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Anabela Mota Ribeiro

Rosa Montero

06.05.14

A escrita permite-lhe coser-se, saber-se, estruturar-se. Não enlouquecer. Rosa Montero achava que escrevia sobre perdedores, anti-heróis. Um dia percebeu que, afinal, escreve sobre sobreviventes. Lágrimas na Chuva é o seu último romance.

Nessa noite, Rosa Montero tinha dormido na Casa Fernando Pessoa e parecia impressionada. Qual o seu heterónimo preferido?, perguntei. Não houve hesitação na resposta. A hesitação que corresponde a não reconhecer com facilidade com que Pessoa nos identificamos mais. A resposta foi pronta, ainda que inconclusiva. Rosa Montero gosta da existência de heterónimos. Do desdobramento em personalidades distintas, das suas vidas paralelas. É essa ideia que a toma. Não citou Pessoa uma vez durante a entrevista, mas Vargas Llosa sim, duas.

Passou por Lisboa, depois da Póvoa do Varzim, para apresentar o romance Lágrimas na Chuva. Um livro futurista que nos transporta para Madrid em 2109 e para o ambiente de Philip K. Dick. Há replicantes e “memoristas” (aqueles que concebem a memória e a identidade do replicante), uma replicante que se parece com ela, Rosa, e um “memorista” que acaba escritor, como ela, Rosa. Os replicantes não foram nunca crianças. Ela, de certa forma, também não.

“Gosto muito de anões, há muitos anões nos meus romances. Quem sabe se porque em criança não fui realmente criança e em adulta não sou totalmente adulta.” Rosa Montero é uma escritora que, ao escrever, procura suturar feridas antigas. É uma entrevistadora que, na qualidade de entrevistada, se recusa a falar da infância.

Nasceu em 1951, em Madrid. É colaboradora do El País desde os anos 70, e uma das mais premiadas jornalistas espanholas. Entrevistou toda a gente, em Espanha e não só (conta mais de duas mil entrevistas). Publica ficção desde os 28 anos, está traduzida em várias línguas, vende muito, ganha prémios. Falar com ela devolve-nos uma Espanha em convulsão, na transição do franquismo para os anos da Europa. É o tipo de pessoa que ajuda a rodar o sofá para encontrar a posição certa para a entrevista.  

 

“Diz-me três palavras que te doam.”

Que engraçado… Essa é a pergunta que o terapeuta faz à minha [personagem] Bruna Husky. E foi a pergunta que me colocou ontem a Inês Pedrosa, na apresentação [do livro nas Correntes D’Escritas]. Portanto vou repetir o que disse ontem, porque foi o que disse sem pensar: a crueldade, a morte e a perda.

 

Porquê?

A crueldade põe-me louca. Não o posso suportar. É o horror, o inferno. “O inferno são os outros”, como dizia Sartre. O inferno é a crueldade dos outros.

 

O psicanalista português Carlos Amaral Dias tinha um programa na rádio chamado O Inferno Somos Nós. É outro modo de pôr o problema. Acontece-lhe sentir que o inferno é você, com os seus demónios?

Não. Não sou nada depressiva, mas sinto angústia. Tive três fases de grande angústia na minha vida. Quando tinha 16, 17 anos, quando tinha 21 anos e quando tinha 28, 29. Continuo a sentir angústia, mas isso não seria o inferno. Poderia ser desassossego. O inferno é esse mal seco que nos deixa sem alento, e não o vejo dentro de mim.

 

Como ultrapassou essas crises de angústia? Estudou psicologia.

Não se sabe como é que passa. Noventa e oito por cento das pessoas que estudam psiquiatria ou psicologia fazem-no porque acreditam que estão loucos. O que não é mau. Permite-nos colocarmo-nos no lugar do outro. Eu vinha de uma família pobre, numa época em que ninguém nos levava ao psiquiatra ou ao psicanalista. Nem nos davam um ansiolítico. Senti as crises na pele, sem tomar um único comprimido. Estudando, dei-me conta de que as crises de angústia são como a gripe dos desequilíbrios mentais. É algo muito comum, que muita gente tem.

 

Traduziam o quê?

O medo da morte. O porquê. Cada um coloca as suas questões [à sua maneira]. Vamos aprendendo a perder o medo de ter medo. Sabemos que não vamos enlouquecer, que vamos regressar das crises. Acima de tudo, foi fundamental ter publicado um romance. A escrita é muito estruturante da personalidade.

 

Como assim?

Ajuda-nos a cosermo-nos. Estamos inteiros graças à escrita. Penso que é uma sensação que a maior parte dos escritores tem. Que, se não escrevêssemos, nos desfazíamos, enlouqueceríamos. Mas escrever sem publicar não serve para nada, não sara, não cura.

 

Era o medo da rejeição?, que diminuiu depois de publicar pela primeira vez.

Não diminuiu. Publiquei pela primeira vez aos 28 anos, tive a última crise pouco tempo depois e nunca mais voltei a ter. Ser lida, une-me. Coloca uma ponte sobre uma certa fissura, um certo abismo. Une-me ao resto do mundo e afasta-me dessa sensação alienante e de isolamento. A coisa mais terrível da dor psíquica é a sensação de isolamento agudo, a impossibilidade de explicar o que sentimos a outros. A impossibilidade de comunicação com os outros.

 

O que é paradoxal, sendo uma comunicadora, sendo uma escritora. Não encontrar as palavras certas e os caminhos certos para se comunicar ao outro.

É indiferente que o seja. Tendo escrito A Louca da Casa [2003], sinto que sou uma privilegiada por ter tido essas crises de angústia. Porque me permitiram compreender o que é fazer uma espécie de excursão. Uma pequena viagem, apenas durante o dia; apanhar um autocarro, visitar o outro lado. O lado selvagem, o lado da loucura. Ter estado ali de passagem, só a ver, dá um conhecimento muito maior do mundo e do ser humano.

 

Uma doença de outro tipo marcou a sua infância, a tuberculose. Implicou uma vulnerabilidade física, para começar.

Efectivamente, tive tuberculose dos cinco aos nove anos. Não tenho consciência de que fosse uma coisa especialmente estranha. Quando se é tão pequeno, a vida é assim. É assim e acostumamo-nos. Eu estava em casa, lia, escrevia. Não recordo ter tido tuberculose como uma coisa especialmente má. Toda a minha vida senti pouca fragilidade. Senti ser omnipotente. “Posso com tudo. Pude com a tuberculose.” Depois da morte do meu marido, voltei a sentir a fragilidade daquilo que somos. Mas toda a vida senti que podia passar num bairro perigoso de uma cidade perigosa e que não me aconteceria nada.

 

Na tuberculose, mesmo que disso não tivesse consciência, o perigo estava próximo. Era uma luta com a vida, ou contra a morte – uma coisa física. Não tem que ver com o medo da loucura que sentiu mais tarde. São fronteiras diferentes.

Sim. Absolutamente. Devem existir também predisposições fisiológicas. Sou uma pessoa nervosa, acelerada. Tenho uma coisa, que não é uma doença, que se chama “tremores essenciais”. Significa que tremem as mãos, às vezes, quando estou em tensão, quando não durmo. Herdei do meu pai. Tem vantagens. Uma grande capacidade de concentração, rapidez. Como se constrói a angústia? Tenho as minhas teorias sobre o que se pode passar numa infância... Sobre a minha própria infância, não vou contar o que pertence à intimidade de uma infância, de uma família. Não vou contar. Não acredito que tenha que ver com a tuberculose. Acredito que a tuberculose é um sintoma de outra coisa, como a angústia. Entende?

 

Um resultado da pobreza?

Não.

 

Até que ponto a sua vida foi condicionada por ter nascido pobre?

Por ter nascido pobre, nada. Eu não tive noção do que eram classes sociais até aos trinta anos.

 

Como foi isso possível?

Andava numa escola muito pobre. Todos eram igualmente pobres. A minha mãe e o meu pai, que só estudaram até aos dez anos, são gente culta, naturalmente. Com amor pela cultura. A minha mãe vem de uma família de artistas. Um irmão morreu agora, os outros dois tornaram-se pintores profissionais. A minha mãe era a que desenhava melhor. Mas como era mulher, não estudou pintura. O meu pai era toureiro. Não gosto de tourada, nada. Sou defensora dos direitos dos animais. Devo dizer que a complexidade do ser humano é tal que quem me ensinou o amor pelos animais foi o meu pai. Ser toureiro também era ser boémio. Tanto o meu pai como a minha mãe pertenciam a um registo boémio, artístico, fora de qualquer classe social. Não me passaram a ideia de classe, de que éramos pobres. Não tivemos água quente em casa até aos 16 anos, passávamos muito frio. Era uma vida precária. Mas isso não é o pior.

 

Essa ausência de noção de classes sociais é ainda mais espantosa numa Espanha franquista, onde tudo era estratificado.

Sim. Houve gente que sofreu mais [essa estratificação]. Alucinantemente, eu não. Quando morreu Franco, toda a gente queria parecer hippie, pobre, as classes não existiam. Foi um período divertido. Até aos 30 anos sabia que existiam classes sociais. Mas não me dei conta, pessoalmente, de que existiam. Comecei a trabalhar aos 14 ou 15 anos, no Verão, a atender o telefone de um vizinho advogado. Para poder ganhar algum dinheiro, para poder comprar uma camisola (senão, não podia). Aos 18 comecei a trabalhar como jornalista, porque precisava do dinheiro. Estudava ao mesmo tempo. E isso não me parecia nem heróico, nem mais difícil, nem muito interessante. Nunca me pareceu horrível. A minha vida foi condicionada por milhares de coisas, mas não senti que isso fosse um trauma. Qualquer vida, a sua, a minha, está condicionada. Não há vidas livres.

 

Escreveu no seu último romance: “Eu não sou a minha memória, que além disso sei que é falsa. Eu sou os meus actos e os meus dias”. Não quis ficar presa à memória? A sua construção faz-se nos seus actos, nas suas escolhas?

Isso diz a minha personagem, que renuncia à sua memória porque é falsa, não eu. Somos, em parte, a nossa memória, mesmo que essa memória seja um conto que inventamos. Mas o que diz é interessante, porque, verdadeiramente, tenho a sensação de me ter feito a mim mesma. Nas minhas acções, nos meus dias, contra uma herança que rejeitei desde cedo. A herança sexista, do papel da mulher na sociedade, do que era esperado de mim. Ninguém esperava nada de mim, aliás. Não tinha um ambiente intelectual de onde pudesse recolher alguma coisa. Tenho a consciência claríssima de me ter inventado a mim mesma. De ruptura com o passado familiar, com o que havia, com o que me deram como testemunho.

 

Como é que se fez tão forte, para ser capaz de se construir assim?

Não sei. Deve ser a necessidade, também. Não queria o que via, como opção de vida. Parecia mau, horrível. Adoro a minha Bruna Husky, é a personagem que escrevi mais próxima de mim. Exagerada, como se exageram sempre os personagens. É muito forte e ao mesmo tempo tem uma certa fragilidade, como eu.

 

O que é que escrevia? Quando era criança. Quando tinha crises de angústia. Antes de publicar.

Comecei aos cinco anos, com histórias de ratinhos que falavam, que a minha mãe guardava e ainda tenho. Com 13, 14 anos escrevia contos (tenho guardados, alguns), e começava romances que não terminava. O jornalismo teve que ver com a facilidade da escrita. Sempre fiz jornalismo escrito, nunca fiz televisão nem rádio. Acontece que eu tinha uma grande ambição literária. E continuo a ter. Percebi que algum dia escreveria algo. “Aprenderei. Tenho que aprender! Algum dia escreverei bem, escreverei melhor.” Trabalhava muito como jornalista e escrevia quando podia.

 

Como é que deu o salto para a ficção e a publicação? Conte a história do primeiro livro.

Um editor pediu-me que fizesse um livro de entrevistas, feminista. Eu disse que sim porque era colaboradora freelancer, trabalhava em tudo o que me indicavam. Deram-me um adiantamento pequeno, que gastei. Escrevia muitas entrevistas no jornal El País. Ao fim de uns meses, como ainda não o tinha conseguido terminar, disse-lhe: “Se quiseres, em vez de um livro de entrevistas escrevo um livro de ficção. Queres histórias de mulheres, mas inventadas?” Ele aceitou. E saiu, a Crónica del Desamor [1979]. Fez com que eu escrevesse um romance. Não é um romance, no sentido em que é um romance mau, um romance juvenil. Saiu antes do seu tempo, empurrado pelo tema.

 

O que há nesses anos é que dá voz a outros. Como entrevistadora, está a dar espaço a outros para que transmitam a sua narrativa. Paralelamente, estava a encontrar a sua narrativa, a sua voz?

Habilidosa pergunta, mas não sei se é assim. Como romancista, estou a dar voz a outros – aos personagens – e tenho que encontrar-lhes a voz. Converter-me numa boa romancista, ou pelo menos numa romancista mais madura, [implica] a capacidade de me excluir a mim mesma, e deixar-me atravessar pelas personagens, deixá-las falar. Não pense que há uma diferença tão grande… Há diferença na maneira como me aproximo, no estilo. O jornalismo – que considero um estilo literário – e a ficção são em muitos casos antitéticos. Por exemplo, quanto mais clara e menos imprecisa for uma peça jornalística, melhor. Num romance, a ambiguidade é um valor. O romancista procura a sua perspectiva única, com que contempla o mundo. Uma música. Quer captar uma música que mais ninguém escuta.

 

O seu livro mais famoso, A Louca da Casa, tem um registo autobiográfico. Corresponde a uma voz mais autêntica?

Não é o mais famoso. O meu livro que vendeu mais, em todo o lado, foi A Filha do Canibal [1997], que nem é o meu preferido. Vendeu um milhão de exemplares em espanhol e em outros vinte países. O outro que vendeu mais de um milhão de exemplares foi Te Trataré como a una Reina [1983]. A Louca da Casa é um livro menor, em muitos sentidos.

 

Assumidamente, era um exercício autobiográfico romanceado. Recebeu muitos prémios.

Recebeu, mas os outros também receberam. É um livro híbrido, difícil de classificar. É mais um conjunto de contos. Gosto muito dele, é muito meu, mas é um livro mentiroso. Tremendamente mentiroso! Muitas das coisas que relata não são verdade. Não tenho nenhuma irmã, por exemplo.  

 

Aparece mais numa personagem de ficção como a protagonista de Lágrimas na Chuva [2012]?

Sim. Não tem nada que ver com o biográfico, isso é o menos importante. Uma pessoa que leia os meus romances com atenção sabe, melhor do que eu, como é que sou. Tem que ser uma leitura atenta, inteligente. Não pode ser uma leitura literal.

 

O seu mundo ficcional tem núcleos coincidentes? Marcas que reconhece e que transitam de livro para livro.

Imensos. Isso só se descobre a posteriori. Descobri há apenas quatro ou cinco anos uma coisa essencial sobre os meus romances – são sempre histórias de sobreviventes. O romance do século XX é sobre perdedores, anti-heróis. Eu achava e afirmava, e publico romances há 32 anos, que escrevia sobre perdedores e anti-heróis. Num acto público perguntaram-me o que estava a preparar, e eu disse que estava a terminar um romance sobre um taxista que perde a mulher – Instruções para salvar o mundo [2008]: “Em resumo, uma história de sobreviventes, como todas as outras.” Ouvi-me a dizer aquilo e fiquei pasmada, a questionar-me a mim mesma. Foi uma revelação.

 

Qual é para si a grande a diferença entre um perdedor e um sobrevivente?

Podem ter a mesma vida, externamente. Mas ainda que aparentemente tenha a mesma vida, o sobrevivente não se rende, continua a lutar. E assim muda a sua vida. Muda-lhe o sentido, a forma como a vive. O perdedor é um ser passivo, que se rendeu.

 

Como é que achou que escrevia sobre perdedores se os seus personagens não são passivos?

Os meus personagens muitas vezes são passivos, inicialmente são passivos. Lucía, n’A Filha do Canibal, inicialmente é passiva, e termina tomando nas mãos as rédeas da sua vida. Há outra coisa que aprendi: os meus romances parecem distintos, mas têm uma estrutura básica parecida, consistente. Um personagem, homem ou mulher, que inicia a acção isolado, numa situação crítica, e que ao longo do percurso vai reunindo uma família paralela, de personagens marginais e estranhos, que se revelam mais válidos que os personagens mais ortodoxos e dentro do poder. Essa colecção de amigos, uma colecção freaks, crio-a uma e outra vez nos meus livros.

 

Isso tem alguma relação com o colégio que frequentou, quando finalmente foi para a escola, aos nove anos? Já o descreveu como uma espécie de Bronx. Era frequentado por pessoas pouco integradas socialmente, que começaram por ser uma ameaça.

Não. Em pequena estive fechada em casa porque estava doente, mas quando voltei à escola fiz milhares de amigos. O melhor da minha vida são os meus amigos. Tenho muitos, alguns há mais de 40 anos. Tenho uma enorme capacidade para me envolver com as pessoas. É um dom. O que representa [essa colecção de amigos marginais]? É algo muito profundo e oculto. Disfarçado.

 

Pareceu-me haver semelhanças entre a capacidade de estar com diferente, e constituir uma tribo com ele, e esse momento em que, pela primeira vez, está fora de casa, sem a protecção que se tem em casa.

Eu não me sentia muito protegida em casa. Gosto de ler biografias, e descobri que a maioria dos romancistas tiveram, antes da puberdade, dos 12 anos de idade, uma experiência de decadência violenta nas suas vidas. A morte de um pai, a ruína, uma coisa dessas. Em alguns casos, podia ser uma experiência mais oculta, mas havia uma perda. Vargas Llosa acreditava que estava só, que o seu pai tinha morrido. Vivia como um rei entre um harém de mulheres, que o adoravam. De repente apareceu o pai, tirânico e autoritário, que se tinha separado da mãe, que o envia para um colégio militar. Destrona-o. Vivemos infâncias inadequadas, por uma ou outra razão, e por isso vivemos uma infância na idade adulta que não pudemos viver [quando éramos crianças].

 

Bruna Husky não teve infância. O “memorista” que lhe escreve a memória transporta para ela a sua própria infância; e há um elemento de perda, do pai, aos nove anos.

Exacto. E a mãe do “memorista” suicida-se. Isso ele não dá a Bruna, por piedade. O meu “memorista”, logicamente, terminou como escritor, porque teve uma infância adequada a um escritor.

 

O que fez, desde sempre, foi escrever memórias para outras pessoas ou sistematizar as memórias de outras pessoas.

Sim, sim, sim. Isso divertiu-me muito. Um romancistaé um“memorista”. Porque não? Se eu vivesse no século XXII estaria a escrever memórias para os replicantes. Quinhentas imagens, quinhentas cenas... Que acha? Que cenas recorda [da sua infância]? Não mais de quinhentas.

 

Fez psicanálise?

Estudei psicologia até ao quarto ano, não me interessou mais. E não aprendi muito. Uma boa psicanálise é uma experiência intelectual maravilhosa. Fiz um ano de psicanálise, há vinte anos; foi muito interessante. Depois fiz outro ano de psicanálise, com outra pessoa, há oito anos; também foi muito interessante. E agora estou há um ano a fazer psicanálise, com o mesmo psicanalista; e está a ser fascinante. Foi muito importante para situar a perda.

 

Perda foi uma das palavras que apontou no início da entrevista, quando, reproduzindo uma frase do livro, lhe pedi três palavras que doam. Quais foram as grandes perdas da sua vida?

A maior perda é viver. Já disse isto muitas vezes, e é óbvio. Vamos perdendo tudo. Primeiro perdemos o futuro, a possibilidade de vida, possibilidades de escolha. Vamos perdendo as pessoas queridas, a família, vão morrendo. Amores, dentes, cabelo, força física. Opções. Antes tinha a opção de ter ou não filhos.

 

Posso perguntar porque não quis ter filhos?

Não quis nem deixei de querer. Nunca tive o desejo de ter filhos. Nunca coloquei a questão. Não brinquei em criança com bonecos, brinquei com animais de peluche, nunca me imaginei com filhos. Também nunca disse: “Não vou ter filhos”. Quando cheguei aos 37 anos, tinha acabado de me juntar com meu companheiro, que foi o meu marido; tivemos que pensar nisso os dois, porque tínhamos a mesma idade e poderia não haver tempo. Tentámos, não conseguimos. E foi assim. Não fizemos análises, nem inseminação.

 

Uma criança representa quase sempre uma ideia de inocência e de descoberta. Não por acaso, esta Bruna não teve infância. Nunca foi menina.

Vê? Como digo, parece-se muito comigo. Sou criança sendo adulta. Eu tenho uma mistura grande entre o racional e o fantástico. A imaginação é fortíssima em mim, e é de criança. A criança é quem cria. Um artista tem que ter algo de criança em si, algo puro, inocente, que ultrapassa os limites.

 

Algo que não sofreu ainda? Intacto.

Sim. Uma parte capaz de acreditar. De sentir admiração. De viver emocionalmente sem o superego do intelectual. De entregar-se a cem por cento. Que não tenha vergonha de sentir emoções puras, porque isso é uma maneira de ser livre. Conseguir manter essa criança atrevida, que é valente porque não tem limites... Como um Peter Pan que temos dentro.

 

Agustina Bessa Luís tem um aforismo famoso: “Nasci adulta, morrerei criança.” Condensa um pouco essa ideia.

Que bonito.

 

Perguntava pelas grandes perdas da sua vida…

Perdi o meu marido. Faz três anos dia três de Maio. Tinha cancro, foram dez meses, e morreu. Ainda que não seja excepcional, não deixa de ser muito duro. Em Janeiro do ano passado senti que não estava a conseguir recuperar alguma ligeireza e por isso voltei ao psicanalista.

 

Quando penso em perdas, penso em fracturas. Como quando a Terra se parte e temos blocos tectónicos diferentes. E aí passamos a ser outros.

Só tive essa sensação de fractura com o Pablo, com a sua morte. Dizemos: “Vais recuperar”. Mas não é verdade. Há uma vida que se acaba com essa fractura. No entanto, somos capazes de inventar uma nova vida, que até pode ser melhor. Temos uma enorme capacidade de adaptação, somos sobreviventes inatos.

 

Foi uma criança muito desejada pelos seus pais?

Não faço ideia. Somos dois, o meu irmão tinha cinco anos quando nasci. Sei que queriam um casal, eu fui a menina. Nesse sentido, suponho que foi bom. Mas não tenho uma sensação nem de mimo nem de privilégio. Nem de rejeição.

 

Como era a sua mãe?

É. É uma mulher incrível. Vitalista, tremenda, uma artista sedutora. Capaz de ser o centro das atenções para um monte de gente, porque é muito divertida, com chama. Uma personagem estupenda.

 

Uma personagem ou uma pessoa?

Personagem! A minha mãe é uma personagem estupenda. E tem 91 anos. Que barbaridade, não quero viver tanto. Não quero ser tão velha. Não gosto da velhice. Não queremos morrer. Estamos agarrados [à vida], ainda que seja numa cadeira de rodas. Mas por agora, não, não quero viver tanto.

 

Há uma passagem em que fala de as crianças serem esperadas pelos pais: “Nunca fomos verdadeiramente únicos, verdadeiramente necessários para ninguém. Refiro-me à forma como as crianças são necessárias para os seus pais, ou os pais são necessários para os seus filhos”.

Não só isso. Aquele verso de Wordsworth – “A criança é o pai do homem” – é verdade. Até aos cinco anos há uma construção da possibilidade do ser. Se não fomos tocados, se não fomos suficientemente queridos, há algo que não se constrói depois. É irremediável. Eu, felizmente, tive isso.

 

Teve?

Claro. Se ficamos danificados, nota-se muito. Não sei como explicar-lhe, mas estou a falar de danos verdadeiros. De uma destruição do núcleo básico emocional. E isso, tive de sobra. Agradeço à minha mãe, fundamentalmente. O meu pai trabalhava imenso, coitado, quase não estava em casa. Mas a minha mãe deu-me essa segurança de ser querida.

 

Como é que se traduzia essa segurança de ser querida para ela?

Era muito carinhosa, engraçada, falava comigo, contava-me histórias, contava-me os filmes que via. Era uma grande narradora. Dava-me atenção. Sempre teve jeito com crianças, sempre lhes reconheceu inteligência. (Pode dar voltas e voltas, mas não lhe vou contar a minha infância! [risos] Pode passar a outro assunto!

 

Não estou a dar voltas e voltas. Vou tentando chegar ao âmago, para compreender...

Mas há uma parte que é da minha intimidade, que não vou contar, exactamente por ser íntimo.)

 

O seu pai estava mais ausente, disse. Havia nele esse lado dramático, próprio de um toureiro?

O meu pai deixou os touros quando eu tinha cinco anos. Montou uma fábrica de tijolos, trabalhou como um louco, estava fora 18 horas por dia. Ia numa motoreta, com um jornal metido na camisa para não ter frio, e voltava coberto de pó, desesperado. Foram anos muito maus, havia mau ambiente em casa, angustiante. O meu pai era um homem com força, cheio de valor. Mas muito machista – típico dos toureiros. Eu dava-me muito mal com ele. Fui-me embora de casa, estive um ano sem lhe falar. Depois vim a dar-me bem. Felizmente viveu até aos 84 anos, deu-me tempo para recuperar, ficámos amigos.

 

Pode contar mais da zanga e da reconciliação?

Acho que tinha medo que eu me perdesse, agora entendo-o. Era tão parecida com ele, fazia teatro. Podia mesmo ter acontecido alguma coisa. Foi a época hippie, das drogas. A maioria do grupo daquela época, uns 70%, morreram. Das drogas psicadélicas, que todos tomávamos, alguns passaram para a heroína e depois para a morfina. Nunca passei. Eu era mulher e ele era super-conservador. Quando saí de casa não foi para casar. Envolvia-me, vivia com homens, e isso custava-lhe a aceitar. Foi aceitando quando viu que eu estava a construir uma vida séria, normal, que trabalhava. A partir dos 26, 27 anos começámos a unir-nos.

 

Pouco depois, saiu o seu primeiro romance. Influenciou a vossa relação?

O meu primeiro romance era brutal. Falava sobre sexo, de Deus, de tudo. Não o discutiu comigo. Deve ter sido complicado para ele.

 

Ficou impressionado com o seu sucesso?

Seguramente ajudou. Não num sentido miserável, que o impressionasse que eu fosse famosa, não. Ajudou porque para um homem tão tradicional, católico, que tem uma filha que faz tudo o que ele considerava abominável, que a filha tenha êxito, implica que não está assim tão louca. Que há outros valores, que há quem a apoie.

 

Ele era franquista?

Era franquista requeté (uma forma de franquismo). Como dizia Vallé-Inclan: “Feio, católico e sentimental”. Ele era muito jovem, de uma cidade pequena perto de Madrid, onde se conheciam todos. Quando começou a guerra [civil, 1936/39] foi detido e condenado à morte. Passou os três anos da guerra na prisão e não o mataram. Não tinha feito nada. E assim, foi uma sorte, porque estando na prisão, não lhe aconteceu nada, e não teve que matar ninguém. Quando saiu da prisão, como tinha sofrido represálias, deram-lhe um lugar, um posto na cidade. E ele foi tourear! Tenho um papel em que o despediam ao fim de três meses, com desonra, porque não se tinha apresentado. Podia ter feito carreira política e não quis.

 

Porque é que guarda tudo? Porque é que guarda esses papéis, esses vestígios do passado?

Não guardo tudo. Tenho uma memória terrível, gostaria de recordar-me de tudo. Um dos motivos pelos quais nunca escreverei uma autobiografia é que não me lembro de nada. Tenho uma teoria, justamente para não morrer de medo, que é: talvez não me lembre das coisas porque tenho muita imaginação. O que lhe estou a contar é elementar. A minha mãe tem uma memória esplêndida. Eu, da minha infância, lembro-me de pouco, pouquíssimo.

 

Isso é porque a quis esquecer.

Primeiro, porque tenho má memória e, segundo, porque – e é a única coisa que lhe vou dizer – não gosto da minha infância. Nem é um lugar [onde goste de voltar]. Não gosto nada, nada.

 

O machismo do seu pai não era único na Espanha franquista. Era a cultura de um tempo. Tinha 25 anos quando Franco morreu.

O meu irmão era cinco anos mais velho do que eu, viveu mais o franquismo. Entre 1968 e 1975 a Espanha mudou muito. Entraram no mercado de trabalho um milhão e meio de mulheres que nunca tinham trabalhado antes. Significa que passaram a ter o seu próprio dinheiro, o que mudou também a sua maneira de estar. Eu fazia parte dessa nova Espanha.

 

Como é que, sendo mulher, se conseguiu afirmar num mundo marcadamente masculino, como o do jornalismo, tão cedo?

O meu primeiro trabalho: pedi para fazer um estágio num jornal em Alicante, três meses. Estava no primeiro ano de jornalismo. Quando comecei a procurar contactos em Madrid, muitas vezes me disseram que não contratavam mulheres. E podiam dizê-lo, era legal. Diziam com convicção: “Não. Mulheres, não contratamos”. Lutava, lutava, lutava para que me reconhecessem. Sempre tive uma grande capacidade de trabalho, sempre gostei muito do que fazia, sempre tentei fazê-lo o melhor possível. E fui fazendo. A sociedade estava em movimento. Pequenos tremores de terra que trouxeram o terramoto. Mas não fui a única mulher...

 

Toda a cidade, todo o país, estavam a consolidar a diferença e a abrir-se.

Sim, era maravilhoso. Tive sorte em viver os anos que vivi. A transição foi muito dura. E foi magnífica. Foi o momento de graça da sociedade espanhola, depois de duzentos anos miseráveis. Não tínhamos tido uma verdadeira revolução industrial, nem uma verdadeira revolução burguesa. Nem tinha existido um processo de democratização real. Uma história triste, alienados da evolução, matando-nos uns aos outros, com várias guerras carlistas sempre a repetir-se. Uma tradição caimita [seita fundada por Caim] de matar, de intolerância. E de repente, a sociedade disse: “Vamos fazer um esforço para deixar de ser esta Espanha, para ganhar o futuro.” A direita foi muito generosa, a esquerda foi muito generosa. Por outro lado, a ETA matava 100 pessoas por ano, assassinava. É uma cada três dias. Era uma coisa tremenda. Tinha-se muito medo.

 

A movida dos anos 80, famosa em Madrid, acaba por coincidir com o seu amadurecimento. Participou nela?

Se entendemos por movida o [Pedro] Almodovar e tal, foi sempre analisada desproporcionalmente. Era uma coisa pequena, num movimento geral de um país enorme. O que tinha a movida? Tinha um génio, Almodovar, que, ao tornar-se famoso em todo o mundo, acabou por amplificar tudo o que estava à volta.

 

Porque foi tão boa nas entrevistas, que fez muito?

A questão fundamental, e você entende-o porque também o faz, é ter verdadeira curiosidade para compreender quem é o outro. Uma curiosidade ardente, para levantar um pouco a capa do outro. Uma curiosidade que não avalia, não julga. Se conseguir transmitir esse interesse, sem preconceitos, o outro abre-se. Porque todos queremos ser escutados dessa maneira profunda.

 

Você, enquanto entrevistada, porque conheces os truques, mantém as capas. Decide que capas deixa cair.

Deixo cair umas quantas capas. Mas não todas. Não como entrevistadora que o percebe, mas como pessoa que foi entrevistada montes de vezes. Sou pudica e acredito na intimidade. [risos].

 

A terceira palavra, das que apontou inicialmente, foi morte. Voltei a lembrar-me dela quando disse que os espanhóis mataram-se durante muito tempo uns aos outros. No livro também há muitas mortes.

A grande tragédia do ser humano – e disso fala o livro – é vir para esta vida tão bonita, com tanta vontade de viver, tantos desejos, tantas expectativas, e ser devorado a esta velocidade, pelo tempo e pela morte. O ser humano faz de tudo contra isso. Inventaram-se religiões. Faz-se guerra contra a morte. Mata-se. Faz-se amor contra a morte. Nós, os romancistas, talvez nos dediquemos a escrever porque temos menos capacidade para esquecer que somos mortais. Talvez porque tivemos na infância uma experiência forte de devastação do tempo. Não podemos esquecer que o tempo nos desfaz, temos uma espécie de taxímetro. Tic tac, tic tac, tic tac. A escrever, a morte não existe.

 

Porque o que se escreve fica?

A posteridade não me interessa nada. Mas enquanto escrevo, detenho o tempo. Quando saio de mim mesma, quando estou nas personagens, a morte não existe. O Vargas Llosa disse numa entrevista, quando recebeu o Nobel: “Quando escrevo sou invulnerável.”

 

Como pano de fundo, e cita Shakespeare no livro, “É tudo fúria e ruído”. Escrever é uma maneira de se destacar desse ruído e dessa fúria?

Sim, claro.

 

Domesticar a fúria?

Não diria domesticar. Escapar. Criar uma ilusão de paz e de sentido. Ao escrever, inventamos o nosso passado, a nossa memória, fazemo-lo para dar um certo sentido à nossa história. Para dar-lhe uma aparência de destino. Para poder suportar o ruído e a fúria, o choque sem sentido que é a vida. “Escrevo para tentar conceder ao mal e à dor um sentido que, na realidade, sei que não têm.” Penso que é a melhor definição a que pude chegar durante os meus sessenta anos de vida. Aquilo que digo é o mesmo que diz Braque, o pintor: a arte é uma ferida feita luz. Não só lhe dou um sentido que sei que não tem, como tento retirar do mal, do horror, dessa obscuridade algo de belo. Pelo menos, que não seja tão inútil, tão arrasador, tão atroz.

 

Ferida é uma das palavras que a personagem aponta quando o terapeuta lhe pede três palavras que magoam.

Sim.

 

Em que momentos se comove? O livro chama-se Lágrimas na Chuva. “Duas lágrimas densas e redondas, como gotas de mercúrio, deslizaram, surpreendentes, pelas faces de Bruna.”

Cada vez me comovem mais coisas. Estou cada vez mais mole. Em geral, comove-me a percepção. Compreender a beleza e, ao mesmo tempo, compreender a sua condição efémera, a beleza que não dura. Comove-me a bondade, a solidariedade, a imaginação, a empatia, o desejo do ser humano de se sentir próximo dos outros.

 

E quando é que chora?

Posso chorar muito. Sou uma chorona! A sério, uma llorona total.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012