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Anabela Mota Ribeiro

António Vitorino

13.05.14

É um homem redondo. Na forma, no discurso. É um homem que ri muito. De que ri ele? Ou melhor: porque ri ele? Sentido de humor?, boa disposição? E se o riso for uma arma e uma defesa? Um esconde esconde com o outro. Não é de todo um esconde esconde consigo, que sabe bem quem é. Sabe muito bem quem é e o que quer. É rectilíneo no discurso, é omisso em relação ao que pensa. Os seus assuntos são os Assuntos. Parlamentares, diplomáticos, estrangeiros, coisas assim. Também são assuntos como a impotência – mas isso só a propósito de um escritor que admira. Ou a ironia – a propósito de um realizador que admira.

Viveu uma vida sem pathos. Viveu uma vida cheia. “Comecei aos 23 anos como deputado, fui Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares do governo do Bloco Central, fui Secretário do Governo de Macau, fui Juiz do Tribunal Constitucional, fui deputado no Parlamento Europeu, fui Ministro da Defesa e Ministro da Presidência, fui Comissário Europeu. O que há na biografia além disso? Advoguei, esparsamente, mas advoguei sempre. Fiz o estágio em 1982, mal acabei de me licenciar. Fui assistente de faculdade. Uma coisa de que me orgulho é de ter tido várias gerações de alunos, alguns deles hoje em posições de destaque”.

Tem fama de ser brilhante, arguto, infatigável. Um homem do sistema. Um homem que sabe muito bem mover-se no sistema. Espertíssimo. Não abre portas onde quer que elas permaneçam fechadas. Podia ter sido tudo. O seu título triste poderia ser: o homem que não foi primeiro-ministro porque não pagou a Sisa. O seu título alegre? Sei muito bem o que faço e como chegar lá!

O que ele é? Um negociador. Alguém que faz a ponte.

Tem 51 anos. É capaz de se sentir mais velho do que é. Não por acaso, o embate com o físico não foi ter pouco mais de um metro e meio. O embate foi ter começado a perder o cabelo antes dos 30. Um homem é, também, um corpo. Ele deslocou quase tudo para o intelecto. Apesar do esconde esconde, uma entrevista surpreendente. Um António Vitorino surpreendente.  

 

 

Com quem é que aprendeu a falar? Uma das coisas que se dizem de si é que é extraordinariamente articulado.

[risos] Foi com a minha mãe, em casa. Reconheço que tenho um fascínio pela língua; sou um linguista frustrado. Fui sempre um leitor compulsivo, e esse impulso pelas palavras resulta também de um gosto ávido de leitura.

 

A sua mãe exprimia-se especialmente bem?

A minha mãe era professora de francês. Tinha o hábito de nos contar, durante a hora do almoço, o último filme que tinha ido ver com o meu pai ao cinema. A mim, ao meu irmão e aos meus avós maternos que também estavam em casa. Aquilo era uma espécie de telenovela clássica: tínhamos um bocadinho do filme e no almoço do dia seguinte a continuação. Nós, que não tínhamos idade para ver aqueles filmes de crescidos, acabávamos por ter uma imagem do filme através da descrição. O que é muito curioso do ponto de vista imagético. Mais tarde tive ocasião de ver alguns filmes que tinham sido previamente narrados pela minha mãe... Por exemplo, O Grande Ditador, do [Charlie] Chaplin, que é difícil de descrever, tem uma parte importante que é física...

 

Como era a sua casa?

Vivíamos numa casa social do bairro de Alvalade, por detrás da Avenida Estados Unidos da América. A escola primária era privada, a Augusto Gil, e ficava três quarteirões à frente; ia-se a pé cerca de cinco minutos. É uma escola que já não existe, hoje está um prédio de duzentos andares. Tinha uma qualidade de ensino muito apreciada e reconhecida.

 

A palavra tinha uma presença fortíssima em sua casa, e surgiu antes da imagem.

Há uma riqueza atribuída à transmissão de ideias e sentimentos através da palavra, um estatuto próprio, antes de aparecer a imagem na minha vida. Só por volta dos meus dez anos é que tivemos televisão em casa.

 

Foi um aluno especialmente dotado?

Eu não sou o meu assunto preferido! [risos] E não é por falsa modéstia. Talvez seja por excesso de autoconfiança. Isto é, não preciso de andar a falar muito de mim. Pode ser uma forma de arrogância – não estou a dizer que seja um bom sentimento. Sempre fui um aluno aplicado. A primeira [regra] era cumprir com as obrigações, a segunda assumir desafios. Nada se faz por um toque de genialidade, faz-se com esforço, com disciplina, com empenhamento. O sentido da responsabilidade e de não decepcionar os meus pais, foi-me incutido por eles.

 

Eram ambos exigentes? Como era a dinâmica da vossa família?

A minha mãe estava mais tempo em casa, e portanto era a guarda avançada e seria mais “pressionante”. O meu pai era empregado bancário do Banco de Angola. O meu irmão é mais novo do que eu dois anos.

 

Competiam pelo afecto dos vossos pais?

Não sou capaz de pôr a relação nesses termos. Tivemos uma relação de igualdade, graças ao facto de termos interesses diferentes. O meu irmão viveu num universo ligado ao desporto e ao futebol. É de Engenharia, eu segui Humanidades. Nunca tivemos terrenos onde se pudesse dizer que havia uma grande competitividade... [Tensões], terão existido, porque existem sempre, mas não sou capaz de reconstruir um discurso sobre elas. Não deixaram marca, senão seria capaz de as ir buscar.

 

Quis deixar rapidamente a infância? Quis crescer rapidamente?

Esse é um síndrome da minha vida. Vivi sempre rapidamente, fiz sempre coisas muito cedo. Isso pode ter duas explicações: a explicação maligna, que é ambição – e em Portugal ter ambição tem um sentido pejorativo; a versão benigna, que é aquela que dou, é que sempre tive uma grande avidez de conhecer e de experimentar. Para poder viver, provavelmente, duas vidas numa só.

 

Por isso eu perguntava se quis sair rapidamente da infância. Parece ter um desejo precoce de estar no mundo dos adultos, estar no palco onde os grandes acontecimentos se dão.

Sim. Algumas testemunhas oculares dirão que sempre preferi o convívio com os mais velhos. A minha atenção era sobre os factos da vida, os grandes valores e os grandes desígnios, as pequenas coisas, o drama familiar por que a empregada partiu a terrina que era da avó e que vinha na família há 200 anos. A minha família sempre foi um referencial de estabilidade afectiva, nunca houve dramas que podiam provocar sobressaltos ou curiosidades angustiantes para uma criança.

 

Pathos?

Não. O meu interesse ia para a vida social, a vida cultural, alguns conflitos políticos que havia entre a geração dos avós – que tinha vivido a República e para quem a estabilidade do Estado Novo era um valor fundamental – e o meu pai, que era muito crítico do regime e com algum envolvimento oposicionista.

 

Vamos à Wikipedia, introduzimos António Vitorino, e as notas biográficas que aparecem são mais notas curriculares: nasceu em Lisboa, Deputado, Juiz, Ministro, Comissário... Estou a tentar perceber quem é este homem que parece não ter biografia pessoal.

Se descobrir é melhor avisar-me! [risos]

 

Nunca teve curiosidade sobre si?

Não, não vou cair nessa! Vai ver que isto tem fronteiras! [risos]

Não sou um personagem que justifique essa dimensão. Eu sou aquilo que fiz.

 

Vamos ao Liceu Camões. Marcou a sua vida?

Fiz do primeiro ao sétimo ano no Liceu Camões, e o sétimo ano coincidiu com o 25 de Abril de 74. Lembro-me perfeitamente de no dia 25, às oito e meia da manhã, ter tido uma aula com o Vergílio Ferreira, (meu professor de Latim). A aula foi interrompida, ou nem chegou a começar, as tropas na rua. Tínhamos fascínio pelo Vergílio Ferreira. Falava de filosofia, de literatura, falava da vida, das relações humanas. Tive vários professores que tinham um peso cultural próprio: o Mário Dionísio foi meu professor de Francês durante cinco anos. A Eduarda Silva Melo, que era professora de Inglês e de Alemão, irmã do Jorge Silva Melo. A filha do Mário Dionísio, a Eduarda Dionísio, a Português.

 

 O Liceu Camões trouxe uma mistura e uma abertura à sua vida? Até então, e até geograficamente, o espaço era circunscrito à redoma da família e do bairro de Alvalade.

Sem dúvida. A passagem da escola primária para o liceu representou um choque. Um choque de abertura de horizontes. Mas desde os meus dez anos de idade passávamos férias no estrangeiro. Íamos acampar em família. Isso significa que sempre tivemos uma capacidade de entender o mundo lá fora – o que nos ajudava a entender o mundo cá dentro. Conhecemos toda a Espanha, o sul da França, o norte da Itália, Paris. Foi estimulante e fatigante! Porque, além de fazermos 600 km por dia, era eu quem tinha de montar a tenda!

 

Foi no Liceu Camões que se interessou por política?

Inscrevi-me no Partido Socialista em Maio de 74. Tínhamos um movimento cultural, dentro do Liceu, que organizava festas; tive problemas com a censura por causa de uma peça do [Bertolt] Brecht, Aquele que diz sim, aquele que diz não, que ensaiei no final de 74, para uma festa de Natal.

 

Essa adesão ao PS acabou por ditar a sua vida.

Estive no PS e saí no final do Verão Quente de 75. Situava-me nessa área política mas andava à procura de uma orientação que só a prática permitiria encontrar Fiz parte da Federação da Área Urbana do Partido Socialista; o Dr. Mário Soares, preocupado com essa deriva, destacou para vigiar os perigosos esquerdistas o Eng. António Guterres!

 

É daí que se conhecem?

Conheço o Eng. António Guterres na qualidade de meu controleiro e vigilante perante os meus desvios esquerdistas! Depois saí, tive um período mais à esquerda, autogestionário. Vivia muito interessado nos estudos de uma coisa chamada Ceres (Centre de Études et Recherche Socialiste).

 

Nessa altura, já era claro para si que queria ser político?

Sim. Não pude ser delegado no primeiro congresso do Partido Socialista porque não tinha 18 anos.

 

Porque é que quis ser político? Porque é que não quis ser um latinista, ou um professor de francês ou um advogado de barra?

Nunca olhei para a política nem como uma profissão nem como uma carreira. Porque é que quis ser político? É uma pergunta tricky [traiçoeira]. Queria-se ser político para mudar o mundo. Naquele tempo, embalados pela revolução, o desejo era esse. Mas nunca quis ser só político, nunca descurei os estudos, nunca descurei a actividade académica, profissional. Quando acabei o curso e fiz o estágio de advocacia, já era deputado. Um excesso de dependência da política é uma forma de perda de liberdade. A liberdade é o valor estruturante, é o único pelo qual vale a pena morrer. E também nunca achei que [a política] fosse uma carreira, no sentido de dizer: “Hoje estou aqui, amanhã ali e depois acolá”. Não tenho essa presciência.

 

Para quem não previu as coisas dessa maneira, o seu percurso foi notável.

Errático. E não racional.

 

Muito ascensional.

Todas as revoluções geram um vazio etário, o que leva a que as gerações mais jovens tenham um processo ascensional rápido. Isso não é mérito delas próprias, é fruto das circunstâncias. Quis muito ser deputado, não nego isso.

 

Olhando para a sua carreira política, não é claro o que é que pretende dela. Vai aceitando coisas, vai recusando outras. Não se percebe se aquilo que pretende é ser Primeiro-Ministro, se é ter poder...

A ideia de que a política é uma carreira... Nunca a vi assim. Pressupõe algum desprendimento, mas pressupõe também uma frase que [Bill] Clinton diz no seu livro: “Nunca aceites um cargo onde desconfies que não serás feliz.” Posso ser acusado de ser hedonista.

 

Ou materialista? O que se diz é que “o Vitorino quer ganhar dinheiro cá fora”.

Sim, em Portugal as pessoas acham que ganhar dinheiro é pecado, há ainda uma costela judaico-cristã muito forte. Quem deu 25 anos da sua vida à causa pública tem alguma autoridade para perguntar o que fizeram pelo país os que atiram essa pedra.

 

É uma pedra que magoa?

Não. É censura moral, it’s a fact of life, há que viver com ela.

 

Como é que acontece um rapaz de 20 e poucos anos ser Secretário de Estado?

Eu era, e sou, muito amigo do Dr. Almeida Santos. O Dr. Almeida Santos precisava de alguém que tivesse alguma capacidade de intervenção no parlamento e que fosse capaz de fazer a ponte entre os dois partidos da coligação.

 

É sempre negociador. É sempre alguém que faz a ponte.

Sim. A advocacia tem muito a ver com isso, com a necessidade de encontrar plataformas. Do ponto de vista intelectual, é bastante estimulante, é isso que eu gosto na advocacia, é isso que eu encontro na política.

 

Como é que foi viver esses anos quentes no parlamento?

Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista pessoal. O parlamento não era como é hoje, nessa altura havia substância. Hoje, um debate ganha-se em função dos sound bites, e o efeito replicador que aquilo que se diz tem nos meios de comunicação. Naquela altura, sabíamos quando tínhamos perdido um debate em função da força dos argumentos. Todos os debates de 82, 83 eram uncharted waters, águas não marcadas. Era muito estimulante e motivador.

 

Era olhado como odelfim de uma geração. Uma promessa.

Não vou falar sobre delfins ou “delfinados”, ou expectativas…

 

Como é que isso mexia com a sua vida, com a sua auto-estima?

Não sei, não tinha essa percepção. Quer que eu lhe diga o quê? Nunca me motivou particularmente a ideia de exercer o poder. Conhecer, perceber as regras, a vários níveis, nacional e europeu, é um factor de motivação. A ideia de transformar a vida das pessoas está presente e tem a ver com o ideário da esquerda. Com o decorrer dos anos percebemos o relativismo da capacidade de mudar.

 

O que é que é ter poder? Quando é sentiu que tinha poder? Poder, nessa acepção mais comum, está conotado com dinheiro, status, autoritarismo; também com a capacidade de mudar e de fazer coisas.

O poder só se justifica se for para transformar a vida das pessoas em função de um conjunto de valores. Todo o meu perfil é de sensibilidade à autoridade mas de rejeição absoluta ao autoritarismo. Não vai com o meu feitio, não vai com o meu percurso, não vai sequer com a minha formação intelectual – não acredito nos argumentos de autoridade porque sim, ponto. A experiência chinesa é interessante: os chineses dizem que “Não há verdadeira vitória que não seja aquela em que o adversário sai com face.” Sou um chinês nesse aspecto!

 

Como foi a experiência de Macau? O que é que aprendeu?

Foi curta, felizmente. O meu filho mais velho, quando voltou, ao fim de um ano e meio, não falava português, só cantonense. Todos os pais têm problemas de comunicação com os filhos por volta dos 15 anos de idade, o meu começou aos dois anos e meio! [risos] Obviamente que foi um período enriquecedor. Era uma área em grande ebulição. Hoje, o maior desgosto é ir a Pequim e quase não ver bicicletas. A imagem que tenho dos primeiros impactos com a China é, às seis da manhã, ver hordas de bicicletas de pessoas que iam para o trabalho, com os aros das rodas a cortar o vento – faz uma tonalidade particular. Foi preciso fazer uma aprendizagem acelerada de uma cultura e de uma postura diferente daquela a que estava habituado.

 

“Só há vitória completa quando o adversário sai com face”. Que outras coisas aprendeu com os chineses?

A paciência. A ideia de que o tempo é um factor importante em qualquer processo de decisão. O domínio do tempo é muito importante. A temperança é uma virtude, também se aprende.

 

Aprendeu a fazer negócios nessa altura?

Não. Vivíamos numa praça livre, um porto franco. Os negócios corriam de uma forma vertiginosa. Era possível observar. Conheci um bispo que jogava na bolsa de Hong Kong!

 

Jogou na bolsa de Hong Kong?

Nunca. Não me seduz a ideia do jogo. Os chineses são capazes de apostar se a próxima pessoa que vai virar a esquina é um homem ou uma mulher. Há uma dimensão lúdica que é cultural e que tem pouco a ver com aquilo que são os meus valores e os meus referenciais.

 

Não é fácil imaginá-lo na rua, perdido entre a multidão, a apostar com ela. A imagem que se tem de si é a de homem agarrado à sua secretária, ao telefone, ao livro.

Os meus momentos de libertação eram, sem ninguém saber, pegar no jetflyer, o barco movido a turbinas, e em 40, 45 minutos ir a Hong kong, e estar uma hora a passear nas ruas, no anonimato, vendo as pessoas, como reagiam, como se comportavam, ouvindo os sons (uma coisa que sempre me fascinou).

 

O quero dizer é que não o imagino numa vidinha de todos os dias. Vai ao supermercado?

Vou, naturalmente. Mesmo quando era ministro ia ao supermercado. A minha mulher nunca me deu folga nisso! E, na óptica dela, não vou o número de vezes que devia ir.

 

Quando é que foi ao supermercado a última vez, para comprar detergentes ou salmão?

A semana passada! Temos uma casa grande e o abastecimento é necessário. Tenho dois filhos e dois enteados, filhos do primeiro casamento da minha mulher, que vivem connosco; um filho do meu primeiro casamento, e um filho do meu segundo casamento.

 

Vai ao supermercado porque a sua mulher não lhe dá folga ou porque sente prazer nesse prendimento à realidade?

Mas não me sinto nada distanciado da realidade! A vida quotidiana é muito importante. Até quando estava em Bruxelas, como comissário, ia ao supermercado. Jogo jogos de estratégia no computador; não creio que seja justo acharem que sou um rato de biblioteca, não é o meu perfil. Sou um workaholic, isso sim. Trabalho muito, muitas horas; enquanto a idade e a saúde física e mental mo permitirem faço isso.

 

É um homem novo. Porque é que está a dizer isso da saúde mental e física?

Cinquenta e um anos. Thanks for the compliment [obrigado pelo elogio].

 

O que é que gostava ainda de fazer? O que é que ainda quer da vida? Quer ganhar dinheiro, quer reconhecimento?

Várias vezes me colocaram essa pergunta, e sempre disse que era mais ambicioso que aquilo que as pessoas podiam imaginar; respondi sempre: “O que quero é ser feliz”.

 

Respondia isso a quem?

A jornalistas. Que é quem faz esse tipo de pergunta, convenhamos, irritante. [ri-se muito]

 

Não estou a ver o Guterres a perguntar ao Vitorino: “O que é que você quer? Em que Ministério é que eu o coloco?” E o Vitorino responde: “Quero ser feliz”! É uma pergunta depurada, que nos ajuda a perceber como se escolhe isto e não se escolhe aquilo.

A minha vida pessoal responde a isso. A frase do presidente Clinton é iluminante. Porque se a pessoa exercer um cargo a contragosto, apenas porque existe uma espécie de imposição supra moral para o exercer, mas se não tiver a convicção de que é feliz nesse exercício, tenho a certeza absoluta que exercerá esse cargo mal. Não abdico desta grelha de leitura. Eu respondia desta maneira há 20 anos. E vou continuar a responder.

 

Politicamente, houve momentos em que podia ter sido tudo… Os mais altos cargos políticos estavam ao seu alcance. 

 Não estou a perceber o contexto da sua pergunta.

 

Há 15 anos atrás, antes do episódio da SISA, pensou que era legítimo ambicionar ser Primeiro-Ministro? Ou até Presidente da República, num horizonte não muito dilatado, porque viveu tudo muito cedo.

Já percebi. O que são esses estados de alma, é como o fado da Amália, nem às paredes confesso! Não é a si que vou confessar.

 

Porquê?

Porque é a minha maneira de ser. Nunca criei em ninguém sinais nem expectativas de que queria qualquer lugar. A pergunta certa não é essa, a pergunta certa é: onde é que surgiu da minha parte um acto, uma declaração, um indício, de que era isso que eu pretendia? Ficamos conversados sobre esse assunto em definitivo?

 

É um título que se lhe cola: O homem que não chegou a Primeiro-Ministro por não ter pago a SISA.

[risos] Como título, é divertido! É a única coisa que posso dizer!

 

Mas como é que olha para isto? Imagino que na altura não tenha sido nada divertido.

Não, não foi. Mas a questão de não ter chegado a Primeiro-Ministro, na minha modesta opinião, não tem nada a ver com isso. A minha resposta está dada: nunca dei sinais de andar a correr atrás [disso].

 

Como é que viveu este episódio da SISA?

Matéria sobre a qual falarei nas minhas memórias... Aí tem um pequeno toque de vaidade.

 

Pergunto-me se o seu pai ou a sua mãe lessem as suas memórias, se o reconheceriam completamente como o filho deles?

É o tipo de resposta pessoal e intransmissível, que nunca me atreveria a dar em nome dos meus pais. As memórias são uma forma de dialogar com a posteridade. Ao longo destes episódios na minha vida, uns felizes, outros infelizes, só me preocupou o que é que pensavam e como é que reagiam aqueles que gostam de mim e de quem eu gosto.

 

Serão memórias de que tipo?

A experiência acumulada merece uma reflexão. Uma reflexão sobre a natureza da política e a natureza humana. São, aliás, indissociáveis. Acho que acumulei, so far [até agora], essa experiência de reflexão e de avaliação. Não é apenas uma auto justificação – como muitas memórias são – não é um diálogo com a transcendência – não aspiro a isso – mas acho que pode haver interesse para outros num testemunho sobre um quarto de século onde muitas coisas mudaram profundamente na nossa vida colectiva.

 

Como negociador e como homem que viveu no centro do poder, presumo que tenha aprendido a perceber o que são relações gratuitas e o que são relações interessadas.

Talvez tenha sido nessa dimensão que tive ao longo destes anos as maiores desilusões.

 

Não há almoços de graça. É isso?

Sim, se quiser utilizar a expressão clássica, eu diria que a natureza humana é extraordinariamente volúvel. Como se costuma dizer, há males que vêm por bem. Já passei por fases em que tive a oportunidade de testar o perímetro desse grupo, e de me sentir reconfortado.

 

Voltando ao exercício da sua mãe: vamos imaginar que ao almoço conta a história de um filme ou de um livro; o que é que contaria?

 Depende do meu estado de espírito, do momento em que vivo. Há autores a quem sou fiel, o Philip Roth...

 

É extraordinário que o aponte. O corpo, a condição humana, a decadência física são o tema central dos últimos livros de Roth. Não se imagina que esses temas o interessassem especialmente.

É muito simples: porque fazem parte da natureza humana. A dimensão física: lá porque sou pequenino e baixinho, e por o meu corpo ser finito, não significa que não atribua importância ao corpo.

 

Ter sido tão ávido, tão trabalhador, tão articulado era uma forma de deslocar a atenção de uma coisa que podia ser estigmatizante, que é ser tão pequenino, para um domínio no qual se distinguia?

Essa teoria da compensação nunca me motivou. Costumo dizer a brincar, mas a sério, que a única circunstância em que a altura me prejudica é quando tenho que pôr a mala na bagageira de cima nos aviões. Temos que estar bem com o corpo, essa é que é a questão essencial. E eu estou muito bem.

 

Não deve ter sido fácil, na adolescência por exemplo, ser mais baixo que os outros.

Se tive problemas, eles não ficaram na minha memória. O único momento em que posso ter tido alguma angústia foi quando o cabelo começou a cair prematuramente! [risos] Quando o cabelo começa a cair aos 29, a ideia do envelhecimento ainda é distante..

 

Em Patrimony, fala da doença do pai. No Exit Ghost fala da impotência.

Da impotência e da incontinência, ligada com o cancro da próstata. Há uma dimensão prosaica da vida, que não percebo porque é que me deve estar excluída.

 

É só a imagem pública que tem.

Eu gosto muito de ler, de ouvir música, de ver filmes. Sou fã do Woody Allen, identifico-me muito com uma ironia de vida que está subjacente ao Woody Allen.

 

Aqui estão temas de que nunca que pudéssemos falar: impotência, incontinência… Com quem é que fala destes temas?

Those are facts of life. [São factos da vida] Falo com a minha mulher, naturalmente, que é médica. Sou hipocondríaco e casei com uma médica. Ela é ginecologista e não me serve de muito...

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011