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Anabela Mota Ribeiro

José Eduardo Moniz

29.05.14

A biografia pode resumir-se a isto: açoriano, casado com Manuela Moura Guedes, três filhos. Outra nota biográfica: o rapaz reservado que queria escrever sobre o amor e a perda, a solidão e o medo. O jovem que abandonou uma terra onde não havia muito para fazer. Que sonhou com o outro lado. Aquele que teve filhos e que quer que eles digam: “O meu pai é um homem que faz coisas”; ou: “O meu pai era um companheiro que estava sempre à mão”. 

Outra biografia ainda: patrão da TVI desde há dez anos, antigo director geral da RTP, produtor de televisão, jornalista. Um homem de poder. Um general que decide sozinho e que não se permite desestabilizar as suas tropas. Insecurizá-las. Mesmo que as tropas achem que ele tem um cancro e que pode ir desta para melhor. Não chegam a verbalizá-lo – o que é sintomático desta distância, deste pânico. E ele a topar a cena e a agarrar-se à ideia de que eles precisam dele para se sentirem confiantes. Com tanta decisão quotidiana para tomar, Moniz, o general, ia deixar-se apanhar pela doença? Pela morte? Ora vamos lá fintá-la com a vida de todos dias. Com aquilo que mais importa. A TVI, a família. Xeque-mate.

José Eduardo Moniz tem 56 anos. Comeu peixe, perguntou que legumes acompanhavam. Falámos do quinto canal, dos Morangos com Açúcar, do dossiê Casa Pia. Mais que tudo falámos de quem ele é e do que o fez ser como é. Esteve com gravata e sem ela. Institucional, confessional.

 

 

Tinha a intenção de começar pelos seus dez anos à frente da TVI, mas depois de o ver impressiona-me a sua magreza.

Há quatro anos, por força de um comprimido que tomei para umas arritmias que tenho, arranjei uma situação aborrecida – um hipertiroidismo e uma hepatite tóxica. É um comprimido muito bom, mas dez a 15 por cento das pessoas fazem uma rejeição. Eu tive duas, em simultâneo, e perdi muito peso.


Quantos quilos perdeu?

Quinze, num mês e meio. Entretanto recuperei três. Tive pessoas fantásticas que me ajudaram no dia-a-dia, nomeadamente dois médicos que iam para fora e telefonavam-me a saber como é que eu estava. Mais tarde contaram-me que chegaram a considerar a hipótese de fazer um transplante de fígado.

 

Normalmente os médicos são mais transparentes na relação com o paciente…

Achei graça quando um deles disse: “O seu caso está a ser discutido na Áustria, nunca houve uma situação como a sua”. Não me podia deixar vencer por uma coisa destas. São experiências que nos dão uma grande endurance. Humanizam-nos muito. Sempre andei a 200 à hora e senti necessidade de me aproximar dos miúdos, de me aproximar da Manuela, de estar mais com os amigos. Ficamos com a noção de que a vida é, de facto, precária.

 

Teve medo de morrer?

Não é o medo de morrer. É a preocupação por quem fica. Sou muito protector em relação às pessoas de quem gosto e fiquei um pouco aflito. Logo a seguir caí do cavalo, parti a perna, a vértebra, tudo num período de tempo muito curto. Parecia que um conjunto de azares estava a acontecer.  

 

É comum fazer-se uma reavaliação de tudo quando se vivem grandes provações.

Há a tentação de se passar em revista o que se fez e o que ficou por fazer. Chega-se à conclusão de que há muita coisa que falta fazer. Mas como os médicos não me transmitiram essa noção de gravidade, eu só aflorava o assunto... Nunca deixei de trabalhar.

 

Isso, sim, seria catastrófico? Seria uma confirmação da debilidade?

Talvez. Não é tanto deixar de trabalhar, é deixar de fazer coisas.

 

Qual é a diferença?

A gente tem que passar pela vida deixando qualquer coisa, fazendo coisas. Escrevendo, ou construindo, não sei. Só ao fim da segunda semana é que tive a noção de que qualquer coisa se passava. As pessoas olhavam para mim e eu estava mais magro e branco; tentava manter o entusiasmo, e entrar nas reuniões e intervir do mesmo modo. Embora fosse notando progressivamente uma fraqueza maior, um cansaço acentuado.

 

Como é que olhavam para si?

Nunca ninguém me disse isso, mas acho que eles achavam que eu tinha um cancro.

 

Um líder não pode ter um cancro…

Não pode. A minha preocupação era transmitir às pessoas em casa e àqueles que trabalhavam comigo que isto era uma coisa passageira. Não me pergunte se fiz isso de forma premeditada. Foi automático.

 

Quando é que aceitou que qualquer coisa se passava?

Quando fui provar um smoking para uma gala da TVI, numa sexta-feira, e na quinta-feira seguinte sentir que o casaco estava gingão, que as calças estavam largas…

 

Com quem é que teria intimidade para confessar a sua aflição? Pergunto de outro modo: a quem é que é capaz de revelar a sua vulnerabilidade?

A pessoa a quem melhor posso dizer isso é a Manela. Embora não tenha dito. Procurei que nem o meu irmão, nem a minha mãe nos Estados Unidos, nem as minhas irmãs soubessem. Eles vieram a aperceber-se de que tinha caído do cavalo por uma revista que chegou aos Estados Unidos. Não vale a pena. A gente ultrapassa estes problemas.

 

É o general sozinho no seu labirinto.

Há coisas que temos de enfrentar sozinhos. E se agimos de forma diferente, vamos transmitir a terceiros uma noção de fragilidade. Pior do que isso, podemos introduzir situações de insegurança. E elas, para estarem bem com a vida precisam de se sentir seguras. Se nós lhes transmitirmos essa segurança, para quê perturbar essa lógica?


Na sua história de vida, quando é que percebeu que estava por sua conta, que eram os outros que dependiam emocionalmente ou materialmente de si?

Eu sou muito dependente emocionalmente.

 

Ah sim? É até comovente assistir à paixão que tem pela sua mulher, mas parece sempre de uma enorme auto-suficiência.
Ninguém admitiria que eu tivesse outra imagem.

 

Avancemos, então, para aquele que eu pensava ser o ponto de partida: os dez anos à frente da TVI. Usando uma das suas armas, que é a provocação, pergunto-lhe se está entediado com o sucesso?

Não. É muito confortável ter sucesso. Mas o sucesso pode ser uma armadilha. As pessoas correm o risco de se deslumbrarem com elas próprias e entram num círculo vicioso, não sendo capazes de perceber que as circunstâncias que as conduziram a determinada situação não são eternas. (Hesitei entre vir com gravata ou vir sem gravata, não sabia que tipo de coisa é que íamos fazer. Ia sair sem gravata, depois voltei atrás.

 

Esclareço: estou a entrevistar o patrão da TVI, mas também o José Eduardo, e nesse sentido pode tirar a gravata se se sentir mais confortável.

Agora já cá está. Desde que vim de férias, é a terceira vez que ponho a gravata). Falando de monotonia, não se pode estar eternamente a fazer a mesma coisa. A gente precisa de se provocar a si próprio, precisa de se incentivar a si próprio. No dia em que entrei na TVI tive vontade de desistir. As caras das pessoas não emitiam sinais de credibilidade, confiança, esperança. Você hoje entra na TVI e não é nada do que era. Sem querer fugir à pergunta: não sofro propriamente de tédio, confesso que às vezes me apetece fazer outras coisas.

 

É uma forma eufemística de dizer que está entediado?

Não diria isso. O nível de responsabilidade que tenho hoje aumentou muito relativamente àquele que tinha na altura. Eu divirto-me a entrar na sala da redacção para discutir os alinhamentos dos jornais, e fico chateado porque não tenho tempo para lá estar. Gosto de participar na criação das várias histórias que vão servir de base às novelas e às séries.

 

Gosta de participar? Tanto quanto sei decide as intrigas, os títulos, os actores...

Eu não decido tudo, participo.   

 

Está a ser delicado para com aqueles que assumem a coordenação dos projectos.

Eu participo nas coisas. Se há coisa que posso ter feito bem na TVI foi a criação desse espírito de corpo e de partilha. Mas para voltar atrás: dá-me gozo entrar nesses processos criativos, mais do que acompanhar a execução dos projectos. Por exemplo, no caso de “Ninguém como tu”, que foi a novela que coincidiu com a fase dos azares…

 

Curioso chamar-lhe a fase dos azares e não a doença...

Recordo-me de me terem mostrado as imagens e ter apanhado uma fúria: “Não me metam esta coisa no ar. Isto parece aquilo que antigamente se fazia para a RTP.” Voltaram atrás e fizeram uma grande novela. Onde me sinto melhor é na redacção. Tenho imensas saudades de fazer um programa de informação. [Jornalista] é aquilo que genuinamente sou; nada me daria mais prazer do que despir estas vestes de director-geral e voltar a ser uma pessoa que faz coisas [na informação].

 

Deve ser tramado uma pessoa descobrir que aquilo em que é muito bom ou se distingue não é aquilo que mais gosta de fazer.

Vai perdoar-me a vaidade, mas acho que sou bom a fazer as duas coisas. Eu não planeei isto. Isto foi acontecendo. Foi acontecendo na RTP, foi acontecendo aqui. As circunstâncias em que vim para a TVI são extremamente curiosas: foi um convite do Eng.º Belmiro de Azevedo e da Lusomundo. Eles deixaram-me na TVI e saíram dois meses depois. Imagina a orfandade em que fiquei, com gente que mal conhecia.

 

Significa que não é tão estratégico e pré-determinado? Consigo perceber que um miúdo de 18 anos diga que quer ser jornalista e não diga quer ser patrão de uma televisão. Mas a partir do momento em que assume a direcção da RTP, fica claro que nunca será apenas um jornalista.

Fiz sempre um esforço, quando estive na RTP, e consegui, para manter um programa no ar. Fazia um jornal ao sábado.

 

Porque é que isso era tão importante para si?

Porque sou jornalista. Gosto que as pessoas me percepcionem como jornalista.


Como é que se dá o jornalista com os programas mais emblemáticos destes dez anos, o Big Brother e os Morangos com Açúcar? Por muito orgulho que sinta por ter feito da TVI uma estação de sucesso, isso não fez dela uma estação de referência – como um jornalista que faz jornais diria que aquela estação é uma estação de referência.

Uma coisa é a discussão intelectual, e podemos conduzi-la para onde quiser, outra coisa é quando se lida com a realidade e temos de ver qual é o quadro e como é que vamos agir. Se eu estivesse na RTP estava a fazer uma estação de televisão diferente da que tenho na TVI. A RTP tem obrigações que uma estação de televisão privada não tem. Mais, a TVI se quer fazer alguma coisa tem de arranjar dinheiro onde ele existe – no mercado. As pessoas que compraram a estação puseram lá o seu dinheiro e precisam de ser ressarcidas disso. Se olhar para a TVI de hoje verificará que tem uma informação que é ágil; pode ser muito criticada por isto, por aquele ou por aqueloutro, mas deu passos muito grandes relativamente ao que era. Não só é respeitada como é receada. Diria mesmo que no panorama das televisões, é a única.

 

Ser temido ou receado é uma coisa, ser respeitado é outra.

Não, não. Só se receia quem se respeita.

 

No período Casa Pia, por exemplo, foi feito um jornalismo que abraçava uma causa. A TVI era temida, não sei se respeitada.

Não concordo com a sua afirmação. O jornalismo tem uma causa, que é a causa da verdade. Em relação ao dossiê Casa Pia, como em relação a qualquer outro, a nossa procura é a da verdade. Eu não tenho nem inimigos nem amigos nestas situações, não tenho preferências nem antipatias. Aquilo que peço aos meus jornalistas é que sejam sérios e trabalhem com o máximo de rigor possível. Admito que quando se dá uma notícia de uma determinada maneira, as pessoas em casa possam dizer que estão a insistir em fazer isto ou aquilo...

 

Manipular – é a palavra usada.

Manipular é coisa que não fazemos.

 

A acusação era essa.

É o mesmo com os comentadores de futebol. O tipo do Benfica acha que o comentador de futebol é um vendido ao Sporting, o do Sporting diz que está vendido ao Benfica. Depende da palavra que usa.

 

Ou do ângulo.

Ou do ângulo de abordagem que tem. Aqui, se está à procura da verdade, vai, mais do que afrontar pessoas, enfrentar pessoas. Foi o que fizemos. Não procurámos agir como se houvesse um país dos ricos e dos poderosos e um país dos pobres e dos maltratados. O que fizemos foi: vamos tratar todos por igual. Se isto incomoda muita gente, e incomodou, paciência. Para ver o cuidado que pusemos nisto, fomos a primeira estação a ter na redacção apoio jurídico permanente. Temos um advogado disponível para todos os jornalistas e para acompanhar as matérias mais sensíveis. Para dizer: “Vocês não podem fazer isto”…

 

Ou: “Podem e o risco é este”.

Portanto, nós somos muito conscientes da nossa responsabilidade. Tomara que os outros fossem assim.

 

Houve acusações do tipo: “A TVI fez a defesa das vítimas e substituiu-se ao juiz, fazendo uma espécie de tribunal popular nos seus jornais”.

Não condenámos ninguém nem julgámos ninguém – isso compete aos tribunais. É normal que estivéssemos mais do lado de quem foi vitimizado do que do lado de quem não se sabe se é ou não é culpado. Não apontámos o dedo ao A, ao B, ao C, dizendo “é culpado, fez isto, fez aquilo”. Fazíamos questão de difundir antes de cada notícia um texto, sublinhando, precisamente, que todas as pessoas mencionadas como arguidas, ou suspeitas, tinham direito à presunção da inocência.

 

Sente-se orgulhoso do trabalho jornalístico que foi feito no canal que chefia?

Sinto-me globalmente satisfeito com o esforço que tem sido feito ao longo dos anos no sentido de melhorar a informação na TVI. A TVI não é perfeita, nunca foi perfeita, mas é uma informação que se esforça. Quando relançámos a TVI no ano 2000, utilizámos a expressão “Quem não tem cão, caça com gato”. Eu não tinha dinheiro para contratar jornalistas, não tinha dinheiro para nada. Trabalhámos com muitos estagiários e alguns amigos meus que decidiram arriscar – por serem meus amigos – e saíram dos sítios onde se encontravam para virem ganhar basicamente o mesmo. Em relação a essas pessoas, tenho uma dívida de gratidão que nunca saldarei.

 

Está a falar do Mário Moura?

Estou a falar do Mário Moura, do António Prata, da própria Manela, que não precisava nada disto.

 

Convenhamos que não seria muito fácil para ela estar a trabalhar noutro sítio, concorrendo consigo.

Admito que fosse uma situação complexa. Mas nós nunca deixámos de nos sítios certos, e muitas vezes nos sítios menos adequados, manifestar as posições que tínhamos sobre as coisas, e muitas delas discordantes. É evidente que eu sei que a decisão final é sempre minha. Mas isso não significa que as outras pessoas sejam demitidas de pensar ou de expressar os seus pontos de vista. Aprecio muito mais as pessoas que expressam os seus pontos de vista, e que o fazem com veemência, do que aqueles que me passam a vida a dizer que sim.

 

Dizendo a uma ou outra pessoa que o vinha entrevistar, quase sempre me falavam, a seguir, na sua mulher.

E então?

 

Pensam, por vezes em público, divergentemente, mas socialmente, e são lidos como uma mesma entidade, fusional.

Se calhar porque procuramos a mesma coisa, no que diz respeito à nossa actividade jornalística. Isso não significa nem no meu caso nem no dela que não mantenhamos as nossas identidades. Há questões que nos aproximam muito, há questões que nos separam. Temos feitios diferentes: um é mais expansivo, o outro é menos, um é mais reflexivo, o outro é menos. Mas nem ela com o seu comportamento me inibe de tomar as decisões que eu entenda que devo tomar, nem ela vai mudar de opinião porque eu não concordo ou decidi contrariamente àquilo que era a vontade dela.

 

Façamos uma pausa no assunto TVI para falar da vossa dinâmica de casal. Essa tensão é uma pedra essencial para entender a vossa relação?

É capaz de ser.

 

É como se um tentasse sempre vencer o outro num braço de ferro. Deixa ver quem manda mais.

Não, isso não. Isso é uma extrapolação que você está a fazer e que acho que não faz sentido nenhum.

 

Então, como é que é?

Se há coisa que procuramos, é que nunca se sinta aquilo que você expressou. Sabemos onde é que é o limite. A gente percebe o que é que o outro pensa. Não vale a pena esticar a corda quando cada um sabe exactamente o caminho que as coisas devem tomar. Nós temos tanta energia e tanta vontade de fazer coisas, projectar-nos nas coisas, em coisas úteis… Outras coisas só servem para degradar relações. Não estou interessado nisso.

 

O temperamento dela é parecido com o da sua mãe?

Não. São muito diferentes. Muito diferentes.

 

As figuras que habitualmente referencia são o seu irmão Milton e o seu pai. É um quadro masculino, insular e reservado; com um grau de aventura, também, que fez os seus pais emigrarem para os Estados Unidos, e o seu irmão construir uma carreira de sucesso. Mas é tudo cerebral. Nunca é a coisa expansiva e carnal que a Manuela incarna.

É uma interpretação como outra qualquer. Não sou das pessoas que acham que o sítio onde se nasce não tem influência. Claro que os Açores moldaram o meu carácter. A lógica da reserva, da resistência, a capacidade de imaginar outras coisas e criar outras coisas, nasceu lá.


Sonhar com o que está do outro lado?

Com o que está do outro lado.

 

A sua paixão pelos livros e a decisão de se licenciar em Germânicas têm que ver com isso?

Sim. Era uma sociedade muito fechada. Controlávamos comportamentos, instintos, as nossas vidas todas. Gosto muito dos Açores. Levei lá os meus filhos mais novos pela primeira vez no ano passado.

 

Pela primeira vez? Como entender isso?

Foi um conjunto de circunstâncias. Mostrei-lhes a minha terra, refizemos os meus percursos...

 

Passaram muitos anos, o que havia ali para doer, já não dói…

Fez-me impressão passar à porta da minha casa. Vivem lá umas pessoas. É óbvio que não bati à porta. Mostrei-lhes o campo de S. Francisco onde eu ia às festas do Santo Cristo e onde passava a maior parte do tempo, porque a escola primária era aí. E era um ponto de encontro. Como aquele local na matriz onde os estudantes de Ponta Delgada se encostavam à parede, porque não havia muita coisa para fazer.

 

Chorou? É um homem que chora?

Sem problema nenhum. Aliás, o meu filho mais novo ficou muito impressionado quando morreu o meu grande amigo Adriano Cerqueira e me viu completamente desolado. Coincidiu também com a fase em que eu estava mal. Ainda hoje me fala nisso.

 

É estranho que tão tarde tenha levado os seus filhos ao sítio onde nasceu. Faz-me perguntar pelo desejo de partir e não voltar atrás; pela vida nos Açores, em suma.

Foram as circunstâncias familiares, posteriores à minha vinda para o continente, que não propiciaram isso. Os meus pais saíram, as minhas irmãs saíram, tenho lá umas primas, umas tias. Por outro lado, fomos criando raízes aqui. Nos últimos sete ou oito anos, passámos a ir para o Alentejo. As viagens: tenho muitas para fazer todos os anos, em trabalho, se puder prescindir de algumas, prescindo.

 

Quer ser enterrado nos Açores? No Alentejo? Onde é que mais pertence?

Gostaria que lançassem as minhas cinzas no mar dos Açores.

 

Pensou nisso quando esteve doente?

Não, porque era um pensamento que queria afastar da cabeça. Eu nem sequer podia deixar transparecer que esse pensamento pudesse estar no meio de mim.

 

A sua família partiu dos Açores e preferiu vir estudar para Lisboa a seguir com eles. A sua biografia normalmente arruma-se em duas linhas. Açoriano, tem um irmão, e raramente se fala das suas irmãs.

Mas gosto muito delas e devo-lhes muito. Fizeram tudo para que eu fosse um menino metido dentro de uma redoma. A minha mãe é uma senhora adorável, muito pequenina, tem 92 anos e está cheia de força e vitalidade. Vive nos Estados Unidos e fica feliz cada vez que lá vou com os netos.

 

O seu irmão, que é 15 anos mais velho e que enriqueceu, era olhado como um exemplo de sucesso? Havia alguma competição na vossa procura pelo sucesso?

Não. Sempre gostei de ver o sucesso dele como um incentivo a que eu tentasse não ficar atrás. Não era uma competição.


Não? A palavra competição tem uma carga muito negativa. Mas pode ser um incentivo, justamente.

Era..., sei lá, era mais afirmação do que competição. O meu pai gostava que eu tivesse ido para Direito, o meu irmão gostava que eu tivesse sido economista. Não fui para uma coisa nem outra e não fui porque me pressionavam para ir.

 

E foi para um curso que era, na altura, um curso de meninas.

Eu era o único rapaz numa aula de Liceu em Ponta Delgada, no meio de 30 raparigas.

 

Por que é que queria ser escritor?

Acho, modestamente, que tenho capacidade para isso.

 

Escreve?

Não tenho tempo, mas gostaria.

 

Seriam sobre o quê, os seus livros?

Os melhores temas que a humanidade tem são os homens e as mulheres. Não têm de ser as relações amorosas.

 

Temas como a solidão, o medo, a coragem, a traição, a ambição?

Tudo isso que você lê nos livros do Steinbeck ou do Conrad.

 

Quando se reformar da televisão, pensa escrever?

Mais do que pensar, desejo fazê-lo. A gente tem sempre medo. Quem está ligado ao audiovisual durante muito tempo, a determinada altura pode começar a ter dúvidas sobre a sua própria capacidade. É evidente que tenho receio de como as pessoas olharão para aquilo, se por ventura me aventurar por aí. A forma como vão olhar será certamente muito mais exigente e crítica do que noutras circunstâncias.

 

Olhou para o “Equador” do Miguel Sousa Tavares como um incentivo? Apesar de terem percursos distintos, ambos são jornalistas a aventurar-se na escrita.

Acho que não escrevo mal as coisas que escrevo. Sou um bom analista das pessoas. E sou um razoável intérprete da realidade. Acho que tenho algumas condições para isso [escrever e publicar]. Tenho a impressão de que há uma gaveta que está fechada e que se pode abrir. Pode existir alguma coisa lá dentro –  se é boa ou má, não sei. Estávamos aqui para falar dos dez anos da TVI, não era?

 

Também. Mas antes de voltar à pasta televisão, quero saber se gostaria de ser recordado como jornalista, ou até como escritor. Ou como o homem que faz uma exemplar gestão de novelas e de programas consumidos por pessoas que não aquelas com quem imediatamente vive?

A pergunta, tal como a fórmula, está a implicar um juízo de valor relativamente aos destinatários do meu trabalho. Os consumidores de novelas, ou seja do que for, têm para mim o mesmo valor e os mesmos méritos do que aqueles que não gostam desse tipo de programas.

 

Voltemos lá à televisão. Como é que fez da TVI um canal de sucesso?

Em 98, quando entrei, sabia que a TVI tinha de crescer. Mas não sabia que caminho ia percorrer. Sabia que tínhamos de adoptar uma postura mais provocadora, até para que os outros nos reconhecessem importância. Em segundo lugar sabia que tinha de contar histórias, e tinha de as contar bem contadas. Há dois domínios onde se contam histórias: o da informação e o da ficção. Na informação sabia que ia ser um combate difícil, porque a RTP existia há muitos anos e a SIC tinha conseguido consolidar uma posição. No domínio da ficção também não ia ser fácil, mas tínhamos uma chance, porque a ficção estava dominada pelo idioma brasileiro. E, tendo a SIC impedido o acesso ao produto Globo, tínhamos de fazer uma aposta.

 

E começaram a produzir a vossa ficção.

Juntámos os nossos parcos recursos e conseguimos, com um homem que acabou por ter um papel importante, o António Parente, começar a produzir novelas de forma consistente. Eu olho para si e você não é consumidora de novela tradicional da TVI. Mas eu tenho de ter uma estação que seja capaz de falar consigo e com a minha empregada lá de casa, com o advogado ou com o homem da calçada, sem menosprezo por qualquer uma das pessoas. Procuramos que haja denominadores comuns. Que haja formas de aproximação. Eu não disse que queria fazer uma estação de televisão [para as classes] AB, eu disse que queria fazer uma estação de televisão que acolhesse os AB, mas que não corresse com os outros.

 

Mas é focada nos CD.

Não, não. A TVI é aquela que mais AB tem. As audiências no Big Brother foram uma surpresa fenomenal:era muito AB. Foi uma das razões para o nosso sucesso.

 

Não havia na minha pergunta qualquer discriminação. O que me interessa é saber da sua realização íntima. E parecia-me lícito presumir que preferirá ser lembrado como o jornalista ou o escritor e não como o responsável último pelos Morangos com Açúcar.

Sabe que não penso nisso? Por quem tenho de ser lembrado é pelos meus filhos. Eles têm de ter orgulho no pai. E têm de poder dizer: o meu pai fez coisas. Não sei como é que gostaria de ser lembrado, para lhe dizer com toda a honestidade.

 

Como é que acha que os seus filhos olham para si? “O meu pai é um homem que faz coisas?”

Acho que acham que é o Senhor TVI, primeiro ponto. E segundo, acham que sim, que é um homem que faz coisas.

 

O Senhor TVI? É a primeira coisa que os seus filhos pensam do pai?

Não, não é, mas no contexto profissional sim. Espero que olhem para mim como o companheiro que tinham à mão sempre que precisavam, sempre que queriam.

 

De momento, e desde há dez anos, é o Senhor TVI. Mas fala-se muito do seu nome para chefiar o quinto canal a emitir em sinal aberto, em 2009.

Se eu lhe contasse a quantidade de coisas para as quais o meu nome terá sido indigitado...

 

Diz-se que o projecto do quinto canal foi desenhado por si e que a sua relação de proximidade com o Joaquim Oliveira, o virtual vencedor, pode dar frutos.

Só há um ponto que corresponde à realidade. A minha relação com Joaquim Oliveira não é de proximidade, é de amizade. O Joaquim Oliveira faz parte dos meus bons amigos, daqueles que eu sei que se algum dia precisar de alguma coisa estarão lá. Ele sabe o mesmo. Quanto ao resto, nada tem fundamento. Admito que o meu nome seja falado para o quinto canal porque a vida não correu mal à TVI e o meu preço de mercado poderá ter subido.

 

É uma questão complexa. A primeira parte está exposta em cima; a segunda diz respeito às suas relações com a Prisa, que consta não serem as melhores, sobretudo depois de a Manuela Moura Guedes ter sido retirada do ar. É um daqueles momentos em que o profissional e o pessoal se imiscuem… Foi um sapo que engoliu mas que não perdoa à Prisa?

Eu vou apenas sorrir em relação à sua afirmação. Não gosto de falar sobre essa matéria e não quero alongar-me sobre ela. A única coisa que tenho de dizer é que a Manela está no ar, tem um programa que é uma referência da TVI e que traduz o espírito que quero que a informação tenha – frontal, irreverente, verdadeira. Prefiro responder desta forma do que perder tempo a regressar ao passado.

 

Por que é que não quer dar tempo, espaço e importância, a uma coisa que aparentemente tem uma grande importância? Não foi uma coisa de somenos o que aconteceu.

Desculpe lá, mas não quero perder tempo com isso.

 

Outra provocação: diz-se que está milionário. O que é que faz ao dinheiro?

O dinheiro tem na minha vida a importância que tem para a generalidade das pessoas: é para lhes dar conforto. Não quero ser milionário nem multimilionário. Quero viver bem. Quero ter hipótese de viver numa boa casa, viajar, visitar duas ou três vezes por ano a minha mãe aos Estados Unidos…, enfim, as coisas normais que as pessoas fazem.

 

A sua ambição não é focada no dinheiro. Mas é claramente ambicioso. Não estaria onde está se não o fosse.  

Eu acho que não. Se imaginasse a forma como encaro a precariedade disto, não faria esse tipo de juízos. O poder é uma coisa extremamente transitória. Ser director da TVI é uma função transitória. Aquilo que eu sou é jornalista.Tenho algum poder, no sentido em que posso determinar coisas que metemos no ar. Mas limita-se a isso. Da mesma maneira que o tenho hoje, amanhã posso deixar de ter. E convivo perfeitamente com isso.

 

Pensa muitas vezes no Emídio Rangel?

Não.

 

Houve um momento em que competiam, eram os patrões da televisão em Portugal. Rangel está no defeso há uns anos e eu pergunto-lhe se acha que isto também lhe pode acontecer.

Claro que me pode acontecer. Já aconteceu. Fui várias vezes para a prateleira na RTP – consoante mudavam os governos, ia para a prateleira. A piada era que os mesmos governos que me tinham posto da prateleira, passado dois meses, ou três, ou quatro ou cinco, me vinham convidar para voltar. Não tenho dúvidas sobre a transitoriedade das coisas. Se do meu trabalho os resultados visíveis tivessem sido outros, não estava nas funções em que me encontro hoje. Se calhar a pergunta que me estava a colocar seria esta: como é que agora lida com o facto de ter deixado de ter poder.

 

E nessa altura estaria ainda mais sozinho? Dava, na primeira parte da conversa, a ideia de um general sozinho – que não pode passar aos que o rodeiam qualquer vulnerabilidade. Olha para si como um homem só?

Sinceramente não sei que resposta dar. Como todas as pessoas, preciso de ter gente com quem desabafar, gente com quem partilhar. Fico extremamente desiludido quando a confiança que deposito em alguém, mais no pessoal do que no profissional, obviamente, não é correspondida.

 

Precisa de descansar da responsabilidade de ser um líder? Precisa de sentir-se one of them?

Tomara eu. Tomara eu que a empresa vá funcionando cada vez com mais rotinas.

 

Mas a empresa funciona à espera da sua decisão – até em coisas miúdas. Um exemplo: a sua secretária não quis marcar a hora da entrevista, mesmo depois de ter dado o seu assentimento, porque estava fora.

Sobre a minha vida, apesar de tudo, tenho de decidir.

 

Decide sozinho e é o homem que manda.
De que a decisão é um acto solitário, tenho bem a noção. Não há volta a dar-lhe.

 

 

Publicado originalmente no Público em Setembro de 2008

 

Jwana Godinho

29.05.14

Oficialmente ela é International Marketing Manager. O que isso quer dizer é que faz exportação dos artistas assinados pela Virgin em Inglaterra para o mundo. Trabalha bandas como os Placebo, Kelis, Kings of Convenience, The Thrills, Turin Brakes e, desde há uns meses, uma banda que, por acaso, é a maior banda do mundo e que dá pelo nome de Rolling Stones.

Jwana Godinho tem 31 anos. Tirou o curso de Gestão de Empresas na Universidade Católica, passou pela Emi-Valentim de Carvalho, mudou-se para Londres, onde vive numa casa com vista para um rectângulo verde, há três anos.

 

O que é “trabalhar” uma banda?

É coordenar o marketing internacional de um disco ou de um artista. No momento em que uma banda acaba de gravar um disco, começa o meu trabalho. Tenho que ser o principal veículo de informação para os vários países. O que é o disco? Quando sai? O que é que se vai fazer? A que países a banda vai fazer promoção? Por onde passa a tournée? Que merchandising se vai fazer? Qual o single que mais interessa?

 

Que tipo de relação estabelece com as suas bandas?

Depende das bandas. Há algumas com quem tenho relações quase de amor/ódio... Embora ambos os lados estejam a caminhar para um mesmo destino, às vezes têm diferentes ideias quanto ao percurso a tomar... Tenho bandas de quem gosto muito e de quem me fiz amiga. Nos recentes atentados de Londres, tive artistas com quem trabalho a ligar-me do estrangeiro a perguntar como estava...

 

Viaja muito? Com as bandas, para tratar assuntos relativos a bandas?

Viajo por diferentes razões. Vou com as bandas em promoção a determinados países. Ou simplesmente ver um concerto. Ou para reuniões. Ou para cerimónias (tipo MTV Awards). As pessoas pensam que tenho sorte em viajar tanto, e é verdade que já fui, em trabalho, a sítios como o Brasil ou o Japão. Mas não é tão glamoroso como parece... A maior parte das vezes não estou mais do que um dia ou dois no meu destino, nao me pagam horas extraordinárias (e não há concertos a horas de serviço...), e continuo a receber os mesmos 150/200 mails diários... Felizmente há os telemóveis e blackberrys!

 

Como é que os Rolling Stones “caíram” sobre a sua secretária?

Sorte? Como os Rolling Stones não gravavam um disco de originais há 8 anos, não havia ninguém no meu departamento que estivesse responsável pela banda. A minha chefe achou que eu seria a escolha natural. Por um lado, os ‘meus’ outros artistas não estavam a lançar discos na mesma altura, por outro, tenho um método de trabalho que encaixa com os requisitos dos Rolling Stones.

 

Qual foi a sua reacção?

Posso fazer uma confissão? Vieram-me as lágrimas aos olhos... Senti-me feliz por me acharem à altura do desafio. E, sendo uma pessoa de marketing, poder trabalhar com uma ‘marca’ como esta, é fantástico! Telefonei assim que soube, primeiro, ao meu namorado, depois, ao meu pai... Claro que depois de um entusiasmo inicial, veio um certo peso da responsabilidade...

 

Está a trabalhar no projecto desde Março. Que tipo de coisas prepara?

Por onde é que hei-de começar? Preparo e coordeno os elementos do lançamento. Que são muitos... Tenho que me assegurar que a música chega às pessoas certas na altura certa e de forma segura (para evitar que apareça em sites ilegais de partilha de música). Decido com os meus colegas estratégias de singles e digitais. Garanto que a informação chega aos países e que é executada de forma correcta. Discuto com os vários países que entrevistas gostariam de ter com a banda. Discuto as mesmas com os managers. Nem sempre é um processo pacífico... Leio os planos de marketing (45!!) dos vários países e discuto-os com directores de marketing locais. E por aí fora!

 

Já contactou com algum dos Stones?

Com a banda, directamente, ainda não. Os Rolling Stones não são uma banda qualquer. Têm uma entourage maior do que o normal. O meu contacto diário é com os managers, os assistentes, os coordenadores de media.

 

É provável que contacte?

Sim. Em alguma das datas da tournée que vão fazer nos Estados Unidos, que começa a 21 de Agosto.

 

Porque é que Rolling Stones continuam a editar discos?

Porque lhes dá prazer escrever e gravar música. Porque são incrivelmente criativos. Porque não querem ficar parados. Este disco é muito bom e reflecte a força criativa que têm. E claro, também lhes dá um bom rendimento.

 

É importante gostar de música, saber tudo sobre música ou ter uma relação particular com a música para desempenhar estas funções?

Acho que ninguém começa a trabalhar nisto se não gostar de música. É um trabalho absorvente e que dificilmente se faz se não se gostar. É bom saber de música, mas também de marketing. E, sobretudo, estar preparado para aprender um e outro.

 

O seu pai é músico. Ser filha dele condicionou a sua relação com a música?

Ter um pai músico fez com que a minha proximidade com a música começasse muito cedo. E que o mundo da música fosse uma coisa natural. Mas a proximidade e sensibilidade não vem só do meu pai. É uma coisa de família. Os meus avós eram grandes conhecedores e apreciadores de música, também. 

 

De algum modo, ser filha do Sérgio Godinho interferiu com o seu trabalho?

A relação não é tão fácil como, à partida, possa parecer. A mais comum das interpretações é que cheguei à música através do meu pai. Quase tive que provar que podia ter o meu próprio mérito... Nesse aspecto, a vinda para Londres foi boa: aqui poucos sabem quem é o meu pai. É uma realidade que não conhecia, já que, desde que nasci, o meu pai era músico. Mas tenho muitíssimo orgulho nele: como pai, como músico, como poeta, como amigo e tantas coisas mais.

 

O que é que lhe dá realmente gozo no seu trabalho?

A música. O contacto com tantos países diferentes, tantas culturas diferentes. Ver uma banda crescer do nada. O facto de ser sempre novo.

 

Porque é que foi aliciante para si mudar-se para Londres?

Precisava de sair de Portugal. Sentir o desafio de um país novo. Crescer profissionalmente noutra língua. Londres é o sítio certo na Europa para se trabalhar em música com uma perspectiva internacional.

 

Sente que evoluiu consideravelmente desde que chegou a Londres?

Imenso. Mais do que imaginaria. Há um ritmo de trabalho mais intenso aqui (em menos horas diárias). Tive que me tornar mais rápida na execução e na resolução de problemas.

Passei a conhecer mais sobre a indústria musical e sobre as culturas e formas de trabalhar de vários países.

 

A sua vida foi alterada? Seria outra se tivesse continuado em Portugal?

Profissionalmente amadureci. Percebi que ainda tenho muito a aprender. Pessoalmente percebi que a distância não afecta as amizades. Sei viver fora de Portugal e gosto de coisas de Portugal que nem sabia existirem. E percebi porque é que os ingleses se deitam nos parques mal aparece um raio de sol... É um bem demasiado precioso para ser desperdiçado. A minha vida teria sido outra caso ficasse por aí. Às vezes penso em voltar, mas não sei bem que faria.... O tempo o dirá.

 

 

Publicado originalmente na revista Elle em 2005

 

 

Ler García Márquez

28.05.14

Muitos dias depois (da sua morte), diante (não do pelotão) mas da plateia, Gabriel García Márquez vai ser recordado. 

 

Vamos falar de Gabo, do seu mundo fantástico e das suas heranças, no próximo Ler no Chiado. Com Clara Ferreira Alves e José Eduardo Agualusa (que lança novo romance no dia seguinte). 

Dia 5 de Junho, às 18.30h, na Bertrand do Chiado.
Eu modero.
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand.
Apareçam.

António Barreto (sobre Portugal)

27.05.14

E agora, Portugal?, persistimos no triste fado? Onde está a aventura? Alexandre O'Neill dizia que em Portugal a aventura termina na pastelaria. Que é da ousadia que nos fez há séculos rasgar mundo? Que é da grandeza? Que é da agricultura, e da indústria? Devemos lamentar a Educação que temos, envergonhar-nos da Justiça? E dos políticos? Mas se os elegemos… E abstemo-nos nas eleições… De quem é a culpa? Quem responsabilizar?

Este é o semestre em que Portugal preside à União Europeia. Muito se tem falado do que somos. Dos desafios que nos são postos. Dos passos que foram dados. António Barreto confere as linhas essenciais deste mapa. Barreto fez recentemente uma série de documentários para a RTP, «Portugal - Um Retrato Social». Nele se pode ver o país que conhece a democracia há 33 anos. Somos outros. Somos?

 

As generalizações são sempre difíceis, erróneas, falaciosas. Mas, assumindo esta limitação, é possível traçar um retrato dos portugueses?

A generalização é arriscadíssima e fonte de erro. Fujo dela. Desde há 40 anos que digo que não existe um carácter nacional. Essas são invenções de escritores e antropólogos de meia-tigela. O que podem é existir traços comuns, porque as pessoas tendem a reagir dentro de uma cultura comum a certas circunstâncias.

 

Depois do périplo que fez pelo país para o seu programa de televisão, ficou com uma ideia diferente do que somos?

Quando regressei a Portugal, em 74, achava que a população portuguesa era um bocadinho apática, cansada. Que, cá dentro, a resignação era superior à energia. A rapidez com que Portugal entrou em mudança e se adaptou ao sistema democrático, à integração na União Europeia, às novas regras de vida em comum, foi enorme.

 

Fale-me dos aspectos que mais o impressionaram, a si que é um sociólogo habituado a olhar para o que somos.

Hoje, a maior parte dos portugueses estão endividados. As prestações, a casa, o carro: devem mais do que ganham num ano inteiro. Poderá dizer-se que os portugueses são todos gastadores, irresponsáveis? Não. Conheço muitos portugueses que não devem nada a ninguém, que têm as suas contas equilibradas e que têm uma vida de acordo com os seus meios.

 

A que é que se deve esse endividamento descontrolado?

O facto de Portugal ter conhecido um período de enriquecimento rápido, ter tido acesso ao consumo de massas, ao pluralismo, etc, fizeram com que a maior parte das pessoas perdesse o sentido da responsabilidade. Digo num dos meus filmes: parece que os portugueses não têm filhos... Eu não tenho filhos. Mas então, não fazem contas ao que vem a seguir? Podemos ter em comum o facto de uma grande parte deles viver obnubilado com grandezas passadas. Foram muitos anos de imposição de padrões...

 

Queria insistir no que encontrou agora e que foi surpreendente para si.

A desilusão. Quando escrevi os livros que deram origem a esta série estávamos em 95, 96, 97, ainda se vivia a recta final de um certo período eufórico. Não havia tanto desemprego, as perspectivas eram boas, havia muitos imigrantes a chegar, as universidades continuavam a crescer. Não reparámos que era um fim de festa. De repente, os portugueses perceberam que estão a ficar pobres, atrasados. Foram-se embora mais de 50 mil imigrantes. Ficaram africanos e brasileiros. E portugueses que emigram são agora 30 mil por ano. Estamos com números dos anos 60. As autoridades dizem-me que o número de emigrantes portugueses em Inglaterra já oscila entre os 400 e os 500 mil. Algumas pessoas perceberam que a festa tinha acabado, que estávamos a correr mais devagar, que estávamos a perder oportunidades, que os outros estavam a fazer melhor do que nós.

 

A juntar à crise interna, há uma reconfiguração da cena internacional, com as guerras e as oscilações dos mercados. Mais a concorrência da China e dos países da Europa de Leste.

Hoje há 50 mil desempregados com licenciatura. Mas no mundo ocidental, quem tem curso superior, encontra emprego ou cria o seu posto de trabalho cinco a seis vezes mais depressa do que quem não tem curso superior. Faz sentido que um licenciado em química esteja a trabalhar como gestor de um hotel? Não me preocupa. Parto do princípio de que uma universidade não deve ensinar uma profissão, deve ensinar cultura geral e uma maneira de pensar.

 

Gostava de falar da culpa, da responsabilidade e da falta de ambição. Os portugueses estão desiludidos; mas quem responsabilizam por isso? E incluem-se nesta factura? Ou a culpa morre sempre solteira? Ou um velho patriarca (chamado Estado) falhou com as suas obrigações?

Aí está um traço comum: todos responsabilizam os políticos. Pessoalmente, acho que a classe política tem algumas responsabilidades sérias, mas não é responsável por tudo. Olha para trás e vê os governos de qualquer partido: todos eles se comportaram como se estivessem em período de desenvolvimento ilimitado, de enriquecimento ilimitado! Prometeram mundos e fundos. Pode dizer que o primeiro-ministro A ou B foi mais demagógico do que outros. Mas quando pensa que tivemos 27 ministros da Educação em 30 anos?! Não é possível. Na Saúde, Finanças, Obras Públicas encontra números parecidos.

 

Os portugueses não levam os seus políticos a tribunal por estes terem sido incompetentes. Estão, aliás, muito alheados da causa pública. Isso tem que ver imaturidade cívica, com uma democracia recente, com uma dificuldade em saber aquilo a que se tem direito e pugnar por isso?

A responsabilidade política tem regras próprias, mas, nalguns casos, devia poder chamar-se pessoas à responsabilidade, até judicial, quando há corrupção, despesas excessivas... No essencial, a responsabilidade política só pode ser posta em exercício se houver um parlamento forte. A fraqueza do parlamento é, a meu ver, a maior deficiência do sistema político português.

 

Por causa da qualidade individual dos membros que a compõem?

Sim. Ou por obediência pura e simples dos partidos do governo ao governo - e estes fazem exactamente como o secretário-geral e os ministros mandam fazer. São burros de orelhas a abanar. Quase nunca vem dali um gesto de soberania, de representatividade - eu represento os direitos dos meus eleitores. Se tivesse um parlamento com brio e com competências individuais e colectivas, os governos estariam mais sob controlo. Em Portugal, a imprensa mete mais receio a qualquer político do que o parlamento.

 

A fragilidade económica dos media, bem como das famílias portuguesas, faz com que sejam mais obedientes, questionem menos...

Vou começar pelos jornais: uma das grandes tragédias do nosso país é não haver hábitos de leitura com cem anos. Há 30 anos, ainda havia 50% de analfabetos! A televisão chegou a Portugal ainda os portugueses não sabiam ler nem escrever. Não liam jornais. Você é obrigada a pensar quando lê um jornal. Não há mistura de música, soundbytes, imagem, publicidade, como na televisão. A televisão é um instrumento fabuloso, mas não desempenha funções de promoção do ser individual, de autonomia, de concentração – isso é tudo a leitura que dá.

 

A televisão tem uma força que não se afigura fácil derrotar…

Isso não tem remédio nos próximos 50 anos, infelizmente. O Público e o Diário de Notícias, juntos, não vendem mais do que 50/60 mil exemplares por dia. Isto tem causas na pobreza, nas elites portuguesas, na Igreja Católica. Mas é uma das grandes falhas, que tem importância na passividade das pessoas. O poder económico e político dos jornais: o maior travão ao despotismo económico e empresarial dos proprietários dos jornais é o brio dos jornalistas. O consumidor escolhe – pode deixar de comprar. Não faço generalizações, mas há défice de brio e isenção e dignidade no jornalismo português. A mesma coisa exijo a um juiz: não quero que apareça com simpatias partidárias.

 

Saio em defesa da classe para dizer que é mais fácil manipular um jornalista do que se imagina: ganha tão mal, trabalha em condições tão precárias, que discutir numa redacção o que vai fazer, a orientação que é dada ou a rapidez que lhe é exigida na resposta, é arriscado...

Amanhã compra o Daily Telegraph, o Times: percebe que há qualquer coisa de programático (são jornais de direita), mas sente uma força... Podem pôr em causa os Tories, a direita inglesa, se for preciso. Pega no Guardian, cada vez mais reputado de Trabalhista, e vê artigos que podiam sair num jornal de direita quando são isentos. Este tipo de independência de espírito, não tem em Portugal. Aceito a sua explicação. Devíamos ter 100 anos de jornalismo livre e só temos 30.

 

Falta de ambição e humildade (nova generalização): parece que os portugueses querem é fins-de-semana prolongados e que não são especialmente briosos...

Tenho dificuldade em usar os mesmos termos que usa. O que me choca mais é a dependência. Que pode criar resignação. A dependência do Estado ou do patrão é um traço ainda perene e que há 20 anos esperava que houvesse cada vez menos. Mas são precisas várias gerações de viver sem os pais/patrões/autoridade.

 

A autonomia tem um preço.

Um grande preço: Solidão, combatividade, corrigir e melhorar. É um cliché, mas diz-se que lá fora os portugueses trabalham muito bem...

 

Trata-se de organização.

Vão para um sítio onde a dependência é menor, têm de fazer pela vida eles próprios, são postos à prova, se trabalharem bem ganham melhor. É o dinheiro e o reconhecimento. Cá, é difícil sermos reconhecidos.

 

Há uma espécie de carência emocional? Uma necessidade de se ser reforçado.

Mas isso é capaz de vir da pobreza num sentido mais lato. Tem pouco para receber e quer ser gostado. Lá fora todo o sistema põe à prova as pessoas. Se o sistema social, político e cultural pedir que as pessoas se ponham à prova, podemos esperar uma alteração de comportamento em três ou quatro décadas. Não vejo nada isto a curto prazo. Hoje, continua à espera de arranjar um lugar no Estado, através de uma cunha, de uma "palavrinha" – e isto é generalizado.

 

Dizer que os portugueses são dados à "palavrinha" é uma generalização; mas esta, infelizmente, parece que não é arriscada ou enganadora…

Os partidos são grupos de pressão, são agências para conquista de poder. Há 30 anos poder-se-ia pensar que os partidos teriam uma atitude menos caciqueira do que tiveram. Os notáveis das aldeias continuam a existir, mas agora é pelas regras dos partidos. Os partidos nada fizeram para ser meritocráticos.

 

Ainda não tínhamos falado nessa palavra, que é talvez essencial para compreender o Portugal contemporâneo.

Há 10 anos ou 15, eu estava convencido de que o caciquismo, o sistema dos favores e das cunhas, das famílias e do nome, tinha levado um grande abanão. E levou. Mas foi muito frágil. Na verdade, o sistema foi substituído e modernizado por um sistema partidário que veio casar muito bem com o sistema anterior. A meritocracia teve muitas dificuldades em progredir em Portugal.

 

Porquê?

As razões são sempre muitas, desde a pobreza ao sistema político. O sistema político tem uma coisa importante: a visibilidade. E a visibilidade é o exemplo. Se vê uma corrupção pequenina na política, uma mentira, a impunidade... é exemplo para toda a sociedade.

 

E lá diz o ditado que o exemplo tem de vir de cima…

As obras públicas no Terreiro do Paço: estão atrasadas oito a dez anos, custam mais 20 ou 30 milhões de contos do que o previsto: é o Estado que paga! Os erros da privada, o fiasco dos engenheiros e das firmas que fizeram aquilo, é tudo pago pelo contribuinte. Grande parte dos portugueses chegam atrasados a tudo... você chegou às seis menos um minuto, eu cheguei às seis menos quatro minutos... Há muito poucos portugueses pontuais. Uma reunião do governo nunca começa a horas, um chefe de um partido acha bem e importante chegar atrasado! Duas a três horas! Isto fica impune: pode chegar atrasado! Está a dar o exemplo.

 

Fala da impunidade; a Justiça é uma área central para compreender o atraso português?

Se me fizesse uma pergunta que se faz habitualmente aos políticos - e eu já não sou político: o que há de mais importante e mais urgente para resolver em Portugal? Eu não diria Educação, Saúde, Obras Públicas. Diria Justiça. Porque é o sistema que mais envolve todos os outros. Mexe com impunidade e recompensa, sentido de responsabilidade – paga o que deves, não há almoços de borla, a sua responsabilidade é a sua... Isto só funciona com um sistema de Justiça a sério. Rápido, eficiente, democrático, igualitário. Devia ser revista muita coisa: dos Códigos à formação dos juízes, funções e poderes dos advogados.

 

Enquanto sociólogo, trabalha sobretudo áreas ligadas à educação. Que dizer da Educação em Portugal?

É a nossa grande tragédia. Houve uma enorme ilusão no fim dos anos 60, que explodiu com o 25 de Abril: com igual educação para todos e muito dinheiro, numa geração isto fica fino. E não. Fez-se depressa demais, com maus professores (hoje são 200 e tal mil e muitos deles muito mal preparados), demorou-se tempo a fazer escolas decentes. E progredir sob ponto de vista da instrução no sistema escolar nos anos 50 ou 60 era uma coisa, nos anos 90 é outra.

 

É estonteante pensar no que o mundo mudou em 30 anos, sobretudo com os computadores.

A concorrência hoje é outra: não havia a noite, a televisão, a internet, a playstation, a bebedeira, a droga. Hoje, o sistema escolar, que em muitos aspectos continua regido por regras parecidas com as de há 40 anos, tem esta concorrência. Há pouco tempo visitei uma boite de crianças. Sexta-feira abre com limite de idade: só podem entrar pessoas até aos 16 anos.

 

Até que horas?

Eu estive lá às quatro da manhã. Bebe-se álcool e fumam-se ganzas. Portanto, o sistema escolar, mesmo que fosse bem organizado e consolidado, teria de ser diferente porque é submetido à concorrência.

 

De qualquer modo, deram-se passos gigantescos. Há pouco mais de 30 anos havia 50% de analfabetismo.

Há 40 anos tinha 25 mil estudantes universitários, hoje tem 400 mil. Mas metade ou dois terços, saem da universidade e o que aprenderam lá dentro não serve para nada. Aprenderam vagamente bocadinhos de uns ofícios. Os alunos que recebo no primeiro e no segundo ano da universidade, é frequente encontrá-los à beira do analfabetismo! Uma parte da responsabilidade do nosso sistema de educação, tão medíocre, reside no facto de se ter feito depressa demais, e mal, e muito demagógico. É inimaginável que um país, no século XXI, tenha taxas de insucesso ou abandono no 9º ano de 35% ou 39%. A educação deu uns ares de estar em melhoramento durante uns anos e agora descobre-se que é um falhanço.

 

Não há exagero no que diz?

No principal, é um monumental fiasco. Acabou com o ensino industrial. A ilusão igualitária (isto é, vamos fazer um sistema igual para toda a gente, que assim os filhos dos trabalhadores têm os mesmos direitos dos filhos dos ricos) foi um erro colossal. Hoje os filhos dos trabalhadores têm tanta ou mais dificuldade em aceder à universidade que tinham antes. Retirou-lhes a capacidade de aprendizagem técnica – uma arma que eles tinham – e não lhes deu nada em troca.

 

O corte é ainda litoral/ interior? Essa é a assimetria mais vincada? Meios urbanos/espaço rural?

A unificação do país fez-se nos últimos 20 ou 30 anos. Eu sou transmontano e tinha vindo uma vez a Lisboa até aos 25 anos! Havia muito pouca deslocação, poucos transportes, muita pobreza. Quando chegou a televisão, não havia escolas ou água canalizada em muitos sítios. As estradas, a televisão: Portugal ficou mais pequeno do que era há 30 anos, mais rápido e mais unido. As pessoas saíram do campo, vivem em pequenas vilas do interior. A televisão, a escola, o correio, as forças armadas, a banca, tudo isto cobriu o país inteiro.

 

Mas a realidade urbana e rural são distintas.

Já não há rural. População agrícola, são 4 ou 5%. A UE e as políticas portuguesas deram cabo da agricultura e das pescas. Por isso, já não pode encontrar uma diferença entre o rural e o resto. Indústria? A população industrial nos anos 60 para 70 chegou a 35%, e a agrícola eram 40%. Mas quando a agrícola baixou, quem subiu foram os serviços, a administração, o comércio. Portugal nunca foi uma sociedade industrial.

 

Então, qual é a diferença mais importante?

Quem tem dinheiro e quem não tem, quem tem poder e quem não tem. Os subúrbios de Lisboa e do Porto são esquálidos, sórdidos. Não há espaços públicos, não há equipamentos, não há alegria, não há verde, não há espaço para descansar, não há apoio aos velhos nem às crianças. É esta diferença que é hoje mais contrastante na sociedade.

 

Se o cenário é tão cru, e não queria dizer tão negro..., o que é que podemos fazer?

Estou cada vez mais modesto em relação ao "há que". Há que encontrar soluções. Para o Estado, ainda sou capaz de alguns "há que" - há que reformar a Justiça, por exemplo. Para os indivíduos, tenho pudor. Na actual desilusão em que vivemos, por causa das dificuldades que recomeçaram, há sete, oito anos, é possível que os indivíduos repensem as suas prioridades. Que pensem que têm filhos. Que pensem que talvez seja melhor gastar na educação dos filhos do que nas férias no nordeste do Brasil. Que pensem os pais que podem ocupar-se mais dos filhos. As crianças portuguesas vêem quatro a cinco horas de televisão por dia. A TV é dada aos filhos para eles estarem calados e sossegados, porque os pais não querem ir estudar com eles. É um cliché: a televisão é uma baby sitter.

 

Mas neste cenário de crise, como reagir?

Justamente: pode ser que com este período de crise, as pessoas reajam com energia e não com resignação. Só há dois factores que podem ajudar a isto: a crise e a Europa. Não pode sobreviver numa sociedade europeia sem mais responsabilidade, mérito, energia. Pode ser que ajude. Não tenho a certeza. 

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007

 

 

José Pacheco Pereira

26.05.14

Tem uma inteligência muito viva e uma afabilidade inesperada. A luz clara da manhã desenha-se sobre a mesa do pequeno-almoço, sob uma das suas árvores. As árvores, as pedras, os vulcões, as pinturas, os livros, os livros, os livros, são amostras da sua inesgotável paixão, da sua aguda curiosidade. José Pacheco Pereira está agora desvinculado de todos os cargos políticos que até agora ocupou. De regresso à vida civil, ao estudo que nunca abandonou, à universidade onde ensina, guia-nos numa visita pelo Portugal contemporâneo e pelo seu mapa de memórias. É uma impressionante viagem de um homem que alimenta uma desesperada esperança.

 

 

Há um princípio de coerência extrema que norteia a sua vida, apesar das oscilações do caminho. Disse numa entrevista: «Sou exactamente o mesmo homem que há 30 anos andava a fugir à polícia política, a combater o regime, apesar de as circunstâncias se terem alterado».

Não é confortável para o próprio falar da sua coerência. As pessoas são feitas na adolescência. Naquilo que pensam, que desejam, que querem; podem variar, mas não mudam. Na maneira como me vejo e relaciono com o mundo, não penso ter substancialmente mudado desde essa altura. As coisas de que gosto, que me fazem mexer, que me fazem dizer sim e não, são essencialmente as mesmas. Há pessoas que ficam, como numa expressão utilizada sobre Churchill, «adolescentes petrificados». Eu encaixo dentro dessa categoria.

 

Está a pensar no seu gozo com as máquinas, com os jogos, com a astronomia?

Tudo. Esse tipo de curiosidade activa não me conheço sem ela. Em casa do meu pai havia uma grande biblioteca, eu vivia praticamente no meio da biblioteca. Fiz e faço herbários, colecções de pedras...

 

É um coleccionador que pretende conhecer a diversidade e integrá-la num bloco unitário?

É uma coisa muito mais perigosa e muito mais sem sentido: o coleccionador obsessivo deixa-se prender pela ilusão de querer ter tudo e acumula sempre.

 

O desejo é ter?

O desejo também é ter. Mas várias vezes tive que pôr a hipótese de perder tudo, de tomar decisões que podiam implicar perder tudo.

 

Que tipo de decisões podem implicar perder tudo?

Antes do 25 de Abril, muitas decisões podiam implicar isso. Quando a PIDE me assaltou a casa, em 1973, não só não sabia se alguma vez recuperaria as coisas roubadas (parte delas nunca recuperei), como se podia voltar a uma casa que tivesse livros.

 

Mas isso é num período de ditadura...

Depois muda a forma, não é tão drástica a decisão.

 

Vamos imaginar que pode resgatar poucos objectos; conseguiria?

Não. O coleccionador funciona sempre em termos de tudo ou nada, qualquer amputação é sempre pior.

 

Hoje pode perder-se influência, emprego, algum conforto, mas não se joga o tudo ou nada.

Não tenho nenhuma nostalgia do tempo em que era assim. Felizmente que as pessoas não são confrontadas com esse tipo de decisão drástica. No passado era assim. No futuro, não sou um crente de que as coisas sejam estáveis, que a democracia e a liberdade estejam garantidas. A qualquer momento, estas opções se podem pôr.

 

As pessoas revelam a sua essência em situações limite. De outro modo, é mais fácil emergir uma certa hibridez.

O mundo a preto e branco pode parecer confortável em termos morais, mas não tem nenhum valor acrescentado. Para haver integridade moral não é necessário que as pessoas tenham que arriscar a sua vida, o emprego, o futuro. Para quem tinha um envolvimento político activo, a vida tinha um prazo. Hoje não se vive com prazos. É difícil perceber o grau de controlo do quotidiano. Era proibida a utilização de isqueiros de modo a proteger a indústria de fósforos nacional... A primeira vez que a censura me cortou um texto foi porque dizia mal do António Nobre.

 

Todavia, há uma romantização da resistência...

Não havia nada de romântico, não há nada que justifique a nostalgia deste tempo. Era uma vida miserável. Dormi em estações de caminho de ferro, em banheiras, no chão, ao ar livre.

 

E não há glória nisso.

Não há nenhuma glória nisso. Estou aqui a falar consigo, se estivéssemos num café ou restaurante e se houvesse alguém lá ao fundo atento à nossa conversa, eu lhe garanto que, mesmo estando de costas, dava por ela. Já atravessei o país, mais do que uma vez, metido numa mala de um automóvel. Já estive numa casa onde durante meses não podia fazer o mínimo baralho.

 

Como é que se entretinha?

Com a cabeça. Não podia ler porque não podia abrir luzes. Era como se estivesse preso.

 

É o desejo de saber que predomina a sua vida?

A curiosidade. Tenho ideia de nunca ter tido na vida um minuto de aborrecimento por não ter nada que fazer. Desde que tenha coisas para ler, coisas para escrever... Não me vejo com «estados de alma»... As pessoas deviam maçar-se com o que é importante.

 

E que é?

- As coisas que afectam as pessoas são a doença e a morte. Não há nada que seja tão irremediável. As pessoas estão sempre a ter desejos que não conseguem realizar, convencidas de um mundo ideal que não conseguem ter. Temos dificuldade em perceber conceitos como o da Aurea Mediocritas, em perceber a mentalidade antiga, que vivia mais da adequação entre desejos e realidades.

 

Quando o leio, identifico uma certa amargura, mas nem por isso desesperançosa...

Eu chamar-lhe-ia um certo cepticismo. Se me perguntar: é a democracia uma coisa frágil? Fragilíssima!, está sempre em riscos de se perder. A única coisa que a salva é a vontade das pessoas de que ela não acabe. A vontade é uma força. Estamos sempre na iminência de a perder porque a democracia é puramente cultural e civilizacional, não tem nada a ver com natureza das pessoas. Acho que se deve ter esperança, sabendo que ela está sempre no limite de falhar. O título de um dos meus livros, «Desesperada esperança», traduz isso.

 

Muitas das posições politicas que assume revelam uma liberdade que conquistou para si e um desapego em relação ao poder.

Isso é verdade. Por exemplo, eu era presidente do grupo parlamentar do PSD, houve uma atitude da direcção do partido com que não concordei, estava fora de Portugal, e, quando cheguei, demite-me. Tinha uma série de vantagens: secretária, carro de apoio, motorista, gabinete. Nesse mesmo dia entreguei tudo. Custa muito? Verdadeiramente não, custava mais não ter feito isso e não dormir direito. A pessoa sente uma certa alegria interior.


O que é que as pessoas procuram verdadeiramente quando manifestam um apego ao poder?

Depende do que se entende por apego ao poder. Há pessoas que têm uma ideia de missão, que se acham capazes de mudar o país. Essas precisam de poder, o apego ao poder tem esse sentido. O que existe em Portugal, nos grandes partidos é uma coisa completamente diferente. Muitas vezes é atractivo para pessoas que fora daquele meio não teriam nada de semelhante_ porque nunca tiveram um emprego, ou preparação profissional, ou experiência de gestão. Essas pessoas querem é manter um poder baixinho, não se metem em grandes cavalarias, porque aquilo lhes chega, é muito mais do que teriam na sua terra ou na sua profissão.

 

Insisto: passados 30 anos sobre a instauração da democracia, experimenta uma desilusão? Por exemplo, a qualidade da classe política é duvidosa, a participação cívica é inexistente. 

Mas Portugal mudou radicalmente. As pessoas não têm ideia do Portugal de onde vinham. Um Portugal onde a maior parte da população rural andava de pé descalço, em que o analfabetismo atingiu níveis recordes na Europa, a mortalidade infantil era das maiores do mundo ocidental, a maioria das casas fora da cidade não tinha esgotos, luz, água canalizada. O que se passa é que hoje o padrão de referência é a Europa. A vida que as pessoas desejam ter é a vida que se imagina que se tem em Paris ou em Londres.

 

Não deixámos de ter uma atitude provinciana, é isso?

O que temos é o desfasamento entre aquilo que fazemos e o que desejamos. É um problema complicado de gerir na política: os portugueses têm expectativas muito acima das suas possibilidades – da sua formação profissional, da sua escolaridade, do seu grau de conhecimentos úteis, da sua especialização, da sua produtividade. Este país tem um problema muito complexo de auto-organização: gastamos muito dinheiro mal, organizamo-nos mal, temos muito pouca capacidade para trabalhar, temos uma mentalidade que não favorece o esforço, a dedicação.

 

Não somos uma sociedade meritocrática. 

Somos uma sociedade que prefere um certo grau de mediocridade garantista. Enquanto formos assim estamos na cauda da Europa. O problema é político, sem dúvida. Mas, em democracia, não é apenas um problema dos políticos. A verdade é que o nosso eleitorado também não deseja mudanças drásticas: pune e premeia.

 

Pune e premeia numa percentagem relativa. Convém trazer à conversa a abstenção eleitoral...

Lembro-me muito bem de uma conversa que tive no início da maioria absoluta de Cavaco Silva. Estávamos a falar da grande revolução que era a maioria absoluta, um instrumento que nunca tinha existido em Portugal. Pus uma dúvida: «E se as pessoas não quiserem mudar?». Isto é, há uma inércia para a mudança e essa inércia existe objectivamente, manifesta-se em muitas coisas. Quando se fazem inquéritos num local de trabalho, as pessoas são hostis à diferenciação de salários pelo mérito.

A baixíssima produtividade dos portugueses é um elemento fundamental para perceber o nosso atraso?

É. Mas tem muito a ver com sistema educativo e a dificuldade de organização. Por exemplo, a leitura. Não é valorizada no sistema escolar, não é valorizada socialmente, não é valorizada em relação a outras formas mais instantâneas de obtenção de conhecimentos. A leitura tem elementos que são contra as características do nosso tempo: é lenta, é totalitária – quando se está a ler não se pode fazer outra coisa –, e isso contrasta com a facilidade da televisão e do cinema.

 

Como é que se instiga a curiosidade numa sociedade que está formatada para a instantaneidade e a passividade?

Reconheço que eu tinha um meio familiar que favorecia a curiosidade. O problema é que nada funciona: as famílias reproduzem este tipo de desatenção, a escola tem grandes responsabilidades, as televisões (com 500 horas de futebol!) não valorizam qualquer aspecto que implique mediação. Toda a sociedade funciona para eliminar o tempo longo, o silêncio, a discrição, é tudo a favor do consumo imediato, da fruição imediata e de uma certa preguiça colectiva.

 

Somos preguiçosos.

As pessoas, em si, não são nada. Somos feitos e moldados para ser preguiçosos, isso sim.

 

Estes problemas de que estamos a falar são estruturais, Portugal conhece-se desde sempre assim...

Não é desde sempre. Os que iam com Fernão Mendes Pinto, não eram preguiçosos. Os Jesuítas que iam para a Índia, não eram preguiçosos. Nestes últimos anos vivi muito tempo no estrangeiro e, por muito que as pessoas a queiram ocultar, a diferença vê-se. No Parlamento Europeu e nas cidades europeias, tudo está a funcionar às oito e meia da manhã. Era muito difícil trabalhar com Portugal antes das dez, onze (hora de cá).

 

Entre Portugal e o estrangeiro, a diferença mais notória é na organização?

A organização traduz uma pobreza, falta de preparação, más escolas, más fábricas, más instituições do Estado e, depois, poucos meios para mudar. Se combinarmos má administração pública, maus serviços de justiça, de saúde, de educação, com o garantismo, tudo fica muito rígido. O poder político é muito frágil, são raríssimas as áreas onde tem força.

 

Ou seja, o poder político está cada vez mais refém das medidas populistas.

É refém do poder político em que os ministros e secretários de estado não fazem mais nada senão despachar coisas burocráticas; é refém dos órgãos de comunicação social cuja pressão para a imediaticidade e para a superficialidade é gigantesca; é refém de uma ideia errada de transparência da vida pública que limita espaços de mediação. Muda-se? Com certeza. É necessário que haja uma linguagem reformista clara, sem ambiguidades, que haja pessoas que façam a sua vida política com uma dureza de palavras.

 

Mas depois essas pessoas não ganham eleições. Um Churchill não encontraria espaço nos tempos que correm.

O Churchill, o DeGaulle, os que consideramos grandes governantes em democracia hoje não ganhavam uma eleição. O populismo político é, em grande parte, reflexo do populismo mediático. É cada vez maior a separação entre as condições para ganhar eleições e as condições para governar. As qualidades necessárias para ganhar eleições não são as necessárias para governar bem. Há excepções, há momentos de crise...

 

Quando a crise é tão aguda que as pessoas desesperadamente procuram uma saída.

Ou há gente excepcional que sabe falar em linguagem apropriada e consegue essa mobilização.

 

Dessa estirpe, Cavaco Silva foi o último que tivemos em Portugal?

Claramente. Em Portugal depois do 25 de Abril há três personagens que têm um papel decisivo. A primeira é Mário Soares; deve-se-lhe em grande parte [ter evitado] que o país se tornasse numa ditadura comunista. Depois Sá Carneiro, que não aceita um socialismo militar copiado da América Latina e exige que o regime se torne numa democracia plena, com civis a decidir tudo, inclusive a política de defesa e das forças armadas. Se Mário Soares garantiu as liberdades públicas, Sá Carneiro ajudou a tornar civil a nossa vida política. Cavaco fez uma outra revolução: acabou com os restos da Constituição que vinha do período do PREC. O 25 de Abril termina com o cavaquismo.

 

O facto de Sá Carneiro ter morrido numa situação trágica...

Claro, isso favorece a mitificação. É uma morte-martírio.

 

Um povo como o nosso, espera sempre um salvador, um D. Sebastião.

Eu considero o Sá Carneiro um homem muito interessante. Tinha um pensamento estruturado. Quando leio aqueles textos, pergunto: como é que ele tinha possibilidade de fazer hoje um discurso destes? Hoje não passava nem um segundo na televisão! Não há aqui um sound-byte, há um pensamento. O carácter argumentativo não passa na comunicação social. Uma vez escrevi um texto que dizia das três coisas que os gregos identificaram como fundamentais da actividade política: o logos, o ethos e pathos. Hoje a vida política não tem ethos, (a referência ética), e o discurso lógico não cabe nos noticiários. Vivemos numa vida de pathos, de excitação, espectáculo. Isso significa uma degradação, que os clássicos também conheciam, da democracia em demagogia.

 

Estamos a caminhar a passos largos para o fim de um ciclo?

Nós já estamos no fim de um ciclo. Estamos com problemas portugueses e problemas comuns a todas as democracias. A democracia nunca conheceu este tipo de tensões. O problema não é tanto definir as fronteiras da democracia contra o fascismo, contra o nazismo, contra o comunismo; é a sua usura interna a caminho de formas demagógicas do poder.

 

Como é que se resolve isto tudo?

De muitas maneiras. Exactamente porque a democracia é cultural e civilizacional, todos os combates culturais e civilizacionais favorecem a democracia. O terrorismo é uma forma nova de ameaça sobre o funcionamento das sociedades democráticas que pode levar a uma perda de qualidade democrática. Mas é inevitável que tudo o que seja uma tensão grande sobre as sociedades leve as pessoas a terem comportamentos mais assentes no poder e na força. A solução está sempre nos combates democráticos, no debate público, no exemplo cívico. A única forma de combater a espectacularidade dos maus é a espectacularidade dos bons.

 

Encarnar o bom exemplo, portanto.

O comportamento exemplar impressiona. Deve ser favorecido, da mesma maneira que a punição do mal. A recusa de determinadas imediaticidades – por exemplo, recuso entrevistas de quinze segundos. Se todas as pessoas começassem a recusar algumas coisas, distinguia-se as que faziam e as que não faziam. Há um conjunto de regras a um nível mais comezinho e ao nível do comportamento: a pessoa deve expor as suas ideias, não deve dar opiniões de forma anónima; valorizo os políticos que não expõem a sua vida pessoal. Acho que estes combates, muitas vezes micro-combates, outras vezes macro, merecem a pena.

 

Gostava de governar? Até onde lhe agrada esse tipo de poder?

A resposta aí é sempre tudo ou nada. Não tenho nenhum programa de poder, nunca tive. Fazer isto, depois isto, secretário de estado, depois ministro, depois primeiro-ministro, depois presidente da galáxia... Há certas coisas que gostaria de pôr em prática; se para isso for preciso poder político e se tiver oportunidade, faço. Não é um programa de vida, mas sem dúvida que sim.

 

Havia um entusiasmo quando se envolveu politicamente...

Nunca deixei de estar envolvido politicamente desde que me conheço. O carácter formal desse envolvimento é que muda. Neste momento sou um vulgar cidadão, não tenho nenhum cargo político, sou militante de base do PSD e sou um civil.

 

Custa-lhe?

Não me custa nada.

 

E desilusão?

Nunca me afastei de um cargo por desilusão. A desilusão não é motivo para uma pessoa se afastar de um cargo político. Já me enganei, e já me enganei por ingenuidade, mais sobre pessoas do que sobre eventos ou cargos; mas desilusões propriamente ditas, não.

 

Então não vale a pena perguntar-lhe se está desiludido em relação ao país, porque nunca esteve verdadeiramente iludido.

Exactamente. Sempre tive consciência de que o lastro que temos é muito pesado. Precisávamos de perder o excessivo garantismo do Estado. Temos uma sociedade que vive abafada por um Estado que é, ele próprio, em grande parte incompetente. Isto mata o dinamismo social. As pessoas podem estar irritadas com o poder, zangadas, mas verdadeiramente não desejam as peripécias da mudança, a mobilidade profissional, geográfica.

 

Vive agora na Marmeleira, a uma hora de Lisboa, entretido com o seu blogue, (Abrupto), os seus livros, a sua leitura.

Não estou nada entretido. Estou a acabar o Cunhal [terceiro volume da biografia].

 

Está com um ar satisfeito.

Não gosto de muito coisa e isso introduz uma certa tristeza. Mas gosto do meu país, é um bocado ingénuo, mas gosto de Portugal e gosto que as pessoas vivam melhor. Apesar de tudo, não tive sempre uma vida protegida por motoristas, secretárias e staff. Apesar de tudo, conheço relativamente bem o meu país, sei o que é a miséria, o atraso cultural. Pode parecer presunção, mas conheço muito bem a realidade fora dos livros. Sei que estamos num mundo europeu, complicado, de competição cada vez maior e que os portugueses vão continuar a ter uma vida relativamente medíocre. Isso não desejo para o meu país.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004

 

 

Grace Kelly

22.05.14

Numa das suas últimas entrevistas, Grace Kelly vestia um vestido de seda, branco, de ramagens verdes, que ligava bem com os olhos claros e o cabelo louro. Perguntavam-lhe sobre Hollywood. Ela foi assertiva quando disse: “Tenho saudades de representar. Note bem, não tenho saudades de ser uma estrela de Hollywood – é muito diferente. Mas tenho saudades de ser actriz”. Era então uma mulher madura, a voz era menos expansiva; com algo, até, de uma resignação que não esperaríamos nela, quando a vemos aos 20 e poucos anos, como um pássaro, esvoaçante, essência da frescura e da leveza, nos cinemas. A voz expressa essa alteração. Que terá sucedido entretanto, (além da vida que a todos sucede e por vezes nos faz desembocar na melancolia)?

Foi uma mulher a quem o sonho aconteceu. Era uma mulher a quem ficavam bem os laços e os colares de pérolas. A subtileza, a contenção. Basta olhar para ela no set de Mogambo, ao lado de Clark Gable e Ava Gardner, para perceber que só ela podia usar aquela blusa de bom algodão, tom pálido, que não evidenciava o recorte do peito, de estilo colonial. Grace não ficaria bem com o pullover justo e provocante da Gardner, encarnação da femme fatale, também apelidada de “o mais belo animal do mundo”. Ficava-lhe bem a cintura marcada, a saia travada, não demasiado travada, a saia rodada, amplamente rodada. O twin set (é o que veste quanto Bing Crosby lhe canta True Love no filme High Society). Tinha o estilo da menina-bem-comportada. Foi a perfeita heroína hitchcockiana: “a loira calma e elegante, com fogo a arder por dentro” – disse o realizador no livro É só um filme – Vida e Obra de Alfred Hitchcock.

Não raro, persistia a noção de não serem diametralmente opostas de si as suas personagens mais famosas.

Em Ladrão de Casaca, do mestre do crime, é uma herdeira rica, de férias na riviera francesa. É uma jovem púdica que fica embaraçada pelo tom desbocado da mãe. E é aquela que enverga um vestido de deusa, no melhor estilo greco-romano, e que antes de fechar a porta do quarto a Cary Grant, sem uma palavra, o envolve num beijo fogoso.   

Em High Society é também uma herdeira rica, implacável com o pai que namora coristas, que exige para si e para os outros uma moral asceta; e que se pergunta se é a pessoa gélida, a estátua perfeita que aparenta ser e que não chega a sair do pedestal. Os vestidos acentuam este perfil: o azul-cinza assenta-lhe como uma luva, o branco, com apontamentos de flores e cores suaves, também.

O estilo: Edith Head, que desenhou o guarda-roupa das estrelas dos anos 50, garantia que “Grace não tinha nada a esconder. Ficava perfeita com qualquer indumentária porque o que estava por baixo era perfeito. Mesmo as mais belas, que tinham de parecer perfeitas no ecrã, tinham qualquer coisa para esconder. Todas, menos Grace”. Edith Head foi responsável pelo look de Grace Kelly em Ladrão de Casaca e em Janela Indiscreta.

Grace gostava de representar, mas cedo se tranformou numa estrela de Hollywood. E mais tarde na Sereníssima Princesa do Mónaco. Três estados distintos. Um mesmo estilo, apurado ao longo dos anos.

Grace Patricia Kelly foi educada para ser uma princesa. Sem o ser. Acabando por sê-lo. Filha de um antigo campeão olímpico, um self-made-milionário de Filadélfia, um homem alto, imponente, bonito. A mãe era uma mulher que impunha aos filhos uma educação estrita, e que, apesar da abundância, ensinou à família o significado da frugalidade. Grace nasceu em 1929, foi a terceira de quatro irmãos. Foi educada na boa tradição dos católicos irlandeses, emigrados nos Estados Unidos, que vivem numa casa imensa, com piscina, e fazem filmes das crianças para um dia recordar. E que vão ao domingo à missa. E que fazem as meninas frequentar um colégio de freiras onde estas aprendem o recato e a boa educação e, de permeio, a perversidade – aquilo que faria dela, segundo o biógrafo James Spada, “a Marilyn do homem devoto”. Tímida, franzina, de uma fragilidade que contrastava com a robustez dos irmãos. (O actor Alex D’Arcy, um dos romances de Grace, garantia que ela era tímida, mas que fisicamente não o era” – lê-se no livro da Taschen dedicado a Kelly). Vivia num mundo de fantasia. Quis ser bailarina. Verdadeiramente quis ser actriz. E foi.

Mudou-se para Nova Iorque. Frequentou uma escola de representação. Viveu num lar de meninas prendadas, para sossegar a preocupação puritana da mãe. Insistiu em sustentar-se e trabalhou como modelo. Revelou-se uma surpresa. Quando em Filadélfia folheavam uma revista e a reconheciam, custava a crer que aquela mulher sofisticada, maquilhada, com uma sexualidade latente (que era preciso procurar, como também dizia Hitchcock), fosse a mesma que eles conheciam lá de casa; que usava óculos e punha os pés ligeiramente para dentro. 

Trabalhou em séries de televisão e em teatro. Estreou-se no cinema em 1951. Ganhou um Óscar por The Country Girl em 1954. Tudo aconteceu depressa, espantosamente depressa. Entre a estreia e a consagração, fez dois filmes com Hitchcock (Chamada para a Morte e Janela Indiscreta), um filme com John Ford (Mogambo) e contracenou com Gary Cooper (High Noon). Que magia era a de Grace Kelly?

Tudo isto podia ser, apenas, o início de uma bela história: a da estrela de cinema. Mas outra história, superlativa, estava por vir: a da princesa do Mónaco. Tudo começou com uma ida ao Festival de Cinema de Cannes e uma subsequente visita ao Príncipe Rainier numa tarde de sol, na Primavera de 1955. Uma tarde que mudaria tudo. Ele mostrou-lhe os jardins e o zoo privado do palácio. Ela envergava um vestido às flores. Iniciaram uma correspondência, a intimidade cresceu. O príncipe visitou a família uns meses mais tarde. A família rejubilou. Que melhor genro o pai poderia desejar? Mr. Kelly era um trepador na escala social. O seu dinheiro novo não penetrava nas esferas do dinheiro velho de Filadélfia. E subitamente, a sua filha do meio era cortejada por um homem seis anos mais velho, católico, solteiro e príncipe… Irrecusável, não?

Grace foi recebida por uma salva de cravos quando o navio em que seguia aportou em Monte Carlo, uma semana depois de largar dos Estados Unidos. Primeiro deu-se o casamento civil, depois o religioso, em 1956. O Mónaco nunca mais seria o mesmo. O glamour de Grace, a modernidade que ela representava, fizeram do  pequeno principado uma atracção turística. Estado e família Grimaldi fundiam-se aos olhos da opinião pública. A princesa abdicava do cinema para todo o sempre. Um filme, contudo, foi ainda feito depois do anúncio do casamento, High Society, por contrato com a MGM. Rodado, portanto, entre Janeiro e Abril. Nele, Grace usa o anel de noivado que Rainier lhe oferecera.

Casaram e foram felizes para sempre. Ou não foram. Vista de fora dos muros do palácio, Grace levava uma vida de princesa de contos de fada. Dentro dos muros, a sua vida parecia-se com a vida das pessoas normais. A princesa Stephanie diria: “A minha mãe estava rodeada de tanta magia… Quase deixou de ser humana”. Na mesma entrevista a que aludimos no começo do texto, Grace responde quando lhe perguntam se é feliz: “Não creio que alguém possa dizer que é feliz. Há momentos de felicidade”.

Vieram os filhos, as tensões, o desapontamento, o equilíbrio possível de um casamento indissolúvel. Os quilos a mais, a semi-separação quando se mudou para Paris e acompanhou Carolina na universidade, a putativa relação infiel com um jovem cineasta. Parte do mistério da actriz, do “gelo que queima”, desvanecia-se. A sofisticação e o estilo apuravam-se. O ícone mantinha-se.

O cinema ficou como um sonho longínquo. Mas um filme parecia especialmente premonitório. Ladrão de Casaca, rodado em 1955. Voltemos a Edith Head: “É capaz de imaginar? Grace Kelly a desempenhar o papel de uma das mulheres mais ricas da América, que pode pagar os trajes mais elegantes e as joias mais fabulosas. A seguir, um baile, com centenas de figurantes, vestidos como se estivessem na corte de Maria Antonieta. Hitch disse-me que vestisse Grace como uma princesa e assim fiz. Claro que não fazia ideia de que estava a vestir uma futura princesa verdadeira!”

Mais do que tudo, há uma cena que anuncia o final trágico da vida da princesa. Aquele em que a jovem herdeira, puritana e travessa, interpretada por Grace, conduz Cary Grant pelas estradas sinuosas do principado, delimitadas por mecos e vegetação, a uma velocidade estonteante. O perigo era imenso.

Foi nessa estrada que morreu, em 1982, aos 52 anos, num desastre de automóvel. Aventou-se a possibilidade de ter bebido em excesso, de ter discutido com Stephanie que seguia com ela, de Stephanie ter tomado o volante. A verdade definitiva fica por esclarecer. Importa? O mundo não assistiu à sua decadência física, o que alimentou o mito. Grace Kelly é o que cada um projecta nela.  

Uma exposição no Victoria&Albert Museum, em Londres, conta a sua história através dos seus objectos idiossincráticos: a mala da Hermès a que deu nome, a Kelly, joias, chapéus, vestidos de filmes como High Society, o vestido que usou quando recebeu o Óscar da Academia, a estatueta-ela mesma, fotografias, vestidos de alguns dos seus costureiros favoritos (Dior, Balenciaga, Givenchy, Yves Saint Laurent). A exposição inaugura a 17 de Abril e fica até 26 de Setembro.

É uma evocação possível do mito. Não é a única. Como é que Grace Kelly gostaria de ser recordada? Di-lo com um sorriso, para a câmera. “Como uma pessoa que fez o seu trabalho, compreensiva, amável”.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2010

 

 

Isabel Moreira (s/ Portugal)

21.05.14

Isabel Moreira pensa e fala como uma constitucionalista. É o que é, na sua essência. É também uma política que não se põe fora dos políticos numa fase em que estes são a corja vilipendiada. Uma política pela qual se dá, que usa palavras como desesperança e translúcido. Ou que diz que está drogada com drogas lícitas e que se surpreende com o facto de se fazer uma notícia com isso.  

O que é que ela se orgulha de ter feito nos dois anos que leva de Parlamento? Já passou tempo suficiente para se olhar para os anos Sócrates sem o ódio primário que o ex-primeiro ministro desencadeia? É Seguro uma alternativa vigorosa a Passos Coelho? E Cavaco? E as tensões na coligação?

Domingo de manhã, conversámos na sua casa. Via-se o rio. Nasceu no Rio de Janeiro, e talvez por isso o seu elemento seja a água.

 

Gostava de começar pelo título de um livro seu, Quando uma Palavra não Basta. Quando é que as palavras bastam?

Não podemos desistir das palavras. Se às vezes o silêncio é precioso, pelo menos no espaço público, desistir das palavras é desistir do combate, do pluralismo. E não desistir das palavras não se resume ao que literalmente isso possa significar: é não desistir das palavras certas.

 

E há palavras certas?

Há. São as palavras que não são enguias.

 

O que são “palavras-enguias”?

São palavras que não podem tergiversar. Sem espinha dorsal. É muito importante, e no momento em que vivemos, tão dramático, não desistir das palavras... De forma a que não se crie uma opacidade relativamente a quem fala e a quem é escutado.

 

Mas há palavras com interpretações díspares, mesmo quando não são palavras-enguias, mesmo quando têm coluna. Está de acordo?

Sim.

 

Então, como compreender que elas possam assumir um espectro tão largo de interpretações e possam ser usadas com sentidos opostos tantas vezes?

Isso dava para falarmos horas e horas. As interpretações diferentes são inevitáveis, faz parte da floresta que é a linguagem. O que não quero é que haja por parte de quem fala a intenção de mascarar a realidade.

 

Vamos a uma palavra: Portugal. A partir daqui podemos também falar horas. O modo como vê o país agora é substancialmente diferente do modo como o via antes de estar no Parlamento?

É substancialmente diferente. Mas não tem tanto a ver com estar no plenário como com o facto de estarmos objectivamente a viver uma crise que não tem precedentes. Pondo-me na situação hipotética de não estar no Parlamento, creio que teria o mesmo espanto e a mesma angústia. É uma crise diferente das que conhecemos. O conhecimento, a sabedoria, a técnica para encontrar respostas tem que ser descoberto. Não podemos ir buscar casos paralelos ao passado para enfrentar a crise de 2013.

 

A queda do Lehman Brothers representou um momento retumbante, de declínio. A irreversível crise financeira mereceu então respostas diferentes no mundo todo. Mas em Portugal a crise tem contornos específicos. Quando fala, está a pensar sobretudo na crise do país ou na crise à escala europeia, e mesmo mundial?

Da crise portuguesa (sendo que a crise portuguesa tem evidentes vasos comunicantes com o que foi a evolução da crise mundial, financeira, fruto de uma desregulação eticamente insuportável e de muitos outros factores) e da crise europeia. Essa crise mundial, e depois essa crise europeia, com as suas especificidades e os seus reflexos em Portugal, e depois as políticas que são assumidas em Portugal com o grau de autonomia que é possível, gera uma especificidade concreta.

Mas não esqueço que isto tem factores externos e que a solução para podermos ter esperança, e não continuarmos nesta desesperança, não é apenas à escala nacional. Quando falo de Portugal falo de um Portugal inserido numa Europa e inserido no mundo. Falo do Portugal de hoje.

 

Algumas vozes têm estabelecido um paralelo entre esta crise e o que se viveu nos anos 30. Ou mesmo entre esta crise e o crescendo para a 1ª Guerra Mundial, o período anterior a 1914. É possível encontrar esta estranha filiação, esta perigosa filiação?

Não acredito nisso. Esta crise é diferente das outras crises que atravessámos. É uma crise num mundo diverso do mundo que existia à época das crises que referiu. Ir buscar instrumentos ao passado não resolve nada.

Todas as estruturas, todas as políticas, as sociais, as culturais, as democráticas, o fenómeno da globalização, a integração europeia..., tudo isso tem de estar presente na solução desta crise. Nessas crises estes elementos não estavam presentes. E também é destes elementos que nasce a especificidade desta crise. Claro que não vivi essas crises, mas estudei-as, e não encontro os paralelos que interessariam para uma sabedoria, que é urgente.

 

Nem do ponto de vista político? Quando se fala de uma classe média que perde regalias, do crescimento de um espaço onde possa surgir um ditador populista, nem aí encontra semelhanças?

Há factos objectivos que acontecem em variadíssimas crises, como a destruição da classe média, a pobreza, a fome. Fome é fome, seja em que ano for. Pobreza é pobreza, seja em que ano for. Destruição da classe média é destruição da classe média, seja em que ano for.

O que caracteriza esta crise, a forma como a podemos ultrapassar, o efeito que ela está a ter a outros níveis, isso é que não tem paralelo.

 

Voltando ao que pensava sobre Portugal quando foi para o Parlamento, e àquilo que pensa neste momento. O que é que imaginava que se revelou o oposto disso? É diferente o país visto de fora e visto de dentro?

Pensava que a Assembleia era menos procedimental. Apesar de ter 12 anos de ensino de Direito Constitucional [na universidade]. Não sabia que era tão difícil fazer coisas que a mim me pareciam simples. Como elaborar um projecto de lei, apresentar aos meus camaradas, discutirmos juntos. Até por causa da compartimentação. É aparentemente fácil ganhar a adesão rápida dos nossos camaradas, mas não é. As pessoas estão assoberbadas nas suas próprias comissões. Há pessoas ligadas à saúde, outras ligadas à cultura, outras ao ambiente. No meu caso, aos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e à subcomissão de Igualdade. Até a diversidade saudável da especialidade de cada deputado torna isso mais difícil.

E depois, a movimentação política que é preciso fazer para ganhar adesão a uma determinada iniciativa. Não sei fazer isso.

 

Não sabe como?

Não sabia e ainda não sei quais são os passos [desta] parte do Parlamento, a que as pessoas não têm acesso, mas que é política pura. Não sou política, nesse sentido. Faço as coisas, apresento-as, ou defendo determinados projectos ou ideias, e nunca penso nas consequências políticas. Não sou boa política no sentido de me salvaguardar para um eventual futuro. Se for mais cautelosa aqui, noutro projecto terei mais adesão ali.

 

Está a falar de táctica.

A táctica política não me ocorre naturalmente. Não é arrogância, é talvez ingenuidade. Na defesa de um determinado projecto alguém me diz: “Se não pronunciares dois dos quatro princípios, com mais facilidade terás adeptos”. E eu vou até ao fim dos quatro. E depois, se explodir, expludo. Se der certo, dá. Não consigo ser táctica.

Percebi que continua a ser muito difícil criar uma ligação entre o eleitorado e os eleitos.

 

É um dos sinais mais preocupantes e agudos do tempo que vivemos, a separação entre aqueles que elegem e aqueles que são eleitos. Ocorreu-me uma velha canção dos Salada de Fruta: “Demagogia feita à maneira é como queijo numa ratoeira”. É a demagogia que repudia, mesmo sabendo que quando feita à maneira ela é queijo numa ratoeira?

Não iria tão longe. A táctica é legítima. “Os fins justificam os meios” desde que os meios sejam legítimos. A política também é a arte de negociação, da cedência. Mas não tenho esse sentido de táctica. Não consigo negociar princípios. Não consigo ceder na argumentação. Arrisco sempre.

 

Porquê?

Tem a ver com identidade. Em toda a minha vida, no Parlamento, noutros locais onde trabalhei, claro que aprendendo com o que fiz, e isso muda as pessoas, mas na essência saí sempre igual ao que entrei. Nunca me desintegrei.

 

Sabe sempre onde está a barreira?, onde é que ela está entre aquilo que é negociável e aquilo que não é negociável?

É negociável o que tem a ver com compromissos normais que devem ser feitos entre os partidos políticos para se chegar a um resultado comum. (Não tem sido possível nestes últimos dois anos chegar a compromissos.) A negociação de boa fé é essencial à política. Mas não gosto da negociação interna que podemos fazer connosco próprios no sentido de ocultar um pouco algumas das nossas convicções quando expressamos oralmente no Parlamento aquilo que queremos defender, ou mascarar aquilo em que acreditamos num ponto máximo para conseguir um ponto médio. Chega ao ponto de o tom de voz, de a nossa fisicalidade se alterar. Em determinadas matérias ser menos assertivo, ter um discurso mais sorridente para os partidos aos quais nos opomos... Não consigo abdicar da minha fisicalidade ou da minha assertividade.

 

Estava a pensar naquela vez em que interveio na Assembleia, depois de ter feito uma intervenção cirúrgica. Disse uma coisa que pareceu deslocada naquele contexto. E que foi treslida.

Disse: “Estou drogada com drogas lícitas”. Não sabia os nomes dos remédios [risos].

 

Quando diz uma coisa dessas tem noção de que aquele ambiente pode ser hostil, que pode ser ridicularizado?

Nenhuma, só percebi depois. E isso é sinal de um país ainda muito cinzento. Devíamos passar umas boas horas a ver o Parlamento inglês a discutir, as coisas que se dizem, as graças violentas que são proferidas. E não passa pela cabeça de ninguém fazer uma notícia disso. Quando vi tudo preto e percebi que ia desmaiar, disse: “Fiz uma cirurgia ontem à noite” – coisa que não passou nas televisões, porque a notícia ficava menos açucarada. Foi uma resposta que achei curta e rápida para sossegar as pessoas. Não sabia qual é que era o procedimento se uma deputada desmaiasse no Plenário.

 

Foi ingénua?

Para mim isto é espontaneidade – nem gosto que chamem ingenuidade. Não devia ser notícia, faz-me impressão que ainda seja notícia. E receber telefonemas de apoio – mas apoio porquê? Devia ser apoiada por ter sido operada na véspera e estar ali para cumprir o meu dever e votar. Ninguém se lembrou de ver a coisa por esse lado. Não tenho essa noção. Mas acho bom não ter. Estamos a entrar num caminho perigoso em relação ao controlo da linguagem no Parlamento.

 

Estamos substancialmente mais contidos?

Como o país está muito crispado, a crise é muito violenta... Se ler as actas da Assembleia da República, como li por causa da minha tese de mestrado (sobre Direitos, Liberdades e Garantias e Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa). Li todas desde a Constituinte, desde 1975 até 2000, demorei um ano. Se verificar a liberdade de discurso que já houve, [constata que] estamos a regredir.

 

Abramos aqui um parêntesis para contar algumas coisas que foram ditas nesses anos pós-Revolução. Eram anos muito particulares, estava tudo muito exaltado.

Mesmo mais tarde havia mais liberdade do que há agora. Claro que na Constituinte os ânimos estão exaltadíssimos. O peso da ideologia é fortíssimo. O fascismo tinha sido derrubado e havia uma euforia a discutir, desde logo a feitura da primeira Constituição democrática depois de 48 anos de fascismo. A facilidade com que se acusavam as pessoas de manobras contra-revolucionárias... “Você está a querer provar uma coisa que tem por objectivo destruir o processo revolucionário em curso. Isso é uma coisa que um marxista jamais poderá aceitar!”. Do lado da direita, a mesma coisa. Fascista para um lado, comunista para o outro.

Mas lendo as actas nas revisões constitucionais posteriores, de 1982, de 89, de 92, de 94, de 97, anos recentíssimos, há uma liberdade que está a ser perigosamente afectada.

 

Porquê?

Penso que a crise [funciona como] pretexto para silenciar o adversário. Aquilo que era uma linguagem política metafórica normal… e que deve ser. Quando faço um discurso político não estou a fazer um discurso jurídico. Quando digo: “Na situação actual, com os mais velhos a receberem os filhos e os netos em casa, é criminoso o que se está a fazer aos pensionistas”, imediatamente há um protesto à mesa. Porque se disse a palavra criminoso. E então faz-se uma defesa da honra porque crime é um acto típico previsto no Código Penal.

Quando alguém usa a palavra crime num contexto destes não está a pensar no Código Penal. Está a pensar numa linguagem política. Mas basta dizer que as pensões ou os salários foram roubados...

 

Roubo é ofensa.

[É invocado:] defesa de honra.

 

Partindo desses exemplos: não há nenhum partido que não o faça. Quem é que perigosamente silencia? Isso serve quem, é feito por quem?

Sim, a defesa da honra toda a gente faz. Tem sido mais por parte da direita, porque é a direita que está no poder e é a direita que vê projectada naquelas palavras aquilo que as pessoas estão a sentir. As pessoas na rua usam a palavra “roubo”, usam a palavra “crime”, e não estão a pensar no Código Penal.

 

Voltando atrás, ao divórcio entre eleitos e eleitores. É também uma decorrência da crise?

É uma decorrência da crise, claro. É uma decorrência da desesperança, que é um termo muito importante para mim quando caracterizo esta crise. E é uma decorrência do discurso, de falta de lideranças fortes, quer a nível mundial, quer a nível nacional. O discurso não é translúcido.

 

É uma palavra inesperada quando se fala de política.

Não é. Ponho-me no lugar de um cidadão que quer perceber o que é que se está a passar, o que é que cada um está a propor, e temos muito nevoeiro por desbravar. As pessoas vêem o estado das suas vidas. Sabem quem é que tem poder para fazer alguma coisa. E em não melhorando nada, viram as costas aos políticos.

 

Isto vai dar onde?

É perigoso. Vai dar a movimentos altamente inorgânicos, sem ideologias definidas. À ideia de que todos os políticos são uma corja, a generalizações. A reinvenções populistas, com uma linguagem de uma simplicidade demasiada, mas estudada, para cativar as pessoas. Coisas como: “Toda a gente devia poder candidatar-se ao Parlamento”, “Para quê tantos deputados?, é lá que estão os custos”. Dá lugar a extremismos, perigosos. Ao crescimento de partidos de extremos, que na verdade são partidos de protesto, mas não são partidos de governo.

 

Mas crescem.

Mas crescem.

 

Na semana passada um miúdo de extrema-esquerda foi morto por neonazis em França. É verdade que casos destes não aparecem de um modo sistemático, mas é tremendo que apareçam.

É sobretudo tremendo quando pensamos na nossa memória colectiva. Passámos por experiências colectivas na Europa sobre as quais ainda é preciso falar tanto. Quando pensávamos que já tínhamos lambido as feridas, de repente um acto desses é possível.

 

Voltemos a Portugal e à sua presença no Parlamento. Desde que é deputada, já lhe apeteceu desistir? Cada vez mais é preciso que não-políticos assumam funções como aquela que desempenha?

Não me passa pela cabeça desistir. Gosto muito do que estou a fazer. Sou uma política. Não me ponho fora dos políticos. O que digo é que não tenho jeito nem vocação para a táctica política. A política ganha com a diversidade de formas de estar na política.

 

Vejamos essa falta de vocação para a táctica política na prática.

Aquando do Orçamento de Estado de 2012, dei uma entrevista na televisão, antes de termos discutido no grupo parlamentar o Orçamento de Estado, e imediatamente, porque retiravam dois subsídios de férias e de Natal aos pensionistas, reformados e funcionários públicos, disse que eram normas inconstitucionais. A Constituição dá-me a prerrogativa de me dirigir ao Tribunal Constitucional desde que junte um décimo dos deputados. Tem a ver com o poder dos deputados e não dos partidos. Por que é que havia de esperar para falar com quem quer que fosse para dar a minha opinião sobre a inconstitucionalidade das normas? Ainda por cima estavam a fazer-me uma pergunta como constitucionalista.

Depois na prática não é assim. Uma pessoa diz que quer avançar com um processo de fiscalização da constitucionalidade e é importante para o grupo parlamentar que aquilo não seja uma iniciativa de um grupinho e que o PS se una. Isso aprendi. Fomos para a frente com o processo em 2012 e ganhámos. Houve uma consequência boa dessa atitude. No Orçamento de Estado seguinte todo o Grupo Parlamentar estava junto.

 

(Já usou a palavra “camarada”. É um termo muito esquerdalho.

Mas eu sou muito de esquerda. A palavra camarada é uma palavra associada à esquerda. A palavra que associo imediatamente à palavra camarada é luta. E luta num sentido de conjugação de esforços. Foi uma linguagem que ouvi muito na esquerda que frequentei, antes e depois de ser deputada. É uma palavra que me é amiga.)

 

Uma vez que introduziu esse tema, falemos já dessa acção junto do Tribunal Constitucional. Quando o fez tinha realmente a expectativa de que fosse chumbado?

Tinha quase a certeza de que as normas iam ser declaradas inconstitucionais. Estava indignada com o discurso anti-Constituição que se foi desenvolvendo. E indignada com esta ideia, bastante propagada: “Não gostam das nossas medidas, estão a tentar inviabilizá-las”. Como se fosse ilegítimo ir ao Tribunal Constitucional.

 

O que estavam a dizer era: “Não gostam politicamente das medidas e estão a tentar inviabilizá-las através da Constituição”?

E muito bem. A essência da Constituição é essa mesma. A Constituição é a lei das leis, mas tem uma dimensão política fortíssima, não de um ponto de vista ideológico, mas porque está lá a organização do poder político e todos os direitos fundamentais que temos. As decisões legislativas devem ser combatidas politicamente. E se acharmos que, para além de injustas, violam limites que a Constituição traça, quer para um Governo de direita, quer para um Governo de esquerda, temos, não a liberdade, mas o dever de agir em conformidade com a Constituição, que precisamente atribui esses poderes aos deputados, desde que sejam um décimo, para a defender. As coisas não são excludentes.

 

Surpreendeu-a que no ano seguinte o Governo fosse no essencial no mesmo sentido, ignorando o chumbo do primeiro ano?

Não me surpreendeu que o Governo insistisse no mesmo tipo de medidas porque o Governo faz isso a cada avaliação trimestral, em relação a tudo. Todas as medidas são as mesmas, por mais que as avaliações trimestrais demonstrem os resultados falhados do Governo. Não me surpreendeu porque o Governo tresleu o acórdão do Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional não aponta vinculativamente caminho nenhum, nem pode fazer isso. Diz o que é e o que não é inconstitucional.

O divórcio entre este Governo e a Constituição é tão forte em tantos domínios... Gostava de ter ido ao Tribunal Constitucional muito mais vezes.

 

Porquê?

As dúvidas de constitucionalidade a cada diploma são em catadupa. É quase impossível acompanhar o ritmo de desrespeito pela Constituição – que depois passa a ser rígida, socialista, um plano de governo, e tudo aquilo de que a Constituição tem sido alvo. Isto apesar de sete revisões feitas, todas com o voto favorável do PSD.

Quando veio este OE era evidente [que as medidas iam no mesmo sentido]. O Governo quer ir buscar dinheiro fácil, e não o dinheiro difícil de ir buscar.

 

Qual é o dinheiro difícil?

As renegociações das PPP, as rendas excessivas. O único sítio onde o Governo é patrão é aqui [nas pensões e subsídios]. Tive a mesma reacção que tive da outra vez. Trata-se de uma remuneração e os princípios aplicam-se da mesma maneira. E aqui foi muito importante o Grupo Parlamentar juntar-se. Foi muito importante ter havido dois processos, o do Bloco de Esquerda e do PCP, e o nosso. O BE e o PCP acabaram por ter duas normas que não tínhamos invocado.

O primeiro acórdão foi muito importante. Estamos a assistir a medidas tão violentas e tão divorciadas da Constituição que se não reagirmos elas instalam-se permanentemente.

 

De qualquer modo, a sua implementação não foi imediata.

O primeiro acórdão é muito criticado por ter adiado os efeitos por um ano – e naquele ano o Governo pôde contar com as verbas dos subsídios e das pensões. A verdade é que ficou estabelecido que para o Tribunal Constitucional não se podem cortar subsídios e pensões daquela maneira. Não teria sido possível ficar com esta segurança na nossa ordem jurídica sem o primeiro acórdão do Tribunal Constitucional. Se não tivéssemos reagido, banalizava-se. E aquilo que são direitos fundamentais – porque os subsídios são remuneração e as pensões também, as pessoas descontaram 14 vezes, não descontaram 12 vezes – foi garantido.

 

Quando olha para a sua intervenção nos últimos dois anos, quais foram as coisas que fez que a deixam mais orgulhosa?

Sem dúvida nenhuma o papel que tive nos dois processos de fiscalização de constitucionalidade. Foram momentos históricos desta legislatura. Gosto muito do trabalho de grupo silencioso. Gosto de fazer pareceres no que diz respeito aos diplomas que me são distribuídos.

Do ponto de vista pessoal, está a ser muito importante a questão da co-adopção. E gosto muito do debate de ideias que acontece dentro do Grupo Parlamentar para delinear uma estratégia comum. É rica, diversificada e verdadeiramente plural. E sinto-me muito bem nessa discussão. Não sinto necessidade nenhuma de aparecer muitas vezes ou de ser oráculo.

 

Embora isso aconteça, muitas vezes. Porquê?

No Plenário nem tanto. Mais em questões da Justiça, leis que me calharam, como a Lei das Fundações.

 

A entrevista realiza-se na semana em que se faz um balanço de dois anos de Governo Passos Coelho. Acha que este Governo vai terminar a legislatura?

Penso que o Governo pode quebrar mais por dentro do que por fora.

 

Crise na coligação?

Sim. O CDS está a fazer um esforço muito grande para não perder o seu eleitorado e ao mesmo tempo não ser responsabilizado pela crise. É um esforço diabólico. Obriga o CDS a dizer que mais uma contribuição nas reformas é uma linha vermelha; mas nada dizer relativamente aos outros cortes de pensões que representam um número assustador. É notória a crispação dentro do Governo. São notórias as acusações recíprocas, as humilhações recíprocas. Mais importante do que estar a pensar numa demissão imediata do Governo, coisa que me agradaria…

 

Apesar de toda a instabilidade das eleições e do processo que isso acarretaria?

Sim. A cada dia que passa com este Governo, o buraco é mais fundo. Erraram em tudo. Mas mais importante do que estar a pensar na queda do Governo, que é sempre uma possibilidade, é preciso construir um discurso de esquerda alternativo, mais forte.

 

Antes de irmos à esquerda. Como vê a actuação de Cavaco Silva? O que pensa que o presidente vai fazer?

Acho que Cavaco Silva não vai fazer nada.

 

Porquê? Porque é PSD?

Não. Porque faz parte da sua genética política. Não estou a ver o Presidente da República a assumir o risco de sair culpado. Não é um homem de riscos.

 

Culpado de pôr Portugal…

De, depois das eleições, sair uma situação difícil para o país em termos de estabilidade política. Não penso que de Belém alguma vez venha uma atitude vigorosa.

 

As pessoas têm sido muito críticas, de um modo geral, e esse clamor cresce, sobre o papel de Cavaco Silva. Acha que é um desapontamento, também, para os que votaram nele?

Acho. Nunca tínhamos visto. O Presidente da República goza de um estatuto, inter pares, de independência. De ser presidente de todos os portugueses. Que é uma coisa que, na prática, não penso que Cavaco Silva seja.

 

O que é que a leva a dizer isso?

Se olharmos para aquilo que foram os seus discursos relativamente ao Governo Sócrates, e aquilo que são os seus discursos relativamente ao Governo actual, no estado em que estamos, com o PIB que temos, com a balança mentirosamente optimista de pagamentos que temos, com um milhão e duzentos mil desempregados – que já agora é um número falso, ninguém conta com aqueles que se foram embora, e também não estamos a contar com os não inscritos; quando olhamos para uma economia que se destruiu, que não sei como é que se vai levantar do chão... Quando olhamos para os discursos do Presidente num [caso] e noutro, [concluímos que] é um Presidente tendencioso. Foi um Presidente que representou uma das peças de uma estratégia de derrube do Governo anterior.

 

É deputada independente pelo PS. Mas queria perguntar se acha, de facto, que o PS aparece aos olhos dos eleitores como uma grande alternativa? Ou apenas como uma alternativa possível?

Espero que o PS esteja cada vez mais a aparecer como a alternativa. António José Seguro partiu de um início difícil porque havia uma equivocada culpabilização do Governo socialista anterior pela situação actual. Foi difícil para António José Seguro arrancar como teria sido para qualquer um.

 

Não tem a ver com o carisma de Seguro?

Não penso que seja um problema dele. Tem sido, e isso deve ser sublinhado, a pessoa com o discurso interno mais coerente, e com o discurso externo mais coerente. Ele nem sequer é primeiro-ministro e tem feito um esforço de fazer contactos com outros líderes pela Europa fora, percebendo o evidente: que não é sozinhos que vamos combater uma política de austeridade. É juntos.

António José Seguro tem tentado promover um diálogo à esquerda, que é difícil, porque tem que haver cedências de parte a parte. E tem que se ter em conta o peso eleitoral que têm o PCP e o BE. Mas deve continuar a traçar uma fronteira entre aqueles que dizem: “Rasgue-se o memorando”, mas não dizem o que é que isso significa exactamente, e aqueles que dizem o que ele diz.

O que é que significa o: “Rasgue-se o memorando, pronto”? Significa que o Banco Central deixa de nos financiar e significa a saída do Euro. Se querem isso, assumam-no até às últimas consequências. A via do Partido Socialista não é essa. O PS é um partido de Governo, nunca diz: “Não pagamos”.

 

A via do PS, e que subscreve, é: “Pagamos”. O que é preciso é perceber como pagamos? Renegociar o memorando?

Sim. Renegociar o memorando, os prazos, os juros, a questão do BCE (por causa do resgate de cada país, o BCE fica com juros e esses juros deviam ser devolvidos aos países; é uma proposta de António José Seguro que me parece justa). É uma espécie de usura o BCE ficar com esses juros. Passa por isso e por um combate da ideia de que o cerne da política é o défice.

 

Já passou o tempo suficiente sobre o Governo Sócrates e os principais problemas desse Governo aos olhos do eleitorado, nomeadamente o BPN, as PPP, para que se comece a olhar para esse período com outros olhos?

Foi possível desmistificar algumas coisas em relação ao Governo Sócrates. Ele herdou o Governo de Santana Lopes, com um défice à roda dos sete porcento, sem crise. As pessoas agora já não se lembram – começam a lembrar-se. Fez uma conjugação de controlo de défice sem recuo nas políticas sociais – aliás, aumentou muitas das políticas sociais – como poucas vezes pudemos assistir. Fez uma aposta forte na educação, na reforma da Segurança Social. Depois sofreu as consequências de uma crise internacional que caiu em cima de todos. As políticas que seguiu foram as políticas recomendadas pela União Europeia para combater a crise.

 

A crise não atingiu todos por igual. E nunca um primeiro-ministro foi tão odiado.

A ideia de que tudo se deve ao Sócrates, mesmo as PPP... Estamos a falar de 28 PPP: 8 são do Governo de José Sócrates. A campanha era tão agressiva, tão agressiva... Era muito difícil desmascará-la em plena crise, com o défice a disparar. Todos os outros défices dispararam.

Mas as pessoas já perceberam que este Governo derrubou o outro Governo com um determinado programa. Acreditava, e declarou isso no Parlamento, numa austeridade expansionista. “Gostamos deste memorando, mas ainda queremos ir mais além”. Tiveram um efeito recessivo monstruoso.

 

A zanga com Sócrates, acabou ou não?

Ao fim de dois anos as coisas estão no estado em que estão. Já não pega o argumento do passado. Outra coisa: o primeiro-ministro, num discurso de campanha de um autarca, em dois minutos disse cinco vezes que não tinha medo. Parece-me um indicador curioso do estado em que o primeiro-ministro na verdade está. Eu estou com medo. Estranho que ele não esteja.

 

Está com medo do futuro?

E do presente.

 

E por isso desesperança é a palavra que repete? É a palavra que melhor descreve o que sente?

O que sinto que as pessoas sentem. Não só quando vejo os números, que são assustadores. À falta de perspectiva chama-se desesperança.

 

Com quem é que gostava de falar sobre desesperança? Com Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho, Angela Merkel, Mario Draghi, Christine Lagarde?

Seria difícil escolher um desses.

 

Estou a perguntar quem é que mais pode mexer com a nossa realidade.

Seria muito difícil falar com algumas dessas pessoas. Mas sentir-me-ia obrigada, mesmo com a convicção de que haveria muitas paredes entre os dois, em termos de da minha boca sair uma palavra e nos ouvidos da outra pessoa entrar uma coisa que não tinha a minha intenção, uma vez que vivemos em mundos incomunicáveis, por dever escolheria Passos Coelho.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013 

 

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