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Anabela Mota Ribeiro

João Fernandes

05.04.14

A noite começa a descer sobre as árvores. Da janela imensa que Siza rasgou sobre o parque, vêem-se as nuvens pesadas, assiste-se ao esbracejar das copas. O pulsar do tempo é sentido ao de leve. Quando João Fernandes irrompe pelo bar, em passadas largas e ofegantes, o cenário não é cortado. A conversa acentua a leveza do espaço. Do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

O atraso é considerável, mas justificado: demorara-se a convencer um mecenas a patrocinar uma exposição; que «seria feita de qualquer modo...», mas com uma diferença substancialíssima quanto ao orçamento (leia-se liberdade) envolvido.

A partir do início do próximo ano, com a ida de Vicente Todolí para a Tate Modern, João Fernandes assumirá a direcção do museu. A nomeação tem dois meses. As linhas programáticas da nova equipa só entrarão em vigor em 2005; até lá, a programação é assinada pelos dois, que estiveram na génese do museu. Inaugurado em 99, Serralves é caso de sucesso. O homem que vai consolidar o projecto, e apostar na continuação do que tem sido feito, é este que a seguir se pode ler. Tem 38 anos.  

 

... Logo que fui nomeado, senti o cansaço de as perguntas serem as mesmas, de só mudarem as pessoas. Nós próprios nos cansamos de nos ouvir, que é a chamada seca de primeira! É por isso que não podia ser político.

 

De que é que lhe apeteceria falar?

Numa entrevista prefiro sempre falar do que faço do que ter um tom confessional sobre o que possam ser as minhas obsessões ou singularidades.

 

Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas. A sua primeira ligação é com a palavra. 

O meu percurso começa com a organização de iniciativas culturais. Faço parte de um movimento associativo enquanto estudante, dedico-me a organizar concertos, trabalho com artistas, escrevo sobre arte de forma adolescente e apaixonada. Sempre tive um grande interesse pela obra de arte. Encontrei na criação artística um horizonte de liberdade irredutível que está para além dos condicionalismos sócio-políticos, económicos e culturais que a sociedade oferece ao ser humano. O confronto com essa liberdade sempre me interessou na relação com a vida.

 

Como forma de evasão da própria realidade?

Os artistas reinventam a vida de uma maneira muito própria. Trabalhar com vários artistas significa viajar entre vários mundos. Cada artista ou cada obra é um mundo próprio, que tem as suas regras, que é necessário conhecer e estudar, para proteger e dar a conhecer. O ecossistema que cada artista representa acaba por ser uma metáfora da liberdade individual que cada um de nós é capaz de ter, mas que, muitas vezes, não consegue praticar.

 

A intrusão mais séria no meio acontece com a organização das Jornadas de Arte Contemporânea, em 92. Era também uma maneira de insuflar esse sonho antigo, de encontrar algo que lhe permitisse viver à margem da vida?

Não era viver à margem da vida, mas viver dentro da vida de uma outra maneira. Viver a vida que optamos por viver, explorar uma radicalidade possível no confronto com a vida, com as coisas mais simples ou as mais complexas, dar com a cabeça nas paredes, se necessário for, mas fazê-lo à nossa maneira. As Jornadas de Arte Contemporânea fizeram-me sentir não um agente político que faz política cultural, mas um representante num contexto artístico que tenta dialogar com uma cidade, transformá-la.

 

São as Jornadas que o fazem mudar de vida?

Decidi abandonar o ensino e ser comissário de exposições free-lance. Em Portugal não havia pessoas que se dedicassem em exclusivo à concepção, produção e reflexão sobre exposições. Cedo descobri que era complicado sobreviver economicamente... Mas isso não me assustava, era um risco que estava consciente de correr e que achava que valia a pena correr. 

 

Recuando um pouco mais, onde radica esse fascínio pela obra de arte?

Leituras da adolescência, como Proust ou Thomas Mann, são leituras iniciáticas sobre o conceito de obra de arte que aí está representado, sobre o conceito de criação artística, etc.

 

São leituras que faz autonomamente?

Sim. Sempre vivi no meio de livros, sou filho único, educado com avós. Encontrava os amigos, (que não eram inúmeros), no universo dos livros que estavam em casa e que muito cedo me habituei a procurar. Esta educação literária levou-me a várias experiências interessantes: quando a Revolução portuguesa acontece, estava a ler autores tão díspares quanto Victor Hugo ou Maximo Gorki, e sentia que situações congéneres aconteciam nas ruas...

 

Porquê o impulso da organização e não o da criação na sua ligação à arte?

O fascínio pela criação não implicou uma mitificação da criação. Tenho vontade de reflectir e criar condições para a reflexão e o confronto com a obra de arte – um trabalho que estava por fazer. Portugal é um país onde a cultura crítica é escassa ou inexistente. Não estamos habituados, na universidade, na política, no dia a dia, a confrontarmo-nos criticamente connosco e com os outros. E confesso que sempre suspeitei desta famigerada condição de país de poetas em que todos somos criadores... A minha condição é um pouco diferente. Preocupo-me com a mediação, com a criação de oportunidades. Os portugueses não tiveram a possibilidade de conhecer os seus artistas ao longo do século XX, nem os artistas que havia no mundo. A arte foi roubada à vida portuguesa praticamente desde D. João V, desde o século XVIII.

 

Porque circunscrita a uma elite?

Não só. Tivemos uma elite que ignorava todas as experiências artísticas contemporâneas. Os nossos poderosos nunca estiveram conscientes das revoluções das linguagens artísticas dos últimos três séculos. Isso fez com que a sociedade portuguesa tenha condenado os artistas a uma marginalidade, à condição de estrangeirados, de exilados. 

 

Os artistas portugueses mais consagrados, como a Vieira da Silva ou a Paula Rego, fizeram carreira lá fora. Tem que ver com isso?

Sim. Só depois da Revolução é que houve condições para os artistas poderem viver em Portugal e serem conhecidos internacionalmente. Portugal foi uma cápsula isolada no tempo e no espaço. Eça de Queiroz, os Vencidos da Vida, já sentiam isso. Na cultura portuguesa há sempre a sensação de que a criação não tem país para ela. O que não quer dizer que não tenha pessoas para ela.

 

Na realidade sócio-política do país a arte é considerada supérflua. 

É uma maldição multi-secular. Se interrogarmos a cultura portuguesa dos últimos três séculos, confrontamo-nos com a sua falta de contemporaneidade. Há as excepções, claro. Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, vultos interessantes. Portugal nunca teve falta de criadores. Mas teve falta de leitores, de públicos, de cultura, sem dúvida que teve.

 

Que advém da pobreza do país?

E de uma ignorância das classes dominantes. Os dois contextos conjugados vão levar a que, quem cria, quem inova, acabe por se ver condenado ao exílio.

 

Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis são...

Os artistas contemporâneos com maior projecção internacional.

 

Vivem em Portugal.

É muito diferente comparar a situação de um Julião ou de um Pedro Cabrita com a que há pouco mencionou da Vieira ou da Paula Rego. Que são artistas francesa e inglesa, também.

 

A democracia permitiu à arte portuguesa um salto tão significativo?

Não é por acaso que as obras de artistas como Julião Sarmento e Cabrita Reis se afirmam internacionalmente na década de 80, numa altura em que o país conhece uma situação mais estável para se viajar, conhecer. A abertura de fronteiras foi muito importante.

 

Considera que a arte não tem passaporte. A ausência de necessidade de passaporte permite esta livre circulação, e, sobretudo, permite conhecer o que nos era vedado até algum tempo.

Sim. Aquilo que a obra de um artista representa nunca é um conceito de país. A cultura não depende de conceitos administrativos ou políticos. Cada artista cria o seu próprio país com a sua obra de arte.

 

Não acha que haja uma pátria artística? Que pode estar na cabeça do artista, aberta a influências do mundo todo.

Quando Fernando Pessoa disse que a sua pátria era a língua portuguesa, criou várias pátrias dentro da sua obra, através dos vários heterónimos. É um bom exemplo de como o país para um artista é o território que constrói com a sua obra. Tudo o resto são factores exógenos a essa obra. O qualificativo nacional, quando utilizado, é sempre extremamente restritivo. Em princípio a obra de arte dirige-se a todos e a ninguém. A sua universalidade é uma atitude muito individual.

 

Estava a pensar no seu interesse pela linguística. A língua materna é poderosíssima por representar a nossa primeira aproximação à realidade – todas as outras, por mais fluentes, serão sempre segundas. Na criação artística não se levanta de todo esta questão?

Para qualquer linguista, a língua materna não é a língua nacional. A minha língua materna não é a sua língua materna. Basta pensar que nasci num contexto mais agrícola ou mais piscatório. A sua gramática pode englobar nomes de peixes que eu não conheço. Não há um conceito de país nas línguas.

 

Há uma primeira aproximação à realidade através de uma língua.

Depende dos pais que teve, da família que teve. A língua portuguesa é composta de muitos dialectos; há dialectos portugueses que estão mais próximos do espanhol que do português. Há quem diga que uma língua é um dialecto com um exército e muitos canhões. A faculdade da criação nada tem a ver com a definição de fronteiras políticas.

 

Eu não estava a pensar na delimitação geográfica e política, mas na primeira aproximação e consequente nomeação da realidade exterior.

A capacidade criativa tem em conta o contexto a que se é exposto, mas não depende dele. Inventa independentemente dele. Não acredito que a arte dependa de uma arte nacional ou que o nosso falar dependa apenas de um falar nacional. Uma língua é para ser partilhada por uma comunidade. A criação artística é para ser confrontada dentro da comunidade. E é uma criação individual e um confronto individual. Uma obra de arte nunca é criada para trinta pessoas pensarem o mesmo sobre ela. A arte é um desafio individual, distinta do que é a identidade nacional. Picasso era catalão, viveu em França, e sentimo-lo como universal. Um filme de Abbas Kiarostami é profundamente iraniano mas é também profundamente universal. Se fosse exclusivamente iraniano, não o iria entender.

 

Na direcção de um museu é obrigado a atender àquilo que aprecia e resulta do seu confronto individual com a arte, e também à identidade do museu e ao confronto do colectivo com a arte. É difícil fazer a gestão desta confluência de planos?

Os museus devem ter programações claramente assumidas como opcionais. Devem ser conhecidos os gostos, identidade, filosofias de actuação. Mas não acho que os directores dos museus devam restringir a programação aos seus gostos; quem faz a programação, tem obrigação de confrontar-se com a realidade do país em que vive.

 

Poderia acontecer expor um artista cujo universo não lhe fosse particularmente atraente?

Não programo artistas em que não acredito. Um museu tem de ter uma identidade própria, e essa faz-se com o perfil do programador e das suas opções. Ao mesmo tempo, não deve ser confinado a uma idiossincrasia. Na prática, direi que é uma relação de 90% de liberdade de programação e 10% de representação de um contexto com o qual é também importante criar relações.

 

O peso de Vicente Todolí foi fundamental para a afirmação do Museu de Arte Contemporânea de Serralves no mapa internacional. Intimida-o pensar que, sendo muito mais novo no circuito, possa perder ou ter dificuldade em suster estas relações?

Se há quatro anos me visse confrontado com a possibilidade de direcção deste museu, se calhar não a aceitaria. Neste momento aceito-a porque acho que tenho condições para tal. A experiência acumulada nestes três anos e o facto de Serralves ser um museu que se integrou e afirmou no contexto internacional, foram uma importante formação para mim. Não me sinto diminuído ou coarctado para a continuação do projecto. Claro que as pessoas são diferentes, claro que o Vicente tem uma experiência muito maior, mas estes seis anos foram anos de formação.

 

Gostava de lhe pedir uma escolha imaginária para um museu privado, onde tudo cabe, com exposições permanentes e temporárias.

Está a propôr-me responder em 30 segundos ao museu imaginário do Malraux? Acredito em muitos artistas e a minha crença e gosto pelas suas obras não implica uma valoração hierárquica de cada uma delas. Não tenho obras de arte em casa. O que é quase um paradoxo, porque eu próprio gosto de entusiasmar pessoas a coleccionar arte. Pôr uma obra de arte na minha parede levar-me-ia a pensar nessa obra em função do espaço em que ia ficar. E não quero condenar uma obra de arte a domesticidade da minha casa. Não tenho a ambição de ser um coleccionador, tenho a ambição de fazer uma colecção para um museu.

 

Não tem um sentimento de posse em relação a algumas obras de arte?

Não tenho esse sentido de posse, de propriedade privada, de pertença de uma obra. Para mim, a arte não é uma decoração do espaço. A arte é uma redimensão do espaço. O incómodo que sinto quando me faz essa pergunta não é bem o incómodo do pai a quem pedem para escolher entre os filhos; mas partilha um pouco disso, sabe? Será difícil assumir preferências pessoais quando há tanta coisa e tão diferenciada que cada artista nos oferece. Vivo num mundo com muita gente que respeito, e sentir-me-ia injusto, não com os artistas, mas comigo mesmo, se fosse escolher dois ou três. Obviamente os artistas que apresento são selecções em relação a outros que não apresento... O meu exercício de selectividade e gosto faz-se na programação que faço. Mas não assumo para mim o problema de um gosto pessoal e restritivo.  

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2003

 

 

 

António Mega Ferreira

04.04.14

Esteve para chamar-se «História Universal do Amor». Depois, «Winnie», o nome da personagem feminina. E por fim, simplesmente, «O Amor».

A novela, cuja génese remonta a um tempo em que se escrevia em máquinas mecânicas, foi escrita em quatro dias; corresponde a uma elaboração sobre a solvência que o amor provoca. De permeio ficou o tempo em que se vive o amor. 

Este não é um livro autobiográfico, declara o autor. A não ser que ele seja Winnie, «Winnie c’est moi», a mulher de 50 anos que vive o amor com um homem substancialmente mais novo. (Substancialmente quer dizer 30 anos). A não ser que ele esteja dissolvido, enquanto projecção de si, em todos os personagens. A não ser que a definição de amor seja a sua vertida para a existência destes personagens. Definição, em qualquer dos casos, que não pretende ser conclusiva.

Eis o Amor segundo António Mega Ferreira.

 

 

«Todo o amor é um acto de identificação e reconhecimento. Encontramos na pessoa amada, não um reflexo, o que seria pobre, mas uma ressonância da nossa própria alma». É o que pensa acerca do amor?

Esse é o leitmotiv da novela. Na novela escreve-se a partir de uma ausência. O narrador só escreve depois de o objecto do amor ter morrido. Para aprender o que é a essência de um amor é preciso uma enorme distância. Uma coisa é viver o amor, outra coisa é percebê-lo.

 

Uma coisa é a essência do amor, outra a existência do amor? A essência enquanto dimensão pura e a existência enquanto concretização?

Vivemos um amor, mas só o percebemos depois, muito depois. E é um mecanismo de identificação e reconhecimento de nós mesmos. É o que pretendo transmitir com a enigmática frase final, quando se diz que ela lhe deixou o sótão e todos os seus segredos e ele tinha finalmente todo o tempo do mundo. Achei que talvez seja isso o amor: ter todo o tempo do mundo para poder rememorar, evocar, e portanto perceber.

 

Esse “todo o tempo” corresponde a uma liberdade, a uma coisa à margem do tempo?

Isso. Em última análise, na novela, podemos interrogar-nos se a Winnie existiu, se o objecto físico do amor existiu. Não é isso que está em causa. Perceber a essência do amor não significa necessariamente a existência do objecto desse amor.

 

Porque o objecto do amor é sempre a outra parte de nós? Ou seja, o que é que amamos no outro, e não é isso sempre uma projecção de nós mesmos?

Claro. É a ideia do reconhecimento e da identificação de nós mesmos em função do objecto amado.

 

Dito desse modo, parece que não existe senão o amor egoísta, parece que não nos amamos senão a nós no outro.

O outro é sempre um guiador. Um guiador que permite, quando mais tarde tentamos perceber a essência do amor, reconhecermo-nos e identificarmo-nos. Na altura em que um grande amor é vivido não é isso que está em causa; não se trata de percebê-lo, mas de vivê-lo. Vivê-lo mergulhando na alteridade absoluta, dissolvendo-nos no outro. Noutro plano, quando se evoca um grande amor, ao fim de muito tempo, a única coisa que interessa é perceber como é que estivemos nesse amor. 

 

O personagem da novela sente um choque quando, ao percorrer os cadernos dela, se descobre praticamente inexistente no seu discurso, o que quer dizer na sua vida. A questão é saber como é que o outro nos transporta no seu amor.

Exactamente. Essa surpresa da sua inexistência no discurso dela, leva-o a interrogar-se sobre o lugar que teve nela, e na vida nela. Creio que o lugar está definido com a última e suprema dádiva que ela lhe faz. Ele foi, possivelmente, o homem mais importante da vida dela. 

 

Felizmente não há respostas taxativas, nem para os enigmas da novela, nem para o próprio amor. Lembro-me de ter lido uma entrevista sua na qual manifestava indignação porque andavam a tentar descobrir porque é que o chocolate nos agrada tanto. A sua resposta era «Porque é bom, porque dá prazer», ponto. Não é preciso saber mais nada. 

O hiper-racionalismo e hiper-cientismo contemporâneo horroriza-me. Em grande parte, empobrece o prazer. Que é ilimitado, exclusivo, possessivo e irracional. Penso que tem que ver com a forma como concebo a ficção: a ficção não dá nenhuma resposta. A função da ficção é interrogar. Esse horror é o horror pelas coisas definidas, branco e preto, uma moral afirmada, etc. A melhor parte da nossa vida joga-se em zonas de cinzento, em zonas de penumbra.

 

Na irracionalidade?

Na zona de penumbra que contém em si mesma uma grande dose de irracionalidade. A melhor forma de viver isso é compreender o que é que essa irracionalidade nos traz como vivência.

 

E há o modo como nos descobrimos na irracionalidade.

É uma forma de compreendermos que, em última análise, o mundo é largamente inexplicável.

 

É inexplicável, e por isso extraordinário, pensar como é que entre milhões e milhões de pessoas, amamos justamente aquela. Não há nunca uma justificação cabal para a escolha.

Só pode ser assim. Aliás, é curioso que quando estamos numa situação de amor, de paixão, etc, há momentos em que tentamos objectivar e construímos um discurso racionalista, «Eu gosto dela por isto e por aquilo». Só que às vezes temos gostos completamente contrários e gostamos também muito da pessoa... Temos uma tentação de produzir um discurso racional sobre uma coisa que é largamente irracional. A escolha afectiva é largamente irracional, no domínio do amor. No domínio da amizade, é diferente.

 

O que traduz essa tentativa de racionalização que tentamos imprimir ao amor? É uma defesa, não é?

É uma tentativa de domesticar, de tornarmos apropriável, intelectualmente, aquilo que tememos, e que na verdade não é apropriável. Vivemos numa civilização dominada por essa vertigem de controlo: controlo das emoções, das situações, da doença, da morte. É o espírito do tempo. Não é o meu espírito. Evidentemente na vida social a necessidade do controlo dessas situações é imperativa; o que ela tem de compreender é que deve ceder em determinados domínios a uma certa irracionalidade. Que, no fundo, acaba por nos reconciliar com a própria vida.

 

Como assim?

Pelo menos eu, quando penso na minha vida, penso nas coisas que fiz racionalmente e satisfazem-me umas, outras menos; mas as coisas que me satisfazem mais são as que obedeceram a impulsos, que não são racionalizáveis. Por exemplo, como é que esta novela foi escrita? A ideia original existe há 16 anos, as primeiras folhas estavam escritas a máquina de escrever mecânica; estiveram 16 anos completamente adormecidas, com algumas camadas sobrepostas (escritas a máquina eléctrica e outras a computador). Mas agora, num impulso, escrevi a novela em quatro dias. De repente, «Onde é que tenho aquelas folhas da Winnie?». Ceder a esse impulso foi o melhor de ter escrito esta novela.

 

O que o extasia é estar sob?

Justamente, é estar sob a influência de. É o largarmo-nos. E no exercício da escrita é uma dupla tensão: é o deixarmos ser conduzidos pela imaginação, e ter ao mesmo tempo uma enorme vigilância sobre a própria escrita. Essa tensão causa algum sofrimento, mas um grande prazer também. Não está provado que alguns dos melhores prazeres não passem pelo sofrimento.

 

É pela dor da ausência de que se descobre o prazer da presença de.

É assim que se mede, se avalia o que isso foi.

 

Disse que tudo o que é preciso saber sobre as relações amorosas estava no «Ligações Perigosas» do Laclos.

Estão lá as declinações todas. Na novela, nunca se consegue perceber muito bem o que é que eles encontravam um no outro. Nas descrições que ele faz podemos pensar que admirava uma coisa nela: o facto de ser muito mais velha, e de ele ser um rapaz; portanto, a vaidade pessoal do jovem macho. Mas depois percebe-se que não é só isso: fisicamente, desejava aquela mulher. Depois salta para outra dimensão: ela transmitia-lhe um conjunto de conhecimentos que o fascinavam. Ou seja, o que é que realmente nos faz amar no amor? Possivelmente uma parte de cada uma destas coisas. Possivelmente, nalguns casos, apenas uma delas. 

 

As relações parecem resultar muitas vezes de equívocos: do que se procura, do que é, do que se prolonga.

Das projecções que se fazem. Da fantasia, da ilusão do que procuramos no outro. Quase tudo o que se pode saber sobre o amor está em meia dúzia de obras de arte, e, porém, o amor é sempre uma coisa diferente.

 

«Para saber de amor, para aprenderle, haber estado solo es necesario», como se escreve na epígrafe. Posto no maniqueísmo da essência e da existência, o amor na existência é possível?

Não. O amor é impossível. Como o vimos construindo há séculos, é uma impossibilidade. É um equívoco extraordinário, gigantesco, absorvente. Possivelmente a maior parte das coisas sobre as quais construímos a nossa civilização e cultura são impossibilidades. Não as torna menos gloriosas. Pelo contrário: lutar por uma impossibilidade é uma forma superior de luta. Mas, exactamente porque não é controlável, racionalizável, etc, o que é o amor? Quando se chega ao fim deste livro pergunta-se o que é. E todos os livros hão-de acabar a perguntar, finalmente, o que é.

 

No livro está explicitada a impossibilidade: é porque há uma ausência que há a consciência de.

É sempre tarde para o amor. Quando percebemos a essência do amor, ela já não existe. 

 

Quando percebeu isso?

Quando escrevi. Toda a escrita é uma tentativa. É um ensaio, nunca é um relatório. A escrita tem uma capacidade de iluminação do real, que as outras artes também têm, à sua maneira. Se não conseguisse escrever saberia muito menos sobre mim e sobre o mundo. Fui descobrindo a escrever.

 

Quer dizer que aos 50 anos perdeu definitivamente a inocência em relação à possibilidade do amor?

Terei perdido a inocência, mas não perdi ainda a capacidade de me deslumbrar. Significa que até ao fim a capacidade de me deslumbrar e apaixonar continua a existir. Talvez tenha perdido a inocência; pelo acumular de experiências, e porque o tempo passou, porque é possível olhar. Mas dizer que o amor é uma impossibilidade é enunciar uma verdade relativa, não há verdades absolutas nesta matéria.

 

Sabe falar com homens sobre o amor?

Não. As coisas mais profundas da minha vida converso-as com as minhas amigas, não com os meus amigos. Eu não me escondo às minhas amigas, sou capaz de ser completamente outspoken..., até ao pormenor. Encontro uma compreensão que tem que ver com uma enorme capacidade de ouvir e responder. Não sei se a palavra certa é compreensão... Pode ser afecto. Mas é um afecto diferente do que os homens sentem.

 

Porque é que acha que cada vez mais as pessoas fogem do tema do amor, e disfarçam falando de sexo, de conquistas?

Porque as pessoas evitam falar do que as põe em causa. O amor, porque é incompreensível, põe-nos profundamente em causa, descentra-nos. Daí que tentemos quantificar, catalogar as emoções violentíssimas que o amor desperta. Ao catalogar achamos que estamos a controlar racionalmente o que é irracional.

 

Trata-se de não ficar refém. Na história de amor do seu pai e da sua mãe, a primeira, na sua aprendizagem de relação amorosa, quem amava mais quem?

Durante muitos anos achei que a minha mãe amava mais o meu pai. Hoje em dia, apesar das vicissitudes, discussões, problemas, acho que tinham um pelo outro um sentimento de uma dependência recíproca. Quando o meu pai morreu a minha mãe tinha 49 anos, nunca mais teve nenhuma espécie de relação – não lhe fazia sentido. E o meu pai viveu muito em função de uma coisa que admirava na minha mãe, que era a sua enorme energia. Não tenho dúvidas que se amavam profundamente.

 

Então o amor pode ser possível.

Bom, quando digo que o amor é uma impossibilidade, é uma noção relativa... Estava a pensar na matriz do amor na nossa cultura. Se me perguntar «Porque é que eles se amavam?», não sei. Sei que se amaram até ao fim. Mas a vida daqueles dois é uma impossibilidade amorosa de acordo com os cânones.

 

Consegue identificar, como este homem e esta mulher da novela, a pessoa da sua vida?

Acho que sim. Não vou dizer o nome. A mais marcante, a mais recorrente, a que contribuiu para virar a minha vida. É disso que se trata.

 

O amor traduz plenitude e singularidade? Plenitude porque há no processo de identificação um reencontro com a plenitude que nos constitui, e singularidade porque dentre todas é absolutamente aquela.

É. Vamos retomar a distinção do início da conversa: o amor é vivido em plenitude como existência e vivido em singularidade como essência. 

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle em 2005

 

 

Maria João

03.04.14

Em doze dias foram gravadas vinte canções. Canções como o Black Bird dos Beatles, depurado a traço infantil pela voz de Maria João; canções como O Quereres de Caetano Veloso, rasgado num rap muitíssimo urbano e poderoso; canções como Love is the Seventh Wave, de Sting, reinventada para o calor de uma noite de Verão; há até canções como Corazon Partio, despido da latinidade de Alexandro Sanzs. E há canções dos muito amados Prince e Tom Waits.

Undercovers é uma página inesperada na carreira de Maria João e Mário Laginha. É o disco das canções que eles amam e ouvem no carro, cantando por cima, a plenos pulmões, ou em casa, escolhas eternas. Fizeram uma audição exaustiva das canções das suas vidas, ficaram com estas, recriaram-nas em menos de duas semanas.

Maria João tem 46 anos. Quando tinha vinte anos pensava que ia ser para a vida toda professora de aikido, arte marcial que continua a praticar. Interessou-se desinteressadamente pelo canto quando percebeu que os seus pulmões lhe permitiam coisas extraordinárias; pelos anos fora, foi descobrindo as potencialidades infinitas do seu aparelho. Tem uma carreira internacional reputada (na Alemanha, por exemplo, é uma diva). O seu projecto musical mais sólido é o duo com o pianista Mário Laginha. 

É uma força da natureza.

 

 

Este disco é inusitado no seu percurso. Porque é que decidiu fazê-lo?

O Mário [Laginha] e eu temos um amigo, o Nuno Artur Silva, que há muito tempo nos andava a pedir, «Façam um disco de covers». Ele é o principal causador deste disco. Existe, aliás, uma polaróide de 95, tirada pelo Nuno Artur, onde aparecemos o Mário, a Ana Luísa Guimarães, e eu, e em baixo lê-se: «Dia da decisão irrevogável de fazer um disco de standards»! Há uns meses, decidimo-nos! Um dia, um dia e uma noite, sentámo-nos em casa do Nuno Artur, e ouvimos música até não poder mais!

 

A polaróide falava de standards, que foi aquilo que começou por cantar quando era ainda, no sentido estrito, uma cantora de jazz. E agora, arredou-os completamente deste disco.

Seria o esperado. Mas há tanta, tanta gente a fazer isso... A [Diana] Krall, a Dianne Reeves, a Dee Dee Bridgewater. E não me ocorre acrescentar mais nada àqueles temas, que estão sempre, um ou outro, nos discos de toda a gente.

 

O percurso dos últimos seis anos, vocacionado para a world music, tem sido intenso, com a edição de um disco por ano, e com um sentido musical continuado. O que quer dizer na vossa carreira este disco, que rompe absolutamente com o que têm feito?

Vírgula. Vejo-o como uma vírgula. Mas, sendo um disco de covers, tem a nossa impressão digital, o discurso é nosso. Como se continua?, isso não faço ideia.

 

A partir dos seus discos, imaginei que ouvisse coisas mais jazzísticas, os virtuosos. Este disco, ao contrário, revela que ouve mainstream, pop de todos os dias.

Aqueles cantores são alguns dos cantores que ouço, e são absolutamente virtuosos! Prince, é maravilhoso ouvi-lo, é maravilhoso ouvir alguém que canta muito, muito bem. O Tom Waits... Para mim, o Tom Waits é o mundo inteiro. Ouço-o naquela forma de cantar...; pensa-se que se fartou de beber bagaço, de fumar cigarros, e depois encontra-se um lirismo, uma inocência naquela voz roufenha... 

 

Conhece o Tom Waits?

Não. Amava conhecer o Tom Waits!

 

Gostava que ele ouvisse as suas versões?

Gostava. Não faço ideia o que pensaria...

 

Neste disco há também uma versão para um original vosso, Charles on a sunday with sunday clothes, do álbum Cor (98), que a Bjork integrou no seu repertório de concertos. O que sentiu quando soube que a Bjork cantava uma canção sua?

Uauuuuu! Nós temos uma aproximação. O assunto surgiu recorrentemente durante a gravação, «Pá, tu fazes isso, mas isso faz lembrar a Bjork». Eu estou-me nas tintas que faça lembrar a Bjork!, sempre fiz isto, tenho esta forma. Não vou deixar de fazer coisas só porque se parecem com a Bjork. A Bjork tem também coisas parecidas comigo. Não é vaidade, é uma evidência. Mas como ela é muito mais conhecida, torna-me a mim parecida com ela, e não o oposto. Isto é estúpido, e injusto.

 

Além do seu aparelho vocal, há duas coisas que a singularizam: um lado niger, uma africanidade que acentua, como quem tem um orgulho de raça...

Sim, sim.

 

E um outro lado, o da inocência que se deslumbra com brinquedos. Neste disco, as potencialidades do aparelho são menos exibidas; mas o seu modo de cantar é reconhecível nestas características.

O Mário Barreiros dizia que me aproximava do modo de cada uma das pessoas interpretadas. Mas depois, estava também o meu modo, que passa por isso que disse. São fios condutores, sim.

 

Como é que despiram as canções e depois as vestiram à vossa maneira?

O Mário Laginha fez o trabalho mais difícil. Os arranjos são dos dois; falámos disso nos aviões, nos carros, nas carrinhas das tournées, «Olha, aqui imaginava não sei o quê». Nos arranjos, tudo o que é mais sério e profundo, como os arranjos de cordas, são do Mário; as coisas mais bem dispostas, são minhas. O Mário Barreiros é um músico fabuloso, há anos que pensávamos fazer qualquer coisa com ele; para este disco, precisávamos de alguém que tivesse um pé na pop e um pé no jazz. Constamos os três como produtores.

 

O disco vai ser distribuído pela Verve? O selo Verve implica uma direcção incisiva sobre o vosso trabalho?

Às duas por três, já não sei se é uma grande coisa ser distribuído pela Verve... A Verve é mais direccionada para o jazz, para os americanos. Nós estamos naquele meio, de que gosto muito, mas que nos torna inqualificáveis. Para um festival de jazz, somos muito world music, para um festival de world music, somos muito jazz. Com alguns promotores, mais quadrados, torna-se difícil; já ouvi um promotor dizer: «Ao meu festival, só vêm americanos, e pretos!» É a coisa mais racista e estúpida que já ouvi.

 

Têm esperança de vender particularmente bem no mercado americano? A Cassandra Wilson acaba de lançar um disco de versões, também. Sendo que o disco dela é mais voltado para os standards, e o vosso, quanto a mim, é melhor. 

Obrigada. Mas a Cassandra é americana, e é negra. Mesmo que faça outras coisas, é catalogada desde logo como americana e negra. E nós..., nós não! Mas eu não me posso queixar, a sério, tenho tanta sorte... Para já, com o instrumento que tenho, depois com os músicos com quem tenho tocado.

 

Este disco aparece um ano depois de a Maria João e o Mário terem deixado de ser um casal. O disco é, simultaneamente, um corte criativo com um período em que o pessoal se misturava com o profissional?

Não o vejo assim.

 

Conseguem manter a afinidade criativa, a despeito do afastamento? Em palco, são muito cúmplices. 

Ao princípio, depois de nos termos separado, foi muito difícil. Uma pessoa habitua-se a ter coisas do outro que depois supostamente não teria... Mas durante os concertos, as coisas que estavam, continuam a estar. Isto é, gostamos imenso um do outro, temos imensa admiração um pelo outro, musicalmente cuidamos muito um do outro. É isso que continua a existir. Também continuamos a dar-nos mal um com o outro!, o que sempre existiu... O palco é como um psiquiatra: sabe quando diz uma coisa à frente de terceiros que não faria nem diria se estivesse a sós com a outra pessoa? Faz sentido?

 

Este desligamento deixa-vos mais livres para outros projectos? Vem agora de cantar, mais uma vez, com o Josef Zawinul dos Weather Report.

O Mário tem também necessidade de fazer coisas com outras pessoas, de ser igualmente reconhecido. Este duo não é o duo da Maria João, é o duo da Maria João e do Mário Laginha. Mas em muitos lugares, sobretudo fora de Portugal, estava anunciada a Maria João, a coisa da cantora. Eu não tinha culpa, mas a verdade é que era muito assim, e esta diferença era muito desconfortável para nós. Agora, faz parte do nosso contrato: aparece o meu nome, e o do Mário tem de aparecer em caracteres iguais. Percebo isto nele, e percebo a sua necessidade de fazer coisas musicalmente diferentes, com outras pessoas. Eu também tenho essa necessidade. Com o Zawinul, sou completamente convidada, special guest, featuring.

 

É uma convidada regular. Há alguns anos que colaboram.

Basicamente, sempre que há dinheiro, convida-me. No outro dia fez-me uma coisa muito calorosa: «E agora, a Maria João,  fantastic singer!, a nossa convidada mais amada e aquela que há-de sempre vir». Oh, babei-me!, fiquei logo com os olhos cheios de lágrimas, borrei a pintura toda.

 

E agora, a roupa! É muito vaidosa?

Sou, pois!

 

Esse lado coquette é exacerbado quando está em cima do palco?

O palco é o meu sítio de eleição, onde me acho mais bonita, mais feia, mais elegante, mais deselegante, mais rouca, mais límpida. Procuro vestir-me o melhor possível. Conforme o dinheiro que tenho, vou comprando. O ano passado fartei-me de trabalhar, ganhei muito dinheiro, e gastei-o todinho, é certinho. Este ano é um ano mais vazio, por causa da crise mundial. Gastei em quê? Roupas, coisas... No outro dia, dizia ao Zawinul: «Então, com isto tudo, tu és rico?», e ele: «Eu não sou rico, mas tenho tudo o que quero, vivo bem». Esta ideia é bestial. Tenho tido qualidade de vida. Apetece-me vestir aquela roupa, compro. O João, o meu filhote, precisa daquilo, compro.

 

O que é que gosta mais? Sentir o conforto da peça? Sentir que a peça é rara e lhe pertence?

Adoro essa ideia. Não me lembro nunca de ter cantado com roupa emprestada. Nem pensar! Tenho de sentir que aquilo é meu, meu!, e que é a minha cara. Tive a ajuda, primeiro dos Manéis [Manuel Alves/José Manuel Gonçalves]; foram óptimos, fizeram coisas para mim, para mim. Agora, com o José António Tenente, a mesma coisa. Sempre que tenho dinheiro, vou lá.

 

E antes dos Manéis?

Tinha a Dona Leontina, a costureira do bairro onde morava: tinha umas ideias, e ia lá. Nessa altura vestia-me mesmo mal, não tinha dinheiro e não tinha orientação.

 

Só lhe conheço peças raras; nunca lhe vi uma t-shirt da Zara, por exemplo. É, justamente, por serem raras que gosta tanto delas?, porque a fazem sentir única?

Exactamente. Gosto muito dessa sensação, é boa. Adoro Issaye Miyake; há peças dele que são investíveis, porque são feitas para gente magrinha, sem peito. Bom, eu não sou magrinha e tenho peito... Mas há coisas que comprei como quem compra um quadro: achei-as uma obra de arte. Não visto, mas não me separo delas!, e não me imagino a não as ter. Percebe isto?  

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle 2003

 

 

 

Rui Reininho

02.04.14

Rui Reininho, o Reinito, como ele se chama, fez um disco a solo. “Companhia das Índias” conta com velhos parceiros, como Zé Pedro e Rodrigo Leão, e músicos da nova geração, como Armando Teixeira, que o conheceram quando ele já era um performer que enche estádios.

Passou dos 50. Gosta de vestir bem. Trata bem palavras como Equilíbrio. Adepto da quiroprática ou da comida macrobiótica. Tem um filho cujo crescimento acompanha. Vive entre Porto e Lisboa.

A entrevista, que teve o disco novo como ponto de partida, foi o pretexto para falar do estado das coisas. Para falar da mãe e das mulheresem geral. De uns sapatos de crocodilo a que não resiste. De envelhecer e de gostarem de nós. Das conversas com pessoas da rua, das coisas de todos os dias.

Começou por dizer que estava de luto…

   

Este fim de semana foi a dois funerais. Está a chegar aquela idade em que se começam a perder pessoas…

Com a minha provecta idade, já enterrei muita gente.  

 

Gostava que a idade e o tempo fossem um dos vectores da entrevista. Até porque o disco a solo marca um novo tempo.

Houve um renascimento. Estou habituado [a perder pessoas]. Sou do género voluntário. Tenho a sensação que sou daqueles que se atiram à água para salvar pessoas. Sempre me dei com comportamentos borderline, desde novo começámos a perder gente no nosso exército. Os meus amigos morreram porque apanharam doenças, de overdose, porque tinham práticas arriscadíssimas. Aos 19 anos, já estava a fazer salvamentos na casa de banho. Começava logo a fazer boca a boca, chamem a ambulância… Sempre combati do lado da vida. Tive muita sorte.

 

A artista plástica Nan Goldin dizia, justamente, que teve sorte: porque teve o mesmo comportamento dos amigos, e salvou-se. E que sentia até uma culpa por ser ter salvo.

Nos anos 80, sex was a hand-shake between friends [o sexo era um aperto de mão entre amigos]. Eu estava em Lisboa nos anos 80, no Bairro Alto; trocava-se de namorado, de parceiro. De um modo completamente desprotegido. O único medo que tínhamos era do herpes. [risos] Era um comportamento desabrido. Ainda hoje se exige aos artistas que morram cedo, que desamparem a loja.

 

Isso é para podermos continuar a mitificá-los?

A gostar deles, sem os ver envelhecer.

 

Não assistimos às rugas do James Dean. É disso que as pessoas têm horror: de verem também as suas rugas?

“Este gajo está a ficar velhote, e eu também estou, que chatice”. Isso é o contrário do amor – que é querer envelhecer com alguém. É uma relação muito egoísta. O que é giro é o Kurt Cobain? Não, o que é giro é o Carlos do Carmo. Comecei a perceber as coisas de outra maneira. É como no rock and roll: “When is too loud you’re too old” [quando está demasiado alto, tu estás demasiado velho]; já não há paciência para ficar à porta, e não ter bilhete. Esta vida exigia uma prática, uma militância muito grande. Vir cá abaixo, ficar a dormir debaixo das pontes, em casa de amigos… Conheci o Zé Pedro nessa altura, antes de ele ser Xutos e eu GNR. Eles diziam: “Lá vem o Rock Clube do Porto!”

 

Hoje, estão uns músicos burgueses, e encontramo-nos num hotel chique da cidade.

Mas isso não é culpa minha! Podíamos estar numa tasca qualquer.

 

Gostava de cruzar a ideia de envelhecimento com a sua hipocondria. Estava a dizer que é voluntarioso desde sempre, que vai lá salvar… 

Comigo sou mais aflitinho. Continuo a ter muitos nervos antes dos espectáculos. Acordo e o meu pânico é estar afónico. E meia hora antes, saber se vou conseguir fazer aquilo a que me proponho. Aquele nervoso que sinto é o do primeiro encontro – a que os americanos chamam date. Será que ela vai estar? Vou levar flores? Antes dos espectáculos é como estar pré-apaixonado: vai correr bem?, vamos jantar fora?

 

Ainda existe esse medo da rejeição antes de todos os concertos?

Não é da rejeição. É de não conseguir. É por isso que não concordo que isto seja uma coisa tão burguesa. No nosso mister, somos sempre postos em causa. “Ah, o gajo não se mexe, ah, este disco é pior, ah, ah, vendeu 40 bilhetes, coitado, foi um flop”. No caso português, é muito bom e não enche, ou já não é bom porque vende muito e enche.

 

Como é que foi vivendo com os ups and downs nestes 30 anos de carreira? Tudo começou quando?

[Tudo começou] em 77. Um ano fulcral para mim. Não vou à tropa e faço o primeiro disco. Decido optar por estas vidas. Já tinha desistido de ir para advogado. Houve essa decisão com os meus capangas GNR: desistimos dos cursinhos, vamos fazer isto. Éramos uma middle class, com tendência a upper – Boavista e Marechal Gomes da Costa, no Porto. Ups and downs? Há pessoas que lidam muito mal com isso, com a falta de atenção. Comecei a ausentar-me quando posso: desligo o telemóvel; se me convidam a ir à televisão, a não ser que tenha alguma coisa para mostrar, recuso; não quero estar sempre a opinar, a aparecer. Toda a gente já apareceu na televisão e em programas para acamados.

 

Ao cabo de 30 anos, está por sua conta. Tinha receio quanto ao que pudesse resultar do disco?

Não. Fi-lo muito à vontade, de maneira muito descontraída. Gravei em casa de várias pessoas. Vamos falando sobre coisas, sobre a vida. “Então agora, ‘bora lá gravar?”. E com um pouco de auto-confiança que tenho, e como não estou xexé e senil, não ia sair uma grande porcaria. Eu vinha de eléctrico para o ensaio – agora vivo em Belém. Achei muita graça: “É o gajo?, e anda de transportes públicos? Isto está mau para todos”. E está! E na minha indústria está muito mau. Há pessoas que me dizem: “Estás a fazer um formato que já acabou”. Mas também o vinil já tinha terminado…

 

Várias pontas soltas: porquê o disco a solo agora? Porquê a insistência neste formato?

Por preguiça e tempo. Não estou na fase, como estivemos nos anos 90, de fazer 100 espectáculos por ano. Tenho mais tempo, estou mais comigo. Tenho mais tempo para acompanhar o meu pré-adolescente [o filho, António Sancho]. É um disco diurno. Desenvolvi um conceito meio esotericozinho, meio qualquer coisa.

 

Na capa parece que virou alquimista! Mas aí, já estou a juntar o que sei de si: o seu interesse pelas medicinas alternativas, e o seu humor.

É uma atitude bem disposta. Não posso ir para o Nepal um ano – era o que eu gostava de fazer. Vivemos disto, não posso parar meio ano. Uma vez estava com o meu miúdo, de férias, na Legoland, e ligaram-me: “Eh pá apareceu uma coisa no Funchal, daqui a quatro dias consegues estar aqui?”. Fomos a Londres. Levei-o a uma cidade que aprendi a amar por causa da pop rock. E vejo-a com outros olhos.

 

Como é que ele olha para si?  

Vê a persona pública e o pai. O único business em que se mete: quando lhe apetece vai ver espectáculos. Relaciona-se com a equipa de montagem, dá uns toques na bola à tarde, já aprendeu que na mesa de som é onde se ouve melhor. É um miúdo tranquilo. (Eh pá, falharam no tomate. [Tinha pedido uma sanduíche sem tomate]. Não me dou bem. E naqueles livrinhos [de alimentação segundo] o grupo sanguíneo, percebi que não tenho grande tolerância. Não se importa que vá comendo e que vá falando?)

 

Nada. Ainda gosta muito de palco?

Faz-me muita falta quando não o tenho. É um grande prazer estar no palco com aquelas criaturas (GNR). Começámos num sítio pequeno. A certa altura já não cabíamos nesse e estávamos no [Teatro] Carlos Alberto, a abanar, a cair. Depois, no Coliseu. E quando damos por nós estamos num estádio, porque já não cabíamos em lado nenhum. Sempre com inseguranças, dúvidas existenciais. Não tínhamos a coisa esgotada à partida.

 

Foram o primeiro grupo a encher um estádio. E o disco vendia muito. Não tinham nenhuma certeza quanto à afluência do público?

Nessa semana, o agente disse: “Break a leg, parte uma perna, que temos três bilhetes vendidos”. Só no sábado à tarde soubemos que tínhamos lotação esgotada, quatro ou cinco horas antes do início do espectáculo. As pessoas entraram na leva: “Quero ir ver”. Também podiam dizer: “Não vou, não vou”.  

 

A sua mãe continua a seguir de perto a sua carreira. Vai ver os concertos? O que é que ela achou da aventura a solo?

Talvez desnaturadamente, não a levei à Casa da Música, que era o melhor sítio em termos de comodidade. Mas era uma questão de horas; coitadinha, não está em condições a partir de determinada hora.

 

E as girls? Isto é uma revista feminina: é suposto que saibamos que relação tem com as mulheres…

Muito boa. Devo muito ao eterno feminino. Não tenho queixas.

 

Quando era um moço muito jovem, era um sex symbol, um ícone do glamour rock para as raparigas.

Não olho para o espelho dessa maneira. Tenho o mínimo de preocupação estética – para não ser desagradável. Mas tenho os meus desleixos, e gosto. No outro dia, uma senhora disse: “Gosto muito das suas músicas. Se você pintasse o cabelo, as raparigas novas gostavam mais de si!”. “E quem é que lhe disse que eu quero raparigas novas?” [risos]. “Não me diga que é desses…”. Tenho conversas muito engraçadas com o pessoal da rua. O meu paizinho, quando comecei a vestir umas coisas unissexo…

 

Temeu que “fosse um desses”…

Imensamente. Ameaçou-me que não íamos de férias se eu usasse umas bermudas às flores. Eu tinha o cabelo pelos ombros, brinco, socas… Era excêntrico, agent provocateur. Continuo. Não resisto a uns bons sapatos de crocodilo! O Dalai Lama usa Dock Martens. Ninguém é santo. O público feminino: não o confundo com as minhas amigas e as minhas amantes – agora faço de Zezé Camarinha, mas estas coisas não se contam em números. 

 

Que constante há nessas amantes? Apaixona-se sempre pela mesma mulher?

O que me faz apaixonar? Com o máximo de franqueza: era um espírito narcísico, era gostarem muito de mim. Tolerarem-me com os meus desvios, maluqueiras, sintomas. Ainda é. A estima, a paciência que têm comigo deixa-me derretido. A cumplicidade. Sou uma criatura um bocado ciumenta, terrivelmente. Se entro num processo de desconfiança, é mesmo patológico. Por conhecer a volubilidade das mulheres, receio que façam isso comigo… Ando a curar-me nesse aspecto.

 

Inseguro?

Há dois tipos de homens. Os que, quando entra uma moça espampanante, olham para ela; e os que olham para os outros homens. Sou dos que olham para os outros. Quem é que está aqui na área?…

 

Voltamos ao disco? Porque fez uma versão das Doce e outra do Cazuza?

Quando me foram feitas as primeiras propostas [para uma aventura a solo], não tinha repertório. Fiz a música revolucionária: Sex Pistols (o “Anarchy” em versão cha-cha-cha), Doors, Hendrix. Este disco tem 40 e tal minutos, e estou a fazer espectáculos de uma hora. Também faço o “Space Oddity” do David Bowie. O “Ciao Amore”, da Dalila. O Cazuza é uma coisa afectiva, e a música é perversa, tem que ver comigo…

 

Cazuza não envelheceu. Morreu com sida, jovem. E com os temas do envelhecimento e da morte voltamos ao princípio da entrevista.

Cazuza era um pouco um Mick Jagger brasileiro, bissexual. “Faz parte do meu show” é uma canção lindíssima. No álbum há mais duas ou três que têm condições de chegar às pessoas. Não quis que fosse pretensioso. Dizem que é pouco ousado… Achei estranho. Aquilo não é preguiçoso: é relaxado. Quem me conhece sabe que sou assim. E é bom para espicaçar os meus capangas GNR, para chegarmos aos 30 anos. Isto é para subir.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2009

 

 

O João é luminoso e intenso (e autista)

02.04.14

O João é um menino luminoso e intenso. Gosta de andar de autocarro, pregar pregos, ajudar a mãe a fazer bolos. Gosta do Noddy. Gosta de chapinhar nas poças de água e sujar-se e parece que está a aprender a ler. Nada disto era assim quando estava fechado no seu mundo.

A reclusão "começou" mais ou menos aos dois anos. Ele hoje tem oito.

Os passos de gigante que tem dado devem-se ao Amor dedicado, inabalável dos pais, dos avós, dos educadores, de todos, e muito a si mesmo, ao seu esforço. O método que tem sido seguido para fazer do João menos "especial", mais integrado e mais feliz é o Sonrise.

Não consigo em duas linhas dizer mais sobre isto, mas queria deixar uma mensagem aos que têm filhos autistas: não se pode dizer "não tem cura". Não se pode desistir. 
Outra coisa que quero dizer: uma das pessoas que mais admiro na vida é a mãe do João. Se todos amássemos como ela, se fôssemos mais como ela... Oh, obrigada por existires, Joana. (Um abraço também ao Miguel.)
Hoje é o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo.

 

ps: Raun foi o primeiro menino Son-Rise. Diagnosticado com autismo severo e sem qualquer tipo de comunicação. Os pais dele são os fundadores do programa Son-Rise. Hoje o Raun é um dos professores do método e CEO do Autism Treatment Center of America. 
Click on this link to my Fox & Friends interview about my new book, #Autism Breakthrough!

https://www.youtube.com/watch?v=lV-CTtLzojQ&feature=youtu.be

 

John Malkovich

01.04.14

Numa manhã de calor, quase por acaso, conheci John Malkovich. Ele estava à entrada de um centro comercial acompanhado pelo produtor Paulo Branco. Assistimos juntos a uma projecção privada de «O Tempo Reencontrado», o filme de Ruiz inspirado na obra magna de Proust, cujo elenco integra.

Usava um fato alinhado, de tom claro. E uma mala debaixo do braço, que não abandonaria o dia todo. Uma espécie de valise en carton, sem ser de carton, é claro, mas sem a sofisticação de uma Vuitton ou coisa parecida. Era uma mala usada, que ele abraçou o dia todo.

Ao almoço falámos da paixão que tem por Portugal, do interesse pela arquitectura. John, John Malkovich conhecia a improvável Ponte de Lima, comeu no melhor dos restaurantes do Porto, ficou siderado com a descrição que fiz do Café Majestic. Falou com à vontade de Siza e Souto Moura; houve mesmo um momento em que perguntou «Qual é o seu jornal?», o Diário de Notícias é aquele cujo edifício fica junto ao Marquês?».

A entrevista aconteceu na varanda do Lux, (do qual é sócio), e coincidiu com o cair da tarde. 

 

O que é que traz na mala?

- Ando sempre com cadernos para fazer desenhos, e canetas. Às vezes também trago romances.

 

Além de desenhar, escreve?

- Escrevo teatro. E ando com dois pequenos cavalos que os meus filhos me deram.

 

Amuletos?

- Sim.

 

Porque é que decidiu viver em França?

- Vivo na Provence não há muito tempo, há quase seis anos. Não sei dizer exactamente porquê. A vida é muito tranquila e muito fácil no campo. Mesmo que seja um pouco conhecido, muito conhecido, em França todos têm os mesmos direitos. E parece-me interessante habitar um país que não conhecemos, que não sabemos como é.

 

Como é que as pessoas da aldeia reagem à sua presença? Falam consigo como se fosse mais um dos seus anónimos habitantes?

- Creio que sim. Talvez de tempos em tempos me olhem como o John Malkovich; mas não exactamente na aldeia, que é, de facto, muito simples. Fazemos festas de aniversário às crianças, levo-as à escola e perguntam-me «Como está?». Às vezes até comemos juntos, nada de muito especial.

 

Na escola os professores perguntam aos seus filhos a profissão do pai?

- A minha filha, antes de ter completado cinco, seis anos, pensava que eu trabalhava no jardim com o nosso jardineiro. Neste momento, julgo que sabem que faço filmes, peças de teatro, que faço muitas coisas. Interessam-se, mas não fantasticamente. Não são obcecados com a ideia do que sou e do que faço.

 

Simultaneamente você incarna o herói que eles vêem no cinema e o pai que eles têm em casa.

- Seja como for, sou o pai deles. De longe a longe, vêem o que faço, especialmente no teatro, que é do que gostam mais; no cinema quase não me vêem.

 

É uma família parecida com aquela que teve?

- Somos cinco: um irmão e quatro irmãs. Uma família numerosa, mas não católica; creio que somos agnósticos. A minha mulher é italiana, mas de origem francesa. Por causa disso, também, decidimos viver em França.

 

Enquanto actor, a sua composição é mais europeia e menos americana. Os seus filmes dos últimos anos têm correspondido gradativamente à tipologia europeia. É uma opção clara para si?

- Não há nenhuma razão verdadeiramente para que seja assim.

 

Concede em fazer filmes tipicamente americanos para repôs ordem nas finanças? Quando aceita fazer filmes como o «Con Air» é para ganhar dinheiro?

- Claro. É preciso fazer alguns desses para que as coisas funcionem. Se não os fizer torna-se muito difícil fazer os outros.

 

Concessões?

- Sim. A vida é um conjunto de concessões. Há filmes americanos verdadeiramente bem feitos, verdadeiramente inteligentes, verdadeiramente originais, verdadeiramente engraçados, verdadeiramente verdadeiros. Mas não é muito fácil encontrar filmes assim, nem no cinema americano nem no cinema europeu.

 

Ocorreu-me um filme americano que talvez preencha esses requisitos e que é um dos mais significativos na sua carreira: «Na Linha de Fogo», de Clint Eastwood. Interpreta um personagem verdadeiramente diabólico. Uma diabolização que, exposta de maneira diferente, surge também no Visconde das «Ligações Perigosas». Porque é que o chamam tanto para a perversidade?

- Não sei. Não é uma questão para mim.

 

Não?

- Não. Interpreto um papel como ele é. Não sou eu que decido o que vou ser.

 

Mas você tem um tipo. Talvez a sua marca mais forte enquanto actor seja esta duplicidade no carácter.

- Insisto, é só um papel. E nós não somos exactamente só uma coisa. Não há um mas muitos lados. Normalmente as histórias que têm apenas um lado são desinteressantes. As mais complexas são as mais estimulantes. Mesmo quando pegamos em filmes simples e clássicos, como os da América dos anos 40/50, em westerns, em filmes com o Gary Cooper, com polícias e uma pequena aldeia; se o herói tem medo, pode ser interessante, se não há medo ou não se pode mostrar o medo, pode ser uma estupidez. Como nos filmes dos anos 90 em que qualquer um com pistola fuzila quem tem pela frente.

 

Tem medo de quê?

- Medo?

 

Medo da guerra nuclear, das pessoas, da morte, da doença?

- Não sou especialmente medroso. Mesmo assim, creio que temos medo disso tudo. É normal.

 

Imagino que para se defender, neste momento represente um personagem: o do actor John Malkovich em sessão de entrevistas e não o homem Malkovich que tem medo.

- Não exactamente. Mas não digo coisas demasiado pessoais quando dou entrevistas. Devo resguardar a minha vida privada, devo resguardar o que penso. [pausa] Também não posso perguntar aos outros...; donde, não é justo que me perguntem a mim!

 

Invertamos as posições e pergunte.

- Não vale a pena; não o poria na entrevista.

 

Se tiver vontade de levantar alguma questão, colocá-la-ei na entrevista. Quer perguntar o quê?

- [chegando-se sobre a mesa] De que é que tem medo?

 

De cães, que metaforicamente encobrem outros medos.

- Sim, sim.

 

 Agora é a sua vez.

- [pausa] Tenho medo sobretudo pelos meus filhos: que fiquem doentes ou turbulentos. Tenho medo de morrer antes que sejam capazes ou estejam preparados para viverem sozinhos. E é tudo, é o medo principal. Até porque, realmente, eu não tenho medo. [sorriso]. Como sou calmo, é difícil sentir medo.

 

Os actores que perfilham o método do Actor’s Studio trabalham muito sobre os seus medos e as suas partes mais sombrias. No seu caso, onde procura, como compõe os seus personagens?

- Penso no que eles querem. O truque inicial, aquela que é mesmo a primeira coisa, é perceber como vêem o mundo, o mundo inteiro. Se quando sonham vêem o mundo como um lugar bonito, ou tranquilo, ou sólido, ou calmo. Há pessoas, por exemplo, que têm medo de andar de avião. Podem ter medo de qualquer coisa que vá aparecer atrás de si, que os mande para o cemitério. Não vejo o mundo assim, mas quando faço um filme ou uma peça de teatro não de trata de mim ou do que sou. Eu não sou aquele homem, não recebi a mesma educação, não tenho o mesmo estilo, a mesma sensibilidade, a mesma filosofia.

 

Faz uma composição a partir da observação das outras pessoas?

- De vez em quando sim. Quando quem escreve é bom, não temos necessidade, porque isso está no texto, no argumento, no romance. É uma questão de escrita, de boa escrita.

 

Tem uma pessoa que lhe faz a triagem dos argumentos?

- Mandam-me muitas coisas. Às vezes não leio. Mas normalmente leio, com alguma rapidez, e digo sim ou não com alguma rapidez, também.

 

Como é que funciona a máquina, a empresa John Malkovich?

- Depende. Há uns anos experimentei fazer coisas como produtor, e, como tal, foi preciso arranjar dinheiro para pagar toda a estrutura, obter direitos, etc, etc. Talvez tenha feito coisas que de outra forma não faria, para ganhar dinheiro e poder ter o luxo de me dedicar a outras de que gosto. Como restaurantes. Há ainda as coisas de que gosto simplesmente porque são bem feitas. Por exemplo, este filme do Paulo [Branco] e do Raoul [Ruiz], que fiz apesar de não ser um grande fã do Proust. Aceitei pelo desafio de fazer pela primeira vez um personagem em francês. Depois gosto muito do Paulo, somos próximos desde há anos.

 

O seu personagem nesse filme, «O Tempo Reencontrado», é um masoquista. Quando o vi pensei no Marquês de Sade, no Apollinaire, no Bataille, libertinos que entrelaçam a poesia com o erotismo.

- Era também a época. Eram obrigados a descobrir a sua sexualidade de uma forma, não castrada, mas escondida. Penso até que havia muito menos castração.

 

E contudo o sexo é hoje uma coisa quase pública, e permanentemente exaltado.

- É a razão suficiente, quanto a mim, para que haja coisas privadas. Se continuarem assim, talvez as coisas fiquem progressivamente menos interessantes. Devemos guardar coisas de dentro, guardar o pudor.

 

Sente-se desconfortável quando se sente um sex-symbol?

- Eu? Mas isso é ridículo!

 

Ora.

- Não penso na minha vida pública, não penso mesmo se ela existe. É um divórcio que estabeleço muito facilmente.

 

Passaram muitos anos, é isso?

- Sim. E esta vida aconteceu-me quando tinha já 30 anos.

 

Posso saber que idade tem agora?

- 45, prazer!

 

Está a ver, uma estrela de cinema não revela desta maneira a idade, mantém uma aura à sua volta e faz ginástica para manter a forma! E você?

- Faço dieta o tempo todo.

 

Ao almoço comeu um bolo.

- Um pouco, apenas. O que se passa é que não preciso de muita comida. É o meu metabolismo, alimento-me como um passarinho. Mas gosto muito de comer, de comer bem.

 

Que relação mantém com o seu corpo, você mesmo, não a estrela de cinema?

- Absolutamente normal. Há pessoas que são muito narcisistas, sim. Sou mais como os outros que pensam que seriam mais bonitos se o nariz fosse mais pequeno, o cabelo fosse mais não sei o quê. Praticamente não me olho ao espelho. Mas se faço um filme, posso sentir-me bem se me vejo magro. É apenas uma questão estética, que pode ser fútil, que pode ser nada. Se estiver demasiado preocupado com isso não posso tornar-me outro.

 

Nas «Ligações Perigosas» era o sedutor. A sedução é uma emanação física?

- Nesse filme estava muito confiante, no trabalho do guarda roupa, da maquilhagem, do cabelo. E estava muito ocupado com isso. O mesmo com as mulheres.

 

Com as mulheres tudo deve piorar...

- Nem sempre. Há mulheres que não se ocupam assim tanto de si. Por exemplo, a Michelle, a Michelle Pfeiffer. Lembro-me de uma vez em que se olhava no espelho...

 

Contemplando-se? Porque é inacreditavelmente bela.

- É. Mas se lho perguntarmos não tenho a certeza que diga ou pense isso. Não se tortura com o assunto. E conheci outras que se torturavam. O mais importante é sabermos como somos. Quando era jovem, um jovem comediante, [longa pausa], comecei a perder o cabelo. Fiquei muito preocupado. Por quatro meses. Depois deixou de ter importância e não penso nisso senão de longe a longe. A questão resume-se a: «O que é que tu queres para este papel, um cabelo, um bigode?».

 

A versatilidade é outra das suas marcas enquanto actor.

- Voilá, excepto nas coisas físicas. As «Ligações» talvez sejam um bom exemplo do que vem de dentro, do que há e do que falta. Vem tudo a propósito do que me perguntou sobre a relação com o corpo. Penso que o público que assistiu ao filme, assistiu ao cortejo interior.

 

Foi um filme fundamental na sua carreira. Quais foram os seus grandes momentos? Começou por fazer teatro, depois seguiu o clássico percurso pelos filmes menos conhecidos e as «Ligações» catapultaram-no definitivamente para o sucesso.

- Tinha começado numa pequena companhia de comédia, em Chicago. Era uma outra vida.

 

Imagino que aprecie o anonimato agora que é muito conhecido; mas houve com certeza um tempo em que ambicionou o que está a viver.

- Não é bem assim. Fico absolutamente feliz de ser reconhecido, agora, também.

 

Hoje de manhã, quando estava na entrada do centro comercial, ninguém reparava em si. Talvez pensassem na imensa improbabilidade daquela pessoa, eventualmente parecida com o John Malkovich, ser mesmo o John Malkovich. Se o esperassem a reacção seria diferente.

- Sim, sim. Independentemente disso, tenho sempre uma vida privada.

 

Não tem um guarda costa a acompanhá-lo, mais essa parafernália hollywoodiana?

- Não, eu sou o guarda costas! Não tenho necessidade. Bom, não tenho necessidade aqui. Tive uma experiência desagradabilíssima certa vez, em Cannes, com fotógrafos a espreitarem-nos nos elevadores, nos corredores, nos acessos ao hotel.

 

A sua equipa é constituída por quem? Uma baby sitter, uma secretária?

- [sorriso]

 

Ninguém? É você, a sua mulher e duas crianças, uma família normal?

- Não tenho um assistente pessoal porque verdadeiramente não tenho necessidade. É claro que tenho um escritório onde trabalham duas ou três pessoas e se preciso de alguma coisa, providenciam-na. Mas normalmente trato de tudo sozinho. Quando as crianças eram muitas pequenas tínhamos uma empregada que ficava lá em casa, uma empregada interna. Nascerem muito perto uma da outra e a minha mulher estava muito cansada. Na época eu tinha muito trabalho. Trabalhava doze horas em qualquer coisa, mas depois de chegar a casa sentia imediatamente que entrava no mundo das crianças e desatava a desenhar com elas.

 

Num ano normal faz um, dois, três, quatro filmes? Vive um ou dois meses entre os Estados Unidos, Portugal, França?

- Há anos em que estou o tempo todo com a minha família. Já aconteceu fazer quatro filmes em quatro semanas! Vou agora fazer uma peça em Chicago, mas a minha família vai comigo. Os miúdos frequentam a Escola Francesa e é muito fácil ajustá-los localmente . Depois vou ao Chile com um produtor espanhol fazer repérage para um filme, depois ao Canadá fazer um outro filme, depois a França para um outro filme, e depois passo em Portugal e na América do Sul para preparar a produção do meu filme.

 

Como é que Portugal aparece na sua vida?

- É uma descoberta recente, que aconteceu depois d’ «O Convento», de Manoel de Oliveira. Há muitos sítios que tinha vontade de visitar, mas não tinha tido oportunidade por estar ocupado com outras coisas. Quando cheguei aqui achei que era um país incrivelmente belo, incrivelmente triste. As pessoas não são exactamente tristes, mesmo que haja uma tristeza nelas.

 

Está a referir-se àquilo a que chamamos Fado?

- Sim. E gosto muito do país na sua essência mais física. O Porto é a mais romântica das cidades europeias.

 

Tome nota que isto será lido por...

- Pelos «Lisboas», normalmente digo «Lisboas»! Mas eu adoro Lisboa! O Porto é que é um pouco mais difícil de amar. É uma questão de romantismo. Não é uma cidade mediterrânica, de sol; é mais dura. Lisboa é mais vivante. [Abre a mala e procura qualquer coisa]

 

Posso ajudar?

- Não porque você não fuma. E eu não posso fumar à frente da minha família. Está a ver?, tenho medo disso, de fumar à frente deles! Mas o Porto. Sobretudo o Bairro da Ribeira, é extraordinário.

 

Dizia-se que para o seu projecto, o seu filme em Portugal, ia usar o Porto como pano de fundo.

- Será sobre o chefe do Sendero Luminoso. Ainda não sei onde será filmado, ainda vamos fazer a repérage, no Chile e no Uruguai. Talvez possa filmar no Porto e em Lisboa porque gosto muito das duas. 

 

É bizarro que o seu filme seja sobre o Sendero Luminoso. Para si imaginaria uma outra temática, menos guerrilheira, menos revolucionária!

- Não é uma história revolucionária. Creio que há um outro homem, além do revolucionário.

 

O que é que aprecia nos actores e nas actrizes?

- Aprecio o talento. Mas nos filmes não é preciso ter talento. Há uma cara de que se gosta, de que não se gosta, disfarça-se com o guarda roupa, fim da história. No cinema actual há pouco a fazer com o talento. Apesar disso, para mim o talento é absolutamente necessário. Gosto muito de comediantes e de pessoas que fazem coisas boas.

 

Quais são as suas referências?

- Oh, é difícil dizer. Como realizador, gosto muito de um britânico, o Carol Reed. E gosto muito de comédia.

 

Como os Irmãos Marx, por exemplo, o non sense puro?

- Sim, muito, rio com toda a família! Gosto do Benigni, do Sean Penn, do Robert Duvall, do William Hurt.

 

Quando era um menino, o seu sonho era ser uma estrela de cinema?

- Queria ser jogador de basebol.

 

O Joe DiMaggio tinha a Marilyn. Também sonhava com belas mulheres?

- Sempre tive muita sorte. Nunca tive mulheres ruins ou desinteressantes; são sempre mais interessantes que eu, e são inteligentes.

 

Notei que a sua mulher usa uma pulseira igual a esta que traz no pulso.

- Foi a nossa filha que no-la deu. É uma falsa tatuagem.

 

Imaginei que pudesse ser um código, uma história amorosa entre si e a sua mulher.

- Mas é, de uma certa maneira é. Somos muito felizes, a nossa família é muito próxima. Não podemos saber o que nos espera o futuro, mas penso que é uma relação para toda a vida.

 

Ela tem ciúmes de si?

- Não. Ela é muito especial. Sou muito afortunado por ter uma mulher interessante.

 

 

Publicada no DNa do Diário de Notícias em 2000

 

 

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