Grace Kelly
Numa das suas últimas entrevistas, Grace Kelly vestia um vestido de seda, branco, de ramagens verdes, que ligava bem com os olhos claros e o cabelo louro. Perguntavam-lhe sobre Hollywood. Ela foi assertiva quando disse: “Tenho saudades de representar. Note bem, não tenho saudades de ser uma estrela de Hollywood – é muito diferente. Mas tenho saudades de ser actriz”. Era então uma mulher madura, a voz era menos expansiva; com algo, até, de uma resignação que não esperaríamos nela, quando a vemos aos 20 e poucos anos, como um pássaro, esvoaçante, essência da frescura e da leveza, nos cinemas. A voz expressa essa alteração. Que terá sucedido entretanto, (além da vida que a todos sucede e por vezes nos faz desembocar na melancolia)?
Foi uma mulher a quem o sonho aconteceu. Era uma mulher a quem ficavam bem os laços e os colares de pérolas. A subtileza, a contenção. Basta olhar para ela no set de Mogambo, ao lado de Clark Gable e Ava Gardner, para perceber que só ela podia usar aquela blusa de bom algodão, tom pálido, que não evidenciava o recorte do peito, de estilo colonial. Grace não ficaria bem com o pullover justo e provocante da Gardner, encarnação da femme fatale, também apelidada de “o mais belo animal do mundo”. Ficava-lhe bem a cintura marcada, a saia travada, não demasiado travada, a saia rodada, amplamente rodada. O twin set (é o que veste quanto Bing Crosby lhe canta True Love no filme High Society). Tinha o estilo da menina-bem-comportada. Foi a perfeita heroína hitchcockiana: “a loira calma e elegante, com fogo a arder por dentro” – disse o realizador no livro É só um filme – Vida e Obra de Alfred Hitchcock.
Não raro, persistia a noção de não serem diametralmente opostas de si as suas personagens mais famosas.
Em Ladrão de Casaca, do mestre do crime, é uma herdeira rica, de férias na riviera francesa. É uma jovem púdica que fica embaraçada pelo tom desbocado da mãe. E é aquela que enverga um vestido de deusa, no melhor estilo greco-romano, e que antes de fechar a porta do quarto a Cary Grant, sem uma palavra, o envolve num beijo fogoso.
Em High Society é também uma herdeira rica, implacável com o pai que namora coristas, que exige para si e para os outros uma moral asceta; e que se pergunta se é a pessoa gélida, a estátua perfeita que aparenta ser e que não chega a sair do pedestal. Os vestidos acentuam este perfil: o azul-cinza assenta-lhe como uma luva, o branco, com apontamentos de flores e cores suaves, também.
O estilo: Edith Head, que desenhou o guarda-roupa das estrelas dos anos 50, garantia que “Grace não tinha nada a esconder. Ficava perfeita com qualquer indumentária porque o que estava por baixo era perfeito. Mesmo as mais belas, que tinham de parecer perfeitas no ecrã, tinham qualquer coisa para esconder. Todas, menos Grace”. Edith Head foi responsável pelo look de Grace Kelly em Ladrão de Casaca e em Janela Indiscreta.
Grace gostava de representar, mas cedo se tranformou numa estrela de Hollywood. E mais tarde na Sereníssima Princesa do Mónaco. Três estados distintos. Um mesmo estilo, apurado ao longo dos anos.
Grace Patricia Kelly foi educada para ser uma princesa. Sem o ser. Acabando por sê-lo. Filha de um antigo campeão olímpico, um self-made-milionário de Filadélfia, um homem alto, imponente, bonito. A mãe era uma mulher que impunha aos filhos uma educação estrita, e que, apesar da abundância, ensinou à família o significado da frugalidade. Grace nasceu em 1929, foi a terceira de quatro irmãos. Foi educada na boa tradição dos católicos irlandeses, emigrados nos Estados Unidos, que vivem numa casa imensa, com piscina, e fazem filmes das crianças para um dia recordar. E que vão ao domingo à missa. E que fazem as meninas frequentar um colégio de freiras onde estas aprendem o recato e a boa educação e, de permeio, a perversidade – aquilo que faria dela, segundo o biógrafo James Spada, “a Marilyn do homem devoto”. Tímida, franzina, de uma fragilidade que contrastava com a robustez dos irmãos. (O actor Alex D’Arcy, um dos romances de Grace, garantia que ela era tímida, mas que fisicamente não o era” – lê-se no livro da Taschen dedicado a Kelly). Vivia num mundo de fantasia. Quis ser bailarina. Verdadeiramente quis ser actriz. E foi.
Mudou-se para Nova Iorque. Frequentou uma escola de representação. Viveu num lar de meninas prendadas, para sossegar a preocupação puritana da mãe. Insistiu em sustentar-se e trabalhou como modelo. Revelou-se uma surpresa. Quando em Filadélfia folheavam uma revista e a reconheciam, custava a crer que aquela mulher sofisticada, maquilhada, com uma sexualidade latente (que era preciso procurar, como também dizia Hitchcock), fosse a mesma que eles conheciam lá de casa; que usava óculos e punha os pés ligeiramente para dentro.
Trabalhou em séries de televisão e em teatro. Estreou-se no cinema em 1951. Ganhou um Óscar por The Country Girl em 1954. Tudo aconteceu depressa, espantosamente depressa. Entre a estreia e a consagração, fez dois filmes com Hitchcock (Chamada para a Morte e Janela Indiscreta), um filme com John Ford (Mogambo) e contracenou com Gary Cooper (High Noon). Que magia era a de Grace Kelly?
Tudo isto podia ser, apenas, o início de uma bela história: a da estrela de cinema. Mas outra história, superlativa, estava por vir: a da princesa do Mónaco. Tudo começou com uma ida ao Festival de Cinema de Cannes e uma subsequente visita ao Príncipe Rainier numa tarde de sol, na Primavera de 1955. Uma tarde que mudaria tudo. Ele mostrou-lhe os jardins e o zoo privado do palácio. Ela envergava um vestido às flores. Iniciaram uma correspondência, a intimidade cresceu. O príncipe visitou a família uns meses mais tarde. A família rejubilou. Que melhor genro o pai poderia desejar? Mr. Kelly era um trepador na escala social. O seu dinheiro novo não penetrava nas esferas do dinheiro velho de Filadélfia. E subitamente, a sua filha do meio era cortejada por um homem seis anos mais velho, católico, solteiro e príncipe… Irrecusável, não?
Grace foi recebida por uma salva de cravos quando o navio em que seguia aportou em Monte Carlo, uma semana depois de largar dos Estados Unidos. Primeiro deu-se o casamento civil, depois o religioso, em 1956. O Mónaco nunca mais seria o mesmo. O glamour de Grace, a modernidade que ela representava, fizeram do pequeno principado uma atracção turística. Estado e família Grimaldi fundiam-se aos olhos da opinião pública. A princesa abdicava do cinema para todo o sempre. Um filme, contudo, foi ainda feito depois do anúncio do casamento, High Society, por contrato com a MGM. Rodado, portanto, entre Janeiro e Abril. Nele, Grace usa o anel de noivado que Rainier lhe oferecera.
Casaram e foram felizes para sempre. Ou não foram. Vista de fora dos muros do palácio, Grace levava uma vida de princesa de contos de fada. Dentro dos muros, a sua vida parecia-se com a vida das pessoas normais. A princesa Stephanie diria: “A minha mãe estava rodeada de tanta magia… Quase deixou de ser humana”. Na mesma entrevista a que aludimos no começo do texto, Grace responde quando lhe perguntam se é feliz: “Não creio que alguém possa dizer que é feliz. Há momentos de felicidade”.
Vieram os filhos, as tensões, o desapontamento, o equilíbrio possível de um casamento indissolúvel. Os quilos a mais, a semi-separação quando se mudou para Paris e acompanhou Carolina na universidade, a putativa relação infiel com um jovem cineasta. Parte do mistério da actriz, do “gelo que queima”, desvanecia-se. A sofisticação e o estilo apuravam-se. O ícone mantinha-se.
O cinema ficou como um sonho longínquo. Mas um filme parecia especialmente premonitório. Ladrão de Casaca, rodado em 1955. Voltemos a Edith Head: “É capaz de imaginar? Grace Kelly a desempenhar o papel de uma das mulheres mais ricas da América, que pode pagar os trajes mais elegantes e as joias mais fabulosas. A seguir, um baile, com centenas de figurantes, vestidos como se estivessem na corte de Maria Antonieta. Hitch disse-me que vestisse Grace como uma princesa e assim fiz. Claro que não fazia ideia de que estava a vestir uma futura princesa verdadeira!”
Mais do que tudo, há uma cena que anuncia o final trágico da vida da princesa. Aquele em que a jovem herdeira, puritana e travessa, interpretada por Grace, conduz Cary Grant pelas estradas sinuosas do principado, delimitadas por mecos e vegetação, a uma velocidade estonteante. O perigo era imenso.
Foi nessa estrada que morreu, em 1982, aos 52 anos, num desastre de automóvel. Aventou-se a possibilidade de ter bebido em excesso, de ter discutido com Stephanie que seguia com ela, de Stephanie ter tomado o volante. A verdade definitiva fica por esclarecer. Importa? O mundo não assistiu à sua decadência física, o que alimentou o mito. Grace Kelly é o que cada um projecta nela.
Uma exposição no Victoria&Albert Museum, em Londres, conta a sua história através dos seus objectos idiossincráticos: a mala da Hermès a que deu nome, a Kelly, joias, chapéus, vestidos de filmes como High Society, o vestido que usou quando recebeu o Óscar da Academia, a estatueta-ela mesma, fotografias, vestidos de alguns dos seus costureiros favoritos (Dior, Balenciaga, Givenchy, Yves Saint Laurent). A exposição inaugura a 17 de Abril e fica até 26 de Setembro.
É uma evocação possível do mito. Não é a única. Como é que Grace Kelly gostaria de ser recordada? Di-lo com um sorriso, para a câmera. “Como uma pessoa que fez o seu trabalho, compreensiva, amável”.
Publicado originalmente na revista Máxima em 2010