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Anabela Mota Ribeiro

Albano Homem de Melo

04.05.14

O que toda a gente sabe: é um dos três amigos da empresa h3. O tipo dos hambúrgueres. O que foi antes publicitário. Um homem influente que não partiu para o trabalho com ambição. Pedro Bidarra salvou-o de ser um fracasso. A mulher, Sofia, salvou-o de ser infeliz. As palavras são dele.

Houve um tempo em que achou que era um erro grave não saber jogar bem à bola. Depois, não ser inteligente. Agora, não ser boa pessoa. 

Tem 43 anos. É um tipo gregário que faz dos amigos da rua a primeira família. Fora os primos. É um tipo que não é fácil enquadrar. Um trovador fora do seu tempo (expressão que usou para falar de um antepassado Homem de Melo que escrevia poemas). Não quis ter um modo funcionário de viver. Gosta de Alexandre O’Neill. Fez o liceu francês. Fala da estranheza de se estar a mostrar.

Como é a cabeça de um tipo que é um sucesso?

Na entrevista mostram-se as costuras da entrevista. Bagunçou-se o conforto de uma entrevista do costume. Perceberão o que quer isto dizer. As enormes provocações e acasos. Uma entrevista é uma construção. Albano Homem de Melo, “co-autor”, achou que não estava a escrever grande coisa. Angustiou-se. Não é verdade.

Tem andado a pensar sobre o que é a cozinha portuguesa. “Descobri recentemente que a cozinha portuguesa é amarela, esquálida.”

- Essa cor é por causa do bacalhau?

“O bacalhau, o grão, qualquer coisa que faz com que tudo fique amarelado. Os doces de ovos. Os italianos têm o verde, o encarnado. Os franceses têm os castanhos, os gratinados, os dourados.”

 

 

Vamos propriamente começar. Isto foi a entrada. Porque é que se chama Albano?

Porque é que todas as pessoas se chamam Pedro, Miguel, e a mim calhou ser Albano? Foi uma cruz. Tenho um avô Albano. A certa altura coleccionei nomes mais feios do que o meu. Descobri que havia um tipo chamado Libório.

 

E há sempre Hermenegildo.

Já me conformei. Até gosto.

 

Isto serve de intróito para pedir que fale da sua família.

Tive uma infância atípica. Venho de uma família tradicional que não vivia nos bairros onde vivem as famílias tradicionais. Foi uma infância feliz, vivida na rua, em Benfica. Tinha umas mordomias de família abastada, empregadas em casa. Mas não havia dinheiro vivo. Tínhamos uma quinta no Douro, resquícios de outro tempo. O meu pai morreu quando eu tinha 12 anos. Muito novo, tinha 39 anos. Na família Homem de Melo morreu o meu tio, o meu pai e o meu avô no espaço de dois anos.

 

Consequências emocionais do embate da revolução? O fim de uma vida como eles a tinham vivido? O corpo a dar de si?

Não sei. Aconteceu nos anos 1976, 1978. Dos que ficaram vivos, ninguém lamentou a revolução. Tive uns primos que foram para o Brasil. Houve umas empresas que se perderam. Mas não acho que tenha sido isso que matou aquelas pessoas. O meu pai, com um ataque de coração. O meu tio, com uma leucemia. Os meus avós, outras doenças.

 

De certeza que se interrogou sobre o detonador daquelas mortes. Um acontecimento trágico, perder o pai tão cedo.

Vivi com um prazo. Achei que aos 39 anos ia morrer. Não tomei muitas decisões em conformidade. Fui tendo filhos, casei. Quando os meus filhos fizeram doze anos lembrei-me: “Era assim que eu era quando o meu pai morreu”. Coincidência: o meu pai morreu no meu dia de anos. Passei esse dia com ele.

Somos uma família muito grande. Os empregados faziam parte da família. O Mendes vinha do norte, de uma família de recursos baixos; talvez por ser fisicamente o mais fraco ficou o intelectual. A certa altura vendia echarpes italianas no Chiado. Eu acompanhava-o.

 

Echarpes?

Echarpes italianas. Tínhamos uma relação muito engraçada, o meu irmão, eu e ele. Fazíamos teatro, circo, missas. O Mendes tinha 60 anos. Brincava connosco. De fato e gravata, no chão.

 

Era um tempo de transição, incorporando códigos da sua família e do que o país começava a ser. Como Benfica.

Hoje as vidas são mais todas iguais. Sou fruto de uma amálgama um bocado esquisita. Os meus amigos eram filhos das porteiras e eram filhos das melhores famílias. (Melhores famílias no sentido do apelido. As famílias são todas boas.

 

São? E isso aprendeu quando? A sua mãe é Bonneville. O pai é Homem de Melo.

A maior parte dos meus amigos não têm nomes sonantes.

 

Defina boa educação.

Boa educação é estar atento. É ser delicado com as outras pessoas. Não ser egoísta e centrado em si próprio.) A coisa que mais gostei de ter herdado do meu pai foi uma biblioteca. O meu pai era economista, tinha estudado na Suíça, era cliente assíduo da Buchholz. Isso, sim, são heranças.

 

A sua família procurava arrumá-lo numa gaveta, numa condição social, num percurso profissional?

Eu não correspondia a nenhum estereótipo. Não tinha uma vocação clara. Era um nabo nos computadores. Estava despreparado.

 

Achava que não era grande espingarda? A isso chama-se falta de auto-estima.

A auto-estima tem picos. A certa altura achei até que podia ser presidente do mundo. Tive uma depressão que durou um dia. “Tenho a mania que sou o maior. Com 23 anos já há uma data de malta a fazer coisas extraordinárias.” Tinha amigos óptimos. Já namorava com aquela que é a minha mulher, que me fez o homem mais feliz do mundo. Achava que isso me ia bastar.

 

Estudou Direito.

Nunca chumbei a nenhuma cadeira. Sabia que no dia em que chumbasse, desistia do curso. 

 

Não era nada por causa disso. Não queria era decepcionar a sua mãe.

Pensei tirar Filosofia. A minha mãe insistiu entre Economia e Direito. No dia em que acabei disse-lhe: “Mãe, já tem o curso tirado. Exerça! O curso é seu.” [riso] Ainda fiz um leve estágio com um tio meu. Mas não entreguei os papéis. Para não ter um plano B. No meio disto um primo meu apresentou-me ao Pedro Bidarra, que, depois de falar duas horas comigo, comentou que eu não era completamente destituído. Ofereceu-me um estágio na EPG, uma agência pequena. Deixou-me andar por lá e tinha uma cadeira.

 

“Mostra lá o que vales?”

Sim.

 

Foi a primeira vez em que teve, francamente, de mostrar o que valia?

Eu tinha tido uma carreira – abandonada – desportiva. Já fumava imenso. E não era bom o suficiente. Mas não tinha tido necessidade de mostrar alguma coisa. Acho que sou melhor quando os olhos sobre mim são bons. O Pedro, que considero o meu mestre e que mudou a minha vida, deu-me essa oportunidade.

 

Começou a fazer anúncios.

Para mim aquilo eram umas frases. Uma coisa que faço bem. Que me sai. Descobri que tinha um talento para fazer qualquer coisa. Achei que não tinha.

 

Como é que não sabia?

Sempre escrevi. Em retrospectiva percebo que na infância e juventude tinha já algumas das características que depois revelei a trabalhar. Capacidade de liderança, de juntar as pessoas, de entusiasmar. Criatividade. Mas para mim isso tinha zero a ver com trabalho.

 

Faltava-lhe um propósito? Uma coisa frequente quando se nasce bem. Como se a rede estivesse sempre lá. É preciso sentir a ponta do arame?

Sim, sim. Por um lado, é mais fácil quando se sente a necessidade de fugir à fome ou a qualquer coisa dura. Mas tinha de me fazer à vida. A minha família não tinha dinheiro para me sustentar muitos anos sem trabalhar.

 

O Bidarra é de Psicologia. Se calhar é por ter uma formação e um percurso atípicos que é tão original e por muitos considerado o maior publicitário português dos últimos anos.

Por mim também.

 

A originalidade do ângulo é determinante? O que é que ele achou, no seu caso, que era uma mais valia e que traduziu na frase: “Não és completamente destituído”.

Quando fui falar com ele não sabia sequer que havia agências de publicidade e que havia anúncios e que havia quem os fazia. O Bidarra achou graça ao facto de eu ter um curso de Direito e querer ter outra profissão. Foi-me elogiando imenso. “Há ali um Albano que tem imenso jeito”. Fez-me ganhar a auto-estima de que precisava.

A outra coisa que aprendi é que havia um trabalho que era puxar pela cabeça. Ter ideias que doessem. O Pedro era exigente e eu também. Primeiro é um jogo. Depois as coisas não saem fácil. Saem depois de escrever muito, de descrer muito. Uma coisa em que pensava: “Que grande aldrabão que sou. Pagam-me um balúrdio e não consigo ter uma ideia para um anúncio.” Depois lá vinha a ideia, e era mais um alívio do que uma satisfação.

 

Estamos a falar de uma coisa que tem dez, quinze anos. Parece que falamos de uma outra vida, longínqua.

Olho para essa como uma outra vida. Houve um momento em que olhei para o meu currículo. Nunca tinha feito um currículo. Nunca tinha sido preciso. Tinha ganho uns 300 prémios! Não tinha noção. Fiquei a olhar-me como quem olha para outra pessoa.

 

Está a fazer género. O mercado deu-lhe sinais de reconhecimento, sob a forma de prémios, dinheiro, contratações.

Para ganhar esses prémios e esse dinheiro (acho que durante anos fui o publicitário mais bem pago do mercado) nunca me puseram tarefas fáceis. Devia estar a aprender a ser copywriter e já era director criativo. Isto na Young&Rubicam.

 

De que foi presidente, muito novo, e cedo.

Passado um mês os aviões chocaram com as Torres [Gémeas]. Um mercado que era maravilhoso passou a ser péssimo. Eu não percebia nada de ser presidente. De repente tinha de despedir 40 pessoas, ganhar doze contas num ano.

 

Três campanhas de que goste. Três ideias de que se orgulhe.

Uma campanha de Natal para a Telecel em que pus o Pai Natal a desaparecer do filme. Era: “Mais para a esquerda, mais para a esquerda...”. Gostei de fazer a campanha do Limiano. O queijo que era feio, difícil de cortar. Um produto sem muita personalidade.

 

Um queijo, um produto sem personalidade?

Um queijo da serra é um queijo importante. Um queijo-bola encarnado é um queijo que as mães dão aos filhos para comerem leite. Uma campanha de Timor, em que participou o Gonçalo Morais Leitão, na altura da invasão indonésia. Fomos buscar imagens de massacres e fizemos postais nos quais estava escrito: “Very typical”. Era um pedido para as pessoas não irem de férias para esse sítio. Ganhou um Leão em Cannes.

 

Destaca campanhas low budget porque nessas o que aparece é a força da ideia?

É. É criar impacto com menos recursos.)  

 

Quando é que apareceu o vendedor de echarpes italianas nesse processo? Ou seja, quando é que apareceu o menino no publicitário?

Apareceu muitas vezes. O que vejo é que passei a infância a brincar. Brincar ajuda. Com 20 anos ainda jogava às escondidas na rua. O Bidarra dizia que mesmo de gravata eu andava com a camisa de fora. Sou distraído. Sou capaz de aparecer com uma meia de cada cor. Não sei onde ponho o carro.

 

Faz uma certa composição do personagem distraído.

Não. Sou! Perco-me a vir do Algarve para Lisboa.

 

Onde está a sua cabeça quando se perde?

Muitas vezes está a ter ideias. De trabalho. Muitas vezes está nas pessoas de quem gosto. Está muitas vezes com a minha mulher. Digo-lhe várias vezes que ela me salvou de ser infeliz.

 

Já o disse nesta entrevista.

Já? Salvou-me. Não é que fosse um triste, vestido de preto pelos cantos, a amargurar. De fora era um tipo normal que jogava à bola e que tinha amigos.

 

Era um melancólico.

Se calhar era. E ela veio dar-me não sei quantas coisas que eu não sabia que existiam. Tornei-me uma pessoa muito melhor por olhar para ela, que é um ser iluminado.

 

Está a dizer isso para ela ler e sorrir.

Não. Sou um discursivo. Quando gosto muito das pessoas digo muito que gosto delas. Hoje em dia mais. Penso que as pessoas gostavam de trabalhar comigo porque eu olhava mais para elas do que para mim. Engraçado. Fui tendo sempre um reconhecimento sem o reclamar. Estou a dar esta entrevista hoje – estranha. Estou a dar esta entrevista porque a minha mãe me pediu.

 

Eu falei à sua mãe, que conheci num jantar, apenas para pedir o seu telefone. As outras pessoas a quem o pedi não o tinham. E já não estava ninguém no escritório. Pura casualidade.

Por causa do h3 dou mais entrevistas do que dava enquanto publicitário. Estava mais entretido a fazer as coisas do que ocupado a construir um personagem. Não gosto de criar um personagem que não domino. Gosto de inventar histórias, no anonimato.

 

Nunca se domina o personagem público. Mas quando se tem alguma notoriedade é inevitável que ele exista. E já agora que é criativo que ele tenha uma grande narrativa. Não?

No h3 fizemos uma identidade a três, os sócios, os grandes amigos. Tenho tantas coisas para fazer, tantos livros para escrever, tantos negócios para fazer... Criar um Richard Branson – que deve ter copywriters a escrever-lhe uma biografia aventureira... Não estou interessado.

 

Mas quer ser o autor da sua própria biografia. Aventureira à sua maneira.

Sim. Vou mudar de vida várias vezes ao longo da vida. Disso tenho a certeza. Acho que vou acabar a escrever.  

 

Comecei por perguntar porque é que se chama Albano. A outra possibilidade que trazia para começar era: do que é que precisa absolutamente para começar uma outra vida?

Preciso de pôr um fim mental a esta que tenho. Não ponho essa hipótese agora. Isto está a começar, fizemos cinco anos. Está muito por fazer.

O conforto é uma coisa de que gosto, pelo qual luto. Mas a certa altura faz-me mal. Fiz os inter-rails. Não sabia onde ia dormir no dia a seguir. Depois fui para casa de um amigo holandês, milionário; pocket money, um carro óptimo, uma casa como nunca tinha visto. Só no dia em que o carro avariou em Amesterdão e não sabíamos como voltar para casa, em Haia, é que a viagem para mim começou. Na publicidade, estava na BBDO, a melhor agência. Abdiquei de estatuto e ordenado. Precisava de sentir o medo de não saber o que ia fazer a seguir. Não é masoquismo.  

 

O que é que procura nesse desconforto? O desafio de o resolver? Uma superação de si?

É. Mas não é para me pôr à prova. Detesto pôr-me à prova. Nem comemoro no fim. É o desconforto pelo desconforto. Preciso de fazer coisas difíceis. Espero não ficar auto-satisfeito.

 

Voltando à questão: do que é que precisa para começar amanhã? Da urgência?

Vai ser fatal [que a história se repita]. Mas tem de ser radical o suficiente para não saber se vou conseguir.

 

Põe a hipótese de não ser um sucesso?

Ponho. Tenho que pôr. Precisava que este negócio fosse um sucesso para ganhar dinheiro. Não tinha dinheiro suficiente para viver o resto da vida. Então, que é que vou fazer a seguir? Escrever livros. Não anúncios, mas livros. E se calhar ser um medíocre escritor.

 

Fale-me dos livros que o marcaram.

Escrevo ficção. Mas o que eu leio não é ficção. Leio poesia, ensaios. Fernando Pessoa. Gosto da realidade e de ser eu o artista que olha para a realidade. Ninguém inventa histórias tão boas como as histórias que estão na realidade.

 

Um destes dias, se a sua mulher o deixa, você está tramado.

Estou. Preciso dizer isto: vivo a vida feliz, com três filhos maravilhosos.

 

Tem fama de bem comportado. Nem se lhe conhecem drogarias e os excessos que se associam ao mundo da publicidade.

Não me vestia à publicitário. Não sou um certinho, mas não preciso de andar a violar regras para mostrar alguma coisa. Realmente preciso dela para viver os dias todos.

 

Estava a fazer-lhe uma enorme provocação para ver como reagia. Se lhe via o mínimo de desconforto ou desagrado. Apenas sorriu.

Tenho a certeza de que é para sempre. Perguntávamos aos meus avós porque é que eles eram tão felizes; respondiam: “Combinámos ser felizes”. A Sofia e eu também temos essa combinação. Acho que nenhum dos dois vai falhar.

 

Quando saiu da publicidade disse que precisava sentir o risco. Criou uma empresa num tempo incerto, no crescendo para a crise de 2008.

Nascemos no 7 do 7 de 2007. Não sou o típico bom empresário. O António [Cunha Araújo], o Miguel [van Uden] e eu: os três resultamos num bom empresário. O Miguel é organizadíssimo e um gestor de pessoas óptimo. O Tó é uma pessoa habituada ao risco e um empreendedor, um tipo que vai para a frente. E eu sou um criativo. Arriscámos o dinheiro que tínhamos e o que não tínhamos (pedimos algum emprestado). Tínhamos uma fezada que a coisa ia correr bem. Felizmente correu. A minha necessidade do risco é pessoal. Há uma história epopeica: largou tudo para fazer um novo negócio. Fazer um bom anúncio era de uma transcendente importância. Mas eu ia começar a tornar-me um mau publicitário. Havia um fracasso que eu antecipava.

 

Estava também a caminho dos 39... Idade perturbadora na sua história. Tinha um cutelo em cima de si.

Tinha um cutelo, tinha. À minha volta apareceu um coro grego. Tive uma dor no peito, nos anos do meu filho. A minha mãe obrigou-me a ir a 20 médicos. A minha mulher obrigou-me a ir a 20 médicos. Andava com um problema de coração. Durante dois meses, desenganadíssimo. Achava que ia morrer aos 39, que batia tudo certo. Até que um médico me perguntou: “Levou uma bolada?”. “Levei.”. Era só uma coisa muscular. [riso] A primeira vida estava feita – a tal em que morria aos 39. Depois ia viver a segunda. Muito parecida com a primeira na parte mais estruturante. Não mudei de família.

 

Não se admitiria o falhanço nesta nova vida...

Não. Não por mim. O meu medo sempre foi o de falhar com as outras pessoas. Com quem me deu emprego. Com o Bidarra que acreditou em mim. Com os meus sócios. Esse medo de falhar, de desiludir as pessoas, tenho-o. E não quero ser o elo mais fraco.

 

Quais são as características que fazem de si um dos melhores?

Tenho facilidade em resolver problemas com algum brilho. Acho que sou um bom gestor de pessoas; faço boas equipas e as pessoas entusiasmam-se. Sou bom a organizar processos. Não perco um segundo com coisas que não sei fazer.

 

O seu sucesso, que o Expresso sublinhou recentemente ao considerá-lo um dos 100 portugueses mais influentes...

Era eu que estava ali, mas somos os três.

 

O seu sucesso é o sucesso do homem normal. Competente, ambicioso, mas normal. Como se não fosse preciso ter um carisma transbordante para ter sucesso. Ou acha que é um special one?

Há bocado estávamos a falar da composição do personagem. Esse personagem, nunca o vendi assim. Não sou special one. Se perguntar às pessoas que trabalham comigo se acham que sou especial, se calhar vão dizer que sim. Acham mais eles do que eu. Eu acho que faço o que tenho de fazer. Tenho de entregar o que tenho de entregar. Sou talvez mais rápido a ter ideias do que as outras pessoas. Como era a jogar futebol. São as duas características que tenho.

 

E agora uma pergunta que devem estar sempre a fazer-lhe: qual é o segredo da vossa empresa? Um verdadeiro study case. Abriram dezenas de lojas em vários países em cinco anos, num contexto de crise severa. Há teses de mestrado sobre o vosso modo de funcionar.

O segredo: algum desassombro a olhar para o mercado. O mercado de hambúrgueres seria o último em que as pessoas iriam entrar. Existe a McDonalds e a Burger King. Segundo: a composição dos três sócios, com características complementares. Começámos a pensar logo nisto em grande. Juntámos pessoas com valências estranhas no negócio da restauração. Pessoas do marketing que têm cursos de Geologia. Temos agora um sócio para a parte internacional, o Henrique Lima Freire, que era engenheiro e consultor da KPMG. Todas a puxar para o mesmo lado. E sentem que se tiverem uma ideia cá dentro ela pode florescer. Tudo isto tem ganhos de eficiência e de moralização. Que as pessoas sejam felizes aqui dentro. Isso é produtivo. É um negócio feliz. É um negócio do bem.

 

O que é que diria para animar as hostes? O país está deprimido, num sufoco, sem horizonte. A vossa empresa mostra que a palavra empreendedorismo é possível mesmo neste contexto, mesmo num país como Portugal.

As pessoas interessam-se pelo h3 pela improbabilidade que é conseguir ganhar dinheiro num negócio que não existia. Rapidamente passou a ser óbvio. Há um sem número de coisas não-óbvias que estão lá. É preciso ser observador, teimoso.

 

E fazer perguntas diferentes? Interrogar de diferentes modos a realidade.

Sim. Se tivéssemos comprado os serviços de uma consultadoria eles iam dizer-nos para vender comida asiática ou saladas. Existe uma expressão nos negócios: benchmark. Basicamente é copiar o que alguém já fez. Copiar? Como sempre vivi de ideias originais faz-me muita confusão copiar o que quer que seja. É amoral. Em Portugal há um sem-número de coisas para fazer. Fazemos tantas coisas mal... Há a possibilidade de fazer bem.

Começámos com um fracasso. Com um restaurante na Avenida da Liberdade, de que toda a gente gostava. Boa comida, empregados simpáticos, um espaço bonito. Mas não era um bom negócio. Onde é que podíamos ganhar dinheiro? Fomos para os centros comerciais – onde as pessoas comiam.

 

Você comia em centros comerciais?

Não. Mas fui ver. O que é que comiam, o que é que deixavam nos pratos. O que é que nos apeteceria se estivéssemos a comer num centro comercial com pouco tempo? Havia algum decreto a impedir que se servisse boa comida nos centros comerciais? Não. Fizemos contas. Se houvesse uma comida de que as pessoas gostassem, com um custo de matéria prima barato, muito rápido, era possível. Trabalhámos um ano no papel. Apontámos para fazer disto, não o melhor hambúrguer de Portugal, mas o melhor hambúrguer do mundo. E com mais pinta.

 

Quando achava que era o melhor do mundo, achava que era quem?

Tinha uma professora que me dizia: “Tens a mania... Se calhar não vais ter sucesso nenhum na vida”. Que é uma coisa horrível de se dizer a um miúdo de 14 anos. Algum valor intrínseco, eu achava que tinha. Para mim, ser o melhor do mundo é tentar ser o mais feliz do mundo.

 

E o romance sai quando?

Não sei se é romance. Já escrevi estórias pequeninas, poesia. Funciono bem por encomenda. Qual é a encomenda que me vou pôr? Se me mandar escrever qualquer coisa, eu escrevo, e não sai mal. O exercício seguinte é fazer-me uma encomenda e sair bem.

 

Parece precisar sempre de alguém que toma conta e lhe pede contas. Às vezes parece um miúdo.

É. E como não quero falhar, faço. Tento ser um menino bonito. Saltei de uma infância para o estado adulto sem ser jovem. Não tenho a vivência da rebeldia, contestatária da família. Nunca me tinham dito que funciono como um menino bem comportado. Mas é assim.

 

A sua mãe, que esteve na origem desta entrevista, ainda que por caminhos ínvios, vai reconhecer este filho?

A minha mãe é a primeira publicitária da família porque faz muita propaganda dos filhos. (O meu irmão é um tipo cheio de qualidades. Gosto muito dele). Parece aquela mãe do Woody Allen que aparecia no céu a atazanar o filho [New York Stories]... Acho que vai reconhecer-me, sim. Falamos muito. Falávamos mais, antes. Desde que nasceram os meus filhos, a coisa ficou mais focada neles. Cada pessoa olha de um lado. Vou tendo surpresas sobre mim através dos olhares que as pessoas vão fazendo.

 

Os seus filhos vão reconhecê-lo?

Sim. Os meus escritos mais amalucados, dou-lhos a ler.

 

E agora enxertamos uma segunda parte da entrevista, feita dois dias depois da primeira. Uma entrevista é um diálogo entre duas pessoas. Vou propor-lhe o exercício de fazer um diálogo de si para si. Uma auto-entrevista.

Fez-me na conversa anterior muitas perguntas sobre o sucesso. Se eu era movido pelo sucesso. Vejo claramente duas fases na minha vida. A vida depois da publicidade, em que comecei a ter algum sucesso profissional, e a fase errática anterior em que vivi momentos estruturantes. Eu era para ser jogador de futebol.

 

As pessoas da sua classe social não são jogadores de futebol profissionais.

Tive esperança até aos 22, 23. Ao mesmo tempo, fui cumprindo o curso de Direito. Fui fazendo cadeiras. Não usei esta forma moderna de fazer cursos. Para compor o orçamento, fiz trabalhos inconsequentes. Um deles foi escrever resumos de telenovelas para o jornal A Capital. Fi-lo com pouquíssimo profissionalismo. Como achei que estava muito mal pago para ter de gramar com três novelas por dia, usei como expediente ligar a uma tia que via as três novelas. Até ser despedido. Um coro de velhas ligava para o jornal porque nada batia certo. Boicotava actrizes de que não gostava. A Lucélia Santos, a Escrava Isaura. Quando a apanhei era a Sinhá Moça.

 

Está a falar de uma certa manipulação da realidade, ficcionando sobre ela. Já tinha dito que a realidade é mais interessante que a ficção.    

É. Fiz também jornalismo desportivo no Diário Popular. Basicamente trabalhei em jornais que fecharam a seguir. Fiz um ano de artigos n’ O Independente, que fechou também. No jornalismo desportivo fiz grandes matérias: cobri o arrelvamento do Sacavenense, o quadragésimo aniversário da Federação Portuguesa de Ginástica e estreei-me com a chegada do rally paper dos farmacêuticos à Torre de Belém.

 

Faz isso sabendo que é um caminho errático. O que é que aprende nestes trabalhos de ocasião?

Desse percurso ficou bastante. Fazia um exercício diletante. Andava na fase de ocupar o tempo. Perdido. Fui também trabalhar nas obras na Alemanha Democrática. Pouco tempo. Havia a associação de amizade Portugal-RDA que organizava uns intercâmbios. Para que os portugueses pudessem assistir à magnífica construção da sociedade da Alemanha Democrática.

 

A que propósito se vai meter com uma associação e um país comunistas? Na sua família houve pessoas que foram para o Brasil no pós-revolução...

Tinha uns amigos de esquerda. Um deles é agora nosso sócio, está no Brasil a abrir o h3. Conheci nas obras um cubano que era guionista de filmes pornográficos e assaltava hospitais a pedido.

 

Ficou com a ideia que eu tinha um especial interesse no seu sucesso e nos mecanismos do seu sucesso. É também por ser um homem de sucesso que o estou a entrevistar. Mas o que me interessou foi tudo o que esteve até ao sucesso. Os pequenos parafusos que fazem com que depois a máquina funcione. Voltando à auto-entrevista: que outras coisas quereria ler sobre si?

Vale a pena pensar fora da caixa. Irrita-me na política, nos debates, que as pessoas exercitem pouco a cabeça. Parecem um grupo de sábios a dissertar sobre um moribundo. Fazem um exercício descritivo. “Estou a ver um moribundo a espernear. O moribundo está a pedir ajuda. O moribundo portou-se muito mal. Não devia ter feito isto e assado.” Se alguma coisa a crise devia fazer era compelir as pessoas a ocupar o espaço público com ideias.

 

Somos pouco temerários?

A atitude das pessoas perante a crise é religiosa. Primeiro é um castigo que temos de sofrer, e depois há uma redenção que achamos que vai acontecer. É uma atitude passiva, outra vez. A oportunidade exige esforço, recomeçar. Exige não usar expressões como benchmark ou “lá fora faz-se”. Portugal tem vantagens. É um país minúsculo. Dez milhões de pessoas: até dava para combinar o que se deve fazer! Nem devia haver luta de classes...

 

O que é que os portugueses temem tanto quando temem o risco? Isto cola com a necessidade que manifestou de experimentar o desconforto.

Não gosto de fazer juízos morais. Eu tive sempre algum conforto e quis sempre bagunçar esse conforto. Não sei se as pessoas que têm menos têm de se agarrar ao menos que têm, se lhes fica mais complicado mudar. Isto serve de metáfora para um país que é pobre? É porque já experimentaram a pobreza que lhes faz confusão abdicar do pouco que têm? Portugal há 50, 60 anos era muito pobre. As pessoas queixam-se muito, mas têm dos melhores hospitais do mundo, escolas com ginásios e laboratórios. Valeria a pena repensar e recomeçar algumas coisas do zero. Não nas vidas individuais, mas na vida do país. Arriscar. O maior risco hoje é não arriscar. Se não arriscarmos, isto vai ter uma morte lenta, e vem alguém de fora tomar conta. A Troika. Os chineses e os angolanos a comprar tudo, é isso. Somos vulneráveis até a pessoas que não têm dinheiro. Os espanhóis compraram metade de Portugal com dinheiro que não tinham.

 

O que é que descobre em si na zona de desconforto?

No desconforto sinto a vida mais presente. Como se a vida estivesse ali e não se pudesse desviar o olhar. Se calhar os sentidos todos têm de estar mais alerta. Nos momentos de conforto a música é suave. Mas é uma necessidade pessoal. De vez em quando preciso de não ter nada ou menos ou de ter a perspectiva de perder tudo. Rascunhar numa página que já está cheia de gatafunhos, a certa altura, aborreço-me.

 

O que é que constituiu uma perda significativa?

Um amigo. Leucemia. Da minha geração. O meu pai. Perdi horas de sono quando tive de despedir pessoas na Young. Fiquei mais velho.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012