo. Fica um ruído. “Ah, esta quer é dar-se bem na vida”. Mas depois passa. Nunca senti nenhuma animosidade [do público]. As pessoas muito novas não fazem ideia de quem eu sou. As pessoas muito novas sabem quem são os actores das novelas. Há poucos meses perguntaram-me se era a Dina Aguiar. É muito estranho o modo como nos situamos no imaginário público. Há pessoas convencidas de que têm muito poder... [riso cínico] Nós “damos” na televisão.

Essa pessoa que eu via nos jornais – a que não entregava a roupa que a Stivali lhe emprestava! – nunca senti que fosse eu. Não sei de quem estão a falar.

 

Na imprensa atribuíram-lhe romances. Algumas das pessoas eram figuras públicas.

Só sofri com aqueles em que senti que fui utilizada. É um tema que fica para o meu livro de memórias. É importante para a minha evolução como mulher, e para mulheres portuguesas da minha geração, saber como determinadas pessoas de comportamento aparentemente irrepreensível na vida pública podem ser tão danosas na vida privada. É uma espécie de aviso que quero deixar.

 

Vai escrever sobre isso porquê?

Porque tenho necessidade de explicar como é que algumas coisas se passaram. Sei que não me aconteceram só a mim. E não há nada de que tenha vergonha. É o meu testemunho do que fui aqui. O Paul Johnson escreveu um livro sobre o lado privado das figuras públicas, The Intellectuals. Tenho um testemunho dos lados sombrios de determinadas pessoas. No meio deste percurso de que falámos há situações terríveis do ponto de vista emocional. Dez minutos antes de entrar no ar. Com as pessoas mais insuspeitas.

 

Quais são os seus lugares de sombra? Todos temos os nossos.

Não gosto de ter dito que sim algumas vezes. Não fui capaz de dizer que não – quando fui para o parlamento. Falei com uma grande amiga, a Lídia Jorge; disse-me tudo o que me ia acontecer. A minha vaidade foi flaté [bajulada] e fraquejei. Paguei muito caro. Fui injusta, não para muita gente, penso eu, na RTP, quando tinha poder. Avaliei mal as situações. Tenciono pedir desculpa a essas pessoas. Não acho que me tenha portado muito mal na vida.

Também me arrependi de ter participado na campanha de Freitas do Amaral; acho que todos nos arrependemos, inclusive ele. Lembro-me de, mais tarde, o ouvir dizer que apreciava imenso a forma como Soares estava a exercer a presidência. Foi o afecto, mais uma vez. Embora o tivesse, também, por Soares, pela família. A Isabel Soares é das minhas maiores amigas. Esteve no meu casamento.

 

Uma última pergunta: como é que era o seu vestido de noiva?

[abre os olhos] Lindo de morrer! Quer ver?

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

Manuel Villaverde Cabral

06.04.14

Manuel Villaverde Cabral nasceu em 1940. É talvez um mau português.  

Havia uma revolta nele. Que se perpetuou. Nas discussões coléricas que mantinha com o pai. Numa indignação perante a sociedade – não a vida, mas a sociedade. Há uma revolta nele. Em todo o caso resolvida. Mais ou menos resolvida. O indispensável para viver em sociedade. Se não os podes vencer, junta-te a eles. E talvez aquele psicanalista francês, que custava 50 francos à hora, tivesse razão: o mundo é mais pesado e mais difícil de mudar. Talvez mudar ele.

Mudou.

Ri muito. É também muito negativo e sério e severo.

Foi PC até 64. Saiu em França, onde era mais fácil sair e “as portas estavam escancaradas”. Foi politizado muito cedo. Não foi político.

Nasceu por acaso em Ponta Delgada, onde o pai arranjou um “emprego muito bom”. Em 1940. É o mais velho de dois filhos. Viveu ali três anos. Não foi o suficiente para deixar marca ou sotaque. Mas há desse tempo uma fotografia importante na sua biografia, de que gosta muito.

Primeiro licenciou-se em Letras em Paris. Depois foi Doutor em História. Foi investigador em Oxford entre 76 e 79. Anos quentes. Anos que o apaziguaram porque lhe deram algo de que precisava muito. Ele sabe o quê, e di-lo. Também foi titular da cátedra de História de Portugal no Kings College, o que dá um certo conforto ao ego.

É vice-reitor da universidade clássica. Uma casa que tem, pelo menos, o conforto dos móveis de Daciano Costa. Mas é claro que isso é o menos. Entrevista ao meio da tarde, com tempo, mas com sobressaltos eventuais – quanto tempo ainda temos? Tinha conseguido bilhetes para ouvir Anne Sophie von Otter na Gulbenkian. (O pai era um melómano, mas isso não vem, agora, ao caso).

O pai e Portugal muitas vezes confundem-se. São essa entidade de que nunca chega o reconhecimento suficiente.  

Manuel Villaverde Cabral: um caso de patriotismo ulcerado.

 

É sociólogo, historiador, académico, comentador político. Que retrato faz de si?

O meu auto-retrato tem um lado Dr. Jekyll/Mr. Hyde. O Mr. Hyde não será um perigo para as pessoas, um terror. A relação é talvez a contrária. Dr. Jekyll tinha um grau de revolta, de rebeldia contra a sociedade – não a vida, mas a sociedade. E o Mr. Hyde, que vem depois, pelo contrário, acaba por ser uma pessoa que domesticou a rebeldia, canalizando-a para a actividade profissional. É um caso evidente de sublimação à Freud, de uma energia que durante muitos anos girava no vazio ou em turbilhão, e que depois do 25 de Abril, e sobretudo depois das descobertas daquilo a que chamo “as delícias do conhecimento”, e do reconhecimento…

 

Reconhecimento de quem?

Reconhecimento de pessoas e instituições que contam. Esse acesso ao conhecimento e ao reconhecimento limaram as arestas mais agudas desse Dr. Jekyll que parecia Mr. Hyde.

 

A barreira é 74?

Sim. Mas se não tivesse ido para Oxford, não sei como é que teria sido [1976/79]. A revolução portuguesa poderia prestar uma sublimação de outro tipo – através de uma carreira política. Mas qualquer coisa em mim nunca quis uma carreira política.

 

Porquê?

Não sei. Uma vez fui convidado para deputado e respondi que não queria. “Sou muito falador, e se vou para a Assembleia vou falar o tempo todo e não faço nada de jeito”. Ministro, nunca ninguém me convidou.

 

Lamenta isso? É uma forma de reconhecimento que não chegou.

Nada. Tenho muito mais reconhecimento que 90% dos ministros. Até porque os ministros, coitados, acabam quase sempre mal. Há os que antecipam a saída, e desses também não fica a memória. Fui director da Biblioteca Nacional durante cinco anos [1985/90]. Foi nessa altura que me convidaram para o Parlamento. Entre um e outro, o meu coração não hesitou.

 

“O coração não hesitou”. Ocorre-me a famosa expressão “Entre les deux, mon coeur balance…”. Uma parte de si ainda continua a pensar em francês?

Penso muito em francês e em inglês. Por junto, acabei por viver cinco ou seis anos em Inglaterra, e onze anos em França. Penso muito em estrangeiro e uso muitas expressões. Há um cosmopolitismo bastante enraizado.

 

Em algum momento se esqueceu do português? Como quem procura o afastamento da língua materna.

O único ajuste de contas que fiz com o exílio foi em francês. Vivi bastante metido na sociedade francesa. O trabalho. Uma namorada francesa com quem viria a casar. Muitos amigos de várias nacionalidades. Devo ter passado muitos dias da minha vida sem falar português. Mas nunca esqueci.

 

Procuro saber se emocionalmente quis uma distância de uma Pátria com a qual estava zangado.

Com a qual estou zangado sempre. Isso nunca se resolveu. A minha sublimação não passa por aí. E por isso foi melhor não ter tentado sublimar pela política, que seria sempre portuguesa. Tive uma percepção curiosa no 28 de Setembro [de 1974]. Eu não estava, tinha ido a França ver a minha namorada (futura mulher e mãe dos meus filhos). Quando voltei, retomei o contacto com um grupo que acompanhava a revolução no escritório do advogado José António Pinto Ribeiro; uma reunião depois, decidi mentalmente: “Acabou, não vou meter-me mais na política portuguesa”.

 

O que o levou a essa conclusão?

Por não encontrar espaço. A minha análise política era que os grupos de extrema-esquerda, dos quais fazíamos parte, a única coisa que faziam era tirar castanhas do lume para o PC. Eu já tinha decidido: se o PC quiser comer castanhas tira-as do lume à conta dele, mas não conta comigo. Isso coincide, e não é por acaso, com o momento em que a porta da faculdade me foi aberta.

 

Outra carreira – a académica. Por oposição à política. E não parece aquela que estava originalmente traçada.

Quando tinha 17 anos, tinha entrado em Arquitectura, em Belas Artes.

 

Um equívoco? Saiu logo a seguir.

Não, continuo a adorar. O que aconteceu em 1957 seria na minha auto-biografia um capítulo intitulado “O Longo Verão de 1957”. Durou quase seis meses. Houve uma reforma e o ano escolar só começou em Janeiro. Seis meses para descobrir coisas, para nos entusiasmarmos, para escrever, pintar. (O pintor Jorge Martins fazia parte do grupo). Esse fim de adolescência, fantástico, terminou em crise com o meu pai.

 

Que crise?

Um enfrentamento. O meu pai tentava controlar os meus instintos. Eu já tinha idade para não me deixei controlar. Fui trabalhar e saí da escola. Mas para voltar a muitos anos mais tarde, a Outubro de 74: um amigo convida-me para ir dar aulas no ISCTE. Eu precisava, não tinha recursos. Aceitei logo. Nunca quis ser jornalista, nem político. Talvez tenha querido não me deixar dominar completamente pela actualidade.

 

Enquanto académico, podia viver uma espécie de vida paralela, num tempo congelado.

Sim, e nada melhor do que Oxford, que parece parada no tempo.

 

É uma forma de fuga?

Não sei. Sei que ao cabo de duas ou três aulas no ISCTE disse cá para mim: “Era isto que eu queria fazer a vida toda e não sabia. Estão a pagar-me para fazer aquilo que gosto de fazer”. E há um feedback, nas aulas, nas conferências. Percebe-se o body language. Também não costumo dar conferências para milhares de pessoas [riso], não tenho os problemas do Michael Jackson. 

 

Estou a pensar novamente no conhecimento/reconhecimento. Na necessidade de perceber o reconhecimento da audiência. Um tipo de reconhecimento diferente daquele que tem o político e o jornalista.

Possivelmente. O meu mecanismo de expressão/gratificação passa justamente por aqui. Eu preciso da gratificação para o meu investimento num tempo razoável, que não me deixe frustrado no meio.

 

Fale-me da gratificação que vinha da família. Qual é a história?

O Villaverde é espanhol. Vem da Rioja. Uma longa história que nos desviaria muito. A minha mãe encontrou-se com 18 anos cortada de grande parte das suas raízes e acabou por ficar em Portugal. O meu pai teve uma enorme influência intelectual sobre mim. Engraçado, é a primeira vez que digo isto em voz alta… O meu pai, que era mais Mr. Hyde do que Dr. Jekyll no que diz respeito ao feitio, foi quem me deu o elemento da sublimação, foi quem me deu a provar o fruto do conhecimento, foi quem me ensinou a ler (sem ensinar) muito antes de eu ir para a escola. 

 

Que profissão tinha o seu pai?

Era engenheiro agrónomo, mas tinha enormes veleidades intelectuais, e justificadas. Era conservador do ponto de vista cultural, era comunista do ponto de vista político. Wagner era um fazedor de ruídos, a música acabava em Brahms; e a literatura acabava em Eça, Pessoa era moderno demais para o gosto dele.

 

E a sua mãe?

O lado rebelde, imaturo, não sublimado e não inteiramente realizado, era a minha mãe. Nunca me tinha dado conta disto que estou a dizer. No fundo, o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde não são o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde: são a minha mãe e o meu pai. Só que os lugares são trocados. Eu era ao mesmo tempo atraído pela cultura, pelo fruto do conhecimento, e gostava desse fruto; mas o meu comportamento era rebelde, era mais parecido com a minha mãe. Que era uma rebelde sem causa. Eu tinha uma causa possível, que acabou por se realizar mais ou menos no mezzo della strada. O 25 de Abril apanhou-me com a idade do Cristo, com 33, 34. Estamos na altura em que as últimas escolhas se fazem, depois talvez seja mais difícil mudar.

 

Como foi o regresso de França, logo após o 25 de Abril?

Não foi um regresso triunfante. A França não me reconheceu, não me deu a oportunidade que eu queria. Voltei. Sem plano nenhum. E se tinha algum plano era mais pessoal, era mais anti-social, mas não violento. A política violenta, já a tinha esgotado antes do 25 de Abril, no rescaldo de Maio de 68, quando começaram a surgir opções violentas no esquerdismo europeu, e eu tomei a decisão de ficar de fora disso. Quando vinha, vinha bastante vazio.

 

Disponível? Derrotado?

Um pouco derrotado. Havia disponibilidade. Mas a primeira tentação foi a do retiro. Que pratiquei com o António Alçada Baptista.

 

Retiro místico?

Sem dúvida. Fomos viver para a Tapada do Saldanha, para uma casa que lhe tinham emprestado, na crista da Serra de Sintra, que ele decorou com muito bom gosto. Vivíamos lá os dois, depois apareceram o filho dele e um amigo. Plantávamos batatas, cavávamos a terra, fazíamos exercício físico. Lembro-me bem de sentir a nova identidade a sair de mim literalmente na ponta da enxada! Fazia buracos furiosos na terra.

 

Muito simbólico. O uso das mãos, para começar, quando quis usar a cabeça a vida toda. E a escavação com o sentido da descoberta e da procura.

Os frades cansam o corpo para domesticar a mente – foi sempre a minha ideia. Sublimar a energia em excesso que não se canaliza.

 

E raiva?

Foi uma palavra que não usei. Tive muita sorte com o 25 de Abril, que ocorreu quando a minha fase mais intensa já tinha passado. Por irrealizável. Eu não era pessoa de coisas violentas…

 

Bombas e coisas assim?

Exactamente. Conheço pessoas que puseram. Uma delas era o editor Feltrinelli.

 

Não aderiu a essa corrente, mais violenta, porque não tinha coragem física suficiente para isso?

Quem sabe. Eu costumava dizer isso: “Tenho medo que me rebente uma bomba na mão como ao Feltrinelli”. Acho que não é uma questão de coragem física, quando tive problemas para resolver fisicamente, resolvi-os. Há uma irreflexão, um não medir o gesto… Eu até achei que a revolução portuguesa não era assim tão revolucionária, nem moderna nem precursora. Parecia-me um trailler de todos os filmes de todas as revoluções europeias.

 

E numa dessas revoluções, Maio de 68, já tinha estado presente.

Em termos de personal excitment Maio de 68 é imbatível! E no entanto, o 25 de Abril também foi bom, também teve o lado existencial, e as moças para os rapazes, os rapazes para as moças, todos esses lados efervescentes.

 

Como perceber essa relação menos apaixonada com o 25 de Abril, com aquilo que põe fim ao exílio? A razão porque vai para França em 63 é política.

Eu próprio era outro. Decidi o meu voto no dia 25 de Abril de 75 na bicha, que era aliás grande. Se fosse mais pequena o meu voto talvez fosse outro. Como é que se decide o voto numa bicha? Eliminava, eliminava, eliminava. Neste não voto por isto, naquele não voto por aqueloutro. Podia ter chegado a minha vez numa altura em que ainda não tinha descartado o partido xpto. A bicha apanhou-me onde? No mesmo sítio da maioria.

 

Quando é que começa a sua relação com a política?

Comecei a ser politizado muito cedo, com o meu pai. Tinha nove, dez anos. Mas começou verdadeiramente aos 16, no 40900, o decreto que regulamenta as associações de estudantes. Houve uma manifestação em S. Bento que durou cinco minutos, correram logo connosco. Perdi-me… Sim, fui parar a França por motivos políticos. Tinha ficado livre da tropa.

 

Porquê?

Como tinha abandonado a universidade, fui chamado mais cedo. No ano em que fazia 20 anos, no Verão de 1960. Na altura não havia guerra. Muitos ficavam de fora, que eles nem botas tinham para todos. Sete ou oito meses depois começava a guerra… Já sei, estávamos em como é inútil reflectir muito sobre quem somos: somos o que nos acontece, as oportunidades que temos. Descobri no outro dia, graças ao estudo de uma aluna, que fugi no ano em que houve mais prisões políticas em Portugal. Se eu não tivesse fugido, teria sido mais um desses presos.

 

O que é que acontece em 1963?

É onde vai desaguar toda a agitação de 1958. E aí é que fiz o meu baptismo político, na campanha do [Humberto] Delgado. Eu na altura não sabia que era um número da estatística. Somos sempre, e isso é que gosto na estatística.

 

Resta saber de que gaveta somos um número.

Sim. Mas nunca estamos sozinhos. E isso também é bom de saber. No dia em que estivermos sozinho, estamos loucos – Júlio de Matos, directo! Como dizia o Fernando Gil, não basta ser do contra para ter razão.

 

Antes de irmos a França e saber quem era, deixe-me conhecer melhor quem é esse que é politizado aos nove, dez anos. Como é que se conquista uma pessoa dessa idade para a política?

O meu pai era muito culto, inteligente, persuasivo. Era um técnico muito competente, mas bastante frustrado; o que gostaria de ter feito era escrever.

 

Essa frustração, tentou sublimar em si?

Em mim e no meu irmão, que era jornalista. Já faleceu. A minha mãe era muito jovem, muito mais nova do que o meu pai. Doze anos de diferença – na altura, era uma diferença enorme. Ela tinha 19 anos quando se casou, quando eu nasci 20. O avô, o pai e a mãe tinham morrido cedo; ficou com uma madrasta de que não gostava – parece que é normal que as filhas não gostem das novas mulheres dos pais. A certa altura viu-se numa estação de comboio em Valladolid, e foi viver com umas tias em Barcelona que a aconselharam a casar com o meu pai.

 

Porquê esse conselho?

Porque em Portugal não havia guerra e havia comida. Foi um casamento de uma mulher jovem, num país estrangeiro; uma pessoa que estava muito limitada na sua autonomia. Aaah, devia gostar do meu pai… Pelas fotografias, o meu pai era gostável. Não havia nada de repugnante. Mas o meu pai era muito autoritário; talvez por isso tenha escolhido uma mulher nova, abandonada, sem ninguém que a defendesse.

 

É essa a sua opinião?

Não sei. O que aconteceu foi que os dois rapazes, eu e o meu irmão, ficámos sempre do lado dela.

 

Porquê?

Ça s’appelle l’amour. [A isso chama-se amor] O meu pai não era adorável. Era rígido, proselitista. Lembro-me muito bem de, a minha mãe, o meu irmão e eu escondidos na cozinha – o meu pai na sala – a fumar passas! [risos] O meu pai não gostava que a gente fumasse. Estávamos de janelas e portas abertas, por causa do cheiro, a fumar. Tínhamos 13, 14 anos.

 

A mãe era uma cúmplice.

Completamente! Éramos os três jovens, e o outro senhor, mais velho. Sintomático: tratávamos a minha mãe por tu e o meu pai por você. Ela tratava-o por tu, nós não. Era daqueles pais que acham que a educação passa por alguma rigidez. Eu concordo com ele; acho é que exagerava.

 

Apesar da proximidade com a sua mãe, em nenhum momento usou uma palavra de espanhol desde que começámos a falar. Só inglês, francês, italiano.

Não falávamos espanhol. Fomos bilingues sem o saber, o meu irmão e eu. A minha mãe falava português, mas mal, e com uma pronúncia de cortar à faca. Nesse sentido, sabíamos que era outra língua. Não era capaz de pronunciar os nossos nomes correctamente. [diz em espanhol] Manuel, Alberto. Ela entrava num café em Santo Amaro de Oeiras, e o empregado perguntava: “A senhora é espanhola?”.

 

Aquele cuja gratificação se espera, aquele que se quer seduzir, é o senhor distante. É assim?

Talvez. Pois. Se calhar é mesmo Portugal, e é tão distante que não vai nunca reconhecer.

 

Alguma vez ele reconheceu? – ele, pai. 

 Não é certo. É uma boa pergunta, que me tenho feito muitas vezes. Penso que sim. Quando lhe trouxe o meu primeiro livro, o segundo – que lhe é dedicado – sim, apreciou. Ficou muito contente quando fui para a Biblioteca Nacional, fazia recortes a meu respeito. Mas muito contrariado. Ele já estava viúvo – a minha mãe morreu jovem, tinha 60 – e continuámos a ter discussões terríveis. Ficou sempre lucidíssimo, até ao fim, morreu com 84. A certa altura, na viuvez, deu pela falta da minha mãe. Parece que é uma coisa que lhes acontece, aos homens. Alguns até se penduram na trave da cozinha. Ele, quando ela morreu, engoliu os comprimidos que por lá havia. Mas não conseguiu morrer, se é que o queria. Então diz-me: “O teu problema é que gostavas demasiado da tua mãe”. Ao que eu disse: “Se isso é problema, é mais seu do que meu”.

 

Ele tinha ciúme?

Prefiro não pensar que o meu pai tinha ciúmes de mim. Não me avança muito. É verdade que tivemos relações difíceis. Há um momento em que ele fez uma coisa que não devia ter feito. Foi aí que me tornei um homenzinho. Foi quando saí de Arquitectura. Eu fui pedir-lhe dinheiro para comprar material, que era muito caro. O meu pai ganhava pouco. Ele começou a aproveitar o “dou-te/não te dou”.

 

Para impor condições?

“Dou-te, mas”. Basicamente era controlo. Tentou usar o dinheiro para me controlar. Era um controlo mais simbólico do que outra coisa (tivemos chave de casa muito cedo). Eu tomei-o como controlo. Ou era tão rebelde que tomava qualquer coisa como controlo. Pode ser que fosse isso. Era com certeza isso que ele pensava, e que era sua missão domesticar-me. “Muito bem, guarde o seu dinheiro, vou trabalhar. Se me quer ajudar, arranje-me um emprego”. Ele arranjou-me um emprego logo. Nunca mais pus os pés nas Belas Artes.

 

Isso ao cabo de um longo Verão de descoberta e mutação…

Tínhamo-nos transformado em jovens intelectuais. Ganhei o segundo prémio de poesia dos Jogos Florais do Dia do Estudante – o Jorge de Sena estava no júri. O primeiro prémio foi para o José Cutileiro, que era mais velho do que eu e já tinha um livro publicado. Era um poema à la Álvaro de Campos. E tinha-me aproximado dos cineclubes. Ganhei prémios por causa de críticas que escrevia. Ora, se foi em 57, já tenho mais de 50 anos de vida literária [risos]. Eu estava cheio de ideias, de ambições.

 

O que é que queria fazer à vida?

Queria ser realizador de cinema. A minha sobrinha [Teresa Villaverde] vindicou-me. Poeta, eu era. Mas deixei logo de ser. E também artista, e também deixei logo de ser.

 

Levava-se a sério, e queria que o levassem a sério?

Seriíssimo! Leio as coisas que escrevi e fico apavorado! Aquela prosa é de uma pessoa mais velha do que aquela que sou agora.

 

Influência do seu pai?

Era o meu pai, era o marxismo, era o comunismo. Sou uma pessoa muito séria. Isso estava lá sempre. Consciência disso, não tinha. O meu psicanalista… Ainda dei para esse peditório, quando me separei da minha primeira mulher. Eu era muito maduro do ponto de vista intelectual e profissional, mas era um miúdo. E era hiiiper-romântico. Creio que continuo a ser.

 

O peditório da psicanálise. Que lhe dizia ele?

Ela não dizia nada, que é o que devem dizer. Não era suficientemente gira para eu transferir. Era baixinha. A minha mãe era alta, elegantíssima. Tinha uma fotografia dela comigo que adoro, eu era muito pequeno. E tenho uma fotografia com o meu pai, nos Açores, teria dois anos. Vamos pelo jardim e eu estou a falar com ele, lá para cima, e ele condescendentemente olha para baixo. Faz-me lembrar uma história com o meu filho mais novo: ele já teria dez anos, e eu, muito severo, (porque eu sou severo!), íamos a atravessar a rua e disse: “Dá-me a mão” [di-lo com tom autoritaríssimo]. E depois disse: “Bem, tu já tens dez anos, já não precisas de dar a mão ao pai”. E ele respondeu: “Sim, mas eu gosto”. Fiquei derretido.

 

A psicanálise.

Era do serviço público de saúde francês. Madame Landau. Tinha nome de carrinho de bebe.

 

O que é um bom nome para uma psicanalista.

Então não é? Ainda fui a outro indivíduo. Pagante. Demasiado caro para as minhas posses. De modo que curei-me radicalmente.

 

Quando é a pagar é a doer.

Exactamente. Esse disse-me duas coisas. Uma foi uma indicação terapêutica. Relaxation. Era muito bom, ainda hoje quando estou angustiado e com insónia faço. Relaxar até sentir o sangue a circulaaar pelo cooorpo, nas mãos…

 

É um sensual. É o que se percebe da forma como descreve o que descreveu, e que é puramente sensorial.

J’espere bien! J’ai pas eu beaucoup de plaintes! [Espero que sim. Não tenho tido muitas queixas]. E o psicanalista disse-me: Vous êtes faché avec le monde. [Você está zangado com o mundo]. “Talvez seja melhor mudar você do que tentar mudar o mundo”. Foi o que acabou por acontecer, mas dez anos mais tarde. Eu aí tinha 25 anos.

 

Porque é que estava tão zangado com o mundo?

[muito sério] Porque há todos os motivos para estar zangado com o mundo.

 

Houve? Porquê?

Há! É muito injusto. Eu estou em défice de justiça a partir do momento em que - digamos – acabei por desposar o mundo, aceitá-lo minimamente como ele é. Hoje, a minha teoria da justiça é a do Kafka. Você nunca vê o Kafka a pedir justiça. Ele simplesmente manifesta-se contra as injustiças.

 

O que é que o amor fez por si, nesse processo de reconciliação pelo mundo?

O amor é outra esfera. Uma relação amorosa onde vai tudo investido só pode acabar mal. Já usei a escrita e o intelecto contra os males de amor. Como compensação. A inversa, nunca precisei. Desde Oxford para cá, ou desde o ISCTE, a carreira foi sempre para a frente. O amor é uma coisa a mais. Fundamental, mas a mais. É um bónus! Pode-se estar sem ele. Depois há o outro amor: o amor pelos filhos, por exemplo.

 

O amor pode ser uma forma de redenção?

A gente pede demais… aprendi a pedir menos. É um assunto muito delicado. É o final do Tractatus do Wittgenstein: “Do principal, não se pode falar”. Ele não incluía o amor, mas sim a estética. E o amor é um caso de estética, de beleza, de encontro, de sintonia, que é difícil de manter.

 

Reproduziu na educação que deu aos seus filhos o modelo de educação que o seu pai lhe deu?

Estou certo de não ter reproduzido com os meus filhos a educação perversa que o meu pai tinha comigo. O meu pai tentava introduzir divisões, deliberada, consciente e perversamente, entre mim e o meu irmão.

 

Porque é que ele instigava essa competição?

Dizia-me coisas extraordinárias: “Castigo-te mais a ti, não só porque és o mais velho, mas porque tenho um fraco por ti, e então tenho de te castigar”. Eu achava, e acho, uma coisa extraordinária! O que sou na dimensão intelectual e funcional, é tudo o meu pai – pró e contra. Com o meu irmão…, o meu irmão não foi feliz.

 

É feliz?

Vou responder-lhe como o Jean-Luc Godard respondeu à Maria Antónia Palla. (Eu tinha contribuído para o encontro e fiquei a assistir à entrevista). Com um ranger de dentes, respondeu: Très [Muito]. Alguém dizer: “Eu sou feliz”, pode dar azar. É melhor não dizer. Mas tenho-me divertido! [riso] I’ve had a lot of fun.  

 

Por falar em diversão, vamos ao Maio de 68.

Comecei por me separar. Fui à boleia de um milhão de pessoas. Separei-me da minha primeira mulher no dia 3 de Maio de 68, no fim da manifestação. Já não fui para casa. Foi uma viragem existencial na minha vida. Conto-lhe. Foi muito engraçado. Acompanhava nos jornais, tinha detectado alguns sinais estranhos na sociedade francesa. Os estudantes tinham-se revoltado contra o horário de recolher das raparigas. O sexo está na origem do Maio de 68. É a libertação sexual como pierre de touche, pedra de toque da libertação.

 

Nesse caso, não só era preciso como era obrigatório falar do que é mais importante.

E por isso se diziam uma data de asneiras – o perigo que Wittgenstein não queria correr. Maio de 68: foi durante um curto espaço de tempo a libération en acte, a política da vida em acto. Todo o nosso grupo se mobilizou.

 

Grupo de portugueses?

Sobretudo. Nem fiquei longe dos emigrantes: era um instrumento que eu podia oferecer, a língua, a comunicação com os trabalhadores portugueses, que de um modo geral apanharam um grande cagaço e piraram-se. Vivemos uma semana ou duas sem dinheiro. Os bancos estiveram fechados quase três semanas. Não havia gasolina, nem táxis, nem transportes públicos.

 

Esteve nas “trincheiras”?

Sim. Na frente havia rapazes mais jovens e mais corpulentos para isso. Os franceses são duríssimos, gostam de dar porrada na polícia. Não são como o Dr. Alberto Costa que uma vez na televisão negou ter tido vontade de bater na polícia. Eu disse: “Nunca bati porque não consegui!, não foi por nenhum princípio ético”. Por coincidência, tinha tido uma briga com a minha esposa, peguei no carrinho e disse: “Vou ao cinema”. Dirigi-me ao Quartier Latin, e estava tudo a ferro a fogo. Arrumei o carrinho e fui ver as modas. Eu tinha um emprego com horários flexíveis, fui acompanhando as coisas. Assisti a imensa coisa, conferências, música, vi o Chico Buarque e o grupo dele fazer “Morte e Vida de Severina” no Odéon, vi o Merce Cunningham. O cultural acabou por ser para mim, nesta fase, aquilo a que chamo “alienação de luxo”. Um tipo não está bem no emprego, não se dá bem com a mulher…

 

Vai ao cinema. Percebeu que aquilo ia mudar a sua vida?

Não! Essas coisas nunca se devem perceber, porque senão [a vida] não muda! Claro. Diz o meu teórico favorito: as únicas revoluções são as que acontecem sem nos darmos conta delas; se nos déssemos conta, a gente não as deixava acontecer. Tomava medidas. Evitava. Ninguém diz: vou-me apaixonar. Uma pessoa apaixona-se.

 

Isso implica estar disponível.

Sou uma pessoa muito disponível. Basta manter-se vivo, caramba! Estar disponível é isso. Vivo. 

 

Quando é que se vai abaixo? Quando é que ficou menos disponível?

Ah, tive algumas ressacas amorosas beras.

 

Isso é suficiente para tomar comprimidos, como fez o seu pai?

Mas o meu pai tinha 70 e tal anos, ficava sozinho na vida e não estava habituada a fritar um ovo. A última vez que isso me aconteceu, assim, foi em Paris, imediatamente antes do 25 de Abril. Por isso vim disparado, disponível. E no entanto, acabei por ficar com a pessoa com quem estava.

 

Passou o 25 de Abril, como o Maio de 68, sozinho. Amorosamente. Como soube da revolução?

Estava a vingar-me de uma mulher escrevendo um livro. Estava a acabar de escrever, e telefonou-me uma amiga: “Já sabes da revolução?”, “Qual revolução?”. Era o meu segundo livro, sobre História, e escrevia-o em português. Em francês, escrevi o texto sobre o exílio, que nunca foi publicado, e provavelmente nunca será. Não tem interesse suficiente. Mas também não deitei fora.

 

Não é tão pouco narcisista...

Os meus amigos dizem que sou narcisista. Os menos amigos dizem que sou vaidoso! [risos] Devo ter qualquer coisa disso… Quando fui para a Biblioteca Nacional, fui pedir opinião ao Sedas Nunes, que era nosso chefe. “Vá, vá, que vai fazer um grande lugar. O Manuel tem muitas qualidades, é pena ser tão vaidoso”. [gargalhada] Gostei mais da primeira parte da frase; a outra, já é um “mas”, e tudo tem um “mas”.

 

Quando regressou em 74, foi outra revolução de que não queria ter consciência, que queria, apenas, que lhe acontecesse?

Também foi sem saber. The prove of the caking is in the eating, é provando o bolo que a gente vê que gosta. Comecei a provar no ISCTE e em Oxford adorei e não quis outra coisa. Ainda tentei ficar por lá. Mas não me quiseram. E contentei-me em tentar fazer Oxford em Lisboa – em vez de ser “Paris em Lisboa”, que já tínhamos, e que agora já não é uma loja da moda.

 

É ainda uma loja com belíssimos lençóis, no Chiado.

Já não se usam lençóis, usam-se à inglesa as capas de edredon, que compro em Oxford, sempre que lá vou. Sou muito misturado. A minha briga com Portugal é se calhar porque sou um mau português. Aliás, sou meio espanhol.

 

Ao mesmo tempo, é uma relação apaixonada.

Claro. Como é que eu digo do Basílio Teles, que é um dos autores que estudo? Que ele tem um patriotismo ulcerado. Dói tanto que até faz uma úlcera.

 

Doeu-lhe não o terem querido em Oxford?

Não. Racionaliza-se. Eu não tinha as competências que estavam a pedir e não tinha o currículo que lá prevalece. Ainda fui pré-seleccionado em Cambridge. Estavam à procura de historiadores da Europa; eu sou historiador de Portugal, e pouco.

 

Isso toca numa questão essencial: desejo e rejeição. No desejo de ser reconhecido, e no horror à rejeição.

É provável. Reconhecimento e ressentimento são pontos de que me dei conta tarde, muito tarde. O ressentimento é uma coisa que não tenho. E que combati. Isso fez parte da minha cura mística. Era esse o meu objecto: não ficar ressentido e invejoso porque outras pessoas, que eu achava que não eram melhores do que eu, tinham mais sucesso, aceitação, reconhecimento.

 

Quando é que aprendeu a lidar com isso?

Nessa altura. Cavando na terra. 

 

Quanto tempo demorou esse retiro?

Não demorou muito. As coisas boas, excepcionais, nunca duram muito. Durou mais do que o Maio de 68, menos do que o 25 de Abril. Quatro ou cinco meses. Mas o 25 de Abril nunca foi tão bom assim. Foi sempre muito político, muito partidarizado.

 

Era preciso que fosse mais amorosa e mais sexual para que fosse uma coisa mais plena? Como o Maio de 68.

Era preciso que fosse mais vital. O sexo é uma das formas de exercer a vitalidade, mas não é a única. Depois fui viver para uma casa no campo, fazer filhos [risos], com umas complicações pelo meio.

 

O António Alçada morreu recentemente. Vai fazer 70 anos. Sente-se envelhecer, tem medo de morrer?

Não tenho medo de morrer. Houve uma altura em que andei aflito, com taquicardias; mas não tinha nada no coração, no músculo. Tinha no das setas, tinha sido atingido por uma seta. Mas tive de me deitar na cama e pensar numas hipóteses.

 

Até que era mortal.

Ao fim de dez minutos, estava a pensar nas disposições que tinha de tomar, desde os seguros de vida até aos meus inéditos.

 

Estava a pensar na sua posteridade.

Exactamente. Ou seja, não morrer. Tenho muitas responsabilidades pessoais, um dos meus filhos precisa mais de mim do que os outros… Até disse a alguém: “Por isso é que não posso morrer. Não me convém morrer”.

 

Vai escolhendo o epitáfio?

Não. Já me preocupa que me levem para uma igreja… Tenho que deixar uma disposição nesse sentido. Eu sou negativo. Sou hegeliano. Não sei o que é a verdade, mas sei muito bem o que é a mentira. Quando pratico um erro, eu sei. Quando digo uma mentira, eu sei. A gente compõe as histórias – é o lado romanesco. Ninguém morre por isso. Junta-se um pontinho…

 

Juntou pontinhos na biografia que aqui traçou?

Not that I recall [Não, que me lembre].

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010