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Anabela Mota Ribeiro

Isabel Moreira (s/ Portugal)

21.05.14

Isabel Moreira pensa e fala como uma constitucionalista. É o que é, na sua essência. É também uma política que não se põe fora dos políticos numa fase em que estes são a corja vilipendiada. Uma política pela qual se dá, que usa palavras como desesperança e translúcido. Ou que diz que está drogada com drogas lícitas e que se surpreende com o facto de se fazer uma notícia com isso.  

O que é que ela se orgulha de ter feito nos dois anos que leva de Parlamento? Já passou tempo suficiente para se olhar para os anos Sócrates sem o ódio primário que o ex-primeiro ministro desencadeia? É Seguro uma alternativa vigorosa a Passos Coelho? E Cavaco? E as tensões na coligação?

Domingo de manhã, conversámos na sua casa. Via-se o rio. Nasceu no Rio de Janeiro, e talvez por isso o seu elemento seja a água.

 

Gostava de começar pelo título de um livro seu, Quando uma Palavra não Basta. Quando é que as palavras bastam?

Não podemos desistir das palavras. Se às vezes o silêncio é precioso, pelo menos no espaço público, desistir das palavras é desistir do combate, do pluralismo. E não desistir das palavras não se resume ao que literalmente isso possa significar: é não desistir das palavras certas.

 

E há palavras certas?

Há. São as palavras que não são enguias.

 

O que são “palavras-enguias”?

São palavras que não podem tergiversar. Sem espinha dorsal. É muito importante, e no momento em que vivemos, tão dramático, não desistir das palavras... De forma a que não se crie uma opacidade relativamente a quem fala e a quem é escutado.

 

Mas há palavras com interpretações díspares, mesmo quando não são palavras-enguias, mesmo quando têm coluna. Está de acordo?

Sim.

 

Então, como compreender que elas possam assumir um espectro tão largo de interpretações e possam ser usadas com sentidos opostos tantas vezes?

Isso dava para falarmos horas e horas. As interpretações diferentes são inevitáveis, faz parte da floresta que é a linguagem. O que não quero é que haja por parte de quem fala a intenção de mascarar a realidade.

 

Vamos a uma palavra: Portugal. A partir daqui podemos também falar horas. O modo como vê o país agora é substancialmente diferente do modo como o via antes de estar no Parlamento?

É substancialmente diferente. Mas não tem tanto a ver com estar no plenário como com o facto de estarmos objectivamente a viver uma crise que não tem precedentes. Pondo-me na situação hipotética de não estar no Parlamento, creio que teria o mesmo espanto e a mesma angústia. É uma crise diferente das que conhecemos. O conhecimento, a sabedoria, a técnica para encontrar respostas tem que ser descoberto. Não podemos ir buscar casos paralelos ao passado para enfrentar a crise de 2013.

 

A queda do Lehman Brothers representou um momento retumbante, de declínio. A irreversível crise financeira mereceu então respostas diferentes no mundo todo. Mas em Portugal a crise tem contornos específicos. Quando fala, está a pensar sobretudo na crise do país ou na crise à escala europeia, e mesmo mundial?

Da crise portuguesa (sendo que a crise portuguesa tem evidentes vasos comunicantes com o que foi a evolução da crise mundial, financeira, fruto de uma desregulação eticamente insuportável e de muitos outros factores) e da crise europeia. Essa crise mundial, e depois essa crise europeia, com as suas especificidades e os seus reflexos em Portugal, e depois as políticas que são assumidas em Portugal com o grau de autonomia que é possível, gera uma especificidade concreta.

Mas não esqueço que isto tem factores externos e que a solução para podermos ter esperança, e não continuarmos nesta desesperança, não é apenas à escala nacional. Quando falo de Portugal falo de um Portugal inserido numa Europa e inserido no mundo. Falo do Portugal de hoje.

 

Algumas vozes têm estabelecido um paralelo entre esta crise e o que se viveu nos anos 30. Ou mesmo entre esta crise e o crescendo para a 1ª Guerra Mundial, o período anterior a 1914. É possível encontrar esta estranha filiação, esta perigosa filiação?

Não acredito nisso. Esta crise é diferente das outras crises que atravessámos. É uma crise num mundo diverso do mundo que existia à época das crises que referiu. Ir buscar instrumentos ao passado não resolve nada.

Todas as estruturas, todas as políticas, as sociais, as culturais, as democráticas, o fenómeno da globalização, a integração europeia..., tudo isso tem de estar presente na solução desta crise. Nessas crises estes elementos não estavam presentes. E também é destes elementos que nasce a especificidade desta crise. Claro que não vivi essas crises, mas estudei-as, e não encontro os paralelos que interessariam para uma sabedoria, que é urgente.

 

Nem do ponto de vista político? Quando se fala de uma classe média que perde regalias, do crescimento de um espaço onde possa surgir um ditador populista, nem aí encontra semelhanças?

Há factos objectivos que acontecem em variadíssimas crises, como a destruição da classe média, a pobreza, a fome. Fome é fome, seja em que ano for. Pobreza é pobreza, seja em que ano for. Destruição da classe média é destruição da classe média, seja em que ano for.

O que caracteriza esta crise, a forma como a podemos ultrapassar, o efeito que ela está a ter a outros níveis, isso é que não tem paralelo.

 

Voltando ao que pensava sobre Portugal quando foi para o Parlamento, e àquilo que pensa neste momento. O que é que imaginava que se revelou o oposto disso? É diferente o país visto de fora e visto de dentro?

Pensava que a Assembleia era menos procedimental. Apesar de ter 12 anos de ensino de Direito Constitucional [na universidade]. Não sabia que era tão difícil fazer coisas que a mim me pareciam simples. Como elaborar um projecto de lei, apresentar aos meus camaradas, discutirmos juntos. Até por causa da compartimentação. É aparentemente fácil ganhar a adesão rápida dos nossos camaradas, mas não é. As pessoas estão assoberbadas nas suas próprias comissões. Há pessoas ligadas à saúde, outras ligadas à cultura, outras ao ambiente. No meu caso, aos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e à subcomissão de Igualdade. Até a diversidade saudável da especialidade de cada deputado torna isso mais difícil.

E depois, a movimentação política que é preciso fazer para ganhar adesão a uma determinada iniciativa. Não sei fazer isso.

 

Não sabe como?

Não sabia e ainda não sei quais são os passos [desta] parte do Parlamento, a que as pessoas não têm acesso, mas que é política pura. Não sou política, nesse sentido. Faço as coisas, apresento-as, ou defendo determinados projectos ou ideias, e nunca penso nas consequências políticas. Não sou boa política no sentido de me salvaguardar para um eventual futuro. Se for mais cautelosa aqui, noutro projecto terei mais adesão ali.

 

Está a falar de táctica.

A táctica política não me ocorre naturalmente. Não é arrogância, é talvez ingenuidade. Na defesa de um determinado projecto alguém me diz: “Se não pronunciares dois dos quatro princípios, com mais facilidade terás adeptos”. E eu vou até ao fim dos quatro. E depois, se explodir, expludo. Se der certo, dá. Não consigo ser táctica.

Percebi que continua a ser muito difícil criar uma ligação entre o eleitorado e os eleitos.

 

É um dos sinais mais preocupantes e agudos do tempo que vivemos, a separação entre aqueles que elegem e aqueles que são eleitos. Ocorreu-me uma velha canção dos Salada de Fruta: “Demagogia feita à maneira é como queijo numa ratoeira”. É a demagogia que repudia, mesmo sabendo que quando feita à maneira ela é queijo numa ratoeira?

Não iria tão longe. A táctica é legítima. “Os fins justificam os meios” desde que os meios sejam legítimos. A política também é a arte de negociação, da cedência. Mas não tenho esse sentido de táctica. Não consigo negociar princípios. Não consigo ceder na argumentação. Arrisco sempre.

 

Porquê?

Tem a ver com identidade. Em toda a minha vida, no Parlamento, noutros locais onde trabalhei, claro que aprendendo com o que fiz, e isso muda as pessoas, mas na essência saí sempre igual ao que entrei. Nunca me desintegrei.

 

Sabe sempre onde está a barreira?, onde é que ela está entre aquilo que é negociável e aquilo que não é negociável?

É negociável o que tem a ver com compromissos normais que devem ser feitos entre os partidos políticos para se chegar a um resultado comum. (Não tem sido possível nestes últimos dois anos chegar a compromissos.) A negociação de boa fé é essencial à política. Mas não gosto da negociação interna que podemos fazer connosco próprios no sentido de ocultar um pouco algumas das nossas convicções quando expressamos oralmente no Parlamento aquilo que queremos defender, ou mascarar aquilo em que acreditamos num ponto máximo para conseguir um ponto médio. Chega ao ponto de o tom de voz, de a nossa fisicalidade se alterar. Em determinadas matérias ser menos assertivo, ter um discurso mais sorridente para os partidos aos quais nos opomos... Não consigo abdicar da minha fisicalidade ou da minha assertividade.

 

Estava a pensar naquela vez em que interveio na Assembleia, depois de ter feito uma intervenção cirúrgica. Disse uma coisa que pareceu deslocada naquele contexto. E que foi treslida.

Disse: “Estou drogada com drogas lícitas”. Não sabia os nomes dos remédios [risos].

 

Quando diz uma coisa dessas tem noção de que aquele ambiente pode ser hostil, que pode ser ridicularizado?

Nenhuma, só percebi depois. E isso é sinal de um país ainda muito cinzento. Devíamos passar umas boas horas a ver o Parlamento inglês a discutir, as coisas que se dizem, as graças violentas que são proferidas. E não passa pela cabeça de ninguém fazer uma notícia disso. Quando vi tudo preto e percebi que ia desmaiar, disse: “Fiz uma cirurgia ontem à noite” – coisa que não passou nas televisões, porque a notícia ficava menos açucarada. Foi uma resposta que achei curta e rápida para sossegar as pessoas. Não sabia qual é que era o procedimento se uma deputada desmaiasse no Plenário.

 

Foi ingénua?

Para mim isto é espontaneidade – nem gosto que chamem ingenuidade. Não devia ser notícia, faz-me impressão que ainda seja notícia. E receber telefonemas de apoio – mas apoio porquê? Devia ser apoiada por ter sido operada na véspera e estar ali para cumprir o meu dever e votar. Ninguém se lembrou de ver a coisa por esse lado. Não tenho essa noção. Mas acho bom não ter. Estamos a entrar num caminho perigoso em relação ao controlo da linguagem no Parlamento.

 

Estamos substancialmente mais contidos?

Como o país está muito crispado, a crise é muito violenta... Se ler as actas da Assembleia da República, como li por causa da minha tese de mestrado (sobre Direitos, Liberdades e Garantias e Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa). Li todas desde a Constituinte, desde 1975 até 2000, demorei um ano. Se verificar a liberdade de discurso que já houve, [constata que] estamos a regredir.

 

Abramos aqui um parêntesis para contar algumas coisas que foram ditas nesses anos pós-Revolução. Eram anos muito particulares, estava tudo muito exaltado.

Mesmo mais tarde havia mais liberdade do que há agora. Claro que na Constituinte os ânimos estão exaltadíssimos. O peso da ideologia é fortíssimo. O fascismo tinha sido derrubado e havia uma euforia a discutir, desde logo a feitura da primeira Constituição democrática depois de 48 anos de fascismo. A facilidade com que se acusavam as pessoas de manobras contra-revolucionárias... “Você está a querer provar uma coisa que tem por objectivo destruir o processo revolucionário em curso. Isso é uma coisa que um marxista jamais poderá aceitar!”. Do lado da direita, a mesma coisa. Fascista para um lado, comunista para o outro.

Mas lendo as actas nas revisões constitucionais posteriores, de 1982, de 89, de 92, de 94, de 97, anos recentíssimos, há uma liberdade que está a ser perigosamente afectada.

 

Porquê?

Penso que a crise [funciona como] pretexto para silenciar o adversário. Aquilo que era uma linguagem política metafórica normal… e que deve ser. Quando faço um discurso político não estou a fazer um discurso jurídico. Quando digo: “Na situação actual, com os mais velhos a receberem os filhos e os netos em casa, é criminoso o que se está a fazer aos pensionistas”, imediatamente há um protesto à mesa. Porque se disse a palavra criminoso. E então faz-se uma defesa da honra porque crime é um acto típico previsto no Código Penal.

Quando alguém usa a palavra crime num contexto destes não está a pensar no Código Penal. Está a pensar numa linguagem política. Mas basta dizer que as pensões ou os salários foram roubados...

 

Roubo é ofensa.

[É invocado:] defesa de honra.

 

Partindo desses exemplos: não há nenhum partido que não o faça. Quem é que perigosamente silencia? Isso serve quem, é feito por quem?

Sim, a defesa da honra toda a gente faz. Tem sido mais por parte da direita, porque é a direita que está no poder e é a direita que vê projectada naquelas palavras aquilo que as pessoas estão a sentir. As pessoas na rua usam a palavra “roubo”, usam a palavra “crime”, e não estão a pensar no Código Penal.

 

Voltando atrás, ao divórcio entre eleitos e eleitores. É também uma decorrência da crise?

É uma decorrência da crise, claro. É uma decorrência da desesperança, que é um termo muito importante para mim quando caracterizo esta crise. E é uma decorrência do discurso, de falta de lideranças fortes, quer a nível mundial, quer a nível nacional. O discurso não é translúcido.

 

É uma palavra inesperada quando se fala de política.

Não é. Ponho-me no lugar de um cidadão que quer perceber o que é que se está a passar, o que é que cada um está a propor, e temos muito nevoeiro por desbravar. As pessoas vêem o estado das suas vidas. Sabem quem é que tem poder para fazer alguma coisa. E em não melhorando nada, viram as costas aos políticos.

 

Isto vai dar onde?

É perigoso. Vai dar a movimentos altamente inorgânicos, sem ideologias definidas. À ideia de que todos os políticos são uma corja, a generalizações. A reinvenções populistas, com uma linguagem de uma simplicidade demasiada, mas estudada, para cativar as pessoas. Coisas como: “Toda a gente devia poder candidatar-se ao Parlamento”, “Para quê tantos deputados?, é lá que estão os custos”. Dá lugar a extremismos, perigosos. Ao crescimento de partidos de extremos, que na verdade são partidos de protesto, mas não são partidos de governo.

 

Mas crescem.

Mas crescem.

 

Na semana passada um miúdo de extrema-esquerda foi morto por neonazis em França. É verdade que casos destes não aparecem de um modo sistemático, mas é tremendo que apareçam.

É sobretudo tremendo quando pensamos na nossa memória colectiva. Passámos por experiências colectivas na Europa sobre as quais ainda é preciso falar tanto. Quando pensávamos que já tínhamos lambido as feridas, de repente um acto desses é possível.

 

Voltemos a Portugal e à sua presença no Parlamento. Desde que é deputada, já lhe apeteceu desistir? Cada vez mais é preciso que não-políticos assumam funções como aquela que desempenha?

Não me passa pela cabeça desistir. Gosto muito do que estou a fazer. Sou uma política. Não me ponho fora dos políticos. O que digo é que não tenho jeito nem vocação para a táctica política. A política ganha com a diversidade de formas de estar na política.

 

Vejamos essa falta de vocação para a táctica política na prática.

Aquando do Orçamento de Estado de 2012, dei uma entrevista na televisão, antes de termos discutido no grupo parlamentar o Orçamento de Estado, e imediatamente, porque retiravam dois subsídios de férias e de Natal aos pensionistas, reformados e funcionários públicos, disse que eram normas inconstitucionais. A Constituição dá-me a prerrogativa de me dirigir ao Tribunal Constitucional desde que junte um décimo dos deputados. Tem a ver com o poder dos deputados e não dos partidos. Por que é que havia de esperar para falar com quem quer que fosse para dar a minha opinião sobre a inconstitucionalidade das normas? Ainda por cima estavam a fazer-me uma pergunta como constitucionalista.

Depois na prática não é assim. Uma pessoa diz que quer avançar com um processo de fiscalização da constitucionalidade e é importante para o grupo parlamentar que aquilo não seja uma iniciativa de um grupinho e que o PS se una. Isso aprendi. Fomos para a frente com o processo em 2012 e ganhámos. Houve uma consequência boa dessa atitude. No Orçamento de Estado seguinte todo o Grupo Parlamentar estava junto.

 

(Já usou a palavra “camarada”. É um termo muito esquerdalho.

Mas eu sou muito de esquerda. A palavra camarada é uma palavra associada à esquerda. A palavra que associo imediatamente à palavra camarada é luta. E luta num sentido de conjugação de esforços. Foi uma linguagem que ouvi muito na esquerda que frequentei, antes e depois de ser deputada. É uma palavra que me é amiga.)

 

Uma vez que introduziu esse tema, falemos já dessa acção junto do Tribunal Constitucional. Quando o fez tinha realmente a expectativa de que fosse chumbado?

Tinha quase a certeza de que as normas iam ser declaradas inconstitucionais. Estava indignada com o discurso anti-Constituição que se foi desenvolvendo. E indignada com esta ideia, bastante propagada: “Não gostam das nossas medidas, estão a tentar inviabilizá-las”. Como se fosse ilegítimo ir ao Tribunal Constitucional.

 

O que estavam a dizer era: “Não gostam politicamente das medidas e estão a tentar inviabilizá-las através da Constituição”?

E muito bem. A essência da Constituição é essa mesma. A Constituição é a lei das leis, mas tem uma dimensão política fortíssima, não de um ponto de vista ideológico, mas porque está lá a organização do poder político e todos os direitos fundamentais que temos. As decisões legislativas devem ser combatidas politicamente. E se acharmos que, para além de injustas, violam limites que a Constituição traça, quer para um Governo de direita, quer para um Governo de esquerda, temos, não a liberdade, mas o dever de agir em conformidade com a Constituição, que precisamente atribui esses poderes aos deputados, desde que sejam um décimo, para a defender. As coisas não são excludentes.

 

Surpreendeu-a que no ano seguinte o Governo fosse no essencial no mesmo sentido, ignorando o chumbo do primeiro ano?

Não me surpreendeu que o Governo insistisse no mesmo tipo de medidas porque o Governo faz isso a cada avaliação trimestral, em relação a tudo. Todas as medidas são as mesmas, por mais que as avaliações trimestrais demonstrem os resultados falhados do Governo. Não me surpreendeu porque o Governo tresleu o acórdão do Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional não aponta vinculativamente caminho nenhum, nem pode fazer isso. Diz o que é e o que não é inconstitucional.

O divórcio entre este Governo e a Constituição é tão forte em tantos domínios... Gostava de ter ido ao Tribunal Constitucional muito mais vezes.

 

Porquê?

As dúvidas de constitucionalidade a cada diploma são em catadupa. É quase impossível acompanhar o ritmo de desrespeito pela Constituição – que depois passa a ser rígida, socialista, um plano de governo, e tudo aquilo de que a Constituição tem sido alvo. Isto apesar de sete revisões feitas, todas com o voto favorável do PSD.

Quando veio este OE era evidente [que as medidas iam no mesmo sentido]. O Governo quer ir buscar dinheiro fácil, e não o dinheiro difícil de ir buscar.

 

Qual é o dinheiro difícil?

As renegociações das PPP, as rendas excessivas. O único sítio onde o Governo é patrão é aqui [nas pensões e subsídios]. Tive a mesma reacção que tive da outra vez. Trata-se de uma remuneração e os princípios aplicam-se da mesma maneira. E aqui foi muito importante o Grupo Parlamentar juntar-se. Foi muito importante ter havido dois processos, o do Bloco de Esquerda e do PCP, e o nosso. O BE e o PCP acabaram por ter duas normas que não tínhamos invocado.

O primeiro acórdão foi muito importante. Estamos a assistir a medidas tão violentas e tão divorciadas da Constituição que se não reagirmos elas instalam-se permanentemente.

 

De qualquer modo, a sua implementação não foi imediata.

O primeiro acórdão é muito criticado por ter adiado os efeitos por um ano – e naquele ano o Governo pôde contar com as verbas dos subsídios e das pensões. A verdade é que ficou estabelecido que para o Tribunal Constitucional não se podem cortar subsídios e pensões daquela maneira. Não teria sido possível ficar com esta segurança na nossa ordem jurídica sem o primeiro acórdão do Tribunal Constitucional. Se não tivéssemos reagido, banalizava-se. E aquilo que são direitos fundamentais – porque os subsídios são remuneração e as pensões também, as pessoas descontaram 14 vezes, não descontaram 12 vezes – foi garantido.

 

Quando olha para a sua intervenção nos últimos dois anos, quais foram as coisas que fez que a deixam mais orgulhosa?

Sem dúvida nenhuma o papel que tive nos dois processos de fiscalização de constitucionalidade. Foram momentos históricos desta legislatura. Gosto muito do trabalho de grupo silencioso. Gosto de fazer pareceres no que diz respeito aos diplomas que me são distribuídos.

Do ponto de vista pessoal, está a ser muito importante a questão da co-adopção. E gosto muito do debate de ideias que acontece dentro do Grupo Parlamentar para delinear uma estratégia comum. É rica, diversificada e verdadeiramente plural. E sinto-me muito bem nessa discussão. Não sinto necessidade nenhuma de aparecer muitas vezes ou de ser oráculo.

 

Embora isso aconteça, muitas vezes. Porquê?

No Plenário nem tanto. Mais em questões da Justiça, leis que me calharam, como a Lei das Fundações.

 

A entrevista realiza-se na semana em que se faz um balanço de dois anos de Governo Passos Coelho. Acha que este Governo vai terminar a legislatura?

Penso que o Governo pode quebrar mais por dentro do que por fora.

 

Crise na coligação?

Sim. O CDS está a fazer um esforço muito grande para não perder o seu eleitorado e ao mesmo tempo não ser responsabilizado pela crise. É um esforço diabólico. Obriga o CDS a dizer que mais uma contribuição nas reformas é uma linha vermelha; mas nada dizer relativamente aos outros cortes de pensões que representam um número assustador. É notória a crispação dentro do Governo. São notórias as acusações recíprocas, as humilhações recíprocas. Mais importante do que estar a pensar numa demissão imediata do Governo, coisa que me agradaria…

 

Apesar de toda a instabilidade das eleições e do processo que isso acarretaria?

Sim. A cada dia que passa com este Governo, o buraco é mais fundo. Erraram em tudo. Mas mais importante do que estar a pensar na queda do Governo, que é sempre uma possibilidade, é preciso construir um discurso de esquerda alternativo, mais forte.

 

Antes de irmos à esquerda. Como vê a actuação de Cavaco Silva? O que pensa que o presidente vai fazer?

Acho que Cavaco Silva não vai fazer nada.

 

Porquê? Porque é PSD?

Não. Porque faz parte da sua genética política. Não estou a ver o Presidente da República a assumir o risco de sair culpado. Não é um homem de riscos.

 

Culpado de pôr Portugal…

De, depois das eleições, sair uma situação difícil para o país em termos de estabilidade política. Não penso que de Belém alguma vez venha uma atitude vigorosa.

 

As pessoas têm sido muito críticas, de um modo geral, e esse clamor cresce, sobre o papel de Cavaco Silva. Acha que é um desapontamento, também, para os que votaram nele?

Acho. Nunca tínhamos visto. O Presidente da República goza de um estatuto, inter pares, de independência. De ser presidente de todos os portugueses. Que é uma coisa que, na prática, não penso que Cavaco Silva seja.

 

O que é que a leva a dizer isso?

Se olharmos para aquilo que foram os seus discursos relativamente ao Governo Sócrates, e aquilo que são os seus discursos relativamente ao Governo actual, no estado em que estamos, com o PIB que temos, com a balança mentirosamente optimista de pagamentos que temos, com um milhão e duzentos mil desempregados – que já agora é um número falso, ninguém conta com aqueles que se foram embora, e também não estamos a contar com os não inscritos; quando olhamos para uma economia que se destruiu, que não sei como é que se vai levantar do chão... Quando olhamos para os discursos do Presidente num [caso] e noutro, [concluímos que] é um Presidente tendencioso. Foi um Presidente que representou uma das peças de uma estratégia de derrube do Governo anterior.

 

É deputada independente pelo PS. Mas queria perguntar se acha, de facto, que o PS aparece aos olhos dos eleitores como uma grande alternativa? Ou apenas como uma alternativa possível?

Espero que o PS esteja cada vez mais a aparecer como a alternativa. António José Seguro partiu de um início difícil porque havia uma equivocada culpabilização do Governo socialista anterior pela situação actual. Foi difícil para António José Seguro arrancar como teria sido para qualquer um.

 

Não tem a ver com o carisma de Seguro?

Não penso que seja um problema dele. Tem sido, e isso deve ser sublinhado, a pessoa com o discurso interno mais coerente, e com o discurso externo mais coerente. Ele nem sequer é primeiro-ministro e tem feito um esforço de fazer contactos com outros líderes pela Europa fora, percebendo o evidente: que não é sozinhos que vamos combater uma política de austeridade. É juntos.

António José Seguro tem tentado promover um diálogo à esquerda, que é difícil, porque tem que haver cedências de parte a parte. E tem que se ter em conta o peso eleitoral que têm o PCP e o BE. Mas deve continuar a traçar uma fronteira entre aqueles que dizem: “Rasgue-se o memorando”, mas não dizem o que é que isso significa exactamente, e aqueles que dizem o que ele diz.

O que é que significa o: “Rasgue-se o memorando, pronto”? Significa que o Banco Central deixa de nos financiar e significa a saída do Euro. Se querem isso, assumam-no até às últimas consequências. A via do Partido Socialista não é essa. O PS é um partido de Governo, nunca diz: “Não pagamos”.

 

A via do PS, e que subscreve, é: “Pagamos”. O que é preciso é perceber como pagamos? Renegociar o memorando?

Sim. Renegociar o memorando, os prazos, os juros, a questão do BCE (por causa do resgate de cada país, o BCE fica com juros e esses juros deviam ser devolvidos aos países; é uma proposta de António José Seguro que me parece justa). É uma espécie de usura o BCE ficar com esses juros. Passa por isso e por um combate da ideia de que o cerne da política é o défice.

 

Já passou o tempo suficiente sobre o Governo Sócrates e os principais problemas desse Governo aos olhos do eleitorado, nomeadamente o BPN, as PPP, para que se comece a olhar para esse período com outros olhos?

Foi possível desmistificar algumas coisas em relação ao Governo Sócrates. Ele herdou o Governo de Santana Lopes, com um défice à roda dos sete porcento, sem crise. As pessoas agora já não se lembram – começam a lembrar-se. Fez uma conjugação de controlo de défice sem recuo nas políticas sociais – aliás, aumentou muitas das políticas sociais – como poucas vezes pudemos assistir. Fez uma aposta forte na educação, na reforma da Segurança Social. Depois sofreu as consequências de uma crise internacional que caiu em cima de todos. As políticas que seguiu foram as políticas recomendadas pela União Europeia para combater a crise.

 

A crise não atingiu todos por igual. E nunca um primeiro-ministro foi tão odiado.

A ideia de que tudo se deve ao Sócrates, mesmo as PPP... Estamos a falar de 28 PPP: 8 são do Governo de José Sócrates. A campanha era tão agressiva, tão agressiva... Era muito difícil desmascará-la em plena crise, com o défice a disparar. Todos os outros défices dispararam.

Mas as pessoas já perceberam que este Governo derrubou o outro Governo com um determinado programa. Acreditava, e declarou isso no Parlamento, numa austeridade expansionista. “Gostamos deste memorando, mas ainda queremos ir mais além”. Tiveram um efeito recessivo monstruoso.

 

A zanga com Sócrates, acabou ou não?

Ao fim de dois anos as coisas estão no estado em que estão. Já não pega o argumento do passado. Outra coisa: o primeiro-ministro, num discurso de campanha de um autarca, em dois minutos disse cinco vezes que não tinha medo. Parece-me um indicador curioso do estado em que o primeiro-ministro na verdade está. Eu estou com medo. Estranho que ele não esteja.

 

Está com medo do futuro?

E do presente.

 

E por isso desesperança é a palavra que repete? É a palavra que melhor descreve o que sente?

O que sinto que as pessoas sentem. Não só quando vejo os números, que são assustadores. À falta de perspectiva chama-se desesperança.

 

Com quem é que gostava de falar sobre desesperança? Com Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho, Angela Merkel, Mario Draghi, Christine Lagarde?

Seria difícil escolher um desses.

 

Estou a perguntar quem é que mais pode mexer com a nossa realidade.

Seria muito difícil falar com algumas dessas pessoas. Mas sentir-me-ia obrigada, mesmo com a convicção de que haveria muitas paredes entre os dois, em termos de da minha boca sair uma palavra e nos ouvidos da outra pessoa entrar uma coisa que não tinha a minha intenção, uma vez que vivemos em mundos incomunicáveis, por dever escolheria Passos Coelho.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013