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Anabela Mota Ribeiro

Silva Peneda

08.05.14

Vamos a tempo? Silva Peneda, o presidente do Conselho Económico e Social, sublinha a cada linha do seu discurso: esta é a hora da verdade. Estamos a seis meses do fim. Estamos? De que fim?

Esta entrevista aconteceu antes do Natal e foi feita com a intenção de ser publicada na primeira semana do ano. Como quem faz um balanço e estabelece prioridades. Os números não são inspiradores. O desajustamento é o que se conhece. Mas até onde estamos dispostos a mudar? Até onde acreditamos no nosso destino? Os parceiros sociais entendem-se, diz ele. Porque não se entendem os partidos?

A voz de Silva Peneda não surge isolada. Resta saber se chega ao céu.

 

… o problema é que, mesmo que se trate de um ano novo, não podemos começar do zero. Temos sempre a ilusão de um momento zero, de pôr o conta-quilómetros no zero...

A vida é um contínuo. Embora haja uma ruptura, muitas vezes, nas nossas vidas.

 

É possível em Portugal encontrar esse momento disruptivo? O momento em que, se não podemos começar do zero, o conta-quilómetros permite uma velocidade diferente.

Julgo que o próximo ano vai ser [marcado] por um momento, que vai passar-se a meio do ano.

 

Junho? A data do fim do programa de assistência.

Não vejo que vá haver alterações profundas no primeiro semestre de 2014 em relação àquilo que está programado. E ninguém pode dizer exactamente o que vai acontecer depois de o programa terminar. Seis meses, em termos de política económica, é uma eternidade. Tenho a ideia de que pode haver uma ruptura com o passado a partir dessa altura. E que ela devia começar a ser preparada já no primeiro semestre.

 

A ruptura pode efectivamente acontecer? Com meses de antecedência, fala-se de um programa cautelar, da eventualidade de um segundo resgate.

Entendo que o modelo económico que vigorou até 2011, baseado no sector da construção civil, no imobiliário, no consumo e no crédito fácil, na ideia de que o aumento da despesa pública se repercutia rapidamente em crescimento económico, [acabou]. O desafio que se põe hoje à economia portuguesa é alimentar um novo modelo. Temos de passar de um modelo [assente] na produção de bens não-transaccionáveis para um modelo de bens transaccionáveis. Para construir um modelo com essas características, e há sinais de que ele pode ser construído, o ingrediente fundamental é tempo.

 

Tempo?

Se o problema do emprego pode ser resolvido de uma forma mais rápida se apostarmos em sectores que têm capacidade instalada – é o caso do turismo, sobretudo se for associado à cultura, à saúde, ao desporto, e partindo das vantagens competitivas que temos (clima, gastronomia, etc.) – no caso da indústria é diferente. Os últimos anos caracterizam-se por um forte desinvestimento. Aí sim, é preciso começar praticamente do zero.

 

As exportações têm crescido.

Sim, os sinais são positivos. A necessidade aguda o engenho. Conheço empresários do norte que sem grandes habilitações, sem o domínio de línguas [estrangeiras], se meteram nos aviões, mala feita, e foram descobrir novos mercados. As nossas exportações cresceram mais do que as de Espanha, Itália, Irlanda. Significa que apesar de termos desvantagens em termos competitivos – estou a falar do preço do dinheiro, dos custos da energia – as nossas exportações portaram-se desta maneira. Se tivéssemos as mesmas condições que têm os outros, imagine onde estaríamos.

 

Como dar o passo em relação a esse novo modelo económico?

Esse modelo para ser construído precisa de vários pressupostos. O primeiro é o tempo, já o disse.

 

Quer também dizer que precisamos de mais tempo para consolidar as contas públicas, para resolver problemas estruturais?

Os problemas estruturais da nossa economia não podem ser resolvidos em programas de dois anos. O juízo sobre se um programa correu bem ou correu mal, se foi um sucesso ou não, é comparar aquilo que se propunha fazer e aquilo que foi feito.

 

Qual é o seu diagnóstico?

É mau, é mau. O que estava previsto em termos de dívida pública era que estivéssemos nos 108% e estamos nos 127%. Em termos de crescimento do produto, devíamos estar a crescer 2,5% e estamos a crescer 0,8%. Em termos de défice, devíamos estar nos 2,7% e está previsto 4%. Há uma divergência entre aquilo que foi programado e a realidade.

O CES foi a primeira instituição a dizer que o programa da troika estava mal desenhado. Outros falam de o [programa] estar mal calibrado. É a mesma coisa. Entendemos que este programa não teve em conta as especificidades da economia portuguesa.

 

Nomeadamente?

Desde logo o elevadíssimo nível de endividamento das famílias e das empresas. Também não foi tido em conta o peso da retracção do mercado interno no emprego. Quando a taxa de desemprego começou a disparar os senhores da troika (tanto o FMI como a Comissão Europeia) mostraram-se muito surpreendidos com a evolução – ao que eu respondi: “Era evidente.” O nosso tecido produtivo é constituído por pequenas e médias empresas. Uma empresa robusta, quando vem uma aragem adversa, vai resistindo. Uma empresa pequena, quando vem um sopro, fecha as portas e acabou. Foi o que aconteceu a milhares de empresas.

Depois, [a troika] concentrou-se num objectivo: o défice orçamental. E de um ponto de visto económico, nos custos do trabalho. Quero dizer que os parceiros sociais não entenderam que a reforma da lei laboral devia ser uma prioridade (nem a parte patronal o entendeu).

 

Quais são as prioridades, no seu entender?

Redução dos custos de contexto, da energia, e o preço do dinheiro. São factores mais importantes para os empresários do que a alteração das leis laborais.

Voltemos aos pressupostos importantes [para alterar o modelo]. O segundo tem a ver com a necessidade de coerência entre as políticas. O que eu gostaria que acontecesse era que se desenhasse um programa que é um triângulo. Um objectivo seria a consolidação das contas públicas – a que não podemos escapar mas que tem de ser temperado com outros objectivos. O crescimento económico. A reforma do Estado (que está por fazer). No meio deste triângulo ponho a coesão social. É neste triângulo que se devem plasmar as opções político-económicas para a próxima década.

 

Diz de modo enfático “década”. Esse é o período de tempo necessário à implementação de mudanças?     

Propusemos isto no nosso parecer sobre o Orçamento de Estado.

 

Se fala numa década, isso implica um pacto de regime?

Exactamente. É o último pressuposto fundamental: um compromisso. Ao nível das forças sociais, esse compromisso existe. O nosso parecer, que não teve nenhum voto contra, tem uma proposta concreta sobre a saída da crise e baseia-se neste programa de dez anos, com este tipo de objectivos. Há ambiente nos parceiros sociais para alinhar nesta opção – que é uma opção de ruptura, porque se trata de acabar com o modelo do passado e encaminhar um novo modelo. É no compromisso político que as coisas estão mais complicadas.

Vou dar-lhe um exemplo. Imagine que Portugal é uma empresa, que está falida. Os sócios da empresa andam à batatada uns com os outros. Que é que o credor pensa? “Vou gerir aquilo, com aqueles tipos? Não me safo”. Imagine o contrário. Imagine que os devedores chegam junto dos credores e dizem: “Temos um problema, queremos resolvê-lo, mas têm de dar-nos tempo. E estamos unidos para cumprir este programa.” Vê a diferença de perspectiva que há do ponto de vista do credor?

 

Está a falar da maneira como somos olhados por quem nos empresta dinheiro. Se somos levados a sério ou não.

Uma coisa é querermos ser donos do nosso destino, e afirmar perante os credores como é que vamos pagar, qual é a estratégia que vamos seguir; outra atitude é não nos entendermos, e nesse caso são eles que vão continuar a mandar. Com uma agravante (de que pouco se fala): é que isto [o fim do programa] vai acontecer numa época em que o FMI vai deixar de ser parte activa e em que [o interlocutor] vai ser a Comissão Europeia. Em meados do próximo ano vamos ter eleições europeias, os comissários actuais estão de saída, lá para Outubro ou Novembro entram novos. Quem está em cena já risca pouco. O poder vai estar concentrado na burocracia europeia. Tenho muito medo da burocracia europeia.

 

Porquê? Depois de anos em Bruxelas deve ter uma noção mais fina de como as coisas se passam.

Tenho. Tenho receio porque [na Comissão] são avessos à inovação. É o chapa oito.

 

A Europa moderna é assim?

O funcionário típico europeu sobrevive se não fizer grandes ondas. Se não fizer o trivial bem feitinho e for inovador, arrisca-se. O funcionário europeu não é pessoa para arriscar. Pode propor em surdina ao seu chefe qualquer coisa, mas [é tudo]. No início, havia condições políticas excepcionais. Hoje isso degradou-se.

 

Com esses números, é normal que se degradem.

Com certeza. O programa foi mal desenhado e mal aplicado. Sobre o futuro: ou somos nós, portugueses, a comandar o nosso destino colectivo (pelo menos, parte), e somos capazes de nos entender e aplicar um programa com um horizonte temporal [dilatado], e há muito espaço para a luta político-partidária, ou não somos capazes de nos entender em relação a isto. Se não somos capazes, acho que vamos ter mais uma década, mais duas décadas de mais do mesmo. 

 

Quis dizer que há uma prevalência das lutas político-partidárias sobre o interesse nacional?

Neste momento a luta político-partidária é uma luta de tacticismo político. Visões de curto prazo. Em Portugal a política é feita para o dia a dia. A política é feita para as próximas eleições. A política é feita para o telejornal. Numa situação como aquela em que o país está temos de ter uma visão de mais largo alcance. Temos de ter uma visão que está para além de uma legislatura.

 

Como é que se pode deixar as questões de curto prazo para segundo plano?

É fundamental na política distinguir o essencial do acessório. Eu posso, porque estou mais aflito, desistir de ter um país mais equilibrado? Percebo que é um problema para as estruturas partidárias, compaginar uma coisa e outra. Mas precisamos de políticos que tenham uma visão de médio prazo. Sendo utópicos: precisamos de um sonho para o país. O que é que queremos que Portugal seja? Temos de ter um desígnio. Se estamos sem desígnio, andamos a reboque. A História demonstra que isto só é possível com interacção entre as partes. Pense nos descobrimentos, pense na chegada do homem à Lua – nunca foi um homem sozinho. Os parceiros sociais têm dado um excelente exemplo pensando como uma única força. Hoje a legitimidade política não se esgota no acto eleitoral. Tem a ver com a forma como o poder político se relaciona com outros poderes que não os partidários.

 

A nossa sociedade civil não é especialmente vigorosa, participativa.

Não é só a sociedade civil. Temos também o problema das instituições. O factor que hoje mais determina se um país é ou não é desenvolvido é [a força] das suas instituições. Um país com instituições débeis e com uma sociedade civil débil dificilmente é um país desenvolvido. Assistimos nos últimos anos a uma degradação da [qualidade] das instituições.

 

Ao falar de parcerias e dinâmicas, não falámos de uma coisa fundamental na história portuguesa, o Sebastianismo. Contrariando a ideia da parceria, o português continua à espera de alguém que o salve. De um gesto individual que traga a solução.

Gosto mais de outra característica que dá os portugueses: a capacidade de fazer pontes. Disse isso no discurso do 10 de Junho em Elvas [Silva Peneda presidiu às comemorações do Dia de Portugal]. Porque é que fomos os promotores da globalização?, o que é que caracteriza os portugueses? A capacidade de se entenderem com outros. O mundo não é desconhecido para os portugueses. Integramo-nos noutras sociedades com facilidade, coisa que não acontece com outros povos.  

 

No início do programa de assistência, olhou-se para a troika como alguém de fora que ia pôr a casa em ordem. Trazia consigo a ilusão de que ia resolver tudo. Depois as coisas começaram a correr mal e pensou-se numa pessoa, exterior aos partidos, que pudesse encabeçar esse pacto de regime. O seu nome, como sabe, foi um dos apontados.

Eu disse que aquele programa [da troika] ia provocar muita dor. “Dor, vamos ter. Agora vamos ver se temos ajustamento ou não.” Nesta fase podemos dizer que tivemos muita dor, mais do que aquela que era previsível, e sofremos demais para os resultados que tivemos. Para termos estes resultados, não era preciso sofrer tanto. Houve uma desproporção entre os sacrifícios impostos e os resultados obtidos.

 

Mas isso é consequência da aplicação.

Também é o desenho.

 

Quem foram os grandes responsáveis?

A troika, claramente. O resgate foi negociado em circunstâncias complicadas, tínhamos um Governo que estava de saída, os credores tinham uma quota muito importante. Sou testemunha das muitas reuniões que fizemos aqui. Não estava nas mesas em que o Governo negociava com a troika, mas qualquer negociação pressupõe tensão... Não percebia, hoje já percebo que há alguma [tensão]. Posso dizer-lhe que a troika ficou surpreendida com o facto de haver sintonia no discurso dos parceiros sociais. Chegou a ser classificada de “sinfonia perfeita”. Houve uma cena curiosa. Um dos anteriores líderes do FMI numa reunião insinuou que os parceiros sociais tinham sido ensaiados.

 

Por quem?

Por mim. Respondi: “Isto é mais uma prova de que o senhor não percebe nada da realidade portuguesa. Está a imaginar uma CGTP ou uma CIP a serem ensaiadas por qualquer cidadão português?”.

Há uma novidade: o Parlamento Europeu vai fazer um inquérito à actuação da troika, e estar cá 6 e 7 de Janeiro. É um facto político muito importante. Querem reunir com os parceiros sociais, que vão dizer de sua justiça. Eu vou depor em Bruxelas no dia 9. Não é o presidente do CES, é o cidadão Silva Peneda que vai dizer qual é a sua visão do programa da troika.

 

Porque é que o Parlamento Europeu decidiu fazer este inquérito?

O Parlamento Europeu é um órgão político e vai julgar a Comissão. Houve 78 mil milhões que foram investidos no país, com determinado tipo de objectivos. Os deputados europeus têm toda a [legitimidade] para fazer este exercício. Como é que correu?, o que é que falhou? – até para correcções em futuros processos.

Muita gente diz que o modelo social esgotou-se. Não há um modelo social único, há quatro grandes modelos. O nórdico, o escandinavo, o central e o mediterrânico. Mas há valores que são únicos e mal vamos se mexemos neles. Temo que nos últimos tempos se estejam a violar aspectos essenciais do projecto europeu.

 

Qual tem sido o papel de Mario Draghi na defesa do projecto europeu?

Mario Draghi sofre muito. É presidente de uma instituição que não tem um pensamento estruturado sobre a zona euro. Faltam pilares fundamentais. Draghi está aflito com a união bancária, não há maneira de se resolver o problema – por oposição da Alemanha.

A zona euro tem um problema de fundo (e isto tem a ver com as teses do João Ferreira do Amaral, que é conselheiro aqui no CES). Será que é possível existir uma moeda única numa região com tantas diferenças culturais, diferentes níveis de competitividade? Se a resposta for sim, a resposta é: que instrumentos políticos podem ser postos no terreno e que tenham em consideração essas diferenças? Tal como está, é muito difícil a uma economia como a portuguesa ser competitiva.

 

É possível pensar numa zona euro a duas velocidades? Regras diferentes para diferentes países?

A Europa é um mosaico de diferenças, a riqueza da Europa é essa. Na economia não se pode fazer tábua rasa disto e aplicar as mesmas regras. A zona euro está a cometer esse erro. A leitura de que os do sul são uns malandros e não trabalham, o discurso punitivo (“agora têm de expiar as vossas culpas”) é redutor, simplista, não faz sentido. É uma visão de gente inepta.

 

Acabou de chamar inepta a Angela Merkel.

Não falei de pessoas. Compreendo que um líder alemão ou nórdico, se disser que vai tirar dinheiro [aos seus eleitores] para aplicar no sul da Europa, [perde votos]. Ninguém quer pagar as contas dos outros. Mas precisamos de líderes com visão de médio prazo. [Helmut] Kohl conseguiu explicar aos alemães porque é que era preciso acabar com o marco.

No Parlamento Europeu, convidávamos oradores e um dia foi o ex-chanceler Kohl. No final fazíamos um jantarinho, era a forma de pagar o cachet ao convidado... Um jantar pequeno, com poucas pessoas. Invectivei-o, estava quente, falei do comportamento da Alemanha. Ele disse isto: “Tem de perceber que fui o último chanceler que viveu a [Segunda] Guerra, e isso faz toda a diferença”.) Jean-Claude Juncker disse num discurso: “Os fantasmas da guerra estão apenas adormecidos e podem acordar.” A história da Europa é uma história de guerras fratricidas. A prece que foi rezada depois da guerra (“Guerra nunca mais”) foi transformada num projecto político. Um projecto que dura até hoje. Temo que essa oração tenha deixado de ser rezada.

 

Angela Merkel não viveu a guerra, mas viveu a derrocada do muro e a unificação das duas Alemanhas. Sabe quanto a Europa pagou pelo marco de leste.

Neste momento a política está capturado pelo sistema financeiro. Temos uma crise que é global, que foi originada pelo sistema financeiro (que deixou de emprestar dinheiro ao sector produtivo) e que levou os Estados a fazer o papel de companhia de seguros. Os Estados passaram a funcionar como socorro do sistema financeiro e a única forma que têm de fazer esse papel é [recorrendo] aos cidadãos. Aumentando os impostos ou cortando a despesa. A crise sistémica vai sendo resolvida, mas não há soluções globais. As finanças circulam com grande liberdade, o trabalho não circula com essa liberdade. Há aqui um desequilíbrio.

 

Quem falhou?

Quem falhou foi o sistema político. Não previu, não fiscalizou, não supervisionou nem puniu (tirando um caso nos EUA).

 

O mundo mudou muito nos últimos anos, a Europa mudou muito.

A Europa a que aderimos em 1986 não é a mesma. Houve a unificação alemã, a globalização (não estava tão pujante), o alargamento (tenho dúvidas em relação a ele). Tudo isto são factores que levaram a que o processo de decisão na Europa deixasse de ser o que era. Eram 12 à volta de uma mesa e os votos eram mais ou menos equilibrados. Hoje há claramente o predomínio de um sobre os outros.

 

A Alemanha tem a hegemonia.

A França esbateu-se. A própria Comissão deixou de ter o peso que tinha. Será que a Alemanha entende que deve assumir uma liderança em termos europeus? Nesse caso, deve pensar europeu e não apenas alemão? Não sei.

 

A crise na Europa, vai chegar a um ponto de agonia em que ou rebenta ou se refaz?

Se o euro soçobrar é o próprio projecto político europeu que está em causa. Os valores que estiveram na origem desta criação, e que foi a coisa mais fantástica que se fez a nível planetário... O fim da Guerra, a prosperidade, o compromisso entre socialistas e sociais-democratas... Pegou-se no carvão e aço com que se fez a guerra e os inimigos disseram: “Peguemos nisto em conjunto”.

 

Era uma maneira de deixarem de ser inimigos, a França e a Alemanha.

Ponha isso agora no plano português, político-partidário. Não estamos numa situação de guerra, mas estamos numa situação dramática. Porque é que não há um entendimento?

 

Acharia possível um entendimento entre PS e PSD se os líderes fossem outros? Estes não se entendem.

A componente pessoal tem muita importância na política. Mas temos de viver com o que temos.

 

Temos de facto de viver com o que temos?

São os partidos que temos. A sociedade tem um papel importante no sentido de mostrar aos líderes partidários que quer “isto”. Esta entrevista tem em si uma mensagem: nós podemos condicionar. Se a opinião pública entender que é fundamental o entendimento para um programa de médio prazo, com determinadas características, mais tarde ou mais cedo, até por uma questão de sobrevivência, os partidos acabam por se entender. Seis meses, temos seis meses. A minha batalha vai ser essa. Os parceiros sociais têm problemas internos também, não pense que as coisas são fáceis. Não são decisões pessoais, são decisões de instituições, de sindicatos, entidades patronais. Se eles conseguem entender-se não vejo razão para que a nível partidário não haja [o mesmo] entendimento. Estou convencido, acalento essa esperança...

 

Estar convencido e acalentar uma esperança são coisas diferentes.

Para ter esperança é preciso acreditar. Eu quero acreditar que será possível o entendimento. Porque? Porque a alternativa é muito complicada. A alternativa é mais do mesmo, independentemente de quem ganhe as eleições.

 

As eleições legislativas são em 2015. Daqui a uma eternidade.

Se daqui a seis meses as coisas não forem equacionadas na perspectiva que estou a defender, quando forem as eleições as cartas estão dadas. Chame-lhe programa cautelar, chame-lhe o que quiser: vai haver uma orientação que é definida pela Comissão Europeia. E o poder político em Portugal vai ter muito pouca capacidade para reagir.

 

Explique mais detalhadamente.

Se não tivermos a capacidade de apresentar um programa definido por nós, e se não tivermos uma frente comum a dizer: “É isto que queremos” – julgo que o presidente da República também apoia essa frente comum –, a Comissão Europeia impõe as suas regras.     

 

Onde é que situa isso no calendário?

Em meados do próximo ano. É a nossa capacidade de dizer que queremos honrar os nossos compromissos, negociar juros, dívida. É a nossa capacidade de dizer como é que queremos crescer economicamente e honrar os nossos compromissos. Para crescer, há regras que não podem ser aplicadas cegamente (como aconteceu). 

 

“Inconsequência” é uma palavra essencial no nosso vocabulário? Uma triste sina. A ideia que fica é que “nunca dá em nada”.

Em vez de inconsequência vejo outra palavra: inquietude. A sociedade portuguesa está cheia de inquietudes. A primeira é a falta de confiança. Falta de confiança nas instituições, nos mercados, até nas relações interpessoais. Outra inquietude resulta da opacidade. Há falta de transparência nos sistemas financeiros, nos negócios em que intervém o Estado (veja-se agora o caso de Viana do Castelo). Estivemos quase a ter uma crise perfeita. Sabe o que é?

 

Não.

Crise perfeita é quando os consumidores não consomem, os produtores não produzem, os financeiros não financiam e os trabalhadores não têm trabalho. A inquietude também resulta da imprevisibilidade. Alguém dizia no outro dia que o mais certo é o incerto. Há quem acrescente à inquietude a sustentabilidade financeira, económica...

 

Quando falava de “inconsequência” estava a pensar, por exemplo, que o FMI pode dizer que a receita aplicada estava errada. Mas nada muda.

Bagão Félix disse na televisão que o Governo devia criar uma delegação para ir ao FMI perguntar: “Quais são as consequências práticas disso que disse?” Nenhumas. Isto é a debilidade das instituições de que falava. Como é possível que uma instituição com o prestígio do FMI [a sua directora] dizer aquilo e não mudar nada? Nós, CES, dissemos isso há muito tempo. Não fomos ouvidos pelo FMI.

 

Outra amostra de inconsequência: rebentam escândalos, é um escarcéu momentâneo, toda a gente fica indignada, e nada acontece. Os portugueses deixaram de acreditar que alguma coisa vai acontecer.

É. Um autor dizia que somos geniais na tragédia e na glória. Somos fantásticos em termos de solidariedade. Nos momentos normais, não somos.

 

Não vivemos um momento normal.

As pessoas sofrem de forma isolada. Cada um vai tentando com as redes de solidariedade que tem (a família, sobretudo), [desenrascar-se]. E acham que isto se vai resolver, mais dia menos dia. Ainda não há a percepção na sociedade portuguesa de que isto vai ser para décadas. Esta crise que vivemos é de tal maneira profunda que nunca vamos regressar ao ponto de partida. Teremos uma fase de transição longa até atingirmos novos equilíbrios. Precisamos de ter uma economia a crescer e de fazer uma reforma do Estado a sério. Não é uma tarefa de carregar num botão e resolver no dia seguinte. Os eleitores já não vão na conversa fácil e demagógica. Esta crise teve essa vantagem. Mas a ideia de que a solução vai depender de nós ainda não está suficientemente apreendida.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014